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IDENTIDADES AMERÍNDIAS Sepé Tiaraju Lendas Missioneiras Salamanca do Jarau

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IDENTIDADES

AMERÍNDIAS Sepé Tiaraju

Lendas Missioneiras

Salamanca do Jarau

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Carlos F. Sica Diniz Identidades Ameríndias 2

COLEÇÃO AMERÍNDIOS

Aldeia Nossa Senhora dos Anjos

Protásio P. Langer

Escravidão de índios e negros no Brasil

Décio Freitas

Índio Kaingang do Paraná

Ítala I. B. Becker

Índio Kaingang do Rio Grande do Sul

Ítala I. B. Becker

Índios da Aldeia dos Anjos (Gravataí, RS)

Arquivo Histórico do RS

Sepé Tiaraju e a identidade gaúcha

Luiz Carlos Susin

Identidades Ameríndias

– Sepé Tiaraju, Lendas Missioneiras, Salamanca do Jarau –

Agemir Bavaresco e Luis Borges (orgs.)

Sepé Tiaraju – história e mito

Moacyr Flores

Sepé Tiaraju a São Sepé

César Pires Machado

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A presença indígena na obra de Simões Lopes Neto 3

Agemir Bavaresco e Luís Borges (orgs.)

IDENTIDADES

AMERÍNDIAS Sepé Tiaraju

Lendas Missioneiras

Salamanca do Jarau

Edição comemorativa

dos 250 anos da morte de Sepé Tiaraju

1756-2006

Com a colaboração de

CARLOS F. SICA DINIZ

MÁRIO MATOS

MATEUS WEIZENMANN

Porto Alegre, 2006

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Carlos F. Sica Diniz Identidades Ameríndias 4

© Agemir Bavaresco e Luís Borges 1ª edição: 2006

Esta edição é propriedade dos Autores.

Capa: Valder Valeirão

Ilustração da capa: Mário Mattos

Editoração e composição: Suliani Editografia Ltda. Rua Veríssimo Rosa, 311

90610-280 – Porto Alegre, RS E-mail: [email protected]

Fone/fax: (51) 3384 8579

ISBN: 85-7517-142-9

EDIÇÕES EST R. Veríssimo Rosa, 311

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A presença indígena na obra de Simões Lopes Neto 5

Sumário

Carlos F. Sica Diniz

A presença indígena na obra de Simões Lopes Neto 7

Luís Borges

O folclore e a ficção como artifício didático-pedagógico

em Simões Lopes Neto 12

Agemir Bavaresco, Luís Borges, Mateus Weizenmann

Recepção da tradição indígena na literatura

de Simões Lopes Neto 19

A mãe do ouro 19

Cerros bravos 20

A casa de M’bororé 21

Zaoris 22

Angüera: a metamorfose do índio 25

Mãe mulita 26

São Sepé / Lunar de Sepé 37

A Teiniaguá na Salamanca do Jarau 51

Luís Borges

Uma conclusão inconclusa 58

De Getúlio a Machado: uma história pelo avesso 58

Que país é este? 60

Que é o Brasil e quem é o brasileiro? 61

Identidade gaúcha versus identidade brasileira 65

Tupi or not Tupi? That is the question 69

Concluindo uma conclusão inconclusa 71

Mário Matos

Décima de Sepé Tiaraju 79

Apêndice 113

Bibliografia e glossário de termos regionais ou históricos 113

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A presença indígena na obra de Simões Lopes Neto 7

A presença indígena

na obra de Simões Lopes Neto

Carlos F. Sica Diniz*

João Simões Lopes Neto legou-nos um livro de publicação póstuma, de-

nominado Terra Gaúcha. Uma história elementar do Rio Grande do Sul, co-

mo lhe atribuía o escritor. Este livro já estava sendo escrito por volta de 1910

e, ao que se sabe, o projeto englobava dois volumes: um que se estendia de

1500 a 1737, data da chegada do comandante Silva Pais ao lugar onde hoje se

situa a cidade do Rio Grande, para fundar o fortim Jesus-Maria-José. O se-

gundo volume espraiava-se daqueles primórdios da ocupação portuguesa no

forte do Rio Grande aos primeiros anos do século XX. Destes dois volumes

escritos, somente o primeiro foi encontrado e publicado. Começa com demo-

rada nota preliminar pelo trato das civilizações americanas extintas, prolon-

gando-se na análise de fatores étnicos que contribuíram para a formação do

Brasil, até chegar à gênese da história rio-grandense e encerrar, como não

poderia faltar, no resumo geográfico do território gaúcho. Ultrapassada a nota

preliminar, o primeiro capítulo recebeu o título de Tempos d’antanho, cujo

conteúdo versa sobre os indígenas, seus costumes, crenças e tribos, que habi-

tavam o vasto território sulino.

É neste capítulo que se pode constatar a simpatia do escritor pelos indí-

genas, como registrou a professora Lígia Chiappini:

Ao descrever a organização da vida indígena, o arranchamento comum, a

escolha do chefe entre o mais valente e forte, que não podia mandar nem

castigar em tempo de paz, e que governava com a assistência da assem-

bléia dos guerreiros, nota-se, apesar da rapidez e superficialidade da des-

crição, a profunda simpatia do historiador pelos índios e seu modo de vida

(Chiappini, 1988, p. 111).

* Advogado, professor e escritor. Autor de João Simões Lopes Neto: uma biografia (Porto

Alegre: AGE, 2003).

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Carlos F. Sica Diniz Identidades Ameríndias 8

Simpatia que se depara na observação sensorialista, sempre presente na

prosa de Simões Lopes, ao falar dos sentidos apurados dos guaranis, olfate-

ando de longe a fumaça do fogo, a catinga do jacaré e ouvindo a cascavel e

o tigre, muito antes de ver estes animais. Simpatia que exacerba, ao expres-

sar má vontade com o colonizador português, que deixou o Rio Grande ao

léu, mas que não se furta de reconhecer o trabalho missioneiro dos Jesuítas,

os únicos brancos, segundo o historiador, que protestaram sempre contra a

dominação dos bandeirantes que só queriam os índios como mão-de-obra

para trabalhos forçados. Simões Lopes anotou, ao introduzir as Lendas do

sul, que “o primeiro povoamento branco do Rio Grande do Sul foi espa-

nhol; seu poder e influência estenderam-se até depois da conquista das Mis-

sões; provém disso que as velhas lendas rio-grandenses acham-se tramadas

no acervo platino de antanho” (Lopes Neto, 1913, p. 5). Ao tratar das missões jesuíticas, da criação da Província dos Tapes e

das lutas entre portugueses e espanhóis, que redundaram na destruição das

reduções e hostilidades em relação aos sacerdotes e indígenas, Simões Lo-

pes toma o partido dos vencidos. Mais tarde, ao compor as versões literárias

das Lendas do sul, estes temas voltariam a ocupar a força criativa do escri-

tor, como se verá de pronto.

Não se pode dizer que a obra de Simões Lopes Neto, nos argumentos

escolhidos, tenha sofrido influência da questão indígena. Simões não era

um indianista, mas, nas páginas escritas sobre este tema, em textos históri-

cos e ficcionais, deixou forjada a sua censura ao trato do colonizador portu-

guês que, no seu entendimento, contribuiu para a destruição do povo indí-

gena, que habitava a nossa terra gaúcha.

É nas Lendas do sul, contudo, que a referência indígena pode ser notada

na obra literária, propriamente dita, do escritor regionalista e pré-moderno

que foi.

A lenda Mboitatá, a Boiguassu dos índios, tem origem na “ingênua e

confusa tradição guaranítica”, como disse o seu criador na nota introdutória

(idem, p. 5). No livro histórico Terra gaúcha, ao tratar dos índios guaranis,

o escritor arriscou dizer que das suas lendas primitivas uma delas nos che-

gou, caracterizada, que é a do Boitatá, cobra de fogo, da qual se depreende

tradição vaga de um dilúvio, tal como narravam os índios:

A Mboitatá era uma grande serpente, que dormia havia já imenso tempo,

quando houve uma longa noite durante a qual choveu tanto, tanto, que as

águas cresceram e subiram até sobre as altas coxilhas; os homens viveram

tristemente durante este tempo; a mortalidade dos bichos foi espantosa. A

serpente, então, expulsa de sua toca, deu em comer os olhos das carniças,

somente os olhos, e por isso seu corpo foi ficando transparente e luminoso,

até que morreu e desmanchou-se em pedaços que ficaram esparsos pelos

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A presença indígena na obra de Simões Lopes Neto 9

campos, procurando, porém, juntar-se durante a estação dos calores. Quem

topa com um deles pode ficar cego; mas também protegem os campos

contra aqueles que os incendeiam (Lopes Neto, 1955, p. 45).

No tratamento dessa pobre lenda indígena, que Simões transmudou em

beleza criativa e literária, é que se insere o ensaio de Mozart Pereira Soares

(Cf. Soares, 1974), que aqui invoco para chegar aonde quero. Na escuridão

fechada, através da qual o nosso rapsodo ambientou aquela noite apocalípti-

ca, propícia à narrativa introdutória da cobra de fogo, Simões disse que

“nenhum flete crioulo teria faro nem ouvido nem vista para bater na que-

rência; até nem sorro daria no seu próprio rastro”. Conquanto a lenda esteja

povoada dessas explosões telúricas e sensorialistas, vamos ficar com este

exemplo, pelo qual Simões descreveu a noite escura que tudo confundiu.

Todos sabemos que o cavalo é um animal bem dotado de olfato. Fareja os

rastros, de longe percebe as ressonâncias dos tropéis, como disse Pereira

Soares. E o sorro conhece, ao longe, no seu olfato de longo alcance. Tudo

isso aquela noite infernal desgovernou. Na descrição feita no livro Terra

gaúcha, na parte dedicada aos guaranis, Simões também introduziu descri-

ção didático-sensorialista dos índios, como utilizara com os bichos, louvan-

do seus apurados sentidos, “olfateando desde muito longe a fumaça do fo-

go, a catinga do jacaré, e ouvindo a cascavel e o pisar do tigre, muito antes

de ver estes animais” (Lopes Neto, 1955, p. 46). Também na peça histórica, não se furtou Simões Lopes, admirador

sempre das artes das cavalgadas, de louvar os charruas e minuanos, domi-

nadores das coxilhas e dos cavalos:

De tal modo identificaram-se à montaria, que sabiam combater alinhados,

e fazer cargas de lanças. Os seus cavalos eram primorosamente amansa-

dos; uma das astúcias de guerra, que empregavam, era a de aproximar-se

deitados sobre o dorso do cavalo ou sobre um dos lados, segurando-se às

crinas, e cair, de improviso, sobre o inimigo despercebido (Lopes Neto,

1955, p. 47).

Homem e cavalo num só corpo, um extensão do outro, como na unida-

de física do centauro.

Na Salamanca do Jarau, sua mais complexa criação literária, Simões

misturou por gosto a origem ibérica da lenda com muitos passos de influên-

cia indígena. Na nota introdutória, ele mesmo justifica que nasceram “idea-

lizações novas e típicas, adaptadas ou decorrentes do meio físico e das gen-

tes ainda na crassa infância das concepções” (Lendas do sul, 1ª edição, p.

5). A história resumida da lenda, no texto simoniano, foi revelada a Blau

Nunes, que aqui é personagem em vez de narrador, pelo santão da salaman-

ca do cerro, que aprendera a lenda com sua avó charrua. A avó índia do

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sacristão recitava a lenda que já tinha ouvido contar por outros, como coisa

muito velha. Na misturança dos índios charruas, portanto, a princesa moura

virou a teiniaguá encantada, a lagartixa mágica que tinha a cabeça luminosa

e transparente, que o sacristão aprisionou numa guampa bem fechada por

distração do demônio índio Anhangá-Pitã, que nas suas maldades havia

corrido junto com ela pelas correntezas do Uruguai, por léguas, tudo lhe

ensinando sobre as furnas, encantamentos e outras coisas do diabo que ele

era. E assim o santão das furnas da salamanca apoderou-se de todas as ri-

quezas, do amor proibido da teiniaguá transmudada em mulher e das futuras

desgraças que sobre ele se abateram. E despertou a curiosidade do ingênuo

tapejara Blau Nunes, que atravessou as sete provas da Salamanca do Jarau e

ganhou as mágicas onças de ouro que apareciam, uma a cada vez, no fundo

da sua guaiaca.

Entre as chamadas lendas missioneiras, resumidamente tratadas por Si-

mões Lopes, fora da trilogia composta por Mboitatá, Salamanca do Jarau e

Negrinho do Pastoreio, destaco três de notável presença indígena. A casa

de M´Bororé situava-se dentro de um mato velho e crescido. Construção de

pedra e sem portas nem janelas. Lá dentro as barras de ouro e tantas pilhas

de riquezas, guardadas pelo rondador da casa branca, dia e noite em seu

redor:

[...] um índio velho, cacique que foi, M’Bororé, de nome, amigo dos san-

tos padres das Sete Missões da serra que dá vertentes para o Uruguai. Os

padres foram tocados pra longe, levando só a roupa do corpo... mas a casa

branca já estava feita, sem portas nem janelas... e M’Bororé, que sabia tu-

do e era cacique, de noite, e precatado, com os seus guerreiros, carregou

de todos os lugares para aquele as arrobas amarelas e as arrobas brancas,

que não valiam a caça e a fruta do mato e a água fresca, e pelas quais os

brancos de longe matavam os nascidos aqui, e matavam-se uns aos outros

(Lopes Neto, 1913, p. 74).

O velho índio despreza aqueles tesouros, mas segue cumprindo o seu

fadário de guardador do ouro dos jesuítas. Rondando por eles, ainda espera.

Espera pelos que não vão voltar, na sucessão dos dias e das noites.

O Angoera era “um índio grande, forçudo e valente; mas era triste, car-

rancudo e calado”. Foi padrinho de M’Bororé. Quando deixou de ser pagão,

trocou seu nome para Generoso. Ajudou muito e por anos, com sua força

descomunal, os jesuítas na construção das sete missões. Sempre risonho e

cantador, morreu contente. Sua alma até hoje assombra os viventes. Faz

brincadeiras nas casas. No tempo dos “farrapos, quando se dançava o fan-

dango nas estâncias ricas ou a chimarrita nos ranchos do pobrerio, o Gene-

roso intrometia-se e sapateava também, sem ser visto; mas sentiam-lhe as

pisadas, bem compassadas ao rufo das violas” (Lopes Neto, 1913, p. 78).

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Por fim, no Lunar do Sepé, o escriba maior do Rio Grande louva o he-

rói índio Sepé-Tiaraju, vencido e morto na batalha de 7 de fevereiro de

1756, que se travou no sopé da coxilha de Santa Tecla, perto de Bagé, ho-

menageado pelos padres jesuítas, por quem combateu e morreu, e foi cano-

nizado pelo povo. A lenda é o lunar e daí o seu nome, por causa da mancha

estrelada de nascença na testa do índio, seu signo misterioso que luzia ao

pôr-do-sol e que, com sua morte, adquiriu perene luminosidade e se trans-

formou no luzeiro que brilha no firmamento, assim como recitou Simões

Lopes, pela voz da velha Maria Genoína, moradora na picada que atravessa

o Camaquã, entre Canguçu e Encruzilhada, por volta de 1902: “E, subindo

para as nuvens, / Mandou aos povos – bênção! / Que mandava o Deus –

Senhor / Por meio do seu clarão... / E o – lunar – da sua testa / Tomou no

céu posição...” (Lopes Neto, 1913, p. 88).

Referências

CHIAPPINI, Lígia. No entretanto dos tempos. São Paulo: Martins Fontes, 1988.

LOPES NETO, João Simões. Lendas do sul. 1. ed. Pelotas: Echenique, 1913.

LOPES NETO, João Simões. Terra gaúcha. Porto Alegre: Sulina, 1955.

SOARES, Mozart Pereira. O elemento sensorial nas Lendas do Sul. In: LOPES NETO,

Simões. Lendas do sul. Edição ilustrada. Porto Alegre: Globo/Aplub, 1974.

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Carlos F. Sica Diniz Identidades Ameríndias 12

O folclore e a ficção

como artifício didático-

pedagógico

em Simões Lopes Neto

Luís Borges*

Consideramos que Simões Lopes Neto intentava originalmente um proje-

to didático-pedagógico. Ao virem a lume os textos de Terra gaúcha,1 através

da divulgação de Carlos Diniz (2003, p. 124-137), foi possível a comprova-

ção da hipótese lançada por Lígia Chiappini em No entretanto dos tempos

(1988), mas já intuída na pequena biografia escrita, em 1985, por Antônio

Hohlfeldt.

O exame do “verdadeiro Terra gaúcha”, para utilizarmos uma expressão

de Carlos Diniz, permite concluir que o projeto simoniano, no que tange a sua

missão como escritor, se esboçara na conferência de 1904, Educação cívica, e

prosseguiu nesse livro infanto-juvenil, calcado em princípios pedagógicos e

nacionalistas, cuja finalidade era inculcar ideais patrióticos nas crianças brasi-

leiras, segundo o modelo de De Amicis (Chiappini, 2003, p. 12).

Profundamente influenciado pelo positivismo e pelo evolucionismo, ei-

vado pela concepção iluminista, Simões Lopes Neto entendia que, no Brasil,

o progresso estava identificado com a disseminação da educação. Sua per-

cepção do problema não era apenas de modo a definir uma noção de progres-

so restrita ao desenvolvimento econômico, mas também, e principalmente,

vinculava-o à idéia de emancipação política e social do homem brasileiro,

* Coordenador adjunto do Grupo de Pesquisa em Filosofia Intercultural – Universidade

Católica de Pelotas (UCPel), Instituto Superior de Filosofia (ISF). 1 Não se trata da obra homônima, que versa sobre a história do Rio Grande do Sul, editada

postumamente, em 1955, pela Sulina, mas de outra, de feitio didático, inspirada no Cuore,

de Amicis, e que permanece inédita.

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ultrapassando a restrição entre educação formal e não-formal, eis que ele

mesmo era um autodidata.

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Carlos F. Sica Diniz Identidades Ameríndias 14

Como vimos, seu projeto de “divulgador cultural”, ação imediata decor-

rente de sua vocação de educador/escritor, é anterior à publicação das Len-

das do sul. Conforme já afirmamos, seu projeto nasce por volta do ciclo das

conferências cívicas (1904-1906), tendo sua feição perfeitamente delineada,

quando da publicação do Cancioneiro guasca, em 1910.

A obra Lendas do sul foi publicada no ano seguinte à publicação de

Contos gauchescos; apesar disso, todo o livro já era conhecido do público,

com exceção da Salamanca do Jarau. Em verdade, as Lendas do sul nada

mais são que o Cancioneiro guasca expurgado da parte do popularium de

trovas e quadrinhas compiladas do folclore rio-grandense, acrescentada à

lenda da Salamanca.

A primeira edição do Cancioneiro guasca, de 1910, trazia, pois, todas

as lendas que comporiam o livro Lendas do sul, de 1913, com a exceção

citada. A partir da segunda edição, o Cancioneiro, aparecido também pela

editora Echenique, de Pelotas, em 1917, não mais trará as lendas, sendo este

o perfil editorial adotado até hoje. Tratava-se de um elemento de marketing.

Até 1928 – lembremos que um dos grandes fatores que desencadearam a

inserção do autor pelotense no sistema literário do Rio Grande do Sul, foi o

surgimento da chamada “edição acolherada”, da Globo, em 1926 – o maior

sucesso editorial de Simões Lopes Neto era o Cancioneiro guasca.

Como então lançar no mercado uma obra (Lendas do sul) que pratica-

mente repetia outra aparecida três anos antes (Cancioneiro guasca)? O edi-

tor Guilherme da Cunha Echenique separou do Cancioneiro a parte relativa

às lendas, dando feitio diferente a cada uma das obras. A estratégia funcio-

nou tão bem, que o leitor hodierno, sem acesso às raras primeiras edições

dessas obras, sequer desconfia que as Lendas do sul, quase inteirinhas, já se

encontravam no Cancioneiro guasca.

Situando a composição e publicação dos textos que apareceram em

Lendas do sul no período compreendido entre os anos de 1906-1913, vale

ressaltar também o contexto precário da realidade educacional que mobili-

zava intensamente a inteligência positivista do País, uma vez que o número

de escolas (desconsiderando a inadequação dos currículos e da formação

dos professores) era insuficiente para a demanda e as necessidades da na-

ção.

Grandes pensadores e educadores, tais como José Veríssimo (1857-

1916) e Alberto Torres (1865-1917), dedicavam-se a examinar as mazelas

sociais do Brasil, através do diagnóstico de suas políticas e metodologias

educacionais.

Nas primeiras décadas do século XX, as principais preocupações da no-

vel república brasileira eram a fragmentação do território nacional e a mo-

dernização econômica do país.

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Para sanar ou, pelo menos, minorar esses dois problemas, propunha-se

o fortalecimento do sentimento cívico, tipicamente encarnado por intele-

ctuais como Olavo Bilac (1865-1918) e Coelho Neto (1864-1934), e a rápi-

da formação de mão-de-obra qualificada para o implemento da industriali-

zação do Brasil.

Lembremos que a República foi o resultado de um golpe militar e que

Simões, embora democrata convicto e republicano desde a juventude, con-

forme o atestam seus trabalhos no A pátria, de 1888, possuía um imenso

orgulho de ter sido capitão da Guarda Nacional do Império.

Nesse sentido, o escritor era um homem profundamente sintonizado

com o espírito de seu tempo, que confundia progresso com pensamento

positivista, e civismo com militarismo. Sua vida e sua obra foram uma ten-

tativa de resposta àquelas duas grandes preocupações dos anos iniciais da

República Velha, naqueles tempos, então novíssima.

Simões Lopes Neto buscou obsessivamente ser capitão de indústria e

educador, chegando mesmo a ser professor na Escola de Comércio, em

Pelotas/RS. Antes de tudo, porém, havia nele uma ânsia, um afã patriótico

que o levava a uma ação cidadã, expressa em seus inúmeros e malogrados

empreendimentos, nos seus compêndios de história e psicultura, nos seus

projetos de reforma ortográfica, na “Coleção Brasiliana” de cartões postais,

para a “divulgação dos fastos da história nacional”, e dos seus livros didáti-

cos, como o caso do “verdadeiro Terra gaúcha”, para o ensino de crianças.

À medida que o capital ia escasseando, o crédito sumindo e as falências

se iam sucedendo, o Velho Capitão foi, cada vez mais, direcionando seus

projetos para a área literária, sem perder o fito no objetivo didático-

pedagógico. A literatura de Simões Lopes Neto, dotada de alto nível artísti-

co, uma vez esboroados seus sonhos de “vulgarizador cultural” através da

publicação de livros propriamente didáticos, foi utilizada por ele de maneira

restrita, embora com fins elevados, consoante a concepção pragmático-

positivista da atividade do intelectual – definida por uma palavra hoje fora

de moda: “publicista”. Para tanto, Simões pretendia que sua ficção desse a

conhecer ao Brasil e aos próprios rio-grandenses sua fala, sua gente, sua

história e seus costumes.

A própria recepção crítica da obra simoniana padeceu desse mal. Desde

os primeiros textos críticos, tais como os de Coelho da Costa (1912) e An-

tônio de Mariz (1913), até os atuais, como o de Everton Pereira da Silva

(1998), considerou-se a escritura simoniana como um repositório fiel da

história sul-rio-grandense. A esse respeito afirma Arendt:

A ficção simoniana é entendida pela crítica como um arquivo em que se

encontra depositada a história sul-rio-grandense, desde os seus primórdios

até o começo do século XX, sendo esse o motivo pelo qual o escritor não

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obteve o reconhecimento literário dos seus livros na época da publicação.

O próprio trabalho de recolhimento do material folclórico assume, assim,

um ar de pesquisa historiográfica (Arendt, 2004, p. 93).

E adiante:

Somente nos anos 40 e 50, os estudiosos passam a questionar a originali-

dade da matéria folclórica e a comprovar que Simões Lopes estilizou os

textos orais, o que acaba, de certo modo, dispersando o caráter historiográ-

fico da ficção. A obra começa a ser lida e afirmada do ponto de vista da

sua literariedade, ainda instável nos anos 20 e 30, cujo período enfatiza

principalmente os aspectos historiográficos e folclóricos da produção si-

moniana (Idem, ibidem).

Carlos Reverbel, ao realizar uma enquete, em 1955, procurou estabele-

cer as dez obras fundamentais da bibliografia sul-rio-grandense. A primeira

colocada foi Viagem ao Rio Grande do Sul (1820), de Saint-Hilaire, a se-

gunda colocação foi obtida por Contos gauchescos e Lendas do sul (1949),

de Simões Lopes Neto.

Ao todo, entre as dez obras escolhidas, quatro são literárias, sendo as

demais do campo da história, da sociologia, da geografia e da etnografia.

Por que uma obra historiográfica e uma obra literária encabeçaram a lis-

ta?

Segundo Arendt (Idem, p. 90) a resposta pode ser encontrada em três

direções diferentes: (1) nos depoimentos dos próprios participantes da en-

quete e na sua relação com a crítica simoniana anterior; (2) na situação edi-

torial e crítica de Contos gauchescos e Lendas do sul, nos anos 50; (3) na

presença de Carlos Reverbel como realizador da enquete.

Nesse sentido, é interessante, para efeito de exemplificação, o depoi-

mento do historiador Sérgio da Costa Franco, um dos participantes da en-

quete realizada por Reverbel, através do Correio do Povo, de Porto Alegre,

entre os meses de setembro e dezembro de 1955:

Apesar de obras de ficção, os contos e lendas, especialmente as Lendas do

sul, de J. Simões Lopes Neto, não podem fugir a esta relação. Tal a sua

força telúrica, de tal modo autêntica a sua elaboração literária, que esca-

pam ao padrão comum da ficção regionalista, para se transformarem em

legítimas manifestações folclóricas. E não se conheceria a cultura gaúcha,

sem as ter estudado (apud Arendt, 2004, p. 90).

Essa visão que reduz o literato Simões Lopes Neto ao folclorista, ou ao

escritor naturalista, quase sociólogo, prejudica o entendimento do escritor

propriamente dito. Dessa maneira, o estudo das lendas, neste caso, daquelas

denominadas “missioneiras”, possibilita o alargamento da compreensão do

lugar ocupado pelo elemento de cunho folclórico e/ou histórico na literatura

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A presença indígena na obra de Simões Lopes Neto 17

simoniana, eliminando a falsa dicotomia entre o Simões Lopes Neto artista

e o Simões Lopes Neto folclorista/historiador. Para o autor de Contos gau-

chescos (1912), o material recolhido na tradição oral é matéria-prima para

sua arte. Arte, porém, que, dentro do ideário da “ilustração tupiniquim” e do

“positivismo moreno”, deve atender a uma função social: a educação popu-

lar.

Numa época em que educação/instrução eram quase sinônimos e ti-

nham por modelos expressivos a prosa e a poesia parnasiana (sem falar na

oratória bacharelesca), com sua inerente verborragia e rebuscamento, e no

qual a crítica literária (e até os debates jurídico-políticos, vide debate Rui

Barbosa e Carneiro Ribeiro), praticamente, se restringia a querelas gramati-

cais e filológicas, a literatura de Simões Lopes Neto faz um profundo corte,

por assim dizer, na metodologia e no pensamento que embasava a ideologia

republicana de “educar o povo”.

Ao invés de forçar as pessoas a aprenderem o latim ou a macaquear o

vocabulário de Rui Barbosa ou Coelho Neto, Simões Lopes buscava com-

preender e preservar a alma popular, e, a partir desse processo, com seus

contos/parábolas, desenvolver o sentimento telúrico, o qual proveria a sede

de conhecer a história e desenvolver a pátria.

Sabemos, todavia, o quanto o “decênio farroupilha” ficou encravado no

imaginário social e histórico do Rio Grande do Sul. Parte desse imaginário,

no ambiente da recém-inaugurada República, dava a impressão negativa de

separatismo. Simões Lopes Neto, cioso desse receio, e ávido de preservar e

divulgar a história e as tradições do Rio Grande do Sul, intentava, no cum-

primento de seu programa cívico, integrar e fortalecer tanto o telurismo

gaúcho, quanto o sentimento de brasilidade.

Assim como Euclides da Cunha e Lima Barreto, Simões Lopes Neto

compreendia que ao escritor cabia a missão de colocar seus livros a serviço

do país. O autor de Lendas do sul (1913) foi buscar no pensamento do sécu-

lo XIX as raízes para construir o necessário “instinto de nacionalidade”,

para utilizarmos a tão célebre expressão de Machado de Assis.

Poder-se-ia resumir o Brasil literário (e assim podemos dizer o Brasil

cultural e filosófico) até o tempo de Simões Lopes Neto em dois grandes

blocos, a saber: o romantismo e o real-parnaso-naturalismo. O primeiro

bloco, didaticamente, vai de 1836 a 1870; e o segundo, de 1881 até 1902,

estendendo-se difusamente, mesclando tendências diversas, até as vésperas

do Modernismo.

Historicamente, o Romantismo brasileiro, sobretudo sintetizado em fi-

guras como José de Alencar e Bernardo Guimarães, na prosa, e Gonçalves

Dias e Castro Alves, na poesia, responderam literariamente às questões

relativas à criação de uma língua e consciência nacionais – emancipação

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Carlos F. Sica Diniz Identidades Ameríndias 18

cultural – e à luta pela abolição da escravatura, que representava a moderni-

zação econômica e o desenvolvimento das instituições jurídico-políticas,

procurava colocar o Brasil no rol das nações civilizadas.

Os países do Novo Mundo, sobretudo os da América do Sul, buscavam

fabricar uma tradição política, filosófica e artística que justificasse suas

aspirações emancipatórias. Desse modo, as nações européias não-ibéricas,

seduziam, em especial a França, essas jovens nações, oferecendo, no plano

econômico, o liberalismo, e no filosófico-cultural, a ilustração.

O indianismo está, intimamente, ligado à cultura do Romantismo, não

só brasileiro, mas também europeu, que lhe é anterior. De qualquer modo,

encontrou solo fértil em terras brasileiras, devido não só a fatores históricos,

bem como à necessidade de forjar uma mitologia que auxiliasse a criação de

uma identidade nacional.

O pai espiritual do Romantismo brasileiro foi o francês Ferdinand De-

nis, autor de um Resumo de história literária do Brasil. Tal como nossos

indianistas literários – José de Alencar, principalmente – Denis leu várias

obras etnográficas de viajantes europeus que vieram aos trópicos, inclusive

ao Brasil, e descreveram as sociedades indígenas.

Antes mesmo de Ferdinand Denis, o arcadismo brasileiro já mostrava

pendão indianista, adotando um padrão de comportamento típico do “bom

selvagem”, tal como aparece no Caramuru (1781), de José de Santa Rita

Durão.

A heroicização do índio possui, na literatura brasileira, uma dupla fun-

ção: cultural e política. De uma só vez, o índio-herói representa o espírito

puro e saudável, inclusive moralmente, do brasileiro, e, ao mesmo tempo, é

pretexto para, conforme a tese de Gonçalves de Magalhães, introdutor do

Romantismo no Brasil, entender que a “Independência do Brasil foi apenas

rebelião triunfante dos antigos donos da terra contra os seus opressores de

três séculos” (Holanda, 1986, p. 17).

José de Alencar, o mais típico dos indianistas, faz uma crítica ao etno-

centrismo dos viajantes europeus que escreveram sobre o Brasil. Baseando-

se no pressuposto de que o índio era um análogo nativo do cavaleiro medie-

val europeu, o autor de O Guarani (1857), observa que o caráter do selva-

gem brasileiro foi “deprimido por cronistas e noveleiros ávidos de inventa-

rem monstruosidades para impingi-las ao leitor” (Alencar, 1958, p. 353).

Nosso enunciado problemático é: Dentro desse contexto socioliterário e

dos debates em torno dos problemas e da identidade nacional, em que Si-

mões Lopes Neto contribuiu para inserir-lhe algo da identidade e da cultura

gaúcha sul-rio-grandense? Diante disso, podemos propor a seguinte hipóte-

se: O índio, pois, era o Brasil, assim como para Simões Lopes Neto, o gaú-

cho era o pampa. Ao tratar das “lendas missioneiras”, o autor procura in-

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A presença indígena na obra de Simões Lopes Neto 19

corporar um fator comum entre a tradição brasileira e a identidade rio-

grandense, fazendo com que o personagem indígena assuma, dentro da cul-

tura regional do Rio Grande do Sul, o papel de elo integrador da nacionali-

dade.

