A PRODUÇÃO CONTEMPORÂNEA: UMA ANÁLISE DA...

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1 X SEL – Seminário de Estudos Literários UNESP – Campus de Assis ISSN: 2179-4871 www.assis.unesp.br/sel [email protected] A PRODUÇÃO CONTEMPORÂNEA: UMA ANÁLISE DA OBRA O ALIENISTA EM CORDEL, DE ROUXINOL DO RINARÉ Eliane Aparecida Galvão Ribeiro Ferreira (Doutora - UNESP/Assis – Docente – FEMA) Ricardo Magalhães Bulhões (Doutor – UNESP/Assis – Docente – UFMS/MS) RESUMO: Este texto tem como objetivo apresentar uma possibilidade de leitura da obra O alienista em cordel, adaptada por Rouxinol do Rinaré, na qual se considera o papel do leitor e da paráfrase criativa, composta pela junção dos discursos: literário e popular. PALAVRAS-CHAVE: Dialogia; paráfrase; cordel; leitor. Introdução Este texto tem como objetivo apresentar uma análise do texto O alienista em cordel, adaptada por Rouxinol do Rinaré, a partir de um dos mais intrigantes contos da literatura brasileira: O alienista, de Machado de Assis. Este conto foi publicado inicialmente no livro Papéis Avulsos, em 1882. Mais especificamente, pretende-se neste texto verificar, a partir dos princípios bakhtinianos, como se efetiva a dialogia entre o texto de Rinaré e o de Machado. Entende-se por dialogismo, segundo Diana Luz Pessoa de Barros (1999, p.2) como a característica essencial da linguagem e princípio constitutivo, muitas vezes mascarado, de todo discurso. Para o desenvolvimento dos objetivos, pretende-se apresentar uma reflexão fundamentada pela estética da recepção acerca do prazer propiciado na leitura e quais elementos determinam o papel do leitor implícito. Constrói-se, neste texto, a hipótese de que a estratégia de Rinaré de resgatar um texto canônico e recontá-lo sob a forma de cordel, atualizando sua linguagem e adequando-a ao público juvenil contemporâneo, aliada à utilização do texto imagético, tanto permite ao leitor estar em contato com um texto atraente, lúdico e crítico que o conduz à reflexão, quanto lhe faculta a ampliação de conhecimentos por meio do resgate da memória cultural. A apropriação de um texto canônico, adaptado à linguagem do cordel e do jovem, pode atuar como fator de valoração

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X SEL – Seminário de Estudos Literários

UNESP – Campus de Assis

ISSN: 2179-4871

www.assis.unesp.br/sel

[email protected]

A PRODUÇÃO CONTEMPORÂNEA: UMA ANÁLISE DA OBRA O ALIENISTA EM CORDEL, DE ROUXINOL DO RINARÉ

Eliane Aparecida Galvão Ribeiro Ferreira (Doutora - UNESP/Assis – Docente – FEMA)

Ricardo Magalhães Bulhões (Doutor – UNESP/Assis – Docente – UFMS/MS)

RESUMO: Este texto tem como objetivo apresentar uma possibilidade de leitura da obra O alienista em cordel, adaptada por Rouxinol do Rinaré, na qual se considera o papel do leitor e da paráfrase criativa, composta pela junção dos discursos: literário e popular. PALAVRAS-CHAVE: Dialogia; paráfrase; cordel; leitor.

Introdução

Este texto tem como objetivo apresentar uma análise do texto O alienista em cordel,

adaptada por Rouxinol do Rinaré, a partir de um dos mais intrigantes contos da literatura

brasileira: O alienista, de Machado de Assis. Este conto foi publicado inicialmente no livro Papéis

Avulsos, em 1882. Mais especificamente, pretende-se neste texto verificar, a partir dos princípios

bakhtinianos, como se efetiva a dialogia entre o texto de Rinaré e o de Machado. Entende-se por

dialogismo, segundo Diana Luz Pessoa de Barros (1999, p.2) como a característica essencial da

linguagem e princípio constitutivo, muitas vezes mascarado, de todo discurso.