Simões Lopes Neto escreveu sete breves textos em prosa, denominados

Argumento de outras lendas – missioneiras, em que encontramos, de modo

mais explícito, a recepção em sua literatura da tradição indígena. As lendas

são as seguintes: A mãe do ouro, Cerros Bravos, A casa de M’Bororé, Zao-

ris, O Angüera, Mãe mulita e São Sepé/Lunar de Sepé. É possível encontrar

em outros textos, ao longo de sua obra, também, a referência à tradição

indígena. No entender de Sica Diniz (2004), os melhores textos sobre a

recepção indígena em Simões Lopes Neto são: Salamanca do Jarau, A casa

de M’Bororé e São Sepé/Lunar de Sepé. Levando em conta esta posição,

sobre estes textos fundamentais, bem como os acima mencionados, faremos

uma breve análise dos mesmos. Nosso objetivo é apresentar a recepção da

tradição indígena na literatura simoniana, mostrando como o autor recriou

tradições escritas e orais anteriores.

Referências

ALENCAR, José de. Ubirajara. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1958. Obra completa, v. 8.

ARENDT, João Cláudio. Histórias de um Bruxo Velho. Caxias do Sul: UCS, 2004.

CHIAPPINI, Lígia. No entretanto dos tempos. Literatura e história em João Simões Lopes

Neto. São Paulo: Martins Fontes, 1988.

DINIZ, Carlos Francisco Sica. João Simões Lopes Neto, uma biografia. Porto Alegre: AGE,

2003.

. Recepção da herança indígena na literatura simoniana. Palestra proferida no dia

14/10/2004, na Jornada Cultura Gaúcha e Olhar Simoniano, promovida pelo Grupo de Pes-

quisa Simoniano da UCPel/Instituto Superior de Filosofia.

HOLANDA, Sérgio Buarque de. LOPES NETO, João Simões. Lendas do sul. 1. ed. Pelotas:

Echenique, 1913.

. Terra gaúcha. Porto Alegre: Sulina, 1955.

. Contos gauchescos, Lendas do sul, Casos do Romualdo. Edição crítica por Lígia

Chiappini. Rio Janeiro: Presença, 1988.

. In: MAGALHÃES, Gonçalves de. Suspiros poéticos e saudades. 5. ed. Brasília:

ILN/UnB, 1986.

VERÍSSIMO, José. A educação nacional. Crítica. Rio de Janeiro: Agir, 1958.

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Carlos F. Sica Diniz Identidades Ameríndias 20

Recepção da tradição indígena

na literatura de Simões Lopes

Neto

Agemir Bavaresco

Luís Borges

Mateus Weizenmann*

A Mãe do Ouro

Segundo Câmara Cascudo, o verbete “mãe do ouro” refere-se a “um mi-

to, inicialmente, meteorológico, ligado aos protomitos ígneos, posteriormen-

te, ao ciclo do ouro. No Rio Grande do Sul, é informe, agindo com trovões,

fogo, vento, dando o rumo da mudança” (Câmara Cascudo, 1993, p. 455).

Temos três sentidos nesta definição: (a) um ligado ao fogo; (b) outro relacio-

nado ao metal ouro; (c) e uma referência específica ao Rio Grande do Sul.

Aqui, o verbete está ligado à tempestade, entendo-se que o fogo é associado

aos raios. O importante a ressaltar é que ele dá o rumo da mudança.

Vejamos a estrutura do texto:

Primeira parte – Há uma metamorfose do corpo humano em serra de

pedra: os ossos viram pura pedra; a carne, em terra negra; os cabelos, em

mato; o sangue, em cascatinhas e vertentes; os buracos do corpo (boca e

olhos, nariz e ouvidos), em lugares ocados; as veias em ferro; os nervos em

ouro e “são os veeiros amarelos que se entranham por aí abaixo, adentro da

* Membros do Grupo de Filosofia Intercultural da Universidade Católica de Pelotas

(UCPel) / Instituto Superior de Filosofia (ISF).

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A presença indígena na obra de Simões Lopes Neto 21

crosta, tal e qual como os nervos estão entranhados na carnadura da gente”

(S, 177, 15).2

2 Para as citações dos textos de Simões Lopes Neto utilizaremos a edição crítica estabeleci-

da por Lígia Chiappini (1988), conforme referência bibliográfica. A abreviação será a se-

guinte: “S”, número da página e linha.

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Carlos F. Sica Diniz Identidades Ameríndias 22

Segunda parte – A alma que governa tudo é a “Mãe do Ouro”. Ela tem

três funções: (a) é imortal e defende “os nervos dos castigados, os veeiros

da fortuna”. O termo veeiro tem dois significados: Trata-se de uma fenda ou

filão e também pode ser o imposto que se pagava à coroa portuguesa na

exploração de uma mina. Aqui, o veio da fortuna é o ouro entranhado no

interior do cerro; (b) a “Mãe do Ouro” é uma entidade protetora que no “dia

do perdão” auxilia para que “cada um ache o que seu é”; (c) ela é mãe “que

chama socorro”, ou seja, é uma intercessora diante dos castigos advindos

dos temporais (S, 177, 20).

Terceira parte – A “Mãe do Ouro” muda de lugar, quando “rebenta um

cerro”: De noite, diante do fogo dos raios, ela muda para outro lugar; ao

meio-dia, em pleno sol, não se sabe qual o lugar que ela toma, apenas vis-

lumbra-se o rumo (S, 177, 25).

O texto faz remontar ao contexto histórico na região missioneira em que

os portugueses e espanhóis destruíram aquelas reduções na busca de ouro.

Há, também, uma procura de explicação do fenômeno natural, buscando a

causa dos cerros, raios, trovões. A originalidade simoniana, na “Mãe do

Ouro”, é ir além da etiologia, para dar-lhe uma dimensão histórica, ou seja,

mostrar a resistência indígena face ao invasor. A tradição indígena perma-

nece no texto, no que diz respeito à simbiose corpo-natureza.

O grande símbolo é a “Mãe do Ouro”, “que governa tudo, que não se

sabe o que é, que é a Alma, que não morreu” (S, 177, 17). Ela é a alma que

mantém a fusão do corpo-natureza, a proximidade com a natureza, a sim-

biose com o mundo.

Pode-se estabelecer uma aproximação entre a “Mãe do Ouro” e Maria,

pois ambas são femininas e têm uma função de prestar socorro aos castiga-

dos. O tema do castigo está vinculado ao do pecado e perdão. Trata-se da

influência cristã jesuítica, que organizou os povos indígenas em reduções.

Temos o tema do castigo e castigados que perpassa o texto. Inicialmen-

te, a explicação da serra de pedra encontra-se num “castigo do céu” que

endureceu de repente o cerro (S, 177, 5). Depois, a “Mãe do Ouro” é isenta

do castigo, por isso pode defender os castigados (os nervos, os veios de

ouro) (S, 17, 20). E a explicação final afirma que a causa dos raios, trovões

e ventos são o castigo. Porém, a “Mãe do Ouro”, como a alma imortal está

junto à serra de pedra, sempre clamando por socorro.

Cerros bravos

Este texto continua a desenvolver o mesmo tema do anterior, ou seja, a

união entre natureza e corpo, os saqueadores de ouro, os cerros revoltados e

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A presença indígena na obra de Simões Lopes Neto 23

o castigo. O pequeno texto que é o mais breve dentre todas as “missionei-

ras”, é composto de um parágrafo, uma frase inicial e uma final. A primeira

frase enuncia os mortos pelo castigo e aqueles que estão semivivos, ainda

cambaleantes, resistem em meio às dores. Mesmo assim, alguns destes in-

sistem em cobiçar o ouro. Então, os cerros enfurecem-se e resistem face aos

saqueadores, pois o ouro é como os seus nervos que, ao serem tirados, pro-

vocam dor (S, 177, 30). Aqui, fica explícita a referência aos cobiçadores de

ouro que arrancam à força o ouro dos cerros. Interessante perceber que a

revolta dos cerros é devida à dor causada neles. É como se, ao tirarem o

ouro, estivessem matando o corpo-natureza.

A revolta dos cerros é tamanha contra os saqueadores que, se estes tei-

mam, acabam morrendo. Os cerros aqui, de fato, se tornam bravos, pois rea-

gem diante do inimigo como podem: “por força do encantamento somem-se”,

ou “atiram temporais de uns para outros tão medonhos, que eriçam o cabelo e

prendem o passo dos homens, mesmo os mais desabusados” (S, 177, 35).

Na constatação de Granada (1896, p. 150),

raro é o cerro, penhasco e escarpado, desde a Cordilheira dos Andes até às

Comarcas do Uruguai, Paraná e Paraguai, que não tenha sua salamanca ou

cova encantada, que não contenha considerável riqueza de ouro e prata em

suas entranhas, que não se embraveça e dê bramidos estrepitosos.

A casa de M’bororé

Segundo Granada (1896), M’bororé é um nome guarani que significa ca-

sa encantada das antigas missões jesuíticas. A origem desta lenda estaria li-

gada à violenta expulsão dos jesuítas decretada por Carlos III, a qual provo-

cou a idéia de um provável achado de tesouros. Então, começou a supor-se,

erradamente, que os jesuítas esconderam, no tempo da expulsão, grandes

riquezas. Porém, segundo Granada (idem), os padres da Companhia de Jesus

foram surpreendidos, de tal forma que não foi possível tomar nenhuma rique-

za, nem falar com ninguém, nem sequer despedir-se de seus neófitos; foram

conduzidos até Montevidéu e Buenos Aires, onde foram embarcados para a

Europa. De modo que, ainda que tivessem tido riquezas, não teriam podido

escondê-las. Porém, o fato é que nos destruídos povos das antigas missões

havia, por todas as partes, junto às árvores e os muros, poços escavados com

a esperança de tirar alguma porção de ouro ou de prata maciços. “Por isso

mesmo, em meio aos imensos bosques que existem no território das Missões,

acha-se, segundo as imaginações tradicionais de seus habitantes, a casa bran-

ca sem portas nem janelas de M’bororé, onde os jesuítas expulsos esconde-

ram os riquíssimos tesouros que possuíam” (Granada, 1896, p. 155-156).

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Para Granada (1896, p. 157), “as riquezas dos jesuítas que se supõem

escondidas na casa branca de M’bororé, nunca existiram”. Parte delas foi

usada nos seus templos, e outras partes foram enviadas à Europa para as

finalidades de sua Ordem. “A mãe do ouro e da prata, acrescenta o autor,

era a força de trabalho aplicado com método e esmero” (idem, ibidem).

Esta lenda, na versão simoniana, pode ser dividida em duas partes:

a. A primeira descreve um mato grosso e no interior do mesmo há uma

“casa de pedra branca, branca como se encaliçada, e sem porta em ne-

nhum lado nem janela em nenhuma altura” (S, 178, 10). Dentro desta

casa estão as barras de ouro e prata, sendo que em cima das mesmas es-

tão objetos religiosos em ouro e nos corredores da casa estão sacos de

moedas de ouro.

b. A segunda fala daquele que faz, dia e noite, a ronda da casa branca.

Trata-se de “um índio velho, cacique que foi, M’bororé de nome, amigo

dos santos padres das Sete Missões da serra que dá vertente para o Uru-

guai” (S, 178, 20).

Nesta segunda parte, há uma nova interpretação em relação a Granada

(1896), pois Simões Lopes atribui o nome de M’bororé a um índio. Ora,

este, diante da expulsão dos padres jesuítas, imediatamente, junto com os

seus guerreiros, carregou, de todos os lugares, o ouro e a prata para a casa

branca. De fato, os índios não tinham interesse nos metais preciosos, alta-

mente cobiçados pelos brancos, a tal ponto que estes “matavam os nascidos

aqui, e matavam-se uns aos outros” (S, 178, 25), para apoderarem-se do

ouro e da prata.

Qual era, então, o interesse de M’bororé em guardar essas arrobas?

Porque “era amigo dos santos padres das Sete Missões, guardou tudo e es-

pera por eles, rondando a casa branca [...] ronda e espera...” (S, 178, 30).

Zaoris

Simões Lopes Neto, no final desta lenda, coloca uma nota explicativa

que diz o seguinte: “Em relação ao argumento destas lendas – 1.4 – repor-

tamo-nos ao raciocinado estudo do Sr. Pe. C. Teschauer, sob o título – Len-

da do Ouro – (Rev. do Instituto Histórico do Ceará, tomo 25, 1911)”

(S, 179, 40). Aqui, encontramos a fonte em que o autor se baseou para ela-

borar essas primeiras quatro lendas. Aliás, há de se notar que Simões Lopes

Neto, como se verá adiante, fará referência à fonte pesquisada para elaborar

essas lendas e o próprio poema Lunar de Sepé.

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Encontramos em Granada (1896) a definição do termo “zaoris”. Este

seria um termo herdado dos mouros, pois o termo “zaori” parece ser arábi-

co.3 “Zaori” equivale ao que pratica a geomancia, sendo esta uma magia e

adivinhação supersticiosa através dos corpos terrestres, ou com linhas, cír-

culos ou pontos feitos no chão. Esta definição reporta-se ao Diccionario de

la Lengua Castellana da Real Academia Española (Granada, 1896, p. 164,

nota 1). O Dicionário Houaiss, complementa: Geomancia é a “adivinhação

através das figuras formadas por um punhado de terra que se atira ao acaso

sobre o chão ou qualquer outra superfície”.

Na Península Ibérica, existiam estes zaoris, espécie de bruxos, que fo-

ram levados ao novo mundo. São pessoas dotadas da faculdade de ver

através de corpos opacos, de descobrir o que está oculto, mesmo que este-

ja debaixo da terra. São os olhos que lhes permitem a proeza da adivinha-

ção, a tal ponto que penetram paredes e a profundidade da terra. Sua prin-

cipal função é descobrir minas e tesouros. A tradição popular afirma que

Deus dá esta graça aos que nascem na Sexta-Feira Santa. No entanto, isto

deve ser, antes, obra do gênio do mal. Prossegue, Granada (1896, p. 165),

dizendo que os arquivos da Inquisição são a prova de que o zaori recebe

do diabo a faculdade de ver na obscuridade através dos corpos opacos. “O

fogo e a luz emanados do sol que o índio adora, os quais também devem

ser uma das formas e disfarces infinitos com que o diabo oculta sua figura

para assombrar e enlouquecer o mundo com invenções estupendas, for-

mou seus zahoris”. O autor descreve casos de mulatas escravas de Santia-

go do Chile e Lima que se tornaram zaoris através do influxo do sol ou de

um raio. Enfim, na América do Sul, os zaoris tiveram um espaço de ação

muito grande, pois deveriam se ocupar em descobrir os tesouros enterra-

dos pelos vassalos dos Incas, quando da invasão dos espanhóis, ou então,

por ocasião da expulsão dos jesuítas em 1768 (Granada, 1896, p. 167).

Simões Lopes Neto conta esta lenda na ótica do cristianismo, dando

uma reinterpretação com personagens, tais como São Miguel, a Virgem

Maria e os Anjos da Guarda. O texto pode ser dividido em três partes:

a. O julgamento – Na Sexta-Feira Santa, ocorreu o julgamento dos carras-

cos que mataram Jesus Cristo. O arcanjo Miguel recebe a ordem de

executar a sentença através dos anjos que guardavam a cruz. Da coura-

ça de ouro de Miguel emana um brilho luzente.

b. As crianças assinaladas – As pessoas, já nascidas, estavam todas con-

denadas pelo pecado de ter maltratado Jesus Cristo, exceto as crianças

3 Daniel Granada escreve zahoris com “h”, porém, nós o usaremos sem, para seguir a ver-

são simoniana.

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ainda não nascidas, pois não tinham culpa do ocorrido. Porém, o arcan-

jo Miguel esqueceu de avisar os anjos da guarda de não castigarem as

crianças inocentes. Então, a Virgem Maria fez um milagre. Fez com

que o “vento das asas de prata do arcanjo ventasse sobre os olhos dos

que fossem nascendo nesse dia santo” (S, 179, 20). Assim, todos os

olhos das crianças, nascidas na Sexta-Feira Santa, ficaram marcados,

sendo dotados, deste modo, de uma faculdade especial: “Podiam ver

através da água até o seu fundo, e através das muralhas e montanhas até

o outro lado delas, porque tudo ficou transparente para eles” (S, 179,

24).

c. Os zaoris – Ora, como o arcanjo permaneceu na terra, o dom da facul-

dade de ver no interior de materiais físicos, ficou aqui, e, em todas as

sextas-feiras santas, esse mesmo fenômeno se repete. Então, “para es-

ses, nada existe escondido ou enterrado que os seus olhos não vejam,

como os dos outros homens, de dia claro; e isso porque nasceram em

Sexta-Feira Santa: são os zaoris” (S, 179, 30).

Assim, todos aqueles que nascem em uma Sexta-Feira da Paixão são

zaoris. Há uma cristianização deste mito de origem árabe, que, na sua ver-

são espanhola, apresenta a contradição entre Deus e o diabo, pois, ao mes-

mo tempo, atribui-se a eles o dom de conceder aos zaoris a faculdade de ver

no interior do físico. Na versão simoniana, ocorre uma inversão: Não é mais

o demônio que forma os zaoris, senão que o arcanjo Miguel. Portanto, o

zaori, que era um adivinho pagão, torna-se uma criança inocente: “Em todas

as Sextas-Feiras Santas procuram os olhos das crianças recém-nascidas, que

então ficam com o dom de ver no escuro e através de qualquer tapamento

de pedra, madeira, ou ferro” (S, 179, 27). Os seus olhos, com brilho mágico

e misterioso, possuem o poder de ver através de corpos opacos, localizando

tesouros escondidos, tais como barras de ouro ou prata, jóias, pedras precio-

sas etc.

Simões Lopes Neto opera uma dupla metamorfose na lenda original:

a) De um lado, cristianiza e vincula a lenda à figura do arcanjo Miguel,

muito venerado nas Missões, por influência, obviamente, dos padres jesuí-

tas; b) de outro, também esta lenda que se encontra na região do Rio da

Prata, Chile, Paraguai e Rio Grande do Sul, diz respeito à localização das

riquezas e tesouros enterrados pelos índios, com a finalidade de salva-

guardar seu ouro dos ibéricos. Portanto, a lenda é relida a partir do con-

texto sul-americano e, especificamente, situado na região missioneira, de

onde vem a tradição indígena.

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A presença indígena na obra de Simões Lopes Neto 27

Angüera: a metamorfose do índio

Angüera é, segundo Granada (1896, p. 485), um termo guarani que sig-

nifica fantasma. Os guaranis temiam muito os angüeras, almas saídas dos

corpos dos defuntos. Os líderes guaranis para fazerem-se temer pelos ín-

dios, ameaçavam os mesmos com fantasmas que sairiam das cavernas com

enormes espadas para vingarem-se, caso não os obedecessem.

Simões Lopes Neto conta esta lenda assim:

a. A cristianização do índio: Segunda a versão de Granada (1896), An-

güera é um fantasma, anônimo. Simões Lopes Neto, porém, personifica

num índio o nome de Angüera, dando-lhe as características físicas de

“grande, forçudo e valente”, porém, é “triste, carrancudo e calado”

(S, 179, 35). É interessante observar que o autor afirma que Angüera,

“enquanto foi pagão” tinha esse estado de espírito tristonho. De fato,

Simões Lopes Neto deixa veicular o preconceito cultural da época:

O índio é um pagão em relação ao europeu cristão. Ser pagão era um

conceito depreciativo. Depois, ao encontrar-se com os padres jesuítas,

foi por eles batizado. E, como era costume, na época, trocava-se o nome

ao receber o sacramento do Batismo. Ele foi chamado de Generoso.

Ora, ao tornar-se cristão, acontece uma mudança: “Angüera, que era

triste, deixou a casca da tristura, e como Generoso, de nome bento ficou

prazenteiro” (S, 180, 5). Percebe-se que há uma diferenciação entre o

estágio de índio-pagão e índio-cristão, dando a entender que o último é

melhor que o anterior. Ele segue todo o itinerário de um neófito, rece-

bendo todos os sacramentos até à morte.

b. Alma errante: Depois de morto, “sua alma saiu-lhe do corpo”, começa,

então, uma grande “aventura entre os vivos”, pois, entra nas casas e

provoca ruídos; toca viola, assobia, sopra a chama do fogo etc. A alma

do Generoso é divertida e brincalhona e continua a vagar no cotidiano

das pessoas.

c. A historização da lenda: Generoso entrava nos salões de dança, “in-

trometia-se e sapateava também, sem ser visto”. Aqui, Simões Lopes

Neto faz uma referência explícita à história do Rio Grande do Sul ao

escrever que o índio Generoso participava das danças no tempo dos

Farrapos (S, 180, 25).

Vê-se que Angüera passa por várias metamorfoses: religiosa (pagão-

cristão), existencial (triste-alegre), histórica (Sete Povos-Guerra dos Farra-

pos) e metafísica (corpo-alma). Pode-se dizer que a tradição indígena per-

manece viva em todo o tempo, tecendo a formação do gaúcho, dando-lhe

alma para estar em constante mutação, sem perder a sua identidade.

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Carlos F. Sica Diniz Identidades Ameríndias 28

Mãe mulita4

Mito e literatura

Costuma-se chamar “mito” a um relato fabuloso, que abriga a noção de

narrativa tradicional, geralmente, de conteúdo religioso ou a ele relaciona-

do. Os mitos, com freqüência, referem-se a grandes feitos heróicos, que são

considerados o fundamento ou o começo de uma comunidade ou mesmo de

todo o gênero humano. É comum apresentarem também como motivo os

fenômenos da natureza, explicando-os de maneira alegórica, como é o caso

das ninhadas do tatu-mulita.

A narração mitológica envolve, basicamente, pretensos acontecimentos

relativos a épocas primordiais, antes do surgimento dos homens, como o

caso dos mitos de origem (cosmogônicos), ou dos “primeiros” homens,

como o de Adão e Eva. Uma das características do mito é que o aconteci-

mento fabuloso narrado ocorreu em um tempo passado impreciso ou muito

remoto, como os tempos bíblicos.

O mito aparece e funciona como mediação entre o sagrado e o profano,

condição necessária à ordem do mundo e às relações entre os seres e os

fenômenos naturais. Sendo o homem um ser de profunda relação com o

sagrado, logo pensadores e estudiosos manifestaram interesse por exame

mais acurado dos mitos. Dois autores deram especial atenção ao problema

do mito: Vico e Schelling.

Giovani Battista Vico (1668-1744), em sua obra Principi di una scienza

nuova intorno alla comuna natura delle nazioni (1744), geralmente citada

apenas como Scienza nuova, fala em “conhecimento fantástico” ou “formas

fantásticas de conhecimento”, que são, respectivamente, a língua e a poesia.

Pretende, a fim de construir sua teoria epistemológica, deduzir da etimolo-

gia das palavras um saber sobre a história primitiva em que as línguas se

formaram. Para ele, a poesia teria sido a primeira forma de comunicação da

humanidade, uma vez que os povos antigos eram essencialmente poéticos.

Daí provém seu interesse pelos mitos. Vico rejeita a idéia, dominante nos

séculos XVII e XVIII, de que as narrativas mitológicas seriam alegorias

filosóficas, reconhecendo, entretanto, que nelas há resquícios de verdades

históricas (Cf. Abrão, 1999b, p. 264-266).

Friedrich Schelling (1775-1854), durante toda a sua vida se interessou

por temas relativos à metafísica, teologia, religião e mitologia. Teve seus

cursos sobre Filosofia da Revelação e Filosofia da Mitologia proferidos em

4 O título original deste ensaio é A mãe mulita, de Simões Lopes Neto, através de uma

hermenêutica simbólica da prosopopéia.

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A presença indígena na obra de Simões Lopes Neto 29

Berlim, publicados, postumamente, por seu filho. Nesses cursos e noutras

obras, expôs uma preocupação teístico-metafísica, em que busca integrar

espírito e natureza. Seu sistema filosófico se constitui numa mediação entre o

idealismo subjetivo de Kant e Fichte e o idealismo objetivo de Hegel. O sis-

tema de identidade do “Eu” e o “Não-Eu”, proposto por Schelling, apresenta-

se de modo que o Absoluto seja a um só tempo sujeito e objeto. Em seu pen-

samento, há um vivo senso de arte. Sua concepção do Absoluto é a unidade

entre espírito e natureza, que se revela na história, na arte, na religião e na

mitologia. Em relação a este último ponto, Schelling estimou que os mitos

são uma forma de pensamento que representa um dos modos como se revela

o Absoluto, através do processo histórico (Cf. Abrão, 1999a, p. 341-344).

A análise científica dos mitos começou com o antropólogo Friedrich

Max Müller. Sua explicação a respeito dos mitos era que eles representa-

vam a descrição poética de fatos da natureza. Mais tarde, James Frazer, em

sua obra monumental, em 12 volumes, The golden bough (1890-1915),

considerou os mitos explicações narrativas de ritos, cujo sentido já não era

compreendido pelos que o celebravam.

Na antropologia moderna, entretanto, a essas hermenêuticas prevalece-

ram as teorias estruturalistas de Levi-Strauss, que identificam, nos relatos

mitológicos, o reflexo de determinadas estruturas sociais, e a psicanálise de

Freud, que entende os mitos como racionalizações da mente primitiva em

face dos conflitos do indivíduo e deste com a família e a sociedade.

Será com a Renascença que a mitologia, sobretudo grega, começa a ser

importante para a literatura propriamente dita, fornecendo motivos, persona-

gens e enredos. Será, todavia, com o advento da Ilustração que as narrativas

mitológicas servirão a diferentes fins no uso do texto literário. Os mitos se

constituíram então num vasto sistema de referências que é familiar a todos os

homens cultos daquele período. As metáforas míticas oferecem um sentido

imediatamente reconhecível para os leitores e que, portanto, se torna um re-

curso amplamente utilizado pelos escritores dos séculos XVI a XVIII.

Foi, conforme já nos referimos, durante o Iluminismo que mito e literatu-

ra se imbricaram definitivamente para diferentes finalidades. Voltaire, por

exemplo, escreveu seu Édipo (1718) para denunciar o poder do clero na

França. Goethe, retomando um anônimo do século XVI, escreve Fausto

(1808), uma metáfora de recriação prometéica.

Lançando um breve olhar sobre importantes escritores do século XX, ob-

serva-se a permanência e a estilização literária das narrativas míticas. O mito

de Electra (1903) pode ser identificado na obra de Hugo von Hoffmannsthal,

o de Orestes em As moscas (1943), de Sartre; o de Medéia em alguns argu-

mentos das peças de Robinson Jeffers; e Antígona, obra de Sófocles, em sua

força de crítica política, encontra um sentido redivivo no teatro de Jean Coc-

teau e Brecht.

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Carlos F. Sica Diniz Identidades Ameríndias 30

Fábula, mito, lenda, superstição e estilização

literária

A fábula, como forma literária específica, é uma narração breve, em

prosa ou verso, cujos personagens são, geralmente, animais e, sob uma ação

alegórica, encerra uma instrução, um princípio geral ético, político ou literá-

rio, que se depreende naturalmente do caso narrado. A fábula comporta

assim duas partes, a que La Fontaine chamou corpo e alma: a narrativa e a

moralidade. Aquela trabalha as imagens, que constituem a forma sensível, o

corpo dinâmico e figurativo da ação; esta opera com conceitos, que são “a

verdade falando aos homens”. Deve-se salientar, porém, que para o leitor

moderno a literariedade possui precedência sobre o ensinamento moral.

Enfatize-se que, para o gosto moderno, a narrativa deve ser o elemento do-

minante. A moralidade ou significação alegórica anima o corpo narrativo,

mas de maneira velada, ficando nas entrelinhas. Os antigos tinham um pon-

to de vista diferente. Para eles, a parte filosófica era o drama, a vivacidade

das imagens para chegar mais diretamente ao alvo moral. Quanto mais se

avança na história da fábula, mais se vê decrescer o tom didático em provei-

to do entrecho.

A fábula acabou por tornar-se um gênero popular no século XVIII. La

Fontaine teve muitos seguidores: Jean-Pierre de Florian (França); Tomás

Iriarte (Espanha); George Bertolá (Itália); Bocage (Portugal), que traduziu

La Fontaine em versos; John Gay (Inglaterra). Estes autores elevam a fábu-

la, originalmente um gênero popular, baseado em fontes folclóricas, a uma

literatura sofisticada, geralmente, de cunho filosófico-moral ou de crítica

política.

Na Alemanha, Lessing reagiu contra a hiperliteralização da fábula,

apresentando em Fabeln (1759) uma introdução em que expõe essa exces-

siva literalização como perversão do gênero e uma traição de suas raízes.

Apesar disso, foi Christian Gellert, contemporâneo de Lessing, o fabulista

mais popular entre os germânicos, com suas histórias engraçadas, conforme

os prejuízos da época, motejando mulheres, pobres e burgueses. Contudo, o

melhor escritor de fábulas do século XIX foi o russo Ivan Krilov. Este es-

critor russo foi também jornalista satírico e dramaturgo. Após traduzir La

Fontaine, em 1805, escreveu, sob sua influência, Basni (1809). Sua prosa

realista é viva e saborosa, recheada de provérbios populares, o que fornece a

seu texto uma grande força epigramática. Retirando a fábula dos salões

luxuosos, devolveu-a ao povo, no vigor telúrico do pitoresco campônio

russo. Todas essas qualidades lhe possibilitam êxito imediato.

Tendo, pois, a fábula uma tradição que atravessou os tempos, vinda do

Oriente e da Antigüidade Clássica, chegou até a Europa moderna e contem-

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A presença indígena na obra de Simões Lopes Neto 31

porânea. Também a língua portuguesa e, inclusive, o Brasil sofreram sua

influência, embora neste último caso, esta só se fez sentir tardiamente.

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Carlos F. Sica Diniz Identidades Ameríndias 32

Indo buscar as esporádicas contribuições dos fabulistas em língua por-

tuguesa, encontramos, no século XVI, Sá de Miranda, que compôs O rato

do campo e o rato da cidade e O cavalo e o cervo. Em Portugal, depois de

Bocage, o poeta Almeida Garrett publicou Fábulas e contos (1853). Em

terras lusas, todavia, o melhor fabulista é Cabral do Nascimento, também

poeta, cuja obra Fábulas apareceu somente uma centúria após.

No Brasil, destarte a longa vigência do cânone lingüístico e temático

dos clássicos portugueses e a posterior influência francesa no Romantismo,

já em 1860, a fábula fez-se gênero de destaque com a obra Fábulas, de Luiz

de Vasconcelos, que introduziu a fauna e a flora no contexto da estrutura

narrativa da fábula, buscando nacionalizá-la.

No campo do estudo, registro e adaptação de fábulas, lendas e supersti-

ções brasileiras, estilizadas literariamente, ninguém superou os esforços de

Monteiro Lobato, ainda que tenha tido predecessores e pósteros ilustres, tais

como J. Simões Lopes Neto, com suas Lendas do sul (1913), e Catulo da

Paixão Cearense, com Fábulas e alegorias (1945).

Lígia Chiappini afirma que a tradição oral, fonte dos mitos, lendas,

fábulas e superstições, transformou-se em conto culto em J. Simões Lopes

Neto (Chiappini, 1988, p. 150). Para ela: “Lendas do sul é um livro que

reúne narrativas diversas e o material folclórico que o sustenta, não pode

ser, em bloco, chamado de lendas, pelo contrário, estas se mesclam com

mitos e superstições, no mínimo” (Idem, ibidem).

A pesquisadora, ao tentar definir o tipo de material com que J. Si-

mões Lopes Neto trabalha nas Lendas do sul, depara-se com distinções

pouco claras entre a fábula, o mito, a lenda e a superstição. Chiappini não

está interessada nessas classificações em si mesmas, senão naquilo em que

elas podem auxiliar na compreensão de sua poética (Idem, p. 151). Ainda,

para a pesquisadora, lenda é uma história vinculada à hagiografia, apli-

cando-se a classificação de lenda a uma história fabulosa dotada de fundo

religioso.

Seguindo Afonso Arinos, em suas Lendas e tradições brasileiras

(1917), Chiappini entende que, para distinguir lenda e mito, deve-se fixar

no caráter religioso da primeira, enquanto, embora o segundo também

transite por aí, se prenda mais à narrativa sobre deuses e heróis epopéicos.

Outro aspecto importante é que ela considera mito aquelas histórias que

indagam pelas origens dos fenômenos naturais (Idem, p. 153).

A autora de No entretanto dos tempos (1988), referindo-se ao folclo-

rista Câmara Cascudo, em Literatura oral no Brasil, endossa sua própria

constatação, quanto à confusão terminológica. A fim de propiciar uma

solução operativa a essa questão, recorre à autoridade de Mircea Eliade:

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A presença indígena na obra de Simões Lopes Neto 33

[...] o mito é uma história sagrada que conta as origens remotas de um

povo. Uma história do illo tempore, sempre repetida, retoma pelo rito, en-

quanto a crença subsista. A mesma história se transforma em ficção, “his-

tória falsa”, quando morre a crença que sustentava a sua verdade. O mito

passa a sobreviver, então, pela literatura, como os mitos gregos, imortali-

zados por Homero, numa época em que começavam a morrer enquanto

histórias sagradas (Idem, p. 153).

Chiappini continua sua exposição, afirmando a distinção entre os vários

tipos de narrativas que se alimentam em sua fonte das raízes da tradição

folclórica (narrativas míticas, lendárias ou fabulísticas) e a superstição,

conforme Câmara Cascudo:

O que Câmara Cascudo considera mito (por exemplo, os “demônios infer-

nais”, espalhados pela selva brasileira, “deuses da floresta tropical”, que o

missionário classificou como forças demoníacas, tais como o Curupira, o

Mboitatá, o Igupiara de que fala Anchieta, já em 1560), um autor como

Ambrozetti, em Supersticiones y Leyendas del Rio de la Plata, dá como

supertição (Idem, p. 154).

E adiante:

Assim, mito, lenda e superstição se aparentam, mas se distinguem. Mas

essas distinções, no fundo, se complicam em traços comuns e recorrentes.

Se insisto em aproveitar o conceito de superstição para introduzir traços

distintivos entre fenômenos que Câmara Cascudo chama genericamente de

mitos, no folclore brasileiro, é porque em Simões Lopes, essa distinção vai

ser útil [...] (Idem, p. 154-155).

De fato, também julgamos de muita utilidade essas distinções e classifi-

cações, pois, através delas, podemos averiguar a natureza do texto, suas

fontes e o estilo do registro lingüístico usado por J. Simões Lopes Neto.

Sinopse de Mãe mulita

Desde a epígrafe, retirada do Cancioneiro guasca (1910), a história se

constrói na tentativa de explicar o nascimento das ninhadas do tatu-mulita,

isto é, porque, a cada vez, nascem somente machos ou somente fêmeas e

nunca ninhadas mistas. Isto nos é dito na reveladora expressão do narra-

dor: “Este bicho foi mandado ficar assim [...]”.

Tendo Maria e José fugido para o Egito, a fim de escaparem da cruel-

dade de Herodes, a certa altura do caminho, foram alcançados pela tropa

do rei, que pretendia matar o Menino Jesus e aprisionar seus santos pais.

A Virgem, entretanto, entre rogos e choro, consegue demover o centurião

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Carlos F. Sica Diniz Identidades Ameríndias 34

de mau intento e deu-lhe como paga um burro petiço. Vendo-se sem o

animal, Maria e José prosseguiram a viagem, a custo, empurrando o carri-

nho em que ia dormindo, muito sossegado, o Menino Jesus.

A tropa do rei ia voltar, porém, o burro empacou. Depois de ser sovado

pelo centurião e de apanhar de todos os soldados, continuou imóvel. Sen-

tindo-se enganado, o centurião, furioso, resolveu voltar e persistir na em-

preitada malévola. A Virgem e São José não viam o que estava acontecen-

do, mas ouviam os cascos dos cavalos e as blasfêmias, assim, apuravam

forças, empurrando o carrinho.

Então, o Menino Jesus acordou e teve fome, mas devido ao cansaço e à

aflição, o seio de Maria não teve leite. Ela chorava de pesar e o Menino, de

fome. Nisto, por ali passava uma mulita e Nossa Senhora lhe disse:

– Mulita, se tens filhos, dá-me uma gota do teu leite para o meu filho!...

A mulita deu a gota de leite, mas era pouco e o Menino continuou a

chorar. Chorou de pesar também a Virgem, e disse:

– Mulita, chama as tuas filhas, para cada uma dar uma gota de leite para

o meu filho!...

A ninhada era grande, mas as filhas da mulita, eram poucas. Todavia,

cada uma deu gotas de leite para alimentar o Menino, que se calou farto.

Vendo que o centurião e sua tropa se aproximavam, Maria, muito aflita,

rogou:

– Mulita, dá-me tua força, para puxar o carro do meu filho!... E a mulita

puxou, mas era tão pouca sua força, que de nada adiantou. E os soldados

cada vez mais perto...

Nossa Senhora chorou de medo e tornou a dizer:

– Mulita, chama os teus filhos, para darem a sua força e correrem, pu-

xando o carro do meu filho!...

– Senhora Virgem, respondeu a mulita, a minha ninhada é grande, po-

rém nela os filhos são poucos...

Mesmo assim, o carrinho puxado pelos filhos da mulita ia andando de-

pressa. Porquanto sejam os cavalos maiores que as mulitas, estes iam ven-

cendo terreno e se aproximando. Nesse momento, levantou-se tremendo

temporal de areia, que obrigou a tropa perseguidora a dispersar-se e desistir.

Quando já estava salvo o Menino, Nossa Senhora tornou a dizer:

– Mulita, em memória das gotas de leite das tuas filhas, em memória da

força dos teus filhos, deste dia em diante, de cada vez que deres ninhadas,

será sempre ou só de fêmeas ou só de machos!...

Nisso, de bom grado, concordou a mulita, solicitando que a sua coma-

dre, a tatua, tivesse também ninhadas como as suas, com o que a Virgem

prontamente anuiu.

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A presença indígena na obra de Simões Lopes Neto 35

Estrutura de Mãe mulita e breve hermenêutica

A Mãe mulita é um texto de natureza híbrida. Conforme vimos, as clas-

sificações que se referem a mito, fábula e superstições são bastante impreci-

sas e, de modo geral, são aplicadas indiscriminadamente. Mãe mulita possui

algo do mito, se pensarmos que é uma explicação alegórica dos fenômenos

naturais. Não deixa de ser fábula pela presença de animais antropomorfiza-

dos e também é superstição, se a esse termo concebermos o sentido de

crendice popular. Deste modo, verificamos que, no caso de Mãe mulita,

especificamente, o autor quis guardar o mais intocado possível o registro do

argumento contra sua estilização literária, o que nos é revelado pela seguin-

te declaração: “O argumento destas duas lendas [Angüera e Mãe mulita]

está desenvolvido baseado na tradição longínqua e é de notar a acomodação

bizarra dos elementos do seu entrecho” (Lopes Neto, 1988, p. 182).

A estrutura do texto, dado o arranjo ingênuo dos elementos do entrecho,

é bem simples: (1) intróito, (2) desenvolvimento, (3) clímax e (4) desenlace.

(1) No intróito, dá-se o motivo da história, isto é, explicam-se as ninha-

das do tatu-mulita. (2) O desenvolvimento ou trama é aquela parte em que a

harmonia é quebrada. A Sagrada Família está em fuga para o Egito, até aqui

há equilíbrio. A fome do menino Jesus e os soldados em seu encalço são os

fatores que complicam a trama. (3) O clímax ocorre quando aparece a muli-

ta – é o auge da ação. (4) O desenlace ou desfecho acontece quando, passa-

do o perigo através da providencial tempestade de areia, todos estão em

segurança e contentes.

O intróito propõe um sentido para a história, o desenvolvimento é a his-

tória propriamente dita, que necessita de um clímax e de uma conclusão.

Mãe mulita é mito no intróito, é lenda no desenvolvimento, é superstição na

conclusão e é narrativa fabulística no contexto geral de sua literariedade.

Examinemos mais acuradamente este último ponto.

Pelo exposto, a fábula compõe-se de duas partes: a forma exterior (a li-

terariedade) e a interna (o ensinamento moral). Mãe mulita pode ser tam-

bém analisada sob esta hipótese, uma vez que em sua estrutura híbrida pre-

valece a personificação de animais.

O esquema simbólico deste texto se reflete na própria estrutura narrati-

va, funcionando não apenas como fio condutor do entrecho, mas também

servindo para a construção de uma chave hermenêutica. Vejamos o parale-

lismo entre estrutura narrativa (1) e estrutura metafórica (2): o intróito (1)

vai desde a abertura do texto até o empacar do burro petiço (2), que desen-

cadeia a desarmonia; o desenvolvimento da ação (1) se passa todo em fun-

ção das sucessivas súplicas da Virgem à Mãe mulita e seus respectivos aju-

tórios (2); daí em diante, temos o clímax (1), representado pela aproxima-

ção dos cavalos dos perseguidores (2) e o desfecho (1), em que aparece a

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providencial tempestade (2), que dispersou a tropa, pôs em segurança a

Sagrada Família e, alegoricamente, explica o nascimento das ninhadas de

tatu. Além disso, cada um desses símbolos (burro, tatu e tempestade), res-

peitando a predominância fabulística da narrativa, encerra um ensinamento

moral.

O burro

O burro é um dos animais que mais contraditoriamente são interpreta-

dos entre as diversas culturas e mesmo dentro delas. A tradição judaico-

cristã é, em geral, favorável à imagem do burro, do asno ou jumento, fazen-

do-os representar a humildade e a humilhação. Assim é que José leva Jesus

e Maria no lombo de um burro. Essa representação da humildade nos é con-

firmada em Provérbios 16, 18-19: “A arrogância precede a ruína, e o espíri-

to altivo a queda. É melhor ser humilde com os pobres, do que repartir o

despojo com os soberbos”. Outros exemplos favoráveis são: a jumenta de

Balaão (Números, 22, 22-35) e também o entrada triunfal de Jesus em Jeru-

salém (Marcos, 11, 1-11). Além destes, podem-se citar, pelo menos, mais

dez passagens bíblicas que se referem a asno, burro ou jumento.

Todavia, pela estrutura narrativa de Mãe mulita, percebemos que o bur-

ro é um ponto de desarmonia. Foi sua teimosia que enraiveceu o centurião e

desencadeou, novamente, a perseguição. Uma tradição cristã não ortodoxa

vê o burro como uma representação de divindades funestas. Mais próxima

das interpretações da tradição egípcia (onde o burro é associado ao assassi-

no de Osíris), indiana (deus Nairrita, guardião da região dos mortos), grega

(associada a Dionísio) e romana (associada a Príapo) é a conhecida imagem

da noite de Natal, no presépio, em que aparecem ao lado da manjedoura o

burro e o boi. Essa imagem foi retirada do evangelho apócrifo do falso Ma-

teus, em que o primeiro simboliza os pagãos e o segundo, os cristãos (Bie-

derman, 1994, p. 41). Com base nessas interpretações é que o burro petiço

de Simões Lopes Neto aparece, ao contrário da tradição bíblica canônica,

como um ponto de desequilíbrio e desarmonia. O burro representa forças

maléficas ou mesmo demoníacas. A essa imagem da tradição bíblica apócri-

fa, associam-se os conceitos dos alquimistas que vêem no burro um demô-

nio de três cabeças: uma representando o mercúrio (a guerra), a outra, o sal

(o dinheiro) e a terceira, o enxofre (o mal). Todos eles representam os prin-

cípios materiais da natureza: o ser obstinado. Do mesmo modo, a arte re-

nascentista pintou diversos estados de alma com os traços de um asno: o

desencorajamento espiritual do monge, a depressão moral, a preguiça, a

luxúria, a estupidez, a teimosia (Chevalier e Gheerbrant, 1994, p. 94).

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A lição do burro: em qualquer ponto de sua vida, aquilo que em dado

momento serviu para ajudá-lo (lembremos que, na narrativa simoniana, o

burro petiço puxava o carro na fuga da Sagrada Família para o Egito), pode

se transformar em grande problema.

O tatu

O xamanismo é um sistema religioso primitivo de algumas sociedades da

Ásia, da África e de outras tribos da América que possuem como figura cen-

tral o xamã, feiticeiro ou pajé, cujas práticas incluem o estado de transe, o

poder de curar doenças e a comunicação com espíritos da natureza (Holanda

Ferreira, 1986, p. 1796). Nesse último ponto, é que encontramos os “animais

de poder”, são os espíritos que, no mundo natural, representam as diversas

personalidades humanas, em suas virtudes e defeitos.

Ao observarmos as características dos tatus, encontramos similaridades

de posturas psíquicas e comportamentais com os seres humanos. O tatu-

mulita, cujo nome científico é Dasypus septemcintus, é um animal de peque-

no porte, que possui uma carapaça convexa com sete cintas móveis. As ore-

lhas são grandes e pontiagudas, sua cauda é relativamente curta com ponta

fina e revestida de anéis, sendo as unhas estreitas e fortes. Seus hábitos são

crepusculares e noturnos. Alimenta-se de raízes e pequenos invertebrados,

que encontra revolvendo a terra com o focinho. Foi descrito e classificado,

em 1758, por Linnaeus, que o colocou na classe dos Mammalias, na ordem

dos Xenarthras e na família dos Dasypodidae (Cf. Grande Enciclopédia dos

Animais).

Não é de espantar que o tatu-mulita seja personagem da mitologia popu-

lar, uma vez que sua ocorrência no Brasil é muito comum, estando a espécie

distribuída desde o Pará até o Rio Grande do Sul, indo até o interior do Mato

Grosso (Idem). O tatu-mulita possui, conforme já se disse, uma forte carapaça

com sete cintas móveis. Tal condição dota-o de uma perfeita armadura. Refe-

rindo-se simbolicamente ao tatu, afirmam Sams e Carson (2000, p. 163):

“Sua carapaça protetora é parte de seu ser, de tal forma que ele pode, facil-

mente, se enrolar em torno de si mesmo, transformando-se numa bola resis-

tente que não pode ser penetrada por seus inimigos”.

Quantas vezes necessitamos nos esconder ou nos proteger daqueles que

são uma ameaça para nossa segurança ou querem invadir nosso espaço? Na

história relatada por João Simões Lopes Neto, é Maria quem está mais opri-

mida; o papel de José é totalmente secundário, e o menino Jesus é indefeso.

Haverá maior invasão ao universo de uma mulher do que o iminente assassí-

nio de um filho? Num caso desses, é preciso fugir e erguer uma carapaça

protetora; se necessário, resistir e confrontar o perigo.

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O tatu não representa apenas a defesa contra o mundo hostil. Ao contrá-

rio de sua carapaça, o seu ventre é macio e extremamente vulnerável. Meta-

foricamente essa imagem nos diz que é necessário reconhecer e vivenciar,

sem medo, a condição humana, também repleta de vulnerabilidade.

O próprio filho de Maria, sendo Filho de Deus, se fez homem, isto é,

encarnou-se, voluntariamente, por amor à humanidade. Ele, sendo divino,

fez-se vulnerável, todavia, essa vulnerabilidade não é fraqueza, é a capaci-

dade de estar aberto ao sofrimento como caminho de elevação e solidarie-

dade espiritual, na certeza da vitória, através da demarcação de um território

que impede a ação predatória do perigo e do mal.

A lição do tatu é esta: “Esse território é protegido pela carapaça, não se

pode deixar, entretanto, que a armadura se transforme numa prisão e nem

que seus medos sejam seus carcereiros” (Sams e Carson, 2000, p. 165). Ou

ainda: “O casco da integridade, a segurança de propósitos e metas o prote-

gerão dos desequilíbrios que o cercam” (Wagner, 2003).

A tempestade

A tempestade é, por excelência, um tema romântico, sendo o Sturm und

Drang, na década de 1770, um significativo exemplo disso. No fundo, o amor à

tempestade ou à tormenta é representativo das aspirações do homem para com

uma vida intensa, cheia de perigo e emoção. Chateaubriand (1768-1848), um

dos mais típicos autores do Romantismo europeu, assim se expressou:

Levantai-vos, depressa, tormentas desejadas, que deveis arrebatar René

para os espaços de uma outra vida que faz eco ao de Ossian: “Levantai-

vos, ó ventos tormentosos de Erin; brami, furacões dos urzais; que eu mor-

ra no meio da tempestade, raptado numa nuvem pelos fantasmas irritados

dos mortos” (Capell, 1946, p. 41-42).

A metáfora da tempestade não está presente apenas na moderna tradi-

ção do Ocidente, embora esta – sobretudo no Romantismo – se alimente de

fontes folclóricas e populares mais antigas e de variegadas origens.

Na mitologia africana, encontramos Iansã ou Oyá como o orixá femini-

no ligado ao vento, ao trovão, ao relâmpago e à tempestade. Conta a lenda

que Oyá recebeu de Olorum a missão de transformar a natureza através do

movimento (o vento) que ela provoca com sua dança. Às vezes, o vento se

transmuta em tormenta, o que, ao provocar destruição, também dá ensejo à

renovação do ciclo natural. Mas, geralmente, Oyá se mostra gentil, sopran-

do apenas uma brisa que, espalhando sementes, renova a criação e semeia

vida. Além disso, esse vento manso é responsável pelo processo de evapo-

ração de todas as águas da terra, provocando as chuvas tão necessárias à

fertilização do solo e ao equilíbrio natural (Verger, 1997).

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A presença indígena na obra de Simões Lopes Neto 39

Na Nigéria, Oyá é a deusa ligada ao rio Níger. Ela é a principal esposa

de Xangô. Impetuosa, de forte personalidade, ela é também rainha dos espí-

ritos dos mortos. Oyá foi a única mulher de Xangô que o acompanhou em

sua fuga à terra de Tapa, mas se desencorajou em Ira, sua cidade natal. Aí,

desenganada do amor, suicidou-se ao receber a notícia da morte de Xangô.

Os tornados, furacões e tempestades são o resultado de sua tristeza e des-

contentamento.

Oyá ou Iansã é puro movimento. Não pode ficar parada, para não res-

tringir a constante renovação do mundo natural. A lenda também nos rela-

ta que, embora tenha sido esposa de Xangô, Oyá ou Iansã percorreu vários

reinos e seduziu diversos reis. Foi paixão de Ogum, Osogiyan e de Exu.

Conviveu e seduziu Osossi, Logum-Edé, tentando, em vão, conquistar

Obaluaê. Depois de muitas peripécias e amores, ao chegar ao reino de

Obaluaê, este, desconfiado, perguntou o que Oyá queria. Ela respondeu:

“Quero ser sua amiga”. Dito isso, fez para ele a dança dos ventos. Dessa

dança vem a tempestade que representa a paixão indômita e frustrada de

Iansã (Idem, ibidem, 1997).

Conforme se pode observar na mitologia dos orixás, há uma interven-

ção sobrenatural no mundo natural – na verdade, uma representação ale-

górica (poética) dos fenômenos da natureza. A tempestade é explicada

através da imagem do descontentamento ou da paixão de Oyá (Idem,

1997).

Embora de tradições culturais distintas, a tormenta ou a tempestade na

Bíblia não difere no sentido, basicamente, da simbologia africana: o fe-

nômeno é uma manifestação ou intervenção divina de cólera, socorro ou

manifestação de sua glória. Pode-se dar como exemplo de cada um desses

casos, respectivamente, a destruição de Sodoma e Gomorra (Gênesis 19,

24), a passagem do Mar Vermelho por Moisés (Êxodo 14, 21) e o Salmo

29, em que se exalta o poder de Deus (Salmos 29, 4-8).

É nesses três sentidos que João Simões Lopes Neto, em seu texto Mãe

mulita, coloca a tempestade de areia. É manifestação da divina cólera,

porque os soldados são punidos por perseguirem a Sagrada Família.

É socorro porque, quando tudo já parecia perdido, posto que os cavalos

são mais rápidos que as mulitas, a tempestade vem e dispersa o centurião

e o restante da tropa. Finalmente, é também manifestação da glória e do

poder divino, pois só Deus em sua infinita ação providencial poderia gerar

um fenômeno natural forte, a ponto de vencer a determinação do ódio e da

injustiça.

A lição da tempestade: Deus está no controle de tudo, para punir ou so-

correr.

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Carlos F. Sica Diniz Identidades Ameríndias 40

São Sepé / Lunar de Sepé5

Por volta do século XII, a Europa Ocidental vive o Renascimento co-

mercial e urbano. Com a expansão dos domínios muçulmanos e a conse-

qüente tomada de Jerusalém pelos seguidores de Maomé, emerge, entre os

europeus, o desejo de empreender as cruzadas. Cabe ressaltar que esta in-

tervenção militar representava, além do questionável interesse religioso, um

novo horizonte para a expansão econômica do continente, na qual a burgue-

sia fora a principal beneficiada. “Para as cidades comerciais italianas, por

exemplo, era muito vantajoso que as cruzadas utilizassem suas embarcações

para atingirem terras orientais. Desejavam aumentar seus lucros mediante a

expansão das transações comerciais” (Aquino, 1982, p. 14).

As expedições ao Oriente Médio lançaram um novo alento à economia.

As rotas marítimas propiciaram, aos venezianos e genoveses, a possibilida-

de de um grande acúmulo de riquezas, por intermediarem a entrada de pro-

dutos do oriente para os consumidores europeus, cobrando altos impostos

sobre as mercadorias. No despontar do século XV, as principais rotas co-

merciais mediterrânicas mantinham-se sob o monopólio das cidades italia-

nas que, em aliança com os muçulmanos do Oriente, dificultavam as ativi-

dades comerciais na Europa. Com a tomada de Constantinopla pelos turcos

otomanos, em 1453, o estrangulamento comercial tornou-se mais acentua-

do, porquanto estes taxaram as especiarias de modo a encarecer muito o

preço de revenda. Estes fatores impulsionaram os países ibéricos a em-

preender expedições pelo Atlântico, no intento de encontrar caminhos alter-

nativos para a Ásia. Tais empreendimentos contaram com o financiamento

da burguesia, classe, então, melhor provida em recursos móveis, ou seja,

dinheiro.

Os portugueses foram os primeiros que, desbravando a costa africana,

atingiram o Índico, chegando à Índia e ao extremo oriente. Ainda envolvida

na retomada de seu território em poder dos mouros, a Espanha retarda suas

expedições pelo Atlântico, concorrendo para isso sua falta de unidade polí-

tica e territorial, pois estava dividida em reinos independentes em constan-

tes conflitos. A união espanhola efetuou-se com o casamento de Isabel e

Fernando, herdeiros, respectivamente, dos tronos de Castela e Aragão. No

processo de formação do Estado Nacional, incorporou-se o reino de Navar-

ra e efetuou-se a conquista de Granada. Enquanto os aragoneses estavam

mais interessados em competir com o monopólio italiano do que investir em

uma expedição incerta pelo Atlântico, a burguesia castelhana mantinha o

5 Este texto de Mateus Weizenmann foi o resultado das atividades de pesquisa como bolsis-

ta BIC/UCPel, em 2004, no GPS/ISF, sob o título de Roteiro de leitura da história das

Missões Jesuíticas por meio do Lunar de Sepé, de João Simões Lopes Neto.

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A presença indígena na obra de Simões Lopes Neto 41

propósito de chegar às Índias pelo mesmo caminho traçado pelos navios

lusitanos; porém, “impossibilitados de costear a África, devido à precedên-

cia portuguesa que impedia a ação de concorrentes, viram-se (os espanhóis)

obrigados a navegar pelo Ocidente, para chegar ao Oriente” (Aquino, 1982,

p. 20-21). Chegando ao Novo Mundo, que, inicialmente, se pensara ser a

Ásia, visavam estabelecer relações mercantis, o que logo se transformou em

intento colonizador.

A economia da época moderna direcionava o olhar para a extração de

metais preciosos, especialmente ouro e prata, pela praticidade que ofere-

ciam como bens móveis. Para garantir a riqueza de um país, acreditava-se

que o acúmulo de moeda devia ser efetivado, tornando-se necessário reduzir

as importações e buscar mercados consumidores para expandir o volume de

produtos exportados.

As colônias apresentaram-se como cenário perfeito para a execução do

projeto econômico europeu, pois, além de garantir abundância de matérias-

primas, extraídas por um preço mínimo, devido ao uso que se fazia da mão

de obra escrava, estavam condenadas a negociar sua produção somente com

a metrópole. A população local passou a ser vista como mero instrumento

de trabalho a serviço da Coroa. Esporadicamente, os invasores brancos se

aliavam a algumas tribos, para alimentar ódios existentes entre os nativos

da terra, a fim de enfraquecer a ambos, valendo-se de falsas promessas a

determinados grupos indígenas.

A legitimação das atrocidades cometidas pelos colonizadores assentava-

se no falso uso da doutrina cristã, com o chamado Estado de Cristandade.

Igreja e cristianismo eram instâncias distantes, porquanto a religião, ao ser

institucionalizada, foi posta a serviço de ambições pessoais e de Estados

despóticos. Alegando-se levar aos nativos a verdade revelada, os invasores

europeus se lhes faziam guerra em caso de não-subordinação, seus crimes

tornavam-se assim facilmente perdoados e até mesmo ovacionados, em

nome de uma cruz estupidamente carregada.

Antes de cada entrada militar, os capitães de conquista deviam ler para os

índios, sem intérprete, mas diante de um escrivão público, um extenso e

retórico Requerimiento que os exortava a se converterem à santa fé católi-

ca: “Se não o fizerdes, ou nisso puserdes maliciosamente dilação, certifi-

co-vos que com a ajuda de Deus eu entrarei poderosamente contra vós e

vos farei guerra por todas as partes e maneira que puder, e vos sujeitarei

ao jugo e obediência da Igreja e de Sua Majestade e tomarei vossas mulhe-

res e filhos e vos farei escravos, e como tais vos venderei, e disporei de

vós como Sua Majestade mandar, e tomarei vossos bens e vos farei todos

os males que puder...” (Galeano, 1985, p. 25).

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Carlos F. Sica Diniz Identidades Ameríndias 42

Inicialmente aclamados como deuses, logo os espanhóis mostraram a

que vieram, quando, na busca por riquezas, promoveram matanças, mesmo

em lugares onde eram bem recebidos, a exemplo do que ocorreu em Méxi-

co-Tenochtitlan, antiga capital do Império Asteca.

A dúvida a respeito da identidade dos homens de Castela subsistiu até o

momento em que, já hóspedes dos astecas em Tenochtitlan, perpetraram a

matança do templo maior. O povo em geral acreditava que os estrangeiros

eram deuses. Mas quando viram seu modo de comportar-se, sua cobiça e

sua fúria, forçados por esta realidade, mudaram sua maneira de pensar: os

estrangeiros não eram deuses, mas popolocas, ou bárbaros, que tinham

vindo destruir sua cidade e seu modo de vida” (Portilla, 1985, p. 17).

Para os castelhanos, a corrida pelo ouro e pela prata estava acima de

qualquer interesse evangelizador. Aproveitando-se da autoridade de “seu

Deus”, instituíram a exploração da força de trabalho dos nativos, criando as

chamadas “encomiendas”, forma mascarada de escravizar o povo. “Para

poder seguir aprovechandose de los indios sin tenerlos formalmente como

esclavos fue creada la encomienda, mediante la cual el encomendero, a

quien era entregados todos los indios de una región para que los protegiera

y procurar su adoctrinamiento, lo que hacia era explotarlos hasta la muerte”

(Guadarrama, 1993, p. 50-52).

A respeito da legitimidade da escravidão, diferentes correntes de pen-

samento surgem na etapa da conquista, destacando-se as seguintes: indige-

nista, em favor dos direitos dos nativos, tendo como principal representante

o Frei Bartolomé de Las Casas; centrista, interessada em assegurar os inte-

resses do Estado, sendo Francisco de Vitória o principal expoente e a escra-

vista, liderada por Juan Ginés de Sepúlveda, que, a serviço da classe colo-

nialista, em busca da riqueza e do poder, justifica a exploração do oprimido

e defende a supremacia natural européia, inspirada na concepção de Aristó-

teles de que uns nascem para serem livres enquanto outros, por natureza,

são escravos.

Frei Bartolomé de Las Casas denunciou os abusos ocorridos com as

comunidades indígenas, posicionando-se a favor da liberdade de culto, o

que significou o respeito à pluralidade cultural naquele momento. Manifes-

tou-se contra as torturas, abusos sexuais e assassinatos que sofreram os

indígenas no processo de colonização. Na obra O paraíso destruído, afirma

que seus conterrâneos “Ensinavam os cães a fazer em pedaços um índio à

primeira vista. Estes cães faziam grandes matanças e como por vezes os

índios matavam algum, os espanhóis fizeram uma lei entre eles, segundo a

qual por um espanhol morto faziam morrer cem índios” (Las Casas, 1996,

p. 31).

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A presença indígena na obra de Simões Lopes Neto 43

O relato de Las Casas aponta e critica a idéia de superioridade racial vi-

gente entre os europeus. Através de suas denúncias, tentou minar a condi-

ção de estigmatizados que viviam os índios, promovendo o respeito ao seu

modo de viver. Numa época em que a clássica dicotomia corpo x alma,

herdeira da tradição grega, elevava a segunda à condição superior em rela-

ção ao primeiro, pela suposta ligação direta com a divindade, se pôs em

discussão a existência de uma substância além da corpórea entre os índios.

Estes teriam alma? A dúvida implicava pôr em prova se realmente eram

humanos. Ginés de Sepúlveda, defendendo o direito de escravidão, declara:

Lo perfecto deve imperar sobre lo imperfecto, lo fuerte sobre lo débil. Da-

do que los aborígenes son imperfectos y debiles frente a los españoles, es-

tos deben dominarlos y ponerlos a su servicio, porque asi lo establece la

ley natural. Esta es, además, un labor civilizatoria y de caridad para con

los pobres indios, que son bárbaros, incultos, impíos, inhumanos (Gua-

darrama, 1993, p. 75).

Após se travarem discussões entre as diferentes concepções vigentes

neste período, as autoridades espanholas reconhecem a humanidade indíge-

na, ainda que se suponha que o índio necessite de orientação constante, para

não cair numa vida corruptível e se afastar da religião dos seus novos sobe-

ranos. Apesar de humanos, continuam à margem, carregando um estigma

por pertencerem a uma cultura com outros valores. Este é o pano de fundo

da organização colonial da América hispânica no século XVI, longe de ser

pensada como verdadeiramente cristã. Se pensarmos nos Dez Mandamentos

recebidos por Moisés no monte Sinai, percebemos as inumeráveis contradi-

ções éticas que perpassaram o modelo colonialista que, justamente, matava

em prol do respeito às leis cristãs, princípios como não matar! e não rou-

bar! foram relegados ao esquecimento diante do valor material que as mi-

nas do Novo Mundo podiam oferecer. E, assim, tem-se repetido a crise de

valores na história das sociedades.

Uma única bolsa de pimenta valia, na Idade Média, mais do que a vida de

um homem, mas o ouro e a prata eram as chaves que o Renascimento em-

pregava para abrir as portas do paraíso no céu e as portas do mercantilis-

mo capitalista na terra. A epopéia dos espanhóis e portugueses na América

combinou a propagação da fé cristã com a usurpação e o saqueio das ri-

quezas nativas. O poder europeu estendia-se para abarcar o mundo (Ga-

leano, 1985, p. 26).

O Tratado de Tordesilhas, com o qual Portugal e Espanha dividiram o

mundo com uma linha imaginária a 370 léguas a oeste das ilhas de Cabo

Verde, concedeu à Coroa Espanhola a maior parte do território americano,

incluindo o atual estado do Rio Grande do Sul. Com o despontar da extra-

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Carlos F. Sica Diniz Identidades Ameríndias 44

ção de metais preciosos, a Espanha tornou-se a maior potência colonial

européia; contudo, a grande extensão de terras a tornava vulnerável às ex-

pedições portuguesas em seu território e a pirataria de outras nações do

Velho Mundo, em especial, Inglaterra, Holanda e França.

Diante da necessidade de conter o perigo lusitano que se dirigia do Bra-

sil em direção à porção ocidental do continente sul-americano, a Coroa

Espanhola encontrava-se em frágil posição de defesa, não possuindo exérci-

to capaz de conter a fúria de seus concorrentes pelo ouro e a prata abundan-

te em suas colônias. A descoberta das minas de Potosi, no atual território do

Peru, dera aos espanhóis a sensação de ter encontrado a fonte inesgotável de

riquezas, o que fizera com que o Imperador Carlos V lhe outorgasse o título

de Vila Imperial e uma placa contendo a seguinte inscrição: “Sou o rico

Potosi, do mundo sou o tesouro, sou o rei das montanhas e sou a inveja dos

reis” (Galeano, 1985, p. 33). O esplendor desta cidade encravada nos Andes

alimentava o desejo de poder e a ostentação sem limites.