Para o desenvolvimento dos objetivos, pretende-se apresentar uma reflexão

fundamentada pela estética da recepção acerca do prazer propiciado na leitura e quais

elementos determinam o papel do leitor implícito.

Constrói-se, neste texto, a hipótese de que a estratégia de Rinaré de resgatar um texto

canônico e recontá-lo sob a forma de cordel, atualizando sua linguagem e adequando-a ao

público juvenil contemporâneo, aliada à utilização do texto imagético, tanto permite ao leitor estar

em contato com um texto atraente, lúdico e crítico que o conduz à reflexão, quanto lhe faculta a

ampliação de conhecimentos por meio do resgate da memória cultural. A apropriação de um

texto canônico, adaptado à linguagem do cordel e do jovem, pode atuar como fator de valoração

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da identidade desse leitor que será capaz de elevar sua autoestima a partir da adaptação. Com

efeito, perceberá que é considerado como receptor de uma produção, ao mesmo tempo em que

se reconhece como herdeiro de um patrimônio cultural tradicional.

José Midlin afirma que o leitor, ao constatar a variedade de temas e personagens

apresentados nos contos de Machado, fica difícil acreditar que uma única pessoa conseguiu

reunir tantos caracteres e tantas situações pessoais (MIDLIN, 2008, p.9). Desse modo,

reconhecendo o equilíbrio formal da prosa do bruxo do Cosme velho, Alfredo Bosi destaca que a

sua obra não deve ser transformada em objeto de idolatria, “isso não conviria a um autor que faz

da literatura uma recusa assídua de todos os mitos” (1986, p.203).

Machado de Assis, em O alienista, ao criar a personagem Simão Bacamarte, revela o

paradoxo de um médico que anseia de forma doentia a cura para a insanidade, a loucura, o

alienismo. O autor produz na narrativa situações irreversíveis que dessacralizam a figura do mito

do cientista, especialista e médico. Ironicamente, o escritor questiona as verdades científicas

positivistas tão comuns à sua época.

Segundo Fábio Lucas, Machado é um ficcionista que se posiciona do lado oposto às

convenções e aos estereótipos da segunda metade do século XIX. Para o escritor, essas

convenções eram: “[...] um saco de ferramentas enferrujadas como o determinismo, o

evolucionismo mecânico, esquemas redutores utilizados pelo Realismo” (LUCAS, 2009, p.82).

A narrativa de O alienista figurativiza, por meio de seus elementos, o par antitético -

normalidade e loucura -, desdobrado em cientificismo e empirismo, em ciência e religião, em

moderação e exagero, em equilíbrio e desequilíbrio emocional.

A obra de Rinaré, O alienista em cordel, mantém fidelidade à temática e abordagem do

texto machadiano, sobretudo com a “situação ficcional”.

A adaptação de obras

A leitura de obras adaptadas em sala de aula pode favorecer a formação do leitor, pois

em consonância com Ana Maria Machado (2002, p.12), nem sempre é desejável, dependendo

da idade e da maturidade do leitor, que o primeiro contato com o texto clássico seja feito a partir

de um mergulho nos textos originais.

Atualmente, existem adaptações que possibilitam a oportunidade de um encontro

sedutor, atraente e tentador. A leitura desses textos pode representar tanto um trabalho

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comparativo com o original, quanto um convite posterior para a exploração de um território muito

rico na fase das leituras espontâneas.

Parte-se do pressuposto de que a não explicitação da dialogia entre obras impede que

a leitura se torne mais interessante e saborosa para os alunos leitores, pois eles perdem a

capacidade de perceber a remissão presente no jogo ficcional. Assim, acredita-se que o diálogo

entre obras, uma vez detectado pelos alunos, manifesto em sala de aula, pode transformar este

espaço em local de debates e de interpretações diversas; enfim, de democratização da cultura.

Partindo dessas reflexões, pretende-se neste texto analisar a adaptação de Rouxinol do Rinaré,

por meio da comparação com o conto O alienista, de Machado de Assis.

A mediação da leitura de O alienista em cordel, em sala de aula, pode favorecer a

formação do leitor estético, sobretudo