Dizem que até as ferraduras dos cavalos eram de prata, no auge da cidade

de Potosi. De prata eram os altares das igrejas e as asas dos querubins nas

procissões: em 1658, para a celebração do Corpus Christi, as ruas da cida-

de foram desempedradas, da matriz até a igreja de Recoletos, e totalmente

cobertas com barras de prata. Em Potosi a prata levantou templos e palá-

cios, mosteiros e cassinos, foi motivo de tragédia e de festa, derramou

sangue e vinho, incendiou a cobiça e gerou desperdício e aventura. A es-

pada e a cruz marchavam juntas na conquista e na espoliação colonial. Pa-

ra arrancar a prata da América, encontravam-se em Potosi os capitães e

ascetas, toureiros e apóstolos, soldados e frades. Convertidas em bolas e

lingotes, as vísceras da rica montanha alimentaram substancialmente o de-

senvolvimento da Europa (Galeano, 1985, p. 32).

Contrariamente à abundância do lado hispânico, não foram encontradas

significativas minas metálicas no território brasileiro, o que acarretou no

avanço português em direção ao oeste, com as entradas dos bandeirantes

paulistas. Para conter as investidas destes, a Espanha precisava ocupar as

terras sobre as quais julgava ter direitos, formando um escudo às suas mi-

nas, assim, enviou padres jesuítas a fim de conquistar súditos à Coroa por

meio do Evangelho. Além dos fins defensivos, também visava uma saída

pelo Atlântico para escoar seus produtos, visto esta medida facilitar o trans-

porte dos mesmos da colônia à metrópole, constituindo-se num modo mais

rápido e econômico.

As primeiras missões, onde hoje se compõe o território brasileiro, fo-

ram edificadas na região dos rios Paraná e Paraguai. As missões de Guaíra,

contudo, foram arrasadas pelos bandeirantes paulistas. Estes, além de sa-

quear a produção da redução, capturavam um grande número de indígenas,

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A presença indígena na obra de Simões Lopes Neto 45

a fim de vendê-los como escravos em São Paulo, no Rio de Janeiro e na

Bahia. Migrando para o sul, índios e jesuítas atingiram o rio Uruguai, fun-

dando novas reduções e ampliando o contato com a povoação guarani que

habitava estas terras.

Os índios guaranis, além da caça e da pesca, praticavam a agricultura, o

que foi um aspecto que facilitou a aceitação destes aos padres que na região

se fixavam. Os jesuítas trouxeram um aparato tecnológico capaz de expan-

dir a produção agrícola, carente diante dos parcos recursos à disposição

destes nativos. Cabe ressaltar que a produção de alimentos consistia em

grave problema enfrentado pela população guaranítica – a terra se esgota-

va –, o que os obrigava a empreender migrações constantes, caracterizando-

se como nômades. A fome se abatia sobre a população, que enfrentava ain-

da outro grave problema: as lutas contra tribos inimigas da Campanha e do

Planalto mantinham-se como uma ameaça constante às suas vidas e liberda-

des.

O sistema produtivo preconizado pelos padres configurava um extraordi-

nário salto tecnológico – enxada, arado, adubação, irrigação, rotação de

culturas, produção de sementes, etc. e, em geral, uma economia planifica-

da. Ao se tornarem súditos da Coroa, subtraíam-se à encomienda e rece-

biam proteção contra os paulistas. Os guaranis negociavam estas duas

condições com a Coroa através dos jesuítas (Freitas, 1982, p. 30).

Assim, o projeto missioneiro representava vantagens tanto para o rei de

Castela quanto para os guaranis, e também para os jesuítas, em seu intento

catequizador.

A primeira redução em terras rio-grandenses foi a de São Nicolau do

Piratini, estabelecida pelo jesuíta Roque Gonzales de Santa Cruz, em três de

maio de 1626. Composta inicialmente por 280 famílias, transcorrido um

ano já contava com uma população de 2.500 habitantes. Entre os anos 1626

e 1637, outros padres da Companhia de Jesus fundaram mais quinze redu-

ções no atual território do Rio Grande do Sul, estendendo-se da bacia do

Uruguai até a do Jacuí.

O processo de colonização européia, na Província de São Pedro, teve as

missões jesuíticas como marco inicial, embora comumente tenha-se atribuí-

do à chegada do brigadeiro português Silva Paes, onde foi erigida a cidade

de Rio Grande, como primeiro foco da dita “civilização”. Esta deturpação

dos fatos se deu com o fim de resguardar os interesses de Portugal sobre o

território, visto que o reconhecimento da ocupação espanhola, representada

pela Companhia de Jesus, implicava “uti posidetis”, ou direito de posse aos

castelhanos. Por esse motivo, os manuais de história nos chegaram falsean-

do a realidade com um escopo já definido pelos interesses lusitanos em

tempos passados. Cabe ressaltar que após a chegada da Companhia de Je-

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Carlos F. Sica Diniz Identidades Ameríndias 46

sus, por mais de um século, os portugueses se limitaram a cruzar o território

apenas praticando uma economia predatória, não empreendendo qualquer

atividade que caracterizasse um processo civilizatório.

Enquanto os portugueses apenas trafegavam pela região, os jesuítas se

estabeleciam com o intuito de criar comunidades auto-suficientes e que

professassem a fé cristã, mantendo relativa autonomia política.

Aos colonizadores jesuítas se deve o conhecimento da geografia, da zoo-

logia e da botânica do território [...]. Introduziram e propagaram o gado

vacum, cavalar e ovino – base futura da economia rio-grandense e, mais

que isso, desenvolveram junto com os índios a técnica de pastoreio que

havia de ser adotada depois pelos portugueses e seus descendentes. A pró-

pria invocação de Rio Grande de São Pedro, que o território teve até a

proclamação da República, foi dada pelos colonizadores jesuítas (Freitas,

1982, p. 15).

O período anterior a 1641 foi caracterizado por intensas invasões ban-

deirantes, entre elas a de Raposo Tavares (1639) e a de Fernão Dias Paes

Leme (1639), ambas ocorridas em reduções próximas ao Jacuí. Em 12 de

março de 1641, porém, os paulistas comandados por Jerônimo Pedroso, na

margem oriental do rio Uruguai, foram derrotados pelo exército guarani, na

chamada Batalha de M’bororé, o que abriu as portas para um novo período

na região missioneira. Com a defesa guaranítica, os bandeirantes cessaram o

tráfico de escravos nos domínios jesuíticos. Inicia-se uma época de relativa

paz nas reduções, o que possibilitou um grande desenvolvimento no plano

econômico.

Segundo Décio Freitas, a locação das reduções exigia alguns requisitos,

assim descritos por ele:

Cada redução constituía uma unidade urbano-rural rigorosamente planeja-

da. Compreendia uma área de trinta ou quarenta léguas, mais ou menos,

segundo o número de habitantes e a qualidade das terras. Estipulou-se que

o local da povoação devia medir no mínimo cem hectares de terreno pla-

no, algo elevado e aberto para o sul, de onde sopravam os ventos refres-

cantes; devia possuir abundância de águas e de matas, bem como ficar

longe dos pântanos. A distância entre uma redução e outra não podia nor-

malmente ultrapassar de três léguas espanholas (15 km); excepcionalmen-

te, a distância podia chegar a dez léguas. Esta proximidade visava facilitar

as comunicações e a defesa (Freitas, 1982, p. 44).

Os jesuítas dinamizaram o processo de urbanização do território, im-

plantaram nas reduções o traçado retangular espanhol, com ruas cortadas

em ângulos retos. A população se concentrava quase exclusivamente dentro

do perímetro urbano.

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A presença indígena na obra de Simões Lopes Neto 47

Cada redução formava, pois, uma unidade mais ou menos auto-suficiente.

Salvo no caso das estâncias, não havia separação entre cidade e campo. Os

que trabalhavam na terra moravam no centro urbano; tinham uma existên-

cia coletiva, não ficando submetidos ao isolamento a que está condenado o

camponês (Freitas, 1986, p. 45).

Enfocando o cotidiano agrário da população missioneira, assim se refe-

re Simões Lopes Neto:

Cheiravam as brancas flores

Sobre os verdes laranjais;

Trabalhava-se na folha

Que vem dos altos ervais;

Comia-se das lavouras

Da mandioca e milharais.

(Lopes Neto, 1988, p. 184).

A economia das missões mantinha o caráter de subsistência, o que não

impedia que se efetuassem exportações. Predominavam as tradicionais la-

vouras de mandioca, milho e tabaco, bem como outros produtos agrícolas

incorporados pelos padres, tais como algodão, açúcar, cânhamo e trigo.

A extração da erva-mate era intensa e bem aceita no mercado. Era o

principal produto de exportação das reduções. O lucro era direcionado à

compra de manufaturas não disponíveis naquelas comunidades. De qualida-

de superior à erva produzida pelos espanhóis, dos ervais guaraníticos dirigi-

a-se a mercadoria a Buenos Aires, Santa Fé, Chile e Peru. Convém destacar

que, devido à distância das missões aos locais de extração, os jesuítas de-

senvolveram um modo de produção artificial da erva-mate. Calcados em

técnicas de engenharia, efetuavam projetos de irrigação das lavouras, o que

somava para a construção de uma economia planificada e sólida.

A indústria contava com olarias, fornos de fundição de ferro, curtumes,

matadouros, moinhos d’água e vento, fábricas de carros e carroças, armas,

pólvora, secadores de erva-mate e construção de embarcações de pequeno

calado às margens dos rios. Havia também indústria tipográfica, editorial e

manufatureira. “Havia em cada redução trinta ou quarenta oficinas manufa-

tureiras, em que trabalhavam ferreiros, tecelões, chapeleiros, curtidores,

carpinteiros, oleiros, escultores, pintores etc.” (Freitas, 1982, p. 47).

Diante do salto no desenvolvimento de uma produção primitiva a um

modelo planificado pelos jesuítas, pode-se afirmar que “o sistema configu-

rou uma revolução econômica, à medida que os índios passaram de uma

economia neolítica itinerante para uma economia sedentária de alto nível

técnico” (Freitas, 1982, p. 46).

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Carlos F. Sica Diniz Identidades Ameríndias 48

O texto Lunar de Sepé, escrito por Simões Lopes Neto com base em um

relato indígena, apresenta uma sociedade harmoniosa e de acordo com as

leis de Deus, a qual:

Ninguém a vida roubava

Do semelhante cristão,

Nem pobreza existia

Que chorasse pelo pão

Jesus Cristo era contente

E dava sua bênção.

(Lopes Neto, 1988, p. 184).

Os padres implantaram um coletivismo que não se apresentava tão es-

tranho aos guaranis. Estas comunidades, antes da presença da Companhia

de Jesus, mantinham uma existência conjunta. Embora cada família tivesse

sua plantação, o trabalho era executado em grupo. O produto da caça era

repartido pelo caçador a todos os cidadãos. Os jesuítas implantaram um

“comunismo cristão” que, institucionalizado nas reduções, pode ser consi-

derado, conforme Décio Freitas, “o primeiro experimento socialista em

terras brasileiras” (Freitas, 1982, p. 16).

As reduções representaram a erradicação da fome e a proteção dos guaranis

diante das guerras contra seus vizinhos, o que não afastara eventuais conflitos

com os bandeirantes. “Formavam comunidades prósperas e pacíficas, dedica-

das à produção agrícola, pastoril, extrativista e artesanal. Em quase todas, flo-

resciam a arquitetura, a pintura, a escultura, a decoração e a música. Os índios

se alfabetizavam rapidamente na sua própria língua” (Freitas, 1982, p. 15).

Também é mérito dos jesuítas a criação das primeiras gramáticas guaranis.

A produção efetuava-se nas terras denominadas Abambaé e Tupambaé,

enquanto a primeira existia individualmente para cada família, a segunda

servia a toda comunidade e todos trabalhavam no seu cultivo.

O Abambaé, inexistente como propriedade privada voltada para a produ-

ção na tribo guarani, foi institucionalizado a partir da legislação espanhola

colonial, e passou a funcionar como propriedade das famílias que estavam

reunidas em torno dos caciques. Era controlada pelos alcaides e o produto

guardado em sacos nos depósitos, com a identificação do proprietário que

deles retirava o que necessitava. Era com os frutos do Tupambaé, entretan-

to, que se mantinham as viúvas e os órfãos, se atendiam aos necessitados,

quando o produto do Abambaé terminava, alimentavam as expedições que

partiam em busca da erva-mate ou em direção das estâncias de gado, para

fornecer víveres para o deslocamento das tropas indígenas das Missões,

quando em campanha militar ou em marchas de reconhecimento, para ma-

nutenção da igreja e dos padres (o Cura e seu companheiro) e finalmente

para garantir as reservas para a próxima semeadura (Kern, 1982, p. 74).

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A presença indígena na obra de Simões Lopes Neto 49

Desse modo, o Tupambaé simbolizava o espírito comunitário no pro-

cesso de produção, estando cada indivíduo comprometido com o suprimen-

to de bens necessários a todos. Nesta terra, a fome de um era problema cole-

tivo, logo se pode pensar que “nem pobreza existia que chorasse pelo pão”

(Lopes Neto, 1988, p. 184). A solidariedade não estava fechada dentro de

cada redução, cada um dos povos era responsável pelo abastecimento dos

vizinhos. “Se a safra de uma redução fracassava, por inundação, seca ou

qualquer outro motivo, as demais estavam obrigadas a provê-la do que fal-

tava, em alimentos, manufaturas etc.” (Freitas, 1982, p. 52). O Tupambaé

mantinha uma função social; dele retirava-se a quantia necessária de ali-

mentos para o consumo diário das famílias.

A organização política previa que todos os meios de produção perten-

ciam à redução, de materiais empregados para a produção agrícola, como

arados e enxadas, a bois e sementes. Cada trabalhador utilizava os equipa-

mentos e devia se comprometer em entregá-los em bom estado.

As casas constituíam propriedade da redução, que as entregava em usufru-

to aos casais. Entendia-se que não havia necessidade de herança, dado que,

ao casar, os filhos recebiam sua própria casa [...]. Somente havia proprie-

dade privada dos objetos de uso pessoal: redes de dormir, panelas de ce-

râmica, arcos e flechas, animais de estimação, bem como tudo o que fosse

por eles fabricado e legitimamente adquirido (Freitas, 1982, p. 51).

Diferente do modo econômico vigente na Europa e mesmo no restante

das colônias, a circulação da moeda não se efetivava nas missões. Como as

necessidades eram suprimidas por uma economia voltada para a subsistên-

cia e o bem-estar de todos, não se fazia necessária a troca de valores. Por

ser exaltado o aspecto religioso, a humildade cristã e o trabalho eram assi-

nalados como virtudes fundamentais.

A sociedade guarani, em plena fase de transição cultural e integrando-se,

paulatinamente, na sociedade espanhola, não foi obrigada pela força à ati-

vidade econômica. A sustentação do esforço foi dada pela própria fé di-

fundida pelos jesuítas, pela mística e pelo solidarismo da religião cristã

(Kern, 1982, p. 80).

O “comunismo cristão” dos missioneiros não estava fundamentado em

razões econômicas, mas sim, no igualitarismo religioso. Segundo Clóvis

Lugon, em sua obra A República comunista cristã dos guaranis:

O comunismo aplicado pelos jesuítas não era moderado. Um comunismo

alicerçado em razões essencialmente econômicas poderia ser mais facil-

mente moderado, na acepção burguesa, por exemplo, admitindo substan-

ciais desigualdades de renda. Na República Guarani, as condições de vida

correspondiam, em princípio, ao gênero de atividade, nada mais. Do ponto

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Carlos F. Sica Diniz Identidades Ameríndias 50

de vista fraternal que dominava, uma mais-valia teria parecido um abuso,

ao passo que, com as concepções sobretudo econômicas, poder-se-ia pen-

sar na possibilidade de atribuir rendas privilegiadas, excedendo as possibi-

lidades razoáveis de consumo, e pretender-se-ia justificar tal forma de ex-

ploração pela necessidade de estimular a produção ou acelerar a formação

de uma elite vinculada ao regime (Lugon, 1977, p. 342).

O modelo de sociedade descrito por Lugon parece estar de acordo com

o projeto cristão de fraternidade e solidariedade. Obedecendo à hierarquia

dos caciques, as diferenças de tratamento efetuavam-se por uma questão de

respeito à autoridade, longe de representar a formação de uma casta separa-

da dos demais membros da sociedade, embora os governantes e suas famí-

lias mantivessem status diferenciado. “O Cabildo e seus Corregedores go-

zavam de situação especial, na Missão, pois era aos magistrados e funcioná-

rios índios que se destinavam lugares na Igreja e seus filhos tinham o privi-

légio de ir à escola. Eram igualmente isentos de tributação. Recebiam ra-

ções duplas de carne, boas vestimentas e outros suplementos” (Kern, 1982,

p. 49).

Embora seguindo, internamente, um modelo de política econômica, di-

verso da organização da metrópole, o sistema das reduções mantinha-se ali-

nhado à Espanha, prestando-lhe contas sobre suas decisões. Por longo tempo,

as missões representaram os interesses de Castela, mas com seu desenvolvi-

mento tornara-se um aliado perigoso. Na sua fundação, cada índio se apresen-

tou a fim de livrar-se dos abusos que os espanhóis cometiam naquelas terras,

solicitando tornarem-se súditos do rei. “O tributo se pagava se o viso-rei o

pedia” (Lopes Neto, 1988, p. 184) e as prestações militares eram aos guaranis

solicitadas com freqüência, a fim de defender Assunção, Santa Fé e Buenos

Aires e lutando contra os portugueses da Colônia do Sacramento que, funda-

da em 1680, servia de entreposto para o contrabando.

Era impossível a instalação de estabelecimentos militares ao longo de toda

fronteira do Império Colonial Americano. Não havia meios humanos dis-

poníveis, nem mesmo pecuniários, pois o tesouro estava sendo sangrado

pelas guerras européias. Nem mesmo as cidades espanholas do Prata, nesta

época, tinham recursos para a sua defesa e o contingente demográfico era

muito restrito (Kern, 1982, p. 157).

Assim, torna-se claro o significado da afirmação de Simões Lopes Neto

que “até sangue se mandava na gente moça que ia...” (Lopes Neto, 1988,

p. 184), pois somente com a defesa a cargo dos índios reduzidos, as cidades

sob o jugo espanhol estavam seguras. E para responder à pergunta “Por que

havia aquele mal, se o pecado não havia?” (Lopes Neto, 1988, p. 184), ex-

pressão que se refere ao horror da Guerra Guaranítica, devemos nos reportar

aos interesses que dominavam as potências coloniais da época, expressos

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A presença indígena na obra de Simões Lopes Neto 51

pelo Tratado de Madri. O pacto que acabara com as Missões, selado em

1750 entre Portugal e Espanha, previa que esta cedesse os Sete Povos, o

oeste de Santa Catarina e Paraná, o Mato Grosso e o Amazonas em troca de

territórios no Pacífico e a Colônia do Sacramento. Na ocasião, os portugue-

ses lançavam vistas às reduções pela abundância de gado bovino na região.

Seu interesse era aguçado pela valorização do couro no mercado europeu.

A transação correspondia a interesses bem nítidos das duas potências co-

loniais. Portugal deixara de ter interesse na Colônia do Sacramento, dada a

evidência de que só proporcionava vantagens aos ingleses, que a usavam

para fazer contrabando no Prata. Não havia motivo, pois, para que aquela

inútil posição comercial continuasse a constituir um pomo de discórdia en-

tre as duas potências. A troca desta posição pelo vasto território dos Sete

Povos era largamente compensadora e foi na verdade um dos lances mais

hábeis da diplomacia portuguesa no Prata.

Na ótica da coroa espanhola, as missões já não tinham a mesma im-

portância do começo do século XVII. Primeiro: o desenvolvimento da tec-

nologia militar anulava sua utilidade para este fim, a menos que os mis-

sioneiros fossem bem armados, coisa que a Coroa, sempre temerosa de

uma rebelião, não estava disposta a fazer. Segundo: o crescimento econô-

mico e demográfico da colônia platina já permitia dispensar o concurso

dos missioneiros. Terceiro: era motivo crescente de apreensão para a Co-

roa a crescente autonomia dos missioneiros, traduzida na recusa de pagar o

dízimo e a prestação de serviços militares estranhos aos interesses dos ín-

dios. Quarto: a prosseguir o desenvolvimento missioneiro, surgiria um Es-

tado independente, não sendo casual que por este tempo começasse a cir-

cular na Europa e em particular na Espanha, rumores de que os jesuítas

tencionavam criar um Reino ou Império (Freitas, 1982, p. 68).

Expulsos da terra de seus ancestrais, era natural que os guaranis resis-

tissem, e o fizeram. O derramamento de sangue era certo, por este motivo

os jesuítas tentaram inutilmente persuadi-los a abandonar suas casas. Ao

deixarem as reduções, estava prevista sua locação em outras regiões da

colônia espanhola. Era intento dos portugueses estabelecer casais açorianos

na região. Com a resistência guaranítica, as coroas ibéricas se aliaram para

empreender sua expulsão.

A insurreição começou em São Nicolau do Piratini, alastrando-se pelas

demais reduções. Os rebeldes alegavam que “não era necessário mais que a

doutrina cristã para saber que o que tratavam os reis em sua linha divisória

era injusto” (Freitas, 1982, p. 70). Em palavras indignadas, questionava-se a

população guaranítica, que sempre esteve a serviço da Coroa Espanhola,

prestando-lhe serviços militares e pagando-lhe o devido tributo: Por que seu

rei rejeitaria seus vassalos, fazendo-os morrer e passar por miséria em ou-

tras terras?

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Carlos F. Sica Diniz Identidades Ameríndias 52

Eram armas de Castela

Que vinham do mar de além;

De Portugal também vinham,

Dizendo por nosso bem:

Mas quem faz gemer a terra...

Em nome da paz não vem!

(Lopes Neto, 1988, p. 184).

O episódio da guerra nas missões é narrado no texto simoniano com um

posicionamento marcadamente favorável aos vencidos. Interrogando que

motivos aquela sociedade teria dado ao seu rei, para que então se tornasse

inimiga, encontra-se o elogio de um povo que obedecia às decisões políticas

da Coroa e se consagrava ao culto do Deus que se lhes apresentaram. Agora

a terra geme tão somente pela ganância de seus soberanos, que agiam, con-

forme o preceito de Maquiavel de que “os fins justificam os meios”, pois

contrariavam o que uma autêntica moral cristã haveria de exigir, em virtude

de um pacto que visava beneficiar mais uma vez somente seus cofres.

Em abril de 1753, os jesuítas finalmente entregaram as terras e a auto-

ridade que lhes foi investida sobre os índios ao clero oficial e aos gover-

nantes espanhóis, mediante escritura pública, o que foi considerada uma

traição pelos guaranis. Em seguida, a Companhia de Jesus foi expulsa do

território, bem como das demais colônias espanholas e portuguesas.

Muitos confrontos marcaram o decurso da guerra pela posse das Mis-

sões. De São Miguel surge Sepé Tiaraju, guerreiro guarani que comandou

tropas para defender o leste, de onde marchava o exército lusitano. Sua

atuação provocou o atraso da incorporação do território a Portugal. Obri-

gados a abandonarem suas expedições, os exércitos dos países ibéricos,

que inicialmente planejaram atacar por duas frentes de batalha, unem for-

ças, formando um único grupo de combate. Sua chegada à redução de São

Miguel vitima o chefe indígena em 7 de fevereiro de 1756. Três dias após

sua morte, com o resultado da batalha de Caiboaté, é definida a guerra,

favorecendo Portugal e Espanha, o que deu início à marcação dos territó-

rios.

Lançaram-se cavaleiros

E infantes, com partazanas,

Contra os Tapes defensores

Do seu pomar e cabanas;

A mortandade batia,

Como ceifa de espanadas...

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A presença indígena na obra de Simões Lopes Neto 53

Couraças duras, de ferro,

Davam abrigo à vida

Dos muitos, que, assim fiados,

Cercavam um só na lida!...

Um só que de flecha e arco,

Entra na luta perdida...

(Lopes Neto, 1988, p. 185).

As cenas de batalha, reconstituídas pela literatura, apresentam a agres-

são que rapidamente exterminou a resistência devido ao desequilíbrio bélico

entre índios e brancos. O Lunar de Sepé, narrado sob a óptica guaranítica,

denuncia a falta de justificativas aceitáveis às conseqüências da assinatura

do Tratado de Madri, expresso nos seguintes versos:

Dócil gente, não receia,

As iras de Portugal:

Porque nunca houve lembrança

De haver-lhe feito algum mal:

Nunca manchara seu teto...;

Nunca comera seu sal!...

E de Castela, tampouco

Esperava tal furor;

Pois sendo seu soberano,

Respeitara seu senhor;

Já lhe dera ouro e sangue,

E primazia e honor!...

(Lopes Neto, 1988, p. 185).

A terra fora tomada, e vendidas as estâncias a particulares. Houve sa-

ques às igrejas, restando pouco da iconografia jesuítica que as adornavam.

A população entrou em decadência, sendo condenada à fome e doenças

oriundas do contato com os novos habitantes que chegavam. Passou a ser

cada vez mais comum a embriaguez e a prostituição entre os índios. Esta-

riam eles interessados nas liberdades de seu novo sistema? No que se agar-

rar mediante o destino que lhes fora designado?

Sepé Tiaraju tornou-se símbolo de resistência e foi considerado santo,

ao menos no imaginário popular.

Eram armas de Castela

Que vinham do mar de além;

De Portugal também vinham:

Dizendo, por nosso bem...

Sepé-Tiaraju ficou santo

Amém! Amém! Amém!...

(Lopes Neto, 1988, p. 187).

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A Teiniaguá na Salamanca do Jarau 6

Na lenda Salamanca do Jarau, Simões Lopes Neto coloca em Teinia-

guá o símbolo indígena, por excelência, que faz a síntese das religiões, cul-

turas e etnias.

O discurso de Blau introduz a origem da lenda na cidade de Salamanca,

na Espanha, e nomeia duas etnias – “os tais mouros e mais outros espa-

nhóis”.

a) A guerra de religiões ou de duas culturas – oriente x ocidente. Há

uma luta, na Espanha, entre o Catolicismo e o Islamismo. Estes últimos são

vencidos pelos católicos, daí serem obrigados a “ajoelharem-se ao pé da

Cruz Bendita”. Os mouros, “fingidos de cristãos, passaram o mar e vieram

dar nessas terras sossegadas, procurando riquezas, ouro, prata, pedras finas”

(S, 143, 2).

b) A gente pampeana, Anhangá-pitã e Tupã. Como era essa “gente nati-

va”? “Era gente sem cobiça de riquezas, que só comia a caça, o peixe, a

fruta e as raízes que Tupã despejava sem conta, para todos, das suas mãos

sempre abertas e fazedoras” (S, 143, 19-22). A gente pampeana da campa-

nha e da serra é sem cobiça, ao inverso dos europeus que cobiçam riquezas.

Aparecem duas entidades metafísicas: Anhangá-pitã, “do tupi-guarani: dia-

bo vermelho” (S, nota 5, 165) e Tupã, que para os tupis é o trovão, que os

missionários jesuítas designaram de Deus. O primeiro é identificado com o

diabo, enquanto o segundo é o doador generoso de bens.

c) A metamorfose da fada moura. Teiniaguá surge do sopro de Anhan-

gá-pitã que, através do condão mágico, tira-lhe a cabeça e implanta em seu

lugar uma pedra transparente, “vermelha como brasa”. Então, Anhangá-pitã

carrega Teiniaguá “sobre a correnteza do Uruguai, até as suas nascentes”.

Porém, ele “só não tomou tenência que a Teiniaguá era mulher”, porque se

trata de um personagem híbrido que assume muitas figurações no desenro-

lar da lenda. Daí, a dificuldade de reconhecer uma única identidade, pois ela

carrega em si o ser híbrido – mulher e lagartixa; a pluralidade étnica – mou-

ra e índia; a diferença etária – velha e jovem. Ela compreende o máximo de

contradições e a capacidade de metamorfosear-se, permanentemente, por

isso Anhangá-pitã não foi capaz de reconhecer sua identidade.

Neste segundo capítulo, apresentam-se algumas etnias fundadoras da

identidade do gaúcho – os europeus e os índios. Além destes, somam-se,

sabemos pela história, os portugueses, negros e outros. O gaúcho é o resul-

6 Remetemos ao estudo amplo desta lenda em: BAVARESCO, Agemir. Aprender a ser

gaúcho. A Salamanca do Jarau de J. Simões Lopes Neto. Porto Alegre: WS Editor, 2003.

Esta parte segue de perto o referido texto.

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A presença indígena na obra de Simões Lopes Neto 55

tado da miscigenação étnica. Aprende-se que a identidade do gaúcho não se

forma pela exclusão. A “gente pampeana” forma-se pela inclusão de um

conjunto étnico.

A Teiniaguá é como o Santão, uma personagem que passa por muitas

metamorfoses. O que a diferencia, porém, do Santão é que ela é uma perso-

nagem híbrida, porque é, ao mesmo tempo, animal e mulher. Ela conhece

todas “as riquezas”, “sabe dos tesouros”, e mantém a memória das origens:

As riquezas da Teiniaguá espalhadas aos quatro ventos são a própria histó-

ria que se repetirá, pela força da palavra, de boca em boca, para que a

memória não deixe morrer esse rastro das origens sagradas do gaúcho.

O vento, espécie de intermediário do céu e da terra, é como a palavra poé-

tica, que tenta refazer a unidade, perdida com a fragmentação dos mitos no

correr da história (Chiappini, 1988, p. 212).

Convivem nela o máximo de contradições. Ela é a síntese de etnias,

pois é moura e índia, ou seja, reúne em si o oriental, o europeu e o povo

autóctone. Ela é, também, a jovem e a velha, isto é, a “princesa moura”

(cap. IV) e a “velha carquincha” (cap. X). Ela é uma “fada velha” (cap. II),

algo mitológico e uma mulher: “Só não tomou tenência que teiniaguá era

mulher” (cap. II).

Uma outra contradição central em Teiniaguá é ser “bicho imundo” e

causa do pecado e, ao mesmo tempo, aquela que liberta o sacristão e, de

certa forma, é a salvadora do mesmo (cap. V). Ela é a causa da condena-

ção (“por ter tido amores com mulher moura, falsa, sedutora e feiticeira” –

cap. V) e de salvação do sacristão (“Mas um milagre se fez, fiquei sozi-

nho, abandonado, mas também ouvindo o chamado carinhoso da teinia-

guá” – cap. V). Há como que uma aproximação ambígua entre a Teinia-

guá/Eva (causa do pecado) e Teiniaguá/Maria (causa da salvação: “Os

olhos do meu rosto viam a consolação da graça de Maria Puríssima que se

alonjava... mas os olhos do pensamento viam a tentação do riso mimoso

da teiniaguá” – S, 151, 30).

A oposição entre o mal e o bem é enunciado no cap. II, quando aparece

Anhangá-pitã, que é a figuração indígena do diabo na cristandade européia.

Frente a ele, está Tupã que é o bondoso. O mal faz parte da condição huma-

na, porém, ele toma feições socioculturais que, no caso da comunidade in-

dígena, é amenizado ou superado através das estruturas coletivas: “Anhan-

gá-pitã folgou muito; folgou, porque a gente nativa daquelas campanhas e a

destas serras era gente sem cobiça de riquezas, que só comia a caça, o pei-

xe, a fruta e as raízes que Tupã despejava sem conta” (S, 143, 20). Ora, a

Teiniaguá passa a ser identificada como a única causadora do pecado/mal.

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Teiniaguá parece combinar em si, ao mesmo tempo, o bem (o divino) e

o mal (o diabólico), pois é “parente do diabo, [...] dos zaoris, aqueles que,

segundo alguns por pacto divino e, segundo outros, por pacto diabólico,

enxergam “através dos corpos opacos”, capazes de “descobrir o que está

oculto, embora seja debaixo de sete palmos de terra” (Chiappini, 1988, p.

188). Ela não só é parente do diabo, mas é “filha de Anhangá-Pitã” (Idem,

p. 188). Essa ambigüidade de forças divino-diabólicas que Teiniaguá encar-

na prolonga-se do começo ao fim da lenda. Logo no capítulo II, Blau, fa-

zendo memória do que a sua avó lhe contara, afirma que Anhangá-pitã,

“cansado, pegou no cochilo pesado [...], só não tomou tenência que a Tei-

niaguá era mulher” (S, 144, 10). Ora, enquanto o diabo dorme Teiniaguá

age de tal forma, que não é reconhecida como uma mulher. Ela não revela a

sua verdadeira identidade, mas permanece um ser híbrido. A cristandade

colonial não a reconhece; enquanto isso, Teiniaguá vai passando por uma

evolução identitária até que ao final é reconhecida como uma nova mulher –

a “tapuia formosa”. Essa contradição permeia “o conto todo, implícita, tor-

nando a explicitar-se no final, como uma espécie de chave ou moral da his-

tória: a teiniaguá era mulher” (Chiappini, 1988, p. 193). No capítulo X,

Teiniaguá é reconhecida por Blau Nunes, enquanto personagem coletivo

representante do gaúcho. Ela não foi reconhecida por Anhangá-pitã, daí

porque ele ficou desgostoso e se escondeu, pois não foi capaz de tomar

consciência que ela era uma mulher. O projeto da cristandade colonial a

identificou sempre como algo estranho e causador do mal. Há uma incapa-

cidade de reconhecer a identidade da mulher. De um lado, ela não seria

identificada com o pecado, enquanto índia, e de outro, pode ser entendido

que, enquanto moura e mulher jovem, é enquadrada dentro da cristandade

colonial como a origem do pecado. Nela está a culpa/castigo e também o

prazer. Para a moral institucional, há o dilema entre o que prescreve a reli-

gião oficial e as práticas não prescritas entre os nativos.

O drama do sacristão e da Teiniaguá parece estar se encaminhando para

uma tragédia pampeana, pois o sacristão é condenado à morte. No entanto,

a Teiniaguá aparece como promessa de reconciliação: do sangue de nós

ambos nascerá uma nova gente (Cf. S, 148, 20). E, de fato, no cap. X, acon-

tece a realização desta utopia: os dois formam um par novo. No capítulo

final, acontece uma última metamorfose em três momentos – “a velha car-

quincha transformou-se na teiniaguá”, “a teiniaguá, na princesa moura” e a

“moura, numa tapuia formosa”. O que temos, aqui, é uma síntese de opos-

tos superados no diálogo intercultural de diferentes experiências históricas:

a velha carquincha e a jovem moura; de etnias autóctones e estrangeiras: a

moura e a índia; de éticas tradicionais e locais: a ética cristã, a islâmica e a

indígena. O resultado desta interculturalidade é a “tapuia formosa”.

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Teiniaguá (termo de origem indígena: teiú = lagarto + aguaíca = man-

ceba) é um personagem que faz parte da cultura popular nas regiões das

Missões e da Campanha do Rio Grande do Sul. A tese de Cícero Galeno

Lopes é que Teiniaguá é um personagem híbrido.7 A interpretação lenda-

conto de Flávio L. Chaves já mostra a relação híbrido-dialógica entre o

texto ou as tradições originais e o texto do autor. A interpretação corrente é

que a Teiniaguá está marcada pelo mal, porém, Cícero G. Lopes entende, a

partir da hibridação, que é necessário compreender este personagem, en-

quanto contraditório. O próprio nome Teiniaguá é híbrido, porque é resulta-

do da composição de um réptil e uma moça.

O par teiniaguá e santão aparece no texto com as iniciais minúsculas,

denotando a função ou categorias. No caso do Santão, parece apontar uma

certa transgressão. O nome identificaria o seu batismo cristão, no entanto, o

suposto nome nunca é mencionado. O nome teria sido importante, porque

ele exercia a função de sacristão. Porém, a ausência do nome poderia signi-

ficar a perda de sua identidade cristã-católica, expressa na linha da doutrina

da cristandade colonial. Ele desempenhara a função de sacristão, perdendo

essa atividade, depois que fora flagrado mantendo relações amorosas com

Teiniaguá. A condição posterior, após sua expulsão da comunidade de San-

to Tomé, acontece junto ao Cerro do Jarau. Aqui, ele é denominado de San-

tão. Este encontrara o amor junto à Teiniaguá-mulher. Ora, isto é uma con-

tradição, porque se une com ela fora do casamento, o que constitui para a

Igreja Católica um ato ilícito, portanto, pecaminoso. Além disso, une-se a

uma “princesa moura”, de outra religião. A contradição está no conflito

entre “a cruz bendita” dos católicos e o “crescente dos infiéis” muçulmanos.

Há um processo de assimilação-hibridação em que se misturam tradições

religiosas e valores diferentes (Cf. Galeno Lopes, 1999).

Teiniaguá é mulher-lagartixa graças a um pacto com Anhagá-pitã. Ora,

este pacto tem um caráter híbrido, porque ela recebe, de um lado, o carbún-

culo deste último, que lhe dá luz, ou seja, símbolo do pensamento e do po-

der além do animal. De outro lado, ela herda, ao mesmo tempo, do pacto

com o demônio, o estigma do mal. Esta caracterização do mal, presente em

Teiniaguá, é devida à versão religiosa que constrói as forças opostas no

mundo como sendo a luta entre o bem e o mal. Esta luta de opostos aconte-

ce historicamente, no caso, Teiniaguá, em conseqüência de sua origem ára-

be, oposta aos espanhóis, é identificada como a que encarna o mal.

7 García Canclini, estudando as culturas híbridas, afirma que a hibridação é uma noção

fundamental para compreender a história latino-americana. A tese da hibridação defende

que a modernidade européia não eliminou as tradições autóctones, mas “deu lugar a for-

mas sincréticas onde as matrizes indígenas, espanholas e portuguesas foram reelaboradas

para constituir uma mistura” (Bernd e Lopes, 1999, p. 22).

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Carlos F. Sica Diniz Identidades Ameríndias 58

Prosseguindo na análise do processo de hibridação religiosa em Santão,

e a hibridação antropomórfica de Teiniaguá, podem-se constatar, ainda no

texto, outros indícios relacionados à teoria do personagem híbrido. A mis-

cigenação entre árabes e cristãos ocorrida na península ibérica e seus des-

dobramentos religiosos; a prática da magia atribuída aos árabes opõe-se e

relaciona-se com o culto religioso; Teiniaguá é identificada com uma bruxa,

por isso é perseguida pelos tribunais da Inquisição espanhola; Teiniaguá

toma diversas figurações e, ao mesmo tempo, carrega em si diversas con-

tradições que constituem um personagem com multiidentidades: ela é mou-

ra e convive com cristãos; é mulher e réptil, ou seja, humana e não-humana;

gera felicidade e causa infelicidade, provoca prazer ao Santão e leva-o ao

pecado/castigo; é muçulmana e jovem e vem para a América no ventre de

uma fada velha, num navio cheio de cristãos e padres; ela é a causa da con-

denação do sacristão (por luxúria, apostasia e sacrilégio) e da salvação, pois

ela faz romper a terra, assusta os verdugos e liberta-o de suas amarras.

Percebe-se que a Teiniaguá encarna em si o máximo de contradição,

sobretudo na oposição entre o símbolo do mal (mulher/bicho imundo) e, ao

mesmo tempo, o símbolo do amor e da felicidade (“saudade do seu cativo e

soberano amor”, S, 149, 37; “de teiniaguá, que me enfeitiçou de amor”,

S, 152, 6). Uma leitura unidimensional atribui a ela somente o mal, visão

própria da herança da cultura ocidental dualista que separa bem/mal. No

entanto, segundo a tese do personagem híbrido, Teiniaguá apresenta-se

como a síntese da oposição, pois ela nasce da voz múltipla do povo, do

embate de muitas consciências entre negativo-positivo. “Esses sinais apare-

ceriam ao longo da literatura gaúcha, como marca da necessidade do amor

e, simultaneamente, como marca do aprisionamento masculino exercido

pela mulher (humana e não-humana)” (Bernd e Lopes, 1999, p. 35).

Segundo Bernd e Lopes (1999, p. 35), “a hibridez é já marca da trans-

gressão. A transgressão só é possível na desobediência e na paixão, i. e, na

ação, na mobilidade, na modificação (porque a pureza perece de imobilida-

de). Essas marcas, como se pode perceber, estão nas ações do casal Teinia-

guá-Santão, especialmente nela, porque por dupla natureza, designada na

nominação”. Teiniaguá desestabiliza o sacristão, pois o leva a sair do estado

de vida em que estava submisso na redução de São Tomé. Ora, a ação dela

pode ser compreendida como o símbolo de superação da dependência colo-

nial. “Talvez esse tenha sido o maior pecado encontrado nas ações da Tei-

niaguá, que só pode ser concebido sob a visão colonialista” (Idem, p. 35).

Há rebeldia nas palavras e ações do casal que se voltam contra o sistema de

cristandade colonial e anunciam a formação de um novo mundo, assim ex-

presso por Teiniaguá:

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A presença indígena na obra de Simões Lopes Neto 59

Serás o meu par.... si a cruz do teu rosário me não esconjurar... Si não, se-

rás ligado ao meu flanco, para, quando quebrado o encantamento, do san-

gue de nós ambos nascer uma nova gente, guapa e sábia, que nunca mais

será vencida, porque terá todas as riquezas que eu sei e as que tu lhe carre-

ará por via dessas (S, 148, 17-21).

Na Salamanca do Jarau, podem-se encontrar referências cronológicas

tais como a fundação de São Tomé pelos padres jesuítas em 1632. Aqui, o

sacristão ajuda no serviço litúrgico. Após ter sido condenado pelo pecado

cometido com Teiniaguá, consegue fugir com ela para o Cerro do Jarau.

Neste local, encontra-se com Blau que descreve, então, as suas andanças.

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Décima de Sepé Tiaraju 61

Uma conclusão inconclusa*

Luís Borges**

Sou Sepé Tiaraju

O Uruguai rio-mar azul

Sou o Cruzeiro do Sul

Luz e guia de índio cru

.....................................

Sou verso

Sou maior que a história grega

Eu sou gaúcho e me chega

Pra ser feliz no universo.

(Eis o homem, Marco Aurélio Campos)

De Getúlio a Machado: uma história pelo avesso

O jornalista Diogo Mainardi, com o timbre polêmico que lhe é peculiar,

publicou na revista Veja, um artigo (2004, 183) em que retoma um tema

recorrente na história do pensamento nacional: a identidade do brasileiro.

Mainardi faz uma afirmação categórica e provocativa: “O brasileiro não

existe”. É uma declaração ambígua e, digamos, guarda algo de sub-reptícia

verdade.

* O presente texto, modificado, foi apresentado por Luís Borges como palestra no Instituto

de Ciências Humanas/UFPel, em 20 de maio de 2005, sob o título de A dialética de Peri

e Blau Nunes: o Brasil descarado, o Rio Grande encarando. Reproduzida, resumidamente,

como conferência radiofônica, em 18 de junho do mesmo ano, na Comunidade FM, de

Pelotas.

** Membro do Grupo de Filosofia Intercultural – Universidade Católica de Pelotas

(UCPel), Instituto Superior de Filosofia (ISF).

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Mário Matos Identidades Ameríndias 62

A assertiva do referido jornalista leva-nos a perquirir: Não existe o bra-

sileiro porque existem brasileiros que habitam diferentes brasis, os quais

formam “ilhas culturais”, conforme teorizou Viana Moog (1943)? Nessa

direção, tateando caminhos, tartamudeando respostas, devemos fazer uma

ressalva, quando o jornalista da revista Veja entende que “Quem inventou a

figura do brasileiro foi a ditadura getulista. Inventou uma língua, inventou

mitos, inventou o Carnaval, inventou a música popular. A ditadura getulista

inventou o brasileiro para melhor dominá-lo”.

Se examinarmos a história da Era Getulista, de fato, podemos verificar

que houve um grande investimento político na manipulação ideológica,

conforme demonstra a importância do DIP (Departamento de Imprensa e

Propaganda) ou o papel da Rádio Nacional, fundada em 1936, às vésperas

do Estado Novo.

Quando examinamos as fontes do pensamento de Vargas, de 1906 até

1928, ano em que assume a presidência do Rio Grande do Sul, notamos a

nítida influência positivista, e sabemos, o Positivismo brasileiro, sempre

teve o nacionalismo e o militarismo como um dos pontos principais de seu

ideário político. Sabe-se que Getúlio, num primeiro momento, optou pela

carreira militar ingressando, em 1900, na Escola Preparatória e de Tática de

Rio Pardo (RS), após ter passado pelo 6º Batalhão de Infantaria de São Bor-

ja. Mais tarde, voltou-se para as chamadas Ciências Jurídicas e Sociais,

ingressando na Faculdade de Direito de Porto Alegre, em 1903. Nessa aca-

demia polarizavam, basicamente, duas correntes: o jus naturalismo e o posi-

tivismo jurídico (Cf. Fonseca, 2001, p. 103-124).

Sem entrarmos em maiores detalhes, que fogem ao objeto de nosso es-

tudo, pode-se observar em Vargas a influência política de Júlio de Casti-

lhos, Borges de Medeiros e Pinheiro Machado, ao lado da influência filosó-

fica de Comte, Stuart Mill e Spencer (id., ibid.). Por aí podemos concluir

que o “brasileiro inventado” na Era Getulista foi fruto de um projeto muito

anterior, inclusive ao ideário e à retórica positivista. Getúlio respondia, a

seu modo, a uma exigência de formulação política e cultural vinda desde a

Independência. É claro que construiu um brasileiro a sua imagem e seme-

lhança, a fim de justificar e consolidar suas políticas e interesses. Getúlio,

diferente do que afirmava categoricamente Mainardi, não inventou o brasi-

leiro, apenas o atualizou, aplicando um novo discurso e novas tecnologias

para disseminá-lo.

De qualquer forma, o mais importante é investigarmos de que modo es-

se discurso sobre o que era o Brasil ou quem eram ou deveriam ser os brasi-

leiros conseguiu ser tão eficaz, acabando, enfim, praticamente por conven-

cer a todos nós.

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Décima de Sepé Tiaraju 63

A ressalva a ser feita à afirmação de Mainardi é que a preocupação com

a busca de uma identidade para o Brasil e de uma cara para os brasileiros já

estava colocada desde há muito. Desde a mais tenra idade do país, dir-se-ia

mesmo antes da independência política da nação, já se intuía aquilo que

Machado de Assis chamou de “instinto de nacionalidade”, em 1873.

Que país é este?8

Para traçarmos uma cara para o Brasil, é necessário antes que nos colo-

quemos como “descarados”, isto é, sem rosto. Quem sempre disse quem

somos foi o estrangeiro. Somos, pois, exóticos e típicos para nós mesmos.

Uma tese instigante que corrobora essa idéia de que o Brasil é estranho aos

brasileiros é a do historiador Luiz Felipe de Alencastro (2000), para quem a

sociedade brasileira se estruturou num espaço sem território nas águas do

Atlântico Sul, oceano-ponte, colocado entre a economia de monocultura

açucareira no Nordeste, de base escravocrata, Angola, lugar de onde provi-

nha a mão-de-obra, e Lisboa, capital metropolitana do império colonial

lusitano.

Aquilo que mais tarde se denominou “Brasil” foi uma estrutura monta-

da sobre esse tripé, a fim de beneficiar uma minoria estrangeira contra a

terra e as gentes aqui encontradas ou trazidas à força. Naqueles tempos,

“brasileiro” significava o traficante de madeira (Cf. Sousa, 1978). Ser brasi-

leiro era um negócio, um empreendimento comercial, uma função a ser

exercida em proveito próprio. Dessa ambição, talvez, nasceu o desejo de ser

uma nação: “Eles quiseram que o lugar prosperasse e o lugar prosperou”.9

Dessa visão de mundo mercantilista, dão-nos sobejo testemunho muitos

missionários e viajantes, tais como José de Anchieta, em Província do Bra-

sil (1585), Pero Magalhães Gandavo, em História da província de Santa

Cruz a que vulgarmente chamamos Brasil (1576), Frei Vicente do Salva-

dor, em História do Brasil (1627), Gabriel Soares de Souza, com Tratado

descritivo do Brasil (1587), Ambrósio Fernandes Brandão, com Diálogo

das grandezas do Brasil (1618), Antonil, em Grandeza e opulência do Bra-

sil por suas drogas e minas (1711), Rocha Pita, em História da América

portuguesa (1730), entre tantos outros.10

8 Titulo de uma obra de Afonso Romano de Santana, publicada em 1980. 9 Afirmação relativa ao desenvolvimento de Pelotas, feita pelo viajante Nicolau Dreys, em

Notícia descritiva da Província do Rio Grande de São Pedro do Sul (1839). 10 Para maiores detalhes, vide Holanda, 1977. Encontra-se uma boa síntese em Zilberman,

1994, p. 12-34.

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Mário Matos Identidades Ameríndias 64

A febre de lucro vasto, além da sede de aventuras, diante da natureza

exuberante do Brasil, transitou facilmente da “prosa comercial” para a poe-

sia, como em A ilha da Maré, de Botelho de Oliveira, em cujos versos se

louva a paisagem circundante, destacando a lucratividade da economia pes-

queira:

Aqui se cria o peixe regalado

Com tal sustância e gosto preparado

Que sem tempero algum para apetite

Faz gostoso convite

E se pode dizer em graça rara

Que a mesma natureza os temperara.

(Oliveira, 1994, p. 23).

E segue, agora louvaminhando a agricultura:

E vamos aos legumes, que plantados

São do Brasil sustentos duplicados;

Os mangarás, que brancos ou vermelhos,

São da abundância espelho;

Os cândidos inhames, se não minto

Podem tirar a fome ao mais faminto.

As batatas, que assadas ou cozidas

São muito apetecidas;

Delas se faz rica batatada

Das bélgicas nações solicitadas.

(Oliveira, 1967, p. 333).

Esses fragmentos, que nos soam até engraçados, poderiam figurar ainda

hoje em qualquer prospecto turístico.

Que é o Brasil e quem é o brasileiro?

Advinda de nosso passado com características peculiares, talvez ve-

nha nossa angústia e obsessão pela pergunta a respeito da identidade do

país e de seus habitantes, diferentemente do processo, por exemplo, que

constituiu a nacionalidade estadunidense. Sobre a situação de quem somos

nós, o historiador Sérgio Buarque de Holanda (1982, p. 3), em seu clássi-

co estudo de 1936, às vésperas do Estado Novo, faz uma abertura emble-

mática, dizendo: “[...] somos ainda hoje uns desterrados em nossa própria

terra”.

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Décima de Sepé Tiaraju 65

O Brasil, já como Estado-Nação, ainda que em descompasso com a Eu-

ropa, nasceu sob a égide do Romantismo, que se constitui, por excelência,

na estética e na filosofia política do Estado nacional moderno. Nesse

contexto, é que se intensificam as perguntas: Que é o Brasil?/Quem é o

brasileiro?

As duas interrogações não são redundantes, como possa parecer. Pode-se

pensar que brasileiro é o que desfruta da condição de cidadão do Brasil, e que

Brasil é o Estado que lhe confere esta condição. Nada mais exato, nem mais

enganoso. Tais definições nada revelam a respeito do que seja o Brasil ou os

brasileiros, pois eles podem existir um sem o outro. Pelo menos, é o que pa-

rece sugerir o texto do jornalista Diogo Mainardi (2004). Para ele, há uma

dicotomia entre a versão oficial do Brasil, inculcada pelo Estado, e outra,

oficiosa, quiçá, a verdadeira, descomprometida com uma imagem “ilha da

maré”, ou “politicamente correta” do Brasil, mas que, no entanto, não sabe-

mos com precisão a que corresponde. Tem-se, todavia, uma certeza: o Brasil

existe e os brasileiros estão lá. Mas, afinal, que país é este? Onde mora este

povo estranho e intangível? Essa “coisa-em-si” que constitui o ontos do Bra-

sil e dos brasileiros é uma interrogação que nos persegue e assombra.

As fantasmagorias a que chamamos “Brasil” e “brasileiros” marcam

profundamente a trajetória da história das idéias no país. O pensamento

socioeconômico, filosófico e político nacional atravessa o discurso dos

chamados “intérpretes do Brasil”, que vão desde escritores e pensadores,

passando por sociólogos e historiadores, até políticos e educadores.

Numa brevíssima revisão acerca deste vasto campo que representa o

pensamento sobre o Brasil e os brasileiros, podemos citar algumas obras

para a compreensão desse processo, como por exemplo: História da litera-

tura brasileira (1888), de Sílvio Romero; A educação nacional (1890), de

José Veríssimo e Por que me ufano do meu país (1900), do conde Afonso

Celso.

Ora, no curto período de pouco mais de uma década, entre o fim do Im-

pério e o início da República, está concentrada praticamente toda a essencial

problemática da cultura e da civilização brasileira. O conjunto de hermenêuti-

cas advindas das teses de Romero, Veríssimo e Celso, basicamente, se corro-

boram nas premissas fundamentais, além do que, se cruzam e completam.

É interessante notarmos que alguns dos critérios de Ferdinand Denis, o

“pai do Romantismo brasileiro”,11 sobre o papel de uma literatura nacional no

Novo Mundo, mas alterados já sob o influxo tainetiano, estão retomados em

Sílvio Romero. O primeiro historiador da literatura brasileira (ele mesmo se

conferiu esse título) trilhou a picada aberta pelos críticos românticos Gonçal-

ves de Magalhães, Pereira da Silva, Joaquim Norberto e Varnhagen, que

11 Para maiores detalhes, vide Rouanet, 2003, p. 103-108.

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Mário Matos Identidades Ameríndias 66

trouxeram dados cronológicos e outras informações de natureza objetiva.

Sem esse esforço historiográfico, necessário à sistematização do passado, não

apenas ordenando elementos conhecidos, mas trazendo a lume novos dados,

Sílvio Romero reconhece que seu trabalho não teria sido possível.

O autor enfatiza a raça (e não a natureza exuberante, nisso distancia-se de

Denis e dos românticos, em geral) como fator de formação da literatura brasi-

leira. Romero observa os elementos postos em relevo pela metodologia de

Taine. Mas só de modo parcial, porque tem em mente as distintas etnias que

participaram da constituição da nacionalidade, o negro, o índio e o branco,

enquanto o francês lida apenas com a arte européia, diferenciada conforme os

povos, que considera raças. Ao enfatizar a miscigenação, aborda a história

nacional, inclusive a história literária, como a luta por uma fisionomia e iden-

tidade próprias: o mestiço consiste na “genuína formação histórica brasileira”

(Romero, 1888, p. 54). Ou ainda: “Todo brasileiro é um mestiço, quando não

no sangue, nas idéias” (id., p. 4). Para ele, o “mestiço constitui-se no produto

fisiológico, étnico e histórico do Brasil: é a forma nova de nossa diferencia-

ção nacional” (id., p. 75). Em Sílvio Romero, o mestiço (o brasileiro) para

obter definitivamente sua autonomia política e cultural, no que a literatura

ocupa um papel de relevo, deve conhecer-se e expressar seu “gênio próprio”.

Em Afonso Celso, a grandeza do território, as riquezas naturais inesgotá-

veis, a ausência de calamidades, os nobres predicados do caráter nacional,

com seu povo ordeiro e pacífico, um único ponto negativo é a “acessibilidade

que degenera, às vezes, em imitação do estrangeiro” (Celso, 1905, p. 86),

nisso concorda com Romero, e outros tantos aspectos são discorridos com o

objetivo de demonstrar a superioridade do Brasil. Assim diz o conde em seu

prefácio:

Ousa afirmar muita gente que ser brasileiro importa condição de inferiori-

dade. Ignorância, ou má fé! Ser brasileiro significa distinção e vantagem.

Assiste-vos o direito de proclamar, cheios de desvanecimento, a vossa ori-

gem, sem receio de confrontar o Brasil com os primeiros países do mundo.

Vários existem mais prósperos, mais poderosos, mais brilhantes que o

nosso. Nenhum mais digno, mais rico de honradas promessas, mais inve-

jável (Celso, 1905, p. 2).

Com todo esse potencial, para que o “gigante adormecido” concretize

suas promessas, é necessária uma grande reforma educacional e moral.

“Sem orgulho patriótico – que não merece ser assim chamada nossa parvoi-

nha vaidade nativista – sem educação cívica, sem concorrência de espécie

alguma, o caráter brasileiro, já de si indolente e mole, como que se deprimiu

[...]”, assevera José Veríssimo em A educação nacional, escrita em 1890

(Veríssimo, 1958, p. 9-31).

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Décima de Sepé Tiaraju 67

Ainda hoje não estamos muito distantes desses eixos e discursos. In-

vestigar e descobrir a identidade do Brasil e do brasileiro são ainda tarefas

pertinentes e pertinazes. Assumindo, em várias ocasiões, os olhares de

outros sobre nós – lembrando a abertura de Raízes do Brasil – podemos

dizer que fabricamos a nós mesmos como produto de importação, visando

a um processo de modernização, tantas vezes apenas paródico, eis que

descontextualizado de nossa realidade. Eduardo Prado, um monarquista

crônico e um dos clássicos intérpretes do Brasil, já alertava para isso em

A ilusão americana (1893).12 Prado associou-se, para uma visão crítica à

República, a outros intérpretes das instituições brasileiras, entre os quais

estão o Conde Afonso Celso, o Visconde de Taunay, Oliveira Lima, Joa-

quim Nabuco, o Visconde de Ouro Preto, o Barão de Loreto, Carlos de

Laet, Cunha Mattos, o Barão de Paranapiacaba e outros, reunidos no libe-

lo político monarquista, publicado entre 1889 e 1902, intitulado Década

republicana.

Os debates, em geral, giravam em torno de questões específicas, como

o sistema eleitoral, por exemplo, uma vez que, derrotada a Revolução

Farroupilha, o Império havia enfraquecido uma teorização mais consisten-

te sobre o regime republicano e sua aplicação no Brasil. Tal discussão,

contudo, voltou com força total com o Manifesto republicano no final do

Segundo Reinado. De qualquer modo, o pensamento monarquista militan-

te só se organizou depois do 15 de Novembro, uma vez que antes não

havia uma necessidade concreta de defesa do sistema monárquico.

Na época, o impacto de Os sertões, de Euclides da Cunha, foi multi-

plicado, em função de que a Guerra de Canudos parecera aos contemporâ-

neos uma síntese do conflito entre o atraso e o progresso, associando o

exército ao regime republicano e o Conselheiro e seus seguidores às hos-

tes da restauração monárquica. O impasse estava colocado de maneira

dramática e paradoxal. Certos setores do Rio Grande do Sul, estado de

forte tradição republicana, também aderiram ao movimento restaurador,

conforme nos demonstra a obra Os crimes da ditadura, publicada em

1902, organizada por Rafael Cabeda e Rodolfo Costa.

Nesses tempos, a identidade da nação estava associada aos diferentes

regimes: monarquia e república. Nesse sentido, mais uma vez acontece o

choque entre identidade política e cultural gaúcha e poder central. Afinal,

que país é este?

12 A segunda edição, em português, saiu em 1895. A 15ª edição apareceu pela editora Ibra-

sa, São Paulo, em 1980.

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Mário Matos Identidades Ameríndias 68

Identidade gaúcha versus identidade brasileira

Na ânsia de libertarem-se das influências escravizadoras, os intérpretes

do Brasil, do passado (como vimos) e do presente (neste ainda mais torturan-

te), buscam caminhos e soluções frente a um mundo globalizado e pós-

moderno, em que as diferenças culturais se diluem e se uniformizam, enquan-

to o abismo econômico entre os países ricos e pobres se aprofunda. Nessa

direção, talvez, devamos fugir à tautologia dicotômica que nos sugere o texto

do jornalista Diogo Mainardi, ou seja, não somos quem o Estado diz que

somos, porém, também não podemos enunciarmo-nos plenamente, uma vez

que nossa potencialidade e grandeza nos impede de nos sabermos tais como

somos.

Mainardi indica que o “verdadeiro Brasil” não pode ser reduzido à sua

versão oficial. Com isso, entretanto, caímos num velho clichê, em sua formu-

lação esquizofrênica e paranóica: de um lado, não somos nada que preste e

nunca o seremos, porque há forças estrangeiras que impedem nosso desen-

volvimento, pois bem sabem das nossas riquezas e da bravura do povo (até o

nosso pessimismo é otimista!). De outro, somos os maiorais desde sempre,

eternos Afonsos Celsos.

Deste modo, a busca de uma identidade nacional se tornou uma entidade

metafísica. O Brasil é tão exuberante, tão grande, “o gigante adormecido”,

que não se pode desvendá-lo, somente o coração (verde-amarelo?) seria ca-

paz de senti-lo, vivê-lo, pois em face da plenitude do objeto, o pensamento e

a linguagem seriam impotentes. Nada mais ufanista, nada mais de acordo

com a tese mainardiana. E nada mais oficialista. Para o poder, quanto mais

impalpável for um país ou uma nação, mais maleável aos constructos ideoló-

gicos. Mas uma identidade não é uma realidade fixa, é fruto de uma rede

complexa de relações socioculturais, econômicas e axiológicas.

Ao lado do mito de que a identidade do brasileiro é difusa ou pejorativa

(lembramo-nos das concepções de, por exemplo, Mário de Andrade, em Ma-

cunaíma, e Paulo Prado, em Retrato do Brasil, ambos de 1928), está o de

que, diferentemente, a identidade cultural do Rio Grande do Sul, tida mais

precisamente como a dos gaúchos, é clara e distinta. A imagem dos sul-rio-

grandenses, desenhada para si mesmos, é representada pelo gaúcho no mito

do “centauro dos pampas” ou do “monarca das coxilhas”. Temos aí um para-

doxo aparente.

Se, de uma parte, há o “herói sem nenhum caráter”, de timbre macunaí-

mico, de outra, aparece o “herói farroupilha”, dotado das virtudes mais no-

bres. A discussão a respeito desse suposto paradoxo se estendeu pelas mais

diferentes esferas culturais, da história à música. Um dos debates mais acirra-

dos aconteceu nos idos de 1983, quando da publicação de Ideologia do gau-

chismo, de Tau Golin. Esse ensaio, descartado o tom raivoso, pela primeira

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Décima de Sepé Tiaraju 69

vez questionava a identidade étnica e cultural do Rio Grande do Sul e a ima-

gem petrificada do gaúcho. Em resposta a essa obra, sem que os ânimos se

tivessem acalmado, apareceu o Manifesto gaúcho (2000), livro em que Eval-

do Braz pretendia demonstrar quem são os gaúchos (refere-se ao tipo sócio-

histórico, que se confunde com o tipo literário) através dos depoimentos de

viajantes:

Os epítetos atuais do gaúcho são, por este tipo de historiadores (adeptos da

Nova História), considerados fantasiosos, tais como liberdade, orgulho,

guerreiro, coragem e rude ética. Quem lá esteve parece ter outra opinião.

Isto salta aos olhos em seus livros de viagem. Nossos nouveaux historiado-

res preferem recriar uma nova história supondo estarem utilizando crité-

rios científicos, critérios esses já de antemão definidos pelos nouveuax

orientadores de tese. Com aquele maravilhoso estoque de frases e pressu-

postos a requintadas teses, tais como imaginário, ontológico, etc. (Braz,

2000, p. 10).

Esses debates em torno da identidade do Rio Grande do Sul e, via de

conseqüência, do gaúcho, sob certos aspectos, movidos pelo combustível da

paixão, contaminaram o discurso em torno da literatura. Os escritores e

críticos, também intérpretes do Brasil e do Rio Grande do Sul, muitas ve-

zes, lançaram mão do arsenal utilizado para o estudo sociológico, histórico

e folclórico, aplicando-o à análise literária, colocando outros elementos, de

marcante feição ideológica, acima da investigação propriamente estética.

Novamente encontramos a dicotomia entre o gaúcho desenhado pelo

centro (1870), quase um “pisa-flores”, como Manoel Canho, de José de

Alencar, e o “verdadeiro gaúcho”, ainda que tão idealizado quanto o outro,

o Avençal, no Vaqueano (escrito em 1869 e publicado em 1872), de Apoli-

nário Porto Alegre.

É nesse antagonismo que podemos encontrar a confluência entre a for-

mação da imagem do brasileiro e do gaúcho, aparentemente tão díspares em

sua capacidade de identificação. Um é uma figura intangível, fruto de uma

retórica romântica, e o outro, acoitado sob uma paisagem reconhecível e

valores elevados, transformou-se num personagem estereotipado.

É verdade que sempre houve uma necessidade de afirmação da identi-

dade dos sul-rio-grandenses, a partir das Guerras Cisplatinas (1811-1828)

(Cf. Torronteguy, 1994, p. 42-48) e, principalmente, da luta contra o Impé-

rio do Brasil, corporificada pela Revolução Farroupilha (1835-1845), inclu-

sive com lances separatistas.

Terminada a Guerra dos Farrapos (1835-1845), os latifundiários e as

camadas comerciais da província receberam benesses do Império e escolhe-

ram Caxias como governador. Ele estava afinado com a política imperialista

do governo brasileiro no Prata (Cf. Bandeira, 1985). O Brasil intervinha no

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Mário Matos Identidades Ameríndias 70

Uruguai e na Argentina, para expandir o domínio sobre o mercado da carne

e seus derivados. Para tanto, necessitava do auxílio das elites estancieiras

sulinas. Eram, contudo, os peões-soldados que constituíam a massa militar

que realizavam as intervenções armadas na bacia platina, comandados pelos

oficiais-proprietários (id., ibid.).

Os changadores ou gaudérios, que em tempos de antanho recolhiam o

gado xucro que vivia nas vacarias, acabaram por perder sua fonte de trabalho.

O gado passou a ter dono e as terras agora possuíam aramado. Esse processo

encontra em Jayme Caetano Braun a sua expressão profunda no poema

Alambrado:

Estendidos na paisagem

Com o dantesco esqueleto

Os teus fios de arame preto

Causaram constrangimento

E até o assobio do vento

Entre os buracos de pua

Encheu o pampa Charrua

Dum som triste e agourento!

(Braun, 1982, p. 97).

Os gaúchos, mesmo sofrendo esse processo de expropriação, continua-

ram a fazer invernadas e a se alimentarem do gado, e cruzavam as frontei-

ras, ignorando os limites territoriais do Brasil, da Cisplatina e da Argentina.

Eram errantes e poucos constituíam famílias estáveis. A sociedade sulina

estava se modificando, não apenas em termos de organização econômica,

mas essa mudança implicava profundas alterações na ordem social e valora-

tiva. Não mais se aceitava o tipo social andarengo, “sem lei, nem rei”. Aos

poucos os chamados gaúchos caíram na marginalidade. Foram considerados

vagabundos e desordeiros pelos proprietários de terras e perseguidos pela

polícia. Seu mundo de liberdade e aventura havia desaparecido. Os estan-

cieiros queriam aproveitar suas habilidades guerreiras e de trabalho para

cuidar de suas propriedades, evitando o roubo e as contendas. Com o passar

do tempo, muitos dos antigos gaúchos foram cedendo, a fim de poderem

sobreviver. Outros, porém, resistiram e persistiram em seu anterior modo de

vida. Para estes a solução foi o banditismo. José Hernández, em seu Martin

Fierro (1872), escreveu: “El anda siempre juyendo, siempre pobre y perse-

guido; no tiene cueva ni nido, como se fuera maldito; por que el ser gau-

cho... ! barajo! El ser gaucho es um delito” (Hernandez, 1987, p. 57).

Nasce aí o conceito de “nação pampeana”. Noutro viés, ao longo do tem-

po, podemos pensar que houve uma deliberada construção identitária. Nesse

sentido, a fundação do Partenon Literário, em 1868, possui um papel deter-

minante.

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Décima de Sepé Tiaraju 71

Embora se possa dizer que Caldre e Fião seja, cronologicamente, o fun-

dador do gaúcho literário (e um dos criadores do romance brasileiro) com

A divina pastora (1847) e O corsário (1851), foi José de Alencar que, em

1870, fixou nacionalmente a figura do gaúcho-herói. É interessante obser-

var que o sentido pejorativo da palavra irá alterar-se, a partir do final da

Guerra do Paraguai, na qual os soldados sulistas tiveram participação indis-

pensável. Assim mesmo persistirá em alguma medida, pois o herói de Apo-

linário Porto Alegre (1872) é um vaqueano e não um gaúcho.

Ao escrever O gaúcho (1870), José de Alencar procurava construir um

vasto panorama em que pudesse inserir os contextos regionais, objetivando

dar uma unidade ao brasileiro, melhor dizendo, ao Brasil. O gaúcho alenca-

riano não era menos fantasioso que a figura descrita em seu Sertanejo (1875),

tipo social, a respeito do quem tinha ele conhecimento. Portanto, o Manuel

Canho, o gaúcho, era um estereótipo romântico transplantado para um locus,

mais ou menos, regional.

Ao cotejarmos O gaúcho (1870), de Alencar, e O vaqueano, escrito em

1869, mas publicado em 1872, de Apolinário Porto Alegre, encontramos um

dado interessante. O personagem do primeiro escritor, embora tenha aderido

à Revolução Farroupilha, ele o faz por motivos pessoais, mero compromisso

a seu padrinho Bento Gonçalves. As causas da luta lhe são alheias.

José de Alencar, ao enfocar aspectos da Revolta dos Farrapos, elogia

Bento Gonçalves por sua honra, por seu comedimento, seu espírito patriótico

avesso à anarquia revolucionária. Os soldados são retratados como uma corja

de ladrões, desordeiros e bêbados. Não é de admirar, sabedores como somos,

de seus laços governistas.

Embora O vaqueano (1872), de Apolinário Porto Alegre, seja considera-

da uma obra de resposta a de Alencar, ela é também uma transposição dos

pressupostos da prosa romântica aplicados com mais cor local. Há, porém,

uma sensível diferença: aparece na obra porto-alegriana o traço liberal-

republicano e abolicionista.

José de Avençal, personagem de O vaqueano, ao contrário do que des-

crevia Alencar sobre os soldados farroupilhas, era quieto, pouco dado ao

fumo, ao álcool, ao jogo ou a uma vida amorosa imoral ou desregrada. Este

herói representa um olhar pró-farrapo. O clímax da ação se realiza, quando

Avençal se suicida numa explosão. Nessa explosão morrem vários soldados

legalistas e, neste momento, ele grita: “Viva a República!”

O projeto republicano, liderado pelas elites latifundiárias, será, em farta

medida, celebrado em prosa e verso pelos componentes da Sociedade do

Partenon Literário em sua Revista Mensal (1869-1879), dando respaldo ideo-

lógico ao antimonarquismo e incentivando o liberalismo político e a federa-

ção. Além disso, será apenas depois da Revolução Federalista (1893-1895)

que surgem os chamados Grêmios Gaúchos. O primeiro deles, aliás, foi fun-

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dado em Porto Alegre por João Cezimbra Jacques, em 1898. Posteriormente,

surgirá a União Gaúcha de Pelotas, em 1899, que seria vista como uma in-

venção bizarra dos habitantes urbanos. Ainda na primeira década do século

XX, ser chamado “gaúcho” equivale a um qualificativo que representa um

desvalor: a brutalidade de costumes, a ignorância, o barbarismo moral. Até

1912, ser chamado de “gaúcho” causava profundo mal-estar ao cidadão da

elite urbana. Tanto assim, que o escritor Arthur Toscano, nas páginas do Al-

manaque do Rio Grande do Sul, editado por Alfredo Ferreira Rodrigues, es-

creveu um indignado artigo intitulado Gaúcho por quê?

Apesar da oposição que Apolinário fez à ditadura castilhista, seu romance

auxiliou a consolidar um dos pilares ideológicos de Júlio de Castilhos: a exal-

tação da memória farrapa, como ideal patriótico.

O tipo idealizado por Porto Alegre, ainda que não assumisse a alcunha de

“gaúcho”, tomava um princípio que, mais tarde, o caracterizaria como tipo

social: era um elemento fundamental na democracia da estância, ali todos

eram “gaúchos”, peões e proprietários, que, na roda de chimarrão, anulavam

todas as distâncias sociais e políticas. Esta é a vertente político-literária que

produziu a teoria da “democracia racial e social da estância rio-grandense”,

cujo maior representante é o sociólogo Jorge Salis Goulart, autor da clássica

A formação do Rio Grande do Sul (1927), obra que, certamente, se constituiu

numa das fontes do pensamento varguista.

A “fabricação do gaúcho” só se consolidou após o Estado Novo, com o

movimento dos Centros de Tradições Gaúchas (CTG), cuja fundação se deve

a Barbosa Lessa e Paixão Cortes, em Porto Alegre, em 1947. Nesse período,

a cultura brasileira já havia passado pela orgia modernista. A fase construtiva

do Modernismo começara juntamente com a Revolução de 1930. Levará,

porém, o Rio Grande do Sul mais tempo para descobrir-se ou fabricar-se, que

Getúlio para inventar o brasileiro, conforme a expressão de Mainardi.

Tupi or not Tupi? That is the question13

O Brasil (carente de uma tradição histórica, nos moldes europeus, de que

se pudesse orgulhar) e as novas elites (agora nacionais) buscaram um “mito-

fundador”, com o qual ou sob o qual pudessem erigir uma identidade para o

país, o que significava e, principalmente, um projeto político. O colonizador

português estava associado à dominação colonial, o negro jazia no desprezo

de ser considerado um ser inferior e bestial. Restava o índio, o “nobre selva-

gem rousseauniano”.14

13 Mário de Andrade em Manifesto antropofágico. Revista de Antropofagia, maio de 1928. 14 Para maiores detalhes, vide: Franco, 1976.

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O indianismo, como corrente literária, possui fundas raízes fincadas no

solo da busca de identidade. Melhor exemplo não há que O Guarani (1857)

e Iracema (1865), de José de Alencar, com os quais houve a tupinização do

europeu, segundo a expressão de Ivo Barbieri (2003, p. 513-526).

Também no romance O vaqueano (1872), de Apolinário Porto Alegre, a

figura do indígena aparece idealizada através de Moisés, pertencente à tribo

dos quase extintos guaiacanãs. Moisés era mestiço e meio-irmão de Aven-

çal, mas afastou-se do mundo dos brancos, pois sabia que era considerado

inferior. Apesar disso, Moisés e seus guerreiros aderiam à guerra dos bran-

cos e seguiram Davi Canabarro, pois como alguns deles, abominavam a

escravidão e a ganância.

Vale fazer menção a uma faceta praticamente desconhecida não somen-

te dos estudos antropo-literários em nossa terra, mas também da obra de

Manoel Antônio de Almeida, o autor de Memórias de um sargento de milí-

cias, publicado como folhetim na secção “A pacotilha”, do jornal carioca

Correio Mercantil, em 1853. Pois bem, o nosso conhecido e festejado “Ma-

neco, um brasileiro”, foi um dos autores primeiros a reclamar e reconhecer

a autonomia cultural e o caráter artístico da civilização de nossos indígenas,

a ponto de criticar severamente o historiador Francisco Adolfo Varnhagen,

que pretendia, no Memorial orgânico, elaborar um projeto para o Brasil,

consistindo na colonização de todo o território nacional e na mudança da

capital do país – com a construção de uma nova cidade especialmente para

este fim – na abertura de grandes vias de comunicação entre as regiões e,

por fim, na reordenação da força-de-trabalho, com o fim do tráfico negreiro,

a substituição da mão-de-obra escrava pelos imigrantes europeus, e incorpo-

ração compulsória dos índios à sociedade imperial. Foi este último ponto

que proporcionou a reação indignada de Manoel Antônio de Almeida, com

seu artigo A civilização dos indígenas, publicado no jornal Correio Mercan-

til, do Rio de Janeiro, em 13 de dezembro de 1851. Posteriormente, em 12

de fevereiro de 1852, foi reproduzido no Jornal do Comércio, na secção de

“Apedidos”, por iniciativa da Sociedade, contra o tráfico de africanos e

promotora da colonização e da civilização dos indígenas.

Daí em diante, apesar de antropólogos, historiadores e escritores antes

dele terem pesquisado e/ou defendido o índio, estabeleceu-se uma linhagem

indianista paralela àquela tão conhecida, estrelada por Gonçalves Dias, na

poesia, e Alencar na prosa, da qual podemos citar Couto de Magalhães, com

O selvagem (1876), Capistrano de Abreu, em Ra-txa-hunikui (gramática,

textos e vocabulário Kaniauá), de 1911. Mais recentemente, podemos citar

Sepé Tiaraju, romance das Missões Orientais do Rio Uruguay (1975), de

Alci Cheyuche; Maíra (1976) e Utopia selvagem (1982), de Darcy Ribeiro;

Cem noites tapuias (1978), de Ofélia e Narbal Fontes; Moronguêtá, um

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Decameron indígena (1980), de Manuel Nunes Pereira; Quarup (1967), de

Antônio Calado, e ainda, os poemas A grande fala do índio Guarany perdi-

do na História e outras derrotas (1978) e Índios meninos, este último con-

tido em Que país é este? (1980).

Concluindo uma conclusão inconclusa

Termos ido tão longe para discutir a inserção da tradição indígena na li-

teratura gauchesca, considerada emblematicamente em Simões Lopes Neto,

talvez pareça um subterfúgio ou a abertura de um leque inútil e dispersivo.

Cremos, porém, que não é possível compreendermos a localização do papel

dessa tradição na literatura do Rio Grande do Sul, sem compreendê-la em

seu grande contexto, em suas raízes históricas e estéticas.

Do que apresentamos até aqui, é possível relacionar com o autor de

Contos gauchescos (1912) muitos aspectos que, ao mesmo tempo, são es-

clarecidos e auxiliam a clarear no confronto com um panorama mais geral

que a questão comporta. Verifiquemos alguns:

a. De Getúlio a Machado: uma história pelo avesso

A inegável influência positivista, muitas vezes expressa em termos de

cientificismo ou laicismo em Simões Lopes Neto,15 cuja tradição política

chega até Getúlio Vargas, o qual, segundo o jornalista Diogo Mainardi, é o

responsável pela “invenção do brasileiro”, a partir do Estado Novo (1937-

1945). As posições políticas e filosóficas de Simões Lopes Neto, dada a sua

repercussão como escritor gaúcho por excelência, sobretudo após a “edição

acolherada”, da Globo, em 1926, pode nos auxiliar a compreender as fontes

extrapolíticas de Vargas, desde seu período estudantil (1903) até quando

assumiu a presidência do Rio Grande do Sul, em 1928.

b. Que país é este? Quem é o Brasil e quem é o brasileiro?

Simões Lopes Neto dedicou-se também ao ofício da história, cuja maior

realização foi a Revista do Centenário de Pelotas, que circulou entre 1911 e

1912. Além disso, escreveu A forca em Pelotas (póstumo, 1917) e outros.

O autor de Contos gauchescos levava muito a sério seu ofício de historia-

15 Vide “Uma trindade científica”, série de cinco artigos publicados em janeiro de 1913, por

Simões Lopes Neto sob o pseudônimo de João do Sul, no jornal A Opinião Pública, de

Pelotas, em que discute as idéias de Darwin, Lamarck e Haeckel. In: Moreira, 1983,

p. 82-99. Quanto ao laicismo de Simões Lopes Neto, inspirado por seus brios patrióticos

e rio-grandenses e instigado talvez por sua fidelidade a Antônio Gomes da Silva, maçom,

seu amigo e patrão no Opinião Pública, Simões manteve uma dura polêmica, em defesa

de Anita e Garibaldi, contra o jornal católico A Palavra, em novembro de 1913. In: Mo-

reira, 1983, p. 68-69.

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dor, tanto assim que consumiu mais de oito anos de sua vida, produzindo

um texto didático, que o biógrafo Carlos Diniz chamou de “o verdadeiro

Terra gaúcha”,16 que permanece inédito. Livro de título homônimo apare-

ceu publicado postumamente, em 1955, pela Editora Sulina. Seu objetivo

era justamente inserir-se nas campanhas de educação cívica, tarefa que já se

impusera em 1904-1906, através de suas conferências. Em Terra gaúcha,

cujo segundo volume não chegou até nós, há trechos em que é possível

depreender seus objetivos de realçar a terra gaúcha dentro da formação da

nacionalidade:

Alfim soou o toque da victória! – a mesma língua cantou o mesmo hym-

no...; a mesma bandeira cobriu e beijou túmulos e berços... E des ahi as ci-

catrizes da lide sellaram o direito histórico do último e tão lavorado florão

da coroa portuguesa, no Brazil.

Terra gaúcha, raia traçada pelo Destino, foste a última encorporada à

nacionalidade; foi-te água lustral o próprio sangue, hóstia consagrada ao

coração, litania às juras de fiel e valoroza...

Eis porque remembrança do marco final na consolidação do território

pátrio, eis por que este livro se chamou assim.

Porém elle é nacional; aos brazilenzes é consagrado (Lopes Neto,

1955, p. 14).

c. Identidade gaúcha versus identidade brasileira

Depois de mapearmos a trilha dessa relação tensa entre a identidade

gaúcha e a identidade brasileira, desde seus primórdios, podemos observar a

persistência dessa pergunta obsessiva no pensamento nacional e de que

modo ela se intensificou durante a Primeira República (1889-1930).

Se, de um lado, a estética, nascida com o Romantismo e perpetuada nos

pressupostos naturalistas de Romero e outros, visava à invenção ideológico-

literária do Brasil-Nação, por outro, houve a necessidade de representar e

acolher as diversas regiões culturais do país, no que o regionalismo foi o

veículo fundamental.

O indianismo de José de Alencar foi uma vertente romântica, teve uma

vida breve, sendo substituído pelo regionalismo, ao qual o romancista tam-

bém aderiu. Lúcia Miguel Pereira (1973, p. 181) entende que caberia ao

regionalismo ser superado por expressões literárias mais universais, não

deixando de assinalar, porém, a relação de sucessão entre as duas tendên-

cias, apontando, com isso, que a tendência regionalista representa um certo

avanço no conhecimento do Brasil. O propósito alencariano, exemplificado

no Gaúcho (1870) ou no Sertanejo (1875), será prosseguido e, por assim

dizer, na tentativa de autentificação, mesmo dentro da idealização românti-

16 Para maiores detalhes, vide: Diniz, 2003, p. 124-137.

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ca, perderá grande parte de sua literariedade, até o advento da obra de Si-

mões Lopes Neto, na ânsia da captação do registro folclórico-lingüístico ou

antropológico.

Será apenas após a proclamação da República que, ainda na trilha da fi-

xação de um passado mítico, mas já com a necessidade de apagar os rastros

monárquicos desse passado, que novamente caberá aos artistas, sobretudo

aos escritores, a reinvenção do Brasil e do brasileiro, agora em direção ao

dístico “ordem e progresso”. Mas o passado, a ordem latifundiária e a he-

rança escravocrata continuariam – como continuam até hoje – nos atordo-

ando com seus vivos fantasmas.

Entre os anos de turbulência e repressão da primeira metade da Repú-

blica Velha, começa o Brasil a se olhar como uma nação que precisa indus-

trializar-se e urbanizar-se, ou como então se dizia, civilizar-se. O Brasil,

contudo, não é o Rio de Janeiro, a Capital Federal. Existe o Brasil rústico e

interiorano. É desse passado incivilizado, mas ainda tão presente, que o

real-naturalismo, em sua vertente regionalista, retirará tantas vezes sua for-

ça contestatória frente a um Brasil cartão-postal. Porém, o regionalismo, de

norte a sul, sobrevive também da estandardização e da idealização de seus

tipos locais. Não é à toa que, em seus extremos, o país esteja representado

emblematicamente pelos Farrapos (1896), de Oliveira Belo, e Pelo sertão

(1898), de Afonso Arinos, e, mais tarde, pelo Os sertões (1902), de Eucli-

des da Cunha, e Contos gauchescos (1912), de João Simões Lopes Neto.

Uma pergunta nos soa imprescindível: De que maneira o regionalismo,

alimentado por uma estética esgotada, pode sobreviver, espalhar e modifi-

car-se, posteriormente, constituindo-se em importante elemento na revolu-

ção artística de 1922 com todas as suas conseqüências?

Para esboçarmos uma resposta a essa questão, carece entendermos o lu-

gar de João Simões Lopes Neto, sua ideologia (que era a dominante em sua

época) e sua concepção estética, aliada à compreensão da maneira como o

trinômio “bacharelismo, regionalismo e nacionalismo” se articulou, gerando

na política nossos liberais conservantistas; na filosofia, nossos positivistas

de segunda mão, e, na literatura, os matizes intelectuais que encontraram

seu palco de luta e expressão nas escaramuças entre os escritores parnasia-

nos (chamados de “passadistas”) e os modernistas, que iniciavam a redes-

coberta do Brasil.

d. Tupi or not Tupi?

De tudo isso, restam-nos perguntas, inúmeras, novas e velhas. De tudo

isso, restam-nos poucas certezas. A única, remanescente, representa um

vasto caminho a ser trilhado, descobrindo que nenhum Brasil existe, porque

todos são possíveis.

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Ao decidirmos estudar as identidades indígenas, utilizando para tanto os

textos simonianos do Lunar de Sepé, Lendas missioneiras e A Salamanca

do Jarau, importou-nos, fundamentalmente, tratar da noção de “nova gen-

te”,17 isto é, a constituição étnica e cultural dos povos do Novo Mundo.

A compreensão do papel do índio na cultura gaúcha em muito pode ajudar a

desatar os nós entre nós. Nós quem, cara-pálida?

Esses nós são as relações de continuidade e ruptura estabelecidas en-

tre a Província e o restante do Brasil, estabelecidas desde Caldre e Fião,

do Grupo do Partenon Literário, passando por Simões Lopes Neto e Alci-

des Maya, até Cyro Martins.

É na complexa dialética ente Peri e Blau Nunes que abrimos caminho

para examinar o problema da identidade cultural gaúcha e brasileira. De

qualquer modo, encontramos na arte simoniana, inclusive naquilo que ele

mesmo considerava “arte menor”, uma atividade que ele supunha apenas

de folclorista, uma chave para a investigação dos diversos projetos de

nação e, conseqüentemente, de identidades múltiplas, ora em conflito, ora

concorrendo para uma visão de integração nacional.

A escritura gauchesca de Simões Lopes Neto, diferentemente da idea-

lização romântica ou parnasiana, embora existam interpretações em con-

trário, põe em crise a imagem do gaúcho-herói, tão empobrecida porque

estereotipada em intuitos ideológicos, para situá-lo no cerne de uma crise

identitária, conforme explanou Franzkonviak Martins (2003, p. 93-104).

Se não sabemos ainda quem somos nós, gaúchos, dentro da nação bra-

sileira, e em que termos essas duas identidades culturais se cruzam e se

repelem, vale saber que somos filhos não só do Brasil, mas também do

Prata, o que nos serve para olharmos para o Brasil – até com olhos de

estrangeiro, já que pertencemos à “nação pampeana” – com uma visão

mais crítica, e para nós mesmos, como os que não ficaram congelados à

beira de um fogo de chão. Como bem disse o escritor e músico Vitor Ra-

mil, em sua conferência de Genebra, Estética do frio: “Somos a confluên-

cia dessas três culturas [a platina, a rio-grandense e a brasileira], o encon-

tro de frialdade e tropicalidade. Qual é a base de nossa criação e da nossa

identidade se não essa? Não estamos à margem de um centro, mas no cen-

tro de uma outra história” (Ramil, 2004, p. 28).

17 Para detalhar este conceito, vide: Bavaresco, 2003, p. 99-110.

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Décima de Sepé Tiaraju*

Mário Matos

PRIMEIRA PARTE

O desafio;

Blau evoca a morte de Sepé;

Missioneiro canta a memória de Sepé;

Açoriano contesta a brasilidade de Sepé;

Missioneiro defende em Sepé o gaúcho primitivo.

O DESAFIO

1

Certa vez fui assistir

Um rodeio em Vacaria;

Palavra, que não sabia,

O quanto eu ia aprender –

Cheguei ali pra vender

Uns trabalhos que eu fazia...

2

Na Porteira do Rio Grande,

A gauchada atrevida,

Desde cedo está reunida,

Vinda de cada rincão –

E revive em tradição,

As raízes da sua vida.

3

Antes de a festa iniciar,

Os piquetes vão chegando

E no fundo se acampando;

Cravando no chão estacas

E armando suas barracas

As saudações vão trocando.

4

Vai entrando gente em penca

E o recinto fica cheio;

Povo nosso, povo alheio;

Muita cor, muita alegria;

E, a tirar fotografia,

Muito gringo pelo meio.

* Esta “Décima de Sepé Tiaraju” foi publicada em primeira edição em 1985 por Martins

Livreiro Editor, de Porto Alegre. Edição esgotada há vários anos.

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Mário Matos Identidades Ameríndias 80

5

Depois de um grande desfile

De todas as comitivas,

Com belas flamas nativas,

Nas mãos de guapos campeiros,

Dispersam-se os cavaleiros,

Para as provas decisivas.

6

No parque a gente se apinha,

O palanque está lotado;

A pista é um rincão cercado,

Todo de grama nativa,

Que é palco e que é cena viva,

Do campeador afamado.

7

Baguais corcoveando feio,

Com ginetes destemidos;

Laços grandes em zunidos,

Atrás do novilho forte;

Provas de destreza e sorte,

Nos lances mais aplaudidos.

8

Montar num potro de em pêlo

E agüentar a velhaqueada,

É a ciência da gineteada;

Mas, se o bicho se planchar,

O jeito é de pé saltar,

Pra não ter perna quebrada.

9

Pra se alcançar um novilho,

Há que ter pingo ligeiro;

Mas o laço é traiçoeiro...

Pra a armada grande cerrar

E o chifre não escapar,

O índio tem que ser campeiro!

10

Num bom cavalo crioulo,

Vale da rédea a leveza,

Pois pouco serve a beleza,

Se a sua boca for dura –

Por isso, a raça se apura

Nos torneios de destreza.

11

Enquanto reinam no parque,

O gaúcho, o laço, a espora,

A juventude, lá fora,

Vai mostrando, nos tablados,

Com suas vestes e bordados,

Nosso fandango de outrora.

12

Desfilam formosas danças,

Desde o Anu, a Chimarrita,

A Tirana, o Pau-de-Fita,

Aos mais fortes sapateadores,

A Chula, os Facões ousados, -

Cada qual a mais bonita.

13

Nem sei o que apreciar mais,

Se a força dos dançadores,

Com seus facões lutadores,

Ou se a graça no voltear,

Da linda prenda o seu par,

Em movimentos e cores.

14

Enfim, quando chega a noite,

Cria vida o acampamento,

Pois é chegado o momento

Dos poetas e cantadores

Mostrarem os seus pendores,

Sua cultura e sentimento.

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Décima de Sepé Tiaraju 81

15

Vestindo os trajes da terra,

A mocidade desfia

A alma gaúcha em poesia,

Lado a lado co´os peões,

E as cordeonas e os violões,

Dão fundo à bela porfia.

16

Desta vez, um desafio

Estava sendo esperado,

Desde o Rodeio passado,

Entre o Chiru Missioneiro

E o Açoriano sobranceiro,

Sobre um índio questionado.

17

Contou-me uma gauchinha,

Que, no Rodeio anterior,

Discursava um orador:

Falava de Caiboaté –

E um monumento a Sepé,

Cobrou do Governador.

18

Em aparte, o Açoriano

Gritou, que um tal monumento,

Não teria fundamento

Em nossa História oficial.

E um desafio, afinal,

Lançou, com atrevimento:

19

– Dou prazo e não peço luz,

Pra quem saiba cantar bem;

Vamos ver quem é que tem

Violão pra me encostar,

E a História pra cotejar,

Até o Rodeio que vem!...

20

O desafio do Açoriano

Pegava no povo inteiro,

Mas, das Missões o terreiro,

Sentiu pisado o seu poncho:

– Pra bater com esse troncho,

Só trazendo o Missioneiro!...

21

Missioneiro era um chiru –

Mestiço lá da fronteira –

Conhecia a História inteira

Dos Sete Povos Cristãos,

E, pra atender seus irmãos,

Não disparou da carreira.

22

Estava chegando a hora

Do desafio ter início:

E, uns por gosto, outros por vício,

Todo o mundo estava atento;

O fato é que o acampamento

Mais parecia um comício.

23

Já chegavam os dois tauras,

Para a frente do fogão,

Quando, pegando o violão,

Levantou-se um vacariano

E gritou – Falta um vaqueano,

Pra fazer a evocação!

24

Foi então que do piquete,

Vindo de São Nicolau,

Trouxeram o velho Blau

E lhe disseram: – Tropeiro!

Na tradição és cancheiro;

Vai na frente deste vau!

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Mário Matos Identidades Ameríndias 82

25

O velho Blau pigarreou,

Fumaceou bem seu palheiro,

Deu uma pensada primeiro

E disse: – Me dêem o pinho;

Vou ver se marco o caminho,

Pra o começo do entrevero!

BLAU EVOCA

A MORTE DE SEPÉ

26

Um triste acontecimento,

Há mais de duzentos anos,

Nos traz o vento minuano;

Eu lhes conto, neste pinho,

Quem foi o grande e o mesquinho,

Neste pago americano.

27

O sangue tingia o pasto

No Cerro do Batovi,

A vanguarda guarani,

Numa lomba era atacada,

Pela força conjugada

Do Tratado de Madri.

28

Já peleavam os valentes,

Há dois anos, por seu chão;

E, naquela situação,

Se batem com força e fé,

Pois seu cacique, Sepé,

É mais guapo que um leão!...

SE BATEM COM FORÇA

E FÉ, CANTA

A MEMÓRIA DE SEPÉ

33

Silenciou o velho Blau,

Pra dar vez ao desafio

E um novo violão se ouviu –

Era o Chiru Missioneiro,

Que disse: – Bravo, tropeiro,

Por isso é que te aprecio!...

34

Faz mais de duzentos anos,

Que Sepé tombou ao chão,

Mas eu tive a sensação,

Que estava ali do seu lado

E o seu sangue derramado,

Senti no meu coração!...

35

Daquele sangue no pasto,

Brotaram miles de flores,

Formosas como os amores,

Que os nossos ranchos guardaram

E que os fogões avivaram,

Na boca dos cantadores.

36

Inda hoje, pampa afora,

Se conserva a sua memória;

Tiaraju ficou na história

Da tradição missioneira;

E logo a América inteira

Há de cantar sua glória!...

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Décima de Sepé Tiaraju 83

AÇORIANO CONTESTA

A BRASILIDADE DE SEPÉ

37

Chegou a vez do Açoriano,

Moço bonito e elegante,

Sabido, mas arrogante,

Tinha ficado afamado,

Por ganhar, em todo o Estado,

Um concurso de estudante.

38

A idéia que apresentou,

Sobre a Guerra das Missões,

Foi baseada nas lições

Da História oficializada,

De uma turma bem montada

Do arraial dos sabichões.

39

Ele ergueu seu violão,

Num bordoneio seguro

E o acorde saiu tão puro,

Que a gente toda gostava;

Mas ninguém desconfiava,

Que o Açoriano ia ser duro...

40

– Senhores, peço licença,

Pra lhes clarear a memória;

Não vejo nenhuma glória,

Na morte do tal Sepé;

Por mim esse índio até

Nem entrava em nossa História!...

41

Que herói é esse afinal?

Pra mim é um pobre coitado,

Pois, combater um Tratado

E enfrentar duas potências,

Sem pesar as conseqüências,

É querer ser derrotado!

42

O território que temos,

Do Rio Grande quase inteiro,

Seria hoje estrangeiro,

Se vencesse a rebelião;

Não seria mais um chão

Neste solo brasileiro.

43

Glória eu vejo nos heróis

Da tradição nacional!

Mas, ai do sentimental,

Que ao índio segue no engano

E esquece do lusitano,

Nosso tronco principal.

44

E me responde, se podes,

Mas não fujas, Missioneiro:

Era Sepé brasileiro,

Ou um súdito da Espanha?

Eu pago um trago de canha

A quem responder primeiro!...

MISSIONEIRO DEFENDE EM

SEPÉ O GAÚCHO PRIMITIVO

45

Depois daquela agachada,

O Açoriano se calou,

Mas inda repinicou

O violão por desacato;

A trova dele, de fato,

A muitos impressionou.

46

Não faltaram os aplausos

Pra a cantiga do rapaz:

Era um pessoal lá de trás,

Que estava ali de gaiato,

Sem entender bem do fato

E achando o moço sagaz.

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Mário Matos Identidades Ameríndias 84

47

Bufavam velhos campeiros,

De marca quente co’aquilo,

Enredados com o estilo,

Sem encontrar argumento,

Mas em meio a tudo atento,

Missioneiro está tranqüilo.

48

Ele retoma seu pinho,

E recomeça a trovar:

– Açoriano, ao teu cantar,

Estou pronto a responder;

Não te apotres que vais ter

Muita canha que tomar.

49

O que Sepé combatia

No Tratado de Madri,

Não era o tratado em si,

Do qual nem tinha noção;

Era sim, contra a expulsão

Do seu povo guarani.

50

Foi a ordem desumana

Resolvida no além-mar,

Sem nada considerar,

Mandando os índios embora,

Das suas terras pra fora,

Pra delas se apoderar!

51

Golpe baixo nas Missões,

Onde o índio progredia

E a riqueza produzia,

Mostrando ao resto do mundo

Um viver novo e fecundo,

Que ao seu redor não se via!

52

Com cidades e lavouras,

Oficinas, gado e estâncias,

Tinham tudo em abundância,

Pois se uniam no trabalho;

O seu único atrapalho

Era do branco a ganância.

53

Por ironia da História,

Os índios eram cristãos,

Desejavam dar as mãos

Aos brancos da mesma crença,

Mas só levavam ofensa

Dos desalmados irmãos.

54

Quem escravizava o índio

Por todo este continente,

Não podia estar contente

Vendo florir as Missões,

Pois elas davam lições,

Mostravam que o índio é gente.

55

Isso explica o tal Tratado

Entre as potências rivais;

Nele, as Cortes coloniais

Aplainavam suas questões,

Pra dar um fim nas Missões,

Que já lhes eram demais...

56

A insurreição guarani

Foi legítima defesa,

Teve heroísmo e beleza;

Só interessa aos potentados

Chamar heróis de coitados

E ignorar sua grandeza!

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Décima de Sepé Tiaraju 85

57

Quem pode entender teu gesto

De ao índio negar direito

E de achar que foi perfeito

O invasor que o massacrou?

“Se foi luso, não errou” –

É esse o teu preconceito!

58

Nosso tronco é lusitano,

Mas a raiz é mestiça,

Pois se criou na injustiça,

Como raça marginal,

E do patrão colonial

Só vinha o mando e cobiça.

59

É falso querer cobrar

De Sepé “brasilidade”,

Pois nesse tempo, em verdade,

Brasil ainda não havia –

Brasileiro não podia

Ter pátria e nem liberdade!

60

Já te esqueceste, Açoriano,

Da morte do Tiradentes

E o fim dos Inconfidentes,

Como traidores julgados,

Pelas Cortes condenados,

Por se acharem diferentes?

61

Pretender marcar Sepé

Como súdito espanhol,

É como tapar o sol –

Só falta que me sustentes

Que era luso o Tiradentes,

Pra completar o teu rol!...

62

Entendo enfim que Sepé

Foi súdito de sua gente;

E que esse índio valente,

Nascido na nossa terra;

Contra a injustiça fez guerra,

Dando a vida heroicamente.

63

Querer negar a importância

De Tiaraju e das Missões,

É ignorar tradições

Da nossa faina campeira,

Que tem marca missioneira

Do focinho até os garrões.

64

Quem o gado introduziu

E o laço já manejou;

Quem o chiripá criou

E as primeiras campereadas,

Nas coxilhas orvalhadas

De um rodeio praticou?

65

Quem já domava baguais

Crioulos de pura raça,

Montando com garbo e graça,

De laço e bolas nos tentos,

De poncho ondulando aos ventos,

Nesta campanha lindaça?

66

Um primitivo gaúcho,

Foi o índio missioneiro

E hoje seu sangue altaneiro,

Também faz parte do nosso.

É por isso que eu não posso

Negar que ele é brasileiro...

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Mário Matos Identidades Ameríndias 86

67

Mesmo o povo deste pago,

Negar isso poderia,

Se o seu nome, Vacaria,

Vem dos gados iniciais?

Vacaria dos Pinhais –

Estância índia de cria!...

68

Ao teu cantar, Açoriano,

Eu respondi com o meu;

Vamos ver quem foi que deu,

A esta gente da campanha,

Não o teu trago de canha,

Mas algo que a convenceu!

69

Se tens os olhos fechados,

Ou se pensas com preguiça,

Andas longe da justiça.

Sepé sempre vivo está.

O mesmo já não se dá

Com tua verdade postiça!

70

Um grande aplauso acolheu

A trova do missioneiro,

Que o Chiru não foi tambeiro,

Respondendo a tudo esperto,

Cantando de peito aberto,

Sem disparar do terreiro!...

71

Mas a noite era avançada

E o pessoal da comissão

Interrompeu a função,

Pra descanso da peonada,

Que, naquela madrugada,

Tinha muita obrigação.

72

Ficou pra noite seguinte

O desafio continuar;

E a turma foi se encostar;

Cada um no seu achego;

Eu fui dormir num pelego,

Que puderam me arrumar.

SEGUNDA PARTE

Recomeça o desafio;

Blau evoca a batalha de Caiboaté;

Açoriano nega a liderança dos índios;

Missioneiro reafirma a liderança dos índios.

RECOMEÇA O DESAFIO

73

O sol levantou bonito

No pago de Vacaria

E o rodeio já seguia,

Agora em nova atração:

O mouro contra o cristão,

Nas cavalhadas corria.

74

Grupos rivais de ginetes

Formam de um oito a laçada;

E ao cruzar em disparada,

Cotejam com altivez,

Uma arma em cada vez:

A lança, a pistola e a espada!

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Décima de Sepé Tiaraju 87

75

Muitas cenas são corridas,

Sem parar pra desafogo:

Castelos de cruz e fogo,

Esc’ramuças pelo meio,

Alcancilhos e torneio,

Das argolinhas, o jogo.

76

No final tem um assalto,

Onde o castelo é tomado;

E o rei mouro, derrotado,

Já liberto da maldade,

Ingressa na cristandade

Co’o rei cristão do seu lado...

77

Apesar da ingenuidade

Desse enredo milenar,

A cavalhada é sem par,

Quando em ação se apresenta;

Delicada ou violenta,

Mas bonita de se olhar.

78

No passado, essa peleja,

Era um treino ao lutador;

E ali muito campeador

Deu prova da sua destreza,

Antes de usar, na dureza,

As armas do peleador.

79

Nela, o gaúcho e o cavalo

Mostram artes e proezas

Unindo suas naturezas;

Cada prova é um risco quente,

Com perigo de acidente,

Nos ataques e defesas.

80

E o dia correu pesado,

Com rodadas de mau jeito,

Dessas que põem um sujeito

A depender de um irmão,

Que lhe dê respiração,

Boca a boca e peito a peito!

81

Mesmo assim, a gauchada,

O cansaço não sentiu

E, quando o dia sumiu,

Todo o mundo achou alento,

Pra voltar no acampamento

E assistir o desafio.

82

Antes da hora marcada,

Viu-se chegar o Açoriano,

Num poncho de belo pano,

Já pronto pra começar;

Mas alguém mandou parar

E falou para o aragano:

83

– Açoriano, és preparado

E pode correr de alcance;

Por isso, aguarda um relance,

Pois o leme desta nau

Vai voltar ao velho Blau,

Pra nos contar outro lance!

84

A deixa do vacariano

Teve logo aprovação:

E, ao correr do chimarrão,

Todo o fogão se animava,

Enquanto o Blau retornava,

Pra fazer a evocação.

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Mário Matos Identidades Ameríndias 88

BLAU EVOCA

A BATALHA DE CAIBOATÉ

85

Amigos – disse o tropeiro –

Está bonito este pleito,

Mas já que me dão direito

De atalhar esta moçada,

Eu não refugo a parada.

Pego o pinho e abro o peito:

86

Geme o sopro do minuano,

Geme a corda do violão;

Meu cantar brota do chão,

Dos campos de Caiboaté;

De uma tosca cruz ao pé,

A História surge em visão.

87

Dia dez de fevereiro,

Rumo à batalha final,

Vem a força colonial,

De duas nações formada

E em dois anos preparada,

Por Espanha e Portugal.

88

São quase quatro mil homens,

Marchando com desafogo;

Armas brancas e de fogo,

Muitas peças de canhão,

Cavalos e munição,

Como quem domina o jogo.

89

Os guaranis, galopando,

Em bons fletes vêm montados,

Lanças e arcos nos costados,

Na cintura as boleadeiras,

E bem na frente, as bandeiras

Dos Sete Povos amados!

90

Ao chegar em Caiboaté,

Avistam na sua frente,

A formação imponente

Do exército coligado,

Que logo forma em quadrado,

Para o combate iminente.

91

E as duas forças opostas,

Estacam, fazendo praça;

Os índios, em ameaça,

Cortam inteira a passagem,

Com tanta audácia e coragem,

Que o inimigo se embaraça.

92

Ficam assim por uns tempos,

Fingindo parlamentar;

E os índios, ao negacear,

Querem ver se o tempo corre,

Que a hora em que o dia morre,

Será melhor pra atacar.

93

A tarde já está no meio

E Gomes Freire, impaciente,

Ante o bloqueio insolente,

Manda um próprio lhes dizer,

Que, se não querem morrer,

Tratem de se abrir urgente.

94

Na frente dos guaranis,

Lhes responde Languiru,

Firme como um velho Umbu:

– É melhor morrer peleando

Do que viver rastejando –

Nos ensinou Tiaraju!

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Décima de Sepé Tiaraju 89

95

Partiu do lado espanhol,

Um tiro, naquele instante;

Caramba! No soflagrante,

Rebenta o clamor de guerra,

E os cascos soam na terra,

Como num tambor gigante!...

96

São dois mil a galopear

Contra as fortes legiões;

Têm fúria seus corações

Já lhes mataram Sepé.

Mas inda empunham com fé,

As lanças contra os canhões!...

97

O céu quase escurecia,

Com as flechas que voavam,

Mas pouco dano causavam

Aos homens encouraçados;

Somente a alguns descuidados,

Que com a vida pagavam.

98

Ao romper da artilharia,

Começa a carnificina;

Não é combate, é chacina,

Pois o invasor nem se bate:

Aos cavaleiros abate

Com sua metralha assassina.

99

Cada obus cai como um raio,

Sobre as fileiras cerradas;

São relinchos, são rodadas,

São bravos rolando a terra,

Morrendo o grito de guerra

Na garganta destroçada!...

100

Depois de todo esse estrago,

Por fazer mui pouco havia;

Quanto corpo ali jazia,

Espalhado na coxilha!

E o que sobrou da guerrilha,

Nem tinha mais montaria...

101

Nessa hora, os coloniais,

Montados e bem armados,

Atacam, pelos dois lados;

Não dão prova de coragem,

Mas de simples bandidagem,

Contra os índios derrotados.

102

Parecendo caçadores,

Contra os bichos sem defesa,

Fazem seu alvo na presa,

Por trás de seus mosquetões;

Não são valentes dragões –

São covardes sem nobreza.

103

Mil e quinhentos morreram

Do lado dos guaranis,

Num massacre dos mais vis,

Por culpa dos potentados,

Donos do mundo arvorados,

Dentro dos nossos Brasis.

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Mário Matos Identidades Ameríndias 90

AÇORIANO NEGA A

LIDERANÇA DOS ÍNDIOS

104

A trova do velho Blau,

Com emoção foi ouvida

E de pé muito aplaudida,

Por toda a aquela gauchada;

Mas stava sendo esperada

Uma resposta atrevida.

105

A resposta ia ser dada,

Pelo açoriano a trovar;

Ele estava para estourar

Por ser passado pra trás;

A verdade é que o rapaz

Não gostava de esperar.

106

– Aqui stou eu novamente,

Caros Senhores da festa,

Levando coice na testa,

Por não crer em ilusão;

Mas rasgo com meu violão,

Picada em qualquer floresta!

107

Afinal, quem não lamenta,

Dos índios a triste sorte,

De encontrar assim a morte,

Como um rebanho aloucado,

Que, cego e desembestado,

Investe contra o mais forte?...

108

Nessa guerra das Missões,

Aos índios eu dou desconto,

Pois quem age como tonto,

É porque não tem cabeça,

E basta que se conheça,

Pra ver quem caiu no conto.

109

A Companhia dos padres

Moveu campanha ao Tratado,

Desde que fora assinado,

Entre Espanha e Portugal;

E fez de tudo, afinal,

Pra que não fosse aplicado.

110

Esses padres jesuítas,

Tinham aqui sua potência

E abusaram da inocência

Dos índios catequizados,

Já por eles educados,

Na paz ou na violência.

111

Por cartas e documentos,

Em que a História se respalda,

Sabemos que um padre Balda

Fica lá na Redução,

Dando ordens e instrução,

Enquanto o índio se escalda.

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Décima de Sepé Tiaraju 91

112

É triste a gente saber,

Que os índios foram usados

E à guerra fanatizados,

Pelos padres, seus tutores,

Que estavam nos bastidores,

Ao seu império agarrados.

113

Me dá pena quando vejo

Gente que se acha sabida,

Fazendo trova comprida

E explorando sentimentos,

Sem pôr a razão nos tentos,

Querer ganhar a corrida.

114

Para esses fracos ginetes,

Minha verdade é postiça

E o meu pensar tem preguiça,

Mas não preciso esporear:

Não pode a um puro alcançar,

Quem vem montado em petiça!

MISSIONEIRO REAFIRMA

A LIDERANÇA DOS ÍNDIOS

115

As tiradas do Açoriano

Tiveram lá o seu efeito;

Mas não tinha o mesmo jeito,

O eco que ele encontrava;

Ninguém mais se impressionava

Com o moço tão perfeito.

116

Assim é o nosso gaúcho:

Jovial e despretensioso,

Esquece o gesto acintoso

E até gosta da ironia,

Se alguém lhe deu a alegria

De se mostrar valoroso.

117

Até o Chiru Missioneiro,

Sem perder o bom humor,

Foi saudar seu contendor:

– Gostei da tua agachada;

Monto a petiça suada

E vou para o partidor

118

Minha petiça, Açoriano,

É sã de pata e de lombo

E não é de levar tombo;

Se tu não tomas cuidado,

Com esse puro estropiado,

A petiça te abre um rombo!...

119

Não tiro tua razão,

Em achar que me alonguei,

Na resposta que te dei;

Porém não vou te enganar.

Pois pretendo continuar

A dizer tudo o que eu sei.

120

Não se afinam as cantigas

Dos nossos dois violões,

Sobre a História das Missões:

Afinal quem fez a guerra?

Os nativos desta terra,

Ou os padres das Reduções?...

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Mário Matos Identidades Ameríndias 92

121

Tu lamentas o massacre,

Dos índios em Caiboaté

E ao te ouvir, eu creio até,

Que tenhas sinceridade,

Mas toda a História, em verdade,

Não olhas com boa fé.

122

Eu digo que essa chacina

Só teve um grande culpado –

Que a causa foi o Tratado

E a guerra a sua conseqüência;

Tu dizes que sem consciência,

O índio foi sacrificado.

123

Vou mostrar, contando os fatos,

E clarear que o teu mistério,

Da lenda de um tal império,

Dominado pelos padres,

É história só de comadres,

Que não tem base ou critério.

124

Essa velha acusação

Vem do Marquês de Pombal,

Ministro de Portugal,

Que da Ordem de Jesus,

Mais do que o Diabo da Cruz,

Era inimigo mortal.

125

Dizes bem, que os jesuítas,

Desde o começo, buscaram

E muito esforço tentaram,

Para evitar que o Tratado

Viesse a ser aplicado,

Pelos reis que o assinaram.

126

Por várias cartas e audiências,

Pediram ao rei de Espanha

Para desfazer a barganha;

Pois as Missões, até então,

Estavam na proteção

Dessa Coroa piranha.

127

Vale a pena recordar,

Que foi dessa proteção,

Dada em segunda intenção,

Que os padres aproveitaram

E sua obra iniciaram,

Com puro zelo cristão.

128

Nascidos na velha Europa,

Eram de muitas nações,

Aqueles guapos varões,

Na Companhia irmanados,

E nos Colégios treinados,

Para a faina das Missões.

129

Com sua coragem e fé,

Penetrando no sertão,

Viram no Índio seu irmão;

E foi seu primeiro plano,

Fazer dele um ser humano,

Antes de o fazer cristão.

130

Esses homens de Jesus

Fizeram obra de paz,

Dando mensagem capaz

E enfrentando o sacrifício,

Morrendo até no suplício,

Sempre à frente e nunca atrás.

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Décima de Sepé Tiaraju 93

131

Havia no meio deles

Variados profissionais,

Dos ofícios principais:

Arquitetos e engenheiros,

Tecelões e carpinteiros,

Artistas e muito mais.

132

Partindo da estaca zero,

Cheios de amor e paciência,

Passo a passo, a sua ciência,

Foram trocando em miúdos;

E o índio aprendeu de tudo,

Brilhando na inteligência.

133

Os índios foram artistas,

Na música e na escultura,

Nas danças e na pintura;

Desse tempo luminoso,

Há um cabedal precioso,

De expressão ingênua e pura.

134

Por ocasião das colheitas,

Grandes festas se faziam;

Cavalhadas se corriam;

E até os atos religiosos

Davam sinais grandiosos

De um povo com alegria!...

135

Foi assim que construíram,

Por quase século e meio,

Com grande e sólido esteio,

A vida das Reduções

E o sucesso das Missões,

Que o índio apoiava em cheio.

136

República foi chamada;

Não era império, afinal,

Mas conquista espiritual;

E essa conquista tamanha

Era escondida da Espanha,

No relatório anual.

137

Por quase século e meio,

Brilhara a luz proibida

Dessa alegria escondida;

Mas quando a opressão é moda,

A liberdade incomoda

E tem de ser destruída!

138

Teve fim a longa farsa

Da proteção espanhola

E chega a hora da esfola –

O lobo diz ao cordeiro,

Que saia do seu terreiro,

Que a proteção... era esmola!

139

O Tratado de Madri.

Por três anos retardado,

Agora ia ser aplicado;

E até um padre desumano,

Um tal Luís Altamirano,

De cima foi enviado.

140

Esse padre comissário

Do Superior Jesuíta,

Tinha uma carta esquisita,

Dando-lhe posto eminente,

Pra todo este continente,

Onde a Ordem tem guarita.

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Mário Matos Identidades Ameríndias 94

141

Os guaranis esperavam,

Que os seus mestres veteranos

Assumissem de vaqueanos,

Com sua ciência batuta,

Entrando firmes na luta,

Pra dar vitória a seus planos.

142

Se os padres participassem,

Com toda sua liderança,

Talvez virasse a balança,

Pois, unindo as Reduções,

Seriam grandes legiões,

Equipadas, com pujança.

143

Eles teriam mostrado,

Como outrora em M’bororé,

Quando o índio pôde até

Resistir ao Bandeirante,

E, com tática arrasante,

O obrigou a arredar pé!...

144

Mas os padres das Missões,

Pensando na disciplina,

Que aceitaram na doutrina,

Não entraram nesse plano;

É que o tal de Altamirano

Já mandava atrás da esquina...

145

Contra os próprios sentimentos,

Pregando à população,

Tentaram a emigração,

Começando a procurar,

Na outra banda, um lugar,

Para a nova instalação.

146

Foi quando a voz dos caciques,

Mais alta se fez ouvir:

– Não temos para onde ir!

A deixar a nossa terra,

Preferimos ir à guerra –

Daqui não vamos sair!

147

Os padres não convenciam

Os índios em reboldosa

E, nessa hora custosa,

Todo padre é um ser humano;

Só o padre Altamirano

Teve fuga desonrosa;

148

Quase todos sacerdotes,

Na hora da decisão,

Seguiram seu coração:

Ficaram nas suas capelas,

Dando provas das mais belas

Do sentimento cristão.

149

Padre Balda, Tadeu Henis,

Foram homens de respeito –

Diminuí-los não tem jeito;

Açoriano, estuda a sério,

E não me vem com mistério

De documento suspeito!...

150

Se não te basta, contudo,

O que acabei de contar,

Lembrança deves guardar

De outro fato conhecido:

O inquérito promovido,

Após a guerra findar.

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Décima de Sepé Tiaraju 95

151

Foi Don Pedro de Ceballos,

Vice-rei do Rio da Prata,

Quem fez a devassa exata,

Por ordem da sua coroa;

E, mesmo que isso te doa,

Eu conto o que ela relata.

152

A acusação aos jesuítas,

O inquérito investigou

E as tais “provas” estudou –

Mas, por mais que procurasse

O que aos padres implicasse,

Nada de culpa encontrou!

153

Ora, quem senão a Espanha,

Estaria interessado

Em condenar o acusado

Da mais alta traição,

Se o julgasse em rebelião

Contra o seu trono sagrado?...

154

Mesmo assim, o tal Pombal,

Mandando nas duas coroas,

Inda fez poucas e boas,

Contra os padres das Missões:

Deportados em grilhões,

Foram judiados, à toa.

155

Tu garantes que o nativo

Nada resolveu por si;

Tu negas ao guarani,

Qualquer personalidade;

Sua cabeça e sua vontade,

Não têm valor para ti.

156

Achas que o índio lutou,

Só por ser catequizado

E viver fanatizado,

Nas rédeas de “agitadores”,

Os jesuítas, seus tutores,

Que o teriam dominado...

157

Que me dizes, entretanto,

Do guerreiro não cristão,

Que lutou na mesma ação,

Como o Guênoa e o Minuano,

Por sentir o mesmo dano,

Que o guarani, seu irmão?

158

Esses índios cavaleiros,

Não eram catequizados,

Não podiam ser levados

Por cabeça de terceiros –

Eram os mais altaneiros,

Dos guerreiros indomados.

159

Sem a ajuda de ninguém,

Por dois anos nas guerrilhas,

Os centauros das coxilhas

Já sabiam sua lição,

Pois o amor ao pátrio chão,

Descobre suas próprias trilhas!...

160

Com isso eu dou por provado,

Que a luta – o duro caminho –

O índio escolheu sozinho,

Preferindo a resistência,

Contra o abuso e a prepotência,

Por sentir na carne o espinho!

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Mário Matos Identidades Ameríndias 96

161

Entre todos os caciques,

Tiaraju se agigantou,

Pois foi ele que ponteou,

Naquele primeiro instante,

Dos guaranis o levante

E que à luta os comandou.

162

Foi ele quem pôs em fuga

E derrubou todo o plano,

Do tal padre Altamirano,

Esse que era o pau mandado,

Para aplicar o Tratado,

Contra o índio americano.

163

Foi Sepé que, logo após,

Noventa léguas andou

E com sua Força embargou

Os primeiros invasores,

Soldados e agrimensores,

Que em Santa Tecla encontrou.

164

Ficou na História gaúcha,

Aquele brado altaneiro

Do caudilho missioneiro;

- Alto! Esta terra tem dono!

E o nativo com entono,

Fez recuar o estrangeiro.

165

Foi enfim o Tiaraju,

O incansável lutador,

Que em dois anos, por amor

Da sua gente e da sua terra,

Pôs o pampa em pé de guerra,

Sem dobrar-se ao invasor.

166

Sua morte não foi em vão,

Foi salto de qualidade,

Pois nunca morre em verdade,

Quem nos dá tão grande exemplo:

Montado ele está, no templo,

Dos Heróis da Liberdade!...

TERCEIRA PARTE

A entrega do prêmio;

Blau evoca o encontro de Sepé e Gomes Freire;

O destino do prêmio.

A ENTREGA DO PRÊMIO

167

Vibra o Parque do Rodeio,

No dia da despedida;

A gineteada é renhida;

E, lá nas arquibancadas,

As vistas estão voltadas,

Pra uma cena sacudida.

168

Urrando como um demônio

E corcoveando volteado,

Este bagual colorado

Já derrubou muita gente,

Mas parece que o valente,

Agora, está bem montado.

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Décima de Sepé Tiaraju 97

169

Co´a mão esquerda na crina

E a outra mão reboleando,

O ginete rodopiando,

Não perde aprumo no espaço

E as pernas são como um aço,

No costilhar se fechando.

170

Quando o bicho, que é maleva,

Por refugar a parada,

Se atira noutra negada

E vai à terra de plancha,

O gaúcho em pé deslancha,

Folheiro, de rédea alçada!

171

Levantam-se aclamações,

Para aquele topetudo,

Que dominara o clinudo,

Com fibra de um veterano;

E foi a vez do Açoriano

Sair da cancha com tudo!...

172

Quem também tirou sua lasca,

Foi o Chiru Missioneiro,

Que, num bragado ligeiro,

Cerrou mui lindo o seu laço,

Nas aspas de um boi picaço,

Depois de um tiro certeiro.

173

Mas o encanto da platéia

Foi nas provas de destreza,

Presenciar a ligeireza

Do velho Blau vaqueano,

Num rosilho rabicano,

Estribando com firmeza.

174

No matungo de sua rédea,

O velho é um quebra largado,

Que corta reto ou quebrado

E, ao voltear cada baliza,

Nem deixa rastro onde pisa,

Num galope costurado!...

175

Velho Blau não tem cavalo –

É de um amigo o rosilho,

Que adestrou desde potrilho;

Tropeiro de profissão,

Ele é a própria tradição,

Sempre em cima de um lombilho.

176

Chega ao seu fim o rodeio:

A tarde morre na pista;

Quem stava ali de turista,

Vai logo se retirando,

Mas o povo, ali ficando,

Tem outro programa em vista.

177

Em volta do acampamento,

Chega gente de montão,

Pra esperar a comissão,

Que vai dar o resultado

Do desafio encerrado,

Outra noite, no fogão.

178

No fundo de uma barraca,

Há um prêmio que ninguém viu,

Guardado pra o desafio;

Uns dizem que é coisa fina,

Mas o peão lá da cortina,

Não conta a ninguém um pio.

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Mário Matos Identidades Ameríndias 98

179

A lua no firmamento,

Sua claridade estendia,

Sobre o pampa, em Vacaria;

E nas nuvens que passavam,

Os gaúchos enxergavam,

Mil e uma fantasias...

180

– Ali vai, no Pastoreio,

O Negrinho e sua Tropilha!...

Vejam só que maravilha!...

– E aquele gigante nu?

É o Sepé Tiaraju,

Em combate, na coxilha!...

181

Proseando e tomando mate,

Rodeando o grande fogão,

Esse pessoal folgazão,

Fica sério por encanto,

E faz um silêncio e tanto,

Quando chega a comissão.

182

Vem na frente o Vacariano,

Que logo passa a anunciar:

– Tenho a honra de saudar,

Nossos guapos trovadores

E peço aos dois contendores

Que venham se apresentar!

183

E diante dos dois torenas,

Que se haviam cotejado,

Ele apontou ao seu lado

Os jurados do fogão,

Gaúchos de tradição,

Dos quatro cantos do Estado:

184

– Eu e estes quatro parceiros

Tivemos, desde o começo,

De avaliar com muito apreço,

Este debate tão raro

E a todos nós muito caro,

Que em verdade não tem preço.

185

O julgamento foi feito,

Pensando em toda a nação;

Por isso, nenhum senão

Pudemos acrescentar,

Ao que já soube julgar

O povo deste fogão.

186

O Açoriano trovou bem

E mostrou ter valentia,

Teve até categoria;

Mas faltou na sua rima,

Aquela força que anima,

Chamada democracia.

187

O Missioneiro foi claro,

Nos dando todo elemento,

Pra entender seu argumento –

E sua visão da História,

Na trova teve a vitória,

Merecendo acatamento!...

188

No meio do barulhão,

Da alegria que estourou,

Vacariano autorizou,

No ouvido do capataz,

Pra trazerem lá de trás

O prêmio pra quem ganhou.

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Décima de Sepé Tiaraju 99

189

Perceberam no fogão,

Alguém, que a pua sentia

E lá pra fora saía:

Não sabendo levar cano,

O orgulhoso do Açoriano

Se foi embora à lá cria...

190

Ninguém vaiou nem se riu

Da atitude do rapaz,

Que afinal, sabe o que faz,

E o pessoal agora olhava

O prêmio que já chegava,

Da barraca lá de trás.

191

O pingo que ali surgia,

Não se tinha visto igual;

Que pintura de animal!

Gateado de frente aberta,

Olho vivo e orelha esperta,

Crioulo puro e especial!

192

Com pilchas de qualidade,

Já vinha o flete encilhado:

Coberturas de veado

E as tranças de couro cru,

Do feitio de Canguçu –

Tudo forte e delicado!...

193

Num clarão onde ficou

Pra o povo poder olhar,

O gateado a relinchar,

Parece até que sabia,

Que tinha a categoria

Da sua raça pra mostrar!

194

Se surpresa teve o povo,

Maior teve o Missioneiro,

Que até ficou caborteiro,

De um prêmio assim cobiçado,

Pra quem stava calejado

De trovar o tempo inteiro.

195

Mas se o chiru duvidava,

Teve ali confirmação,

Por parte da comissão,

Que tudo no acampamento

Constou do regulamento

Do centro de tradição.

196

Missioneiro se acalmou;

E, enquanto o povo aplaudiu,

Beijou o potro e sorriu,

Respirou fundo um pedaço

E então, levantando o braço,

Que lhe escutassem pediu:

197

– Um pingo deste quilate,

Parece até, minha gente,

Regalo pra Presidente;

Mas tenho a satisfação

De saber da Comissão,

Que é prêmio, não é presente!

198

Se o presente é compromisso,

O prêmio dá liberdade;

E eu tenho a felicidade

De dispor desse direito,

Que me deram neste pleito,

Para um ato de vontade.

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Mário Matos Identidades Ameríndias 100

199

Amo um cavalo de lei,

Por Deus e um patacão!

Com este pingo e um violão,

Qualquer gaúcho é Monarca;

Mas deixo o bicho orelhano

E aqui chamo o Blau Vaqueano,

Pra que lhe ponha sua marca!

200

Tendo à frente o velho Blau,

Que veio quase empurrado

Pelo povo entusiasmado,

O chiru, com forte abraço,

Fez a entrega do pingaço

Para o amigo admirado:

201

– Aqui está, tropeiro velho,

Vê se este pingo te agrada;

Eu não sou nenhuma fada:

Só agradeço à comissão,

Por ter me dado ocasião

De fazer esta gauchada.

202

Tu com o teu guapo cantar

Já provaste merecer;

Mas terei grande prazer,

Se esta noite em despedida,

Deres outra sacudida

Na História, com teu poder!...

203

Conta pra nós, índio velho,

Com teu violão que não erra,

Mais passagens dessa guerra,

No tal passo do Jacu,

Que mostrem o Tiaraju

Em ação, por esta terra!...

204

Velho Blau stava parado,

Vendo tudo acontecer,

Pensando no que dizer;

E notaram que o tropeiro

Tinha na vista um argueiro,

Que não dava para esconder...

205

Talvez ele recordasse,

Maneado pela saudade,

Os tempos da mocidade;

Ou talvez fosse surpresa

Com tanto valor e alteza,

Pra um pobre da sua idade...

206

Mas sem se dar por achado

Disse sorrindo o tropeiro:

– Este Chiru Missioneiro,

Me dando assim num pialo

Esse mimo de cavalo,

Foi mais que um cavalheiro!

207

Não me abro por enquanto

E agradeço o seu presente –

Também não sou presidente;

Por isso, findando a trova,

Pretendo lhes dar a prova,

Do que eu penso realmente.

208

E o velho Blau Vaqueano,

Depois do trago espumoso,

De um mate quente e gostoso,

Passa adiante o chimarrão

E já dedilha o violão,

No seu trinado harmonioso:

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Décima de Sepé Tiaraju 101

BLAU EVOCA O ENCONTRO

DE SEPÉ E GOMES FREIRE

209

– A História de nosso pago,

Torno a cantar neste pinho;

Cantei a rosa e o espinho,

Cantei a morte que dói;

Canto agora, vivo, o Herói,

Nas trilhas do seu caminho.

210

Subindo pelo Jacuí,

Vem a força portuguesa,

Que, vencendo a correnteza,

Quer atingir as Missões;

E, no Rio Pardo, os dragões

Encravam sua fortaleza.

211

No comando lusitano,

Vem um chefe de nomeada

Da colônia encastelada

Nas sedes do Litoral: –

É o Vice-Rei, General,

O Gomes Freire de Andrada.

212

Para lutar contra o Forte,

Se agrupam os guaranis

Do Povo de São Luís,

Que vai à guerra com ânsia,

Pois o Rio Pardo é estância

E agora está por um triz.

213

A luta fica parelha

Quanto a maior Redução –

São Miguel – entra em ação:

O índio cresce em potência

E ataca com mais freqüência

A patrulha e o pelotão.

214

Perdendo vários soldados

Flechados pelos nativos,

Os coloniais vingativos

Usavam a artilharia,

Mas o índio já respondia

Com seus canhões primitivos.

215

Inventados nas Missões,

Pra enfrentar os bandeirantes,

Eram trabucos gigantes,

Feitos de grosso bambu,

Forrados de couro cru

E arcos de ferro abraçantes.

216

Por meio dos oficiais,

Gomes Freire toma ciência

Da bravura e da insolência

Dos guaranis em ação

Tendo à frente um Capitão

De invulgar inteligente.

217

Eles tomaram do Forte,

Numa audaciosa sortida,

A cavalhada reunida,

Que pastava num rincão,

Deixando ali pelo chão,

A ronda toda estendida.

218

As buscas que foram feitas

Não tiveram resultado;

Mas vendo o esforço baldado,

O comando português

Jogou sujo dessa vez,

Pra ter o índio enrascado.

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Mário Matos Identidades Ameríndias 102

219

Propondo uma Conferência,

É hasteada bandeira branca –

Dos índios, lá na barranca,

É chamado o Capitão –

E o Forte abre seu portão

De covil da Salamanca.

220

Pela honra militar,

Que julgava ser sagrada

E nunca desrespeitada,

O chefe dos missioneiros,

Com cinqüenta companheiros,

Entra... e cai nessa cilada.

221

Diante dos índios cativos

Já destinados à morte

Gomes Freire crê na sorte

E resolve outra cartada:

– Vamos trocar esta indiada,

Pelos cavalos do Forte!...

222

Um pelotão bem armado,

De manhã cedo partiu;

E, ao chegar um largo rio,

Vai dali fazer uma proposta

Aos índios da banda oposta,

Que lá estão em desafio.

223

Pra fazer a mediação,

Na barraca é colocado

O cacique, nu, montado

Sem esporas e de em pêlo,

Para servir de sinuelo,

Naquele aparte encrencado.

224

Queriam os portugueses

Que o índio, dessa distância,

Explicasse a extravagância,

De gente valer cavalo;

E o cacique, sem abalo,

Zomba dessa ignorância

225

– Sem passar pra o outro lado

E com eles conversar,

Como posso negociar?

O intérprete traduziu

E o pelotão todo riu:

– O que ele quer é escapar!...

226

Indiferente ao motejo,

Sorriu o índio altaneiro

E retruca em tom brejeiro

– Se eu quiser com eles ir,

Ninguém pode me impedir,

Mesmo estando em cativeiro!

227

Ante a barranca do rio

Vendo o leito largo e fundo,

O lusitano jacundo

Desata na gargalhada:

– Só pode ser patacoada,

Coisa de índio vagabundo!

228

– Diz então, seu fanfarrão,

Fugir, como podes tu?

– Assim! – diz o índio nu.

E fincando o calcanhar,

Com a rédea a fustigar,

Já se escapa a Tiaraju!...

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Décima de Sepé Tiaraju 103

229

Vai pela beira do rio:

E atrás dele, um alarido –

Grito, galope, estampido,

As balas passando perto,

Mas chega a um mato coberto,

Desmonta e corre escondido...

230

Pagam caro os portugueses

Seu orgulhoso desdém,

De achar que o índio é ninguém;

Sepé lhes leva vantagem,

Pois notara na viagem,

Que o matungo andava bem!

231

No mato não tem mais jeito

De acharem o fugitivo;

Ele sumiu nesse crivo

E lá, num ponto afastado,

Atravessa o rio a nado

E volta aos seus, são e vivo!...

232

Foi esta a primeira vez,

Que o soberbo general

E vice-rei colonial,

Contra a sorte blasfemou;

E contra o índio jurou

Dar combate até o final.

233

Gomes Freire quer juntar

As forças com seu aliado,

O Espanhol lá do outro lado,

Pra espatifar as Missões,

Entre as duas legiões

E esse plano está atrasado.

234

É que Sepé já voltou

E, com seu tino e clareza,

O índio luta com firmeza

Emboscando aos espanhóis

Que ficam em maus lençóis

E recuam pra a defesa.

235

Mas Gomes Freire tem pressa

E não pode esperar mais:

Já trouxe muitos casais,

Dos Açores, pra ocupar

As terras que quer tomar

Desses índios infernais.

236

Ele corre ao litoral,

Consegue reforço urgente

E volta de ânimo quente:

Mil e seiscentos soldados,

No Rio pardo são treinados,

Para a tal Segunda Frente.

237

É uma força bem armada –

Muitos canhões e artilheiros,

Esquadrão de fuzileiros,

Dragões de Cavalaria,

Escravos, Infantaria,

E um corpo de Granadeiros.

238

Já pela entrada do inverno,

O exército deixa o Forte,

Avançando em rumo Norte,

Pelas margens do Jacuí:

Quer levar o Guarani

Pra uma cilada de morte...

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Mário Matos Identidades Ameríndias 104

239

Muitas léguas são andadas

E o índio não dá sossego:

De noite, é como morcego

Avança sem fazer bulha

E vai sangrando a patrulha –

Quem dorme, arrisca o pelego...

240

A chuvarada caindo,

Torna mais dura a jornada,

Pois só tem várzea alagada;

E crescem as investidas

Das indiadas destemidas,

Sobre a tropa desgastada.

241

Bem acima do Rio Pardo,

O rio Jacuí forma um passo,

Que dá vau sem embaraço.

Chegando nesse lugar,

Faz Gomes Freire parar

Seu exército em rechaço.

242

Examinando o remanso,

Ele fica entusiasmado,

Achando o Passo ajeitado,

Pra a Tropa esperar o sol

E a chegada do Espanhol,

No encontro já combinado.

243

Se acampam os portugueses,

Dos dois lados do regato;

Por ali tem muito mato

E eles arranjam madeiras:

Seus ranchos cobrem as beiras

Do Passo, raso e pacato.

244

Tudo pronto pra o massacre

E a conquista das Missões;

Só falta que os batalhões,

Que Adonaegui comanda,

Surjam lá da outra banda,

Pra falarem os canhões...

245

Mas o tal de Adonaegui –

O general espanhol –

Demora a vir como o Sol –

Que os guaranis de Sepé

Não afrouxam de seu pé:

E ele anda num caracol...

246

Cá no Jacuí, Gomes Freire,

Se vê de novo em rodeio,

Com esse inverno tão feio:

A enchente de São Miguel,

Vem com chuvas de tropel

E o Passo se torna cheio.

247

Acaba todo o conforto

No acampamento inundado;

Tudo ali fica encrencado,

Desde as armas à comida;

Muita pólvora perdida,

Muito animal afogado.

248

A disciplina da tropa

No calcanhar vai caindo;

Tem soldado até fugindo,

Mas é morte a deserção:

O índio não tem compaixão,

Daquele que está invadindo.

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Décima de Sepé Tiaraju 105

249

Foi esta a segunda vez,

Que o vice-rei orgulhoso,

Mandou pra os ares raivoso,

Maldições, ao índio e ao santo,

Por terem furado tanto

Seu plano tão ambicioso.

250

Mas o nobre português,

Ao se ver sitiado assim,

Não desiste do seu fim

E imagina outra manobra:

Esconde a pele da cobra

E veste a do graxaim.

251

Resolve jogar paciência,

O ardiloso general;

E escreve pra o litoral,

A Adonaegui avisando,

Que ele ainda está contando

Com a ofensiva geral...

252

A força do Tiaraju,

Ele sente a cada dia;

E ganhar tempo queria:

– O Índio tem de ser dobrado,

Antes de eu ser derrotado,

No meio desta água fria...

253

Por isso manda um convite,

Por dois índios prisioneiros,

Que solta de mensageiros,

Pra que o chefe da guerrilha,

Sem perigo de armadilha;

Apareça em seu terreiro.

254

A resposta do cacique,

Não se faz muito esperar:

Sepé manda recusar,

Pois ele tem a experiência

De uma certa conferência,

Que o luso não soube honrar.

255

Mas Gomes Freire, insistindo,

Reforça suas garantias

E encarece as regalias

Que pretende oferecer,

Buscando se engrandecer,

Co’um montão de fidalguias.

256

Esta nova conferência,

Ele não pensa em trair;

O que ele quer é iludir,

Impressionar na aparência

E ostentar uma potência,

Pra mandar e não pedir.

257

A notícia se espalhando,

Leva o nativo a sonhar:

– Quem sabe ele vai mudar?...

Pode ser que venha a paz,

Se o invasor voltar atrás

E as nossas terras deixar...

258

Por sua gente, o Tiaraju,

Ao convite enfim topou:

Marcado, o encontro ficou;

E Gomes Freire contente,

Começa a cuidar do ambiente,

Pra a cena que planejou.

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Mário Matos Identidades Ameríndias 106

259

Num descampado da margem,

Onde vai longe a visão,

Põe-se um tapete no chão,

Estendido como esteira;

E no centro, uma cadeira,

Pra o general ter função.

260

De pé, nos cantos do quarto,

Cabos lusos bem armados,

Ficam de guarda, estaqueados;

E, à distância do tapete,

Montam dragões, num piquete,

De bigodões bem criados.

261

Pra completar o cenário,

Por detrás dos tais dragões,

Enfileiram-se uns canhões

E dois soldados no meio,

Como pra fazer receio

Da comédia e dos bufões.

262

Vestido com imponência,

Toma assento o general,

Como se fosse o Cabral,

A chegar nestes Brasis –

E aguardando os guaranis,

Adota um ar imperial.

263

Eis que os índios aparecem,

Lá de longe, entropilhados:

São muitos e bem montados;

Com suas lanças rebrilhando,

Eles vêm se aproximando,

Até que ficam parados.

264

Na distância já medida

De quatro quadras tapadas,

Se apartam daquela indiada,

Dez cavaleiros valentes;

E o Tiaraju bem na frente,

Vem pronto pra a campereada...

265

Não tem luxo a vestimenta

Do cacique missioneiro:

É igual à do companheiro;

Mas nessa simplicidade,

Transparece a majestade

Do seu porte sobranceiro.

266

Olhando de seu tapete,

Gomes Freire está receoso,

Daquele grupo animoso;

E vendo o brilho das lanças,

Teme pela segurança

De seu trono tão pomposo.

267

Manda o intérprete correndo,

No encontro do visitante,

Com a ordem terminante

De largarem o armamento:

Não conta co’o atrevimento

Daquele índio arrogante:

268

– Por que largar nossas armas,

Se o que eu vejo lá na frente

É o general e a sua gente,

Com armas de toda a laia? –

E atropelando na raia,

Eles chegam juntamente.

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Décima de Sepé Tiaraju 107

269

Esbarram frente ao tapete;

E apenas um cumprimento:

– Viva o Santo Sacramento!

Parte do Índio cristão,

Que com jeito secarrão,

Na prosa não faz aumento.

270

Gomes Freire ouvindo isso,

Já respira aliviado,

Mas inda está contrariado,

Tendo à frente esse caudilho,

Que não desce do lombilho,

Enquanto ele está sentado.

271

O intérprete, já cancheiro,

No ofício de cortejar,

Convida o índio a apear,

A fim de beijar a mão

Do general sentadão;

E a resposta é de renguear:

272

– A mão do teu general,

Beijar a troco de quê?...

Acaso o teu chefe crê,

Que eu estou na terra dele?

Na minha terra está ele –

E ele é cego se não vê!...

273

E diz ao teu general,

Que não apeio pro chão,

Nem vou lhe beijar a mão!...

Prá o vice-rei habituado

A ser em tudo acatado.

Aquilo era um bofetão...

274

Conservando a majestade,

Gomes Freire inda faz pouco:

– Pode dizer a esse louco,

Que ele é um bárbaro total.

– Mais bárbaro é o general,

Retruca o índio de soco.

275

Depois dessa introdução,

Que não foi nada cortês,

Fala o índio ao português,

No assunto que o traz ali,

Mostrando que o guarani

Joga limpo na altivez:

276

– General, vim te dizer,

Que o Espanhol voltou em paz;

Se a tua tropa volta atrás,

Terá mesmo tratamento,

Levanta esse acampamento,

Que isso é o melhor que tu faz!...

277

Mas Freire não acredita,

Que Adonaegui voltou:

Acha que o Índio enganou;

A paz não quer negociar,

Por isso volta a ameaçar:

– Pra os Sete Povos eu vou!...

278

E queima campo em grandeza:

– Tenho soldados mui bravos,

Canhões, cavalos e escravos;

Nada pode me deter!

Quem teima em me combater,

Vai sentir meu desagravo!

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Mário Matos Identidades Ameríndias 108

279

– Se tu tens bravos soldados,

Tenho valentes também;

Mas então me explica bem,

Por que é que aqui me chamaste

E tanto tempo gastaste,

Esperando a quem não vem?...

280

Ante a agachada do índio,

O general se amoitou

E logo de tom mudou,

Falando em promessas quentes

E oferecendo presentes,

Que o cacique recusou.

281

E o fidalgo português,

Se vendo sem argumento,

Pega naquele momento

Uma caixa bem lavrada;

Tira dali uma pitada

E leva ao nariz sedento.

282

É rapé, coisa mui fina,

Da nobreza colonial,

Que o educado general,

Pelo intérprete, oferece,

Pra ver se Índio agradece

Aquela honra especial.

283

Mas sai-lhe pela culatra

Esse tiro macanudo,

Pois o Índio topetudo,

Já desconfiado daquilo,

Não liga a nenhum estilo

E responde carrancudo:

284

– Sai daqui, escravo tonto,

Leva a caixa a teu patrão,

Que eu não tenho precisão

Do seu tabaco encardido;

Tenho melhor e sortido

Lá na minha Redução!...

285

– “Ya há” – diz aos companheiros,

Ou seja – Vamos daqui!

E o piquete guarani,

Cerrando espora às montadas,

Deixa atrás suas pegadas,

Sem mais que fazer ali...

286

Dias depois desse encontro,

Desce a várzea um cavaleiro

É um chasque muito ligeiro,

Que chega no acampamento,

Pra entregar um documento

E se escapar do aguaceiro...

287

O general abre a carta,

Que Adonaegui lhe manda,

Avisando da outra banda,

Que a Buenos Aires voltou,

Porque o índio não deixou

Ele entrar na sarabanda...

288

A carta ainda aconselha

A Gomes Freire recuar

E ao Rio Pardo regressar:

A idéia do castelhano,

É fazerem novo plano,

Já que este vai fracassar...

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Décima de Sepé Tiaraju 109

289

E agora em terceira vez,

Se maldiz o comandante:

– A um índio tão petulante,

Errei em não ter matado;

E esse Espanhol, meu aliado,

Não passa de um vacilante!...

290

Isolado e sem recursos,

No alagado acampamento,

Tem o exército em tormento,

Pois já avança o guarani

E ataca, daqui e dali,

Cada vez mais violento.

291

É assim que o Gomes Freire,

O imponente português,

Chega na hora e na vez

De ir ao índio em sacrifício

E lhe pedir armistício,

Com toda a desfaçatez.

292

Da aventura no Jacuí,

O general sai perfeito,

Embora de água no peito;

Tira partido, o sagaz:

Recolhe sua tropa em paz,

Que o índio só quer respeito...

293

O nativo não percebe,

Que essa luta é sem quartel

E que o estrangeiro cruel,

Às terras não renuncia –

Prepara com teimosia,

O bote da cascavel...

294

Tiaraju ficou visado,

Pra aqueles donos da vida,

Com a lição aprendida:

– É preciso ser cortada

A cabeça dessa indiada,

Pra se ganhar a partida...

295

Gomes Freire e os espanhóis,

Como contei no começo,

Pagaram todo esse preço,

Mas mataram o Sepé;

E logo, no Caiboaté,

Massacraram, sem tropeço.

296

Depois, a grande coluna,

Invade em triunfo as Missões,

Mas ardem as Reduções:

Ao perder as liberdades,

O índio queima as suas cidades,

Pra receber os ladrões.

297

Gomes Freire, em Portugal,

Recebe muita honraria

E o próprio Rei o agracia,

Com a comenda mui bela,

De conde de Bobadela,

Pela sua valentia.

298

Até um valente se achica,

Quando sente um povo em luta

E Freire ao fim da disputa,

Temeu do índio a vingança

E perdeu até a confiança,

De saborear a sua fruta.

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Mário Matos Identidades Ameríndias 110

299

Alegando não ter paz,

Para povoar as Missões,

Não ocupa as Reduções –

Entrega tudo pra Espanha,

Leva a pior na barganha,

Joga fora as condições.

300

Quando a sede do Rio Grande

Cai, na mão do castelhano,

Freire vê perdido plano,

Que montara, no seu posto:

E morre, só de desgosto,

O militar lusitano...

301

Mas já sopram novos ventos,

Neste império colonial;

E o gaúcho nacional

Já cavalga à luz do sol,

Derrotando ao espanhol,

Sem esperar Portugal.

302

Vão vencer cinqüenta anos

Do massacre em Caiboaté

E da morte do Sepé:

Nas missões, o castelhano,

Aquartelado, é um tirano

Em que o índio não tem fé.

303

Já sentem os brasileiros

Seu destino de Nação:

Tomam as rédeas na mão,

Pra ocupar o território;

E fazem preparatório,

Vendo chegada a ocasião.

304

Um gaúcho lá do campo,

Que desertou do Rio Pardo,

Pra os portugueses, um fardo,

É quem comanda a campanha;

E nessa luta o acompanha,

O miliciano bastardo.

305

Esse punhado de guascas,

Que não passa de uns oitenta,

Com os índios logo aumenta,

Contra o espanhol nas Missões;

E, em bravas operações,

O seu domínio arrebenta.

306

Do finado Gomes Freire,

Anos depois da matança,

Teve o índio sua vingança:

Sem render-se ao estrangeiro,

Só se une ao brasileiro,

Sendo o fiel da balança!...

307

Foi essa aliança firme,

Entre o índio primitivo

E o branco, já bem nativo,

Que plantou, neste Rio Grande,

A Tradição, que se expande,

Tendo a raiz por motivo.

308

E é por isso que este povo

Jamais esquece o Sepé:

O índio está na sua fé;

E o Rio Grande comovido,

Cantará sempre atrevido,

Aos bravos de Caiboaté!...

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Décima de Sepé Tiaraju 111

O DESTINO DO PRÊMIO

309

O calor da aclamação

Esquentou a noite fria,

Do fogão, em Vacaria:

– Viva Sepé Tiaraju!...

Esse Blau tem caracu!...

Eram brados que se ouvia.

310

O carinho da gauchada

Cercava o Blau trovador,

Que, com alma e com vigor,

Na sua simplicidade,

Semeava claridade,

Na história, com tanto amor.

311

Insistia a mocidade,

Que no pingo ele montasse:

E o velho deu-lhe um repasse,

Mostrando, com galhardia,

Que o gateado obedecia,

Em tudo o que convidasse.

312

Descendo, Blau confirmou,

Que o potro era macanudo:

– É de lei, este colhudo;

De patas, tem movimento;

E de rédea é um pensamento,

Quem o domou já fez tudo!...

313

Sem conter seu entusiasmo,

O velho, conhecedor,

Desfilava, com amor,

As qualidades do flete;

Mas ele estava num brete,

Co’o coração em penhor!...

314

– Eu lhes tinha prometido

Revelar, depois da trova,

Do meu pensar, uma prova;

E é deste lindo presente,

Se o Missioneiro consente,

Que eu abro, em proposta nova:

315

Este pingo que aqui está,

Pra quem tenha criação,

É um valioso garanhão:

É só um grito a gente dar,

Pra um dinheirão alcançar,

Na primeira exposição...

316

A proposta do Vaqueano

Era fora do comum;

E até correu um zum-zum:

– Que será que ele pretende?

Um pingo assim não se vende,

Por prata ou ouro nenhum!...

317

Mas velho Blau insistiu,

Que ouvissem seu argumento:

– O uso que eu apresento,

Pra o valor que se alcançar,

É pra a gente colocar,

Em favor de um monumento...

318

É esse o fim que eu proponho:

Um monumento a Sepé

E aos índios de Caiboaté,

Que tem sido tão falado,

Mas nunca foi realizado

E é tempo de pôr em pé!

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Mário Matos Identidades Ameríndias 112

319

Vamos gravar nossa História

Sem cartilhas de encomenda,

Que ninguém vai botar venda

No povo, pra que não pense;

Não é cego o rio-grandense,

Tem Sepé na sua legenda!

320

Com a mais pura amizade,

Eu te peço, Missioneiro:

Perdoa, se fui grosseiro,

Em dispor do teu presente;

É pra dar a um Presidente:

Sepé, Gaúcho Primeiro!...

321

Do rodeio já encerrado,

Com sol alto, no outro dia,

De mala e cuia eu saía;

Vi, abanando pro meu lado,

Um piquete entropilhado,

Que alegre se despedia.

322

Poucos trabalhos vendi

E isso pouco me rendeu;

Mas por pouco, até que deu

Pra viajar de volta ao pago;

E, das lembranças que eu trago,

Minha vida se aqueceu...

01/03/1982

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Décima de Sepé Tiaraju 113

Apêndices

I – Bibliografia

ALBUQUERQUE, Manuel Maurício de. Conde de Bobadela. In: Enciclopédia

Mirador Internacional, São Paulo, 1974, p. 1432.

BERNARDI, Mansueto. O primeiro caudilho rio-grandense. Fisionomia do

herói missioneiro Sepé Tiaraju. Porto Alegre: Globo, 1957. Reedição Sulina,

Porto Alegre, 1981.

FORTES, General Borges. Cristóvão Pereira de Abreu. In: Revista do Instituto

Histórico e Geográfico do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 1951, p. 131-161.

LUGON, Clovis. A república comunista cristã dos guaranis. Rio de Janeiro:

Paz e Terra, 1977.

PINHEIRO, José Feliciano Fernandes. Anais da Província de São Pedro. Pe-

trópolis: Vozes, 1978.

PORTO, Aurélio. História das Missões Orientais do Uruguai. Porto Alegre:

Livraria Selbach, 1954.

SILVEIRA, Hemetério José Velloso da. As Missões Orientais e seus antigos

domínios. Porto Alegre: Livraria Universal, 1909. Cf. fac-similar, Porto Alegre:

ERUS, 1979.

VELLINHO, Moisés. Capitania Del Rey. Porto Alegre: Globo, 1970.

II – Glossário de termos regionais ou históricos

Observação – A bibliografia consultada para os termos gaúchos deste glossário

consta no Vocabulário sul-riograndense. Porto Alegre: Globo, 1964; a abrevia-

ção s.f., empregada em vários verbetes, quer dizer sentido figurado.

A la cria – ao Deus dará, à aventura.

Achicar-se – intimidar-se, encolher-se, apequenar-se.

Açoriano – personagem que encarna a descendência da corrente migratória dos

casais açorianos, uma das que povoaram o Rio Grande do Sul. Agachada – s.f. – façanha, proeza, dito chistoso ou extravagante.

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Mário Matos Identidades Ameríndias 114

Apotrar-se – tomar manhas e jeito de potro – s.f. – engrossar.

Aragano – irrequieto, afoito, indisciplinado.

Armada – roda quase sempre grande que se faz com o laço quando se vai atirá-

lo, ou dar o “tiro de laço”.

Bagual – animal cavalar xucro ou recém-pegado.

Bolas, boleadeiras – arma ou instrumento de apreensão, formado de três esfe-

ras de pedras ou ferro, envolvidas em couro cru e que se ligam entre si por

correias do mesmo material, trançado.

Bragado – pelagem de cavalo, vermelho com manchas brancas bastante desen-

volvidas, pela barriga. Geralmente tem a frente da cabeça, mãos e patas

brancas.

Brete – corredor estreito de contenção de animais. Tronco.

Caborteiro – cavalo arisco, que é capaz de velhaquear, corcovear – s.f. – des-

confiado, propenso a dar bronca.

Campereada – o mesmo que campeireada. Trabalho de campo com o gado –

s.f. – desafio à coragem, habilidade ou destreza.

Cancheiro – s.f. – experiente, acostumado com a cancha.

Canha – o mesmo que cachaça, aguardente de cana.

Chasque – antigo mensageiro, correio, estafeta.

Chimarrão – mate-amargo, bebida das áreas gauchescas sul-americanas.

Chiripá – veste rústica, antecessora da bombacha, espécie de fralda que fazia as

vezes de calça, vestido sobre a ceroula. O pesquisador uruguaio Fernando O.

Assunção (Pilchas Criollas, Ed. Comissão Sesquicentenário de 1825-1976)

atribui e fundamenta a origem do chiripá, às Missões Jesuíticas dos Sete Po-

vos.

Chiru – tipo índio ou indiático. É vocábulo de origem guarani, que significa

“meu companheiro” (cheyru). O diminutivo é chiruzinho ou piá.

Clinudo – diz-se do cavalo, geralmente bagual, que tem crinas longas, sugerin-

do ser agreste e bravo.

Dragão – soldado da antiga cavalaria colonial.

Entono – arrogância, atitude de desafio.

Entrevero – luta corpo a corpo – s.f. – mistura, confronto de resultado imprevi-

sível.

Estância – área ou estabelecimento de criação de gado. As estâncias missionei-

ras tinham como sede, rancho, curral e capela, abrangendo áreas que hoje

são vários municípios gaúchos.

Estropiado – diz-se do animal que está sentido dos cascos, devido à aspereza

do terreno ou longa marcha.

Fandango – baile antigo, compreendendo um elenco de danças, hoje do folclo-

re gauchesco, inclusive das áreas do tropeirismo.

Flete – cavalo em geral, ou cavalo bonito e bom.

Fogão – grande fogo que se ateia ao chão e onde se reúnem os tropeiros e gaú-

chos para se aquecer e assar os seus churrascos. É o centro da reunião dos campeiros e gaúchos.

Folheiro – elegante, airoso, garboso.

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Décima de Sepé Tiaraju 115

Gateado – pelagem típica do cavalo crioulo (bege).

Gaúcho do Campo – índio do campo sem domicílio certo. Muitos aventureiros

paulistas e desertores do Regimento de Dragões de Rio Pardo aderiram a es-

se tipo, devido à preia do gado alçado, tornando-se gaúchos do campo (Sé-

culo XVIII).

Ginete – cavaleiro. Qualidade de montar bem.

Gineteada – ato de montar animal corcoveando.

Graxaim – o mesmo que guaraxaim. Variedade de raposa ou lobo dos pampas,

daninho roedor de cordas de couro cru e predador de aves domésticas. Sim-

boliza a astúcia. Também conhecido como sorro.

Gringo – o estrangeiro, menos o português e o hispano-americano.

Guapo – animoso, firme e otimista. Disposto.

Guasca – cordas ou tranças de couro cru – s.f. – gaúcho, forte.

Índio – no Rio Grande este termo não se limita ao aborígine em particular, mas

também ao peão gaúcho em geral.

Laço – conhecido instrumento de apreensão do gado, feito de trança de couro

cru e uma argola de metal.

Lombilho – peça principal dos arreios ou apeiros sul-americanos.

Luz – espaço de terreno que um dos parelheiros, numa corrida, leva de dianteira

ao outro. Tirar luz, é tomar a dianteira ao competidor – s.f. – pedir luz, é pe-

dir vantagem inicial.

Macanudo – bom, superior, excelente, de primeira.

Maleva – mau, perverso. Diz-se do cavalo de mau instinto ou dado a corcovear

de mau jeito.

Marca quente – o novilho recém-marcado investe às cegas – s.f. – estar de

marca quente é estar bravo.

Matungo – embora designando inicialmente o cavalo velho, gasto, imprestável,

o termo tendeu a estender-se a todo o cavalo manso e de bom préstimo.

Miles – milhares.

Monarca – é sinônimo do gaúcho em sua mais alta significação, pois refere-se

exclusivamente ao que monta com garbo e elegância em montaria à altura do

montador.

Orelhano – diz-se do animal que ainda não foi assinalado e tampouco marcado

– s.f. – deixar orelhano um animal é não tomar posse do mesmo.

Pago – o mesmo que lar, lugar onde a gente mora.

Pampa – designação dada às campinas do Rio Grande do Sul. É também usado

em designação de pelagem do gado.

Partidor – ponto de partida de uma raia de carreiras. Em sentido figurado é

começo ou recomeço.

Peleador – diz-se daquele que participa de peleias, ou combates, ou brigas.

Pelejador.

Pelear – lutar, combater.

Pelego – pele de carneiro, quadrada, com lã. Peça dos arreios – s.f. – arriscar o pelego significa correr perigo de vida, arriscar a pele.

Petiça – fêmea do petiço, cavalo de pernas curtas e retaco.

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Mário Matos Identidades Ameríndias 116

Pialo – o mesmo que pealo. Ato de arremessar o laço e assim prender o animal

pelas patas anteriores – s.f. – “num pialo” significa de um modo que prende,

que não dá chance de reagir.

Picaço – cavalo escuro com patas e testa brancas.

Pilchas – arreios ou vestimentas típicas do gaúcho, bem como os seus utensí-

lios e armas.

Pingo – diz-se de um cavalo bom, vistoso, bonito.

Piquete – grupo de cavaleiros nas guerras e revoluções gaúchas, também usado,

atualmente, para os centros de tradição, situados em zonas rurais. Mais co-

mumente, o termo é empregado no sentido de pequeno potreiro de serviço

ou animal preso para serviço.

Pisar o poncho – o poncho é o tradicional manto dos gaúchos, também usado

em quase toda a América Latina – s.f. – pisar o poncho é desafiar.

Planchar-se – cair de lado. Escorregar o cavalo com as quatro patas, caindo de

lado.

Prenda – jóia, relíquia – s.f. – aplicado à moça bonita.

Puro – cavalo de puro sangue, corredor.

Quadras tapadas – a quadra é medida antiga, medindo 132 metros. Quatro

quadras tapadas, quer dizer, em números redondos, sem frações. Equivale a

528 metros lineares, no exemplo dado.

Quebra-Largado – homem valente, pronto para tudo, atirado, audaz. Antiga-

mente era sinônimo de brigador, turbulento.

Queimar campo – em sentido figurado, significa exagerar, mentir.

Quero-Quero – pequena ave pernalta, cujo nome vem do som que emite ao

cantar. O gaúcho denomina o quero-quero de sentinela dos pampas, pois

costuma denunciar a chegada de visitantes, com seu vôo, e com seus gritos.

Rabicano – cavalo que “tem cãs no rabo”: os pêlos brancos da cauda são en-

tremeados com pêlos da cor base do corpo.

Reboldosa – alvoroço, desordem.

Refugar – esquivar, fugir. Refugar parada é, depois de feita a aposta, numa

carreira, recuar da mesma. Em sentido figurado, é esquivar-se de um desafio,

intimidar-se.

Regalo – o mesmo que presente. Regalar é dar de presente, oferecer.

Renguear – claudicar, coxear, tornar-se rengo. Geada “de renguear cusco” é

aquela que, num exagero de expressão, torna o cusco, ou cão, “rengo”, ou

coxo, pelo frio cortante. Em sentido figurado, significa acachapar.

Rincão – porção de campo cercada de mato. Local protegido. Também é sinô-

nimo de Pago.

Rodada – queda para a frente, acidental, quando o cavalo galopa, ou mesmo

quando trota, montado ou não.

Rodeio – lugar de uma estância onde se reúne periodicamente o gado para lidar

com ele. Ali ocorrem as façanhas diversas da lida. Em sentido figurado, “dar

rodeio, se ver num rodeio” – é provocar ou ver-se às voltas com problemas inesperados ou espetaculares.

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Rosilho – diz-se do cavalo em que a cor-base avermelhada, amarelada ou parda,

etc., aparece mesclada de pêlos de cor branca.

Salamanca – furna lendária onde vive a Teiniaguá, misto de lagartixa e prince-

sa moura com dons de sereia enganadora. Vide J. Simões Lopes Neto.

A Salamanca do Jarau. In: Lendas do sul. Sinuelo – um ou mais animais costeados ou mansos que servem para atrair os

que são xucros, ou ariscos, por ocasião do seu aparte, ou para encaminhá-lo

na sua condução.

Tambeiro – diz-se do gado manso, de tambo, leiteria. Em sentido figurado,

tambeiro é sinônimo de submisso e sem reação.

Taura – valente, arrojado, destemido, pronto pra tudo. Torena.

Tentos – tiras estreitas de couro cru, com inúmeras utilidades, entre as quais a

de trazer o laço preso à parte traseira do lombilho. Em sentido figurado,

“trazer a razão nos tentos” é vir equipado de razão, de fundamento.

Topetudo – audacioso, arrogante.

Tratado de Madri – o pesquisador uruguaio, Fernando O. Asunção, em sua

obra mais recente, “El Gaucho”, Montevidéu, 1978, Tomo I, p. 228-229, as-

sim se refere a esse documento: “O tratado de 1750, conhecido também co-

mo Tratado de Madri, refere-se às possessões e limites de ambas as potên-

cias na América e na Ásia. Seu inspirador e teórico foi o já mencionado Ale-

xandre de Gusmão, e foi firmado no dia 13 de janeiro naquela cidade, de

forma quase secreta, entre o Ministro de Estado Espanhol, José de Carvajal y

Lancaster, e o Embaixador Extraordinário de Portugal, Tomás da Silva Te-

les, com intervenção da Inglaterra” (grifo de Mário Mattos).

Troncho – cavalo que tem uma ou duas orelhas atrofiadas ou defeituosas – s.f.

– designação depreciativa a quem se salienta indevidamente.

Umbu – árvore de grande tamanho, muito copada. “Pircunia Dioica”, existente

no Rio Grande do Sul, Paraguai e países do Prata. Não confundir com o um-

buzeiro do Norte do Brasil.

Vaqueano – o que serve de guia em alguma viagem por ser conhecedor de ca-

minhos.

Vau – lugar mais raso de um rio, onde, sem nadar, se atravessa.

Velhaqueada – corcovos do cavalo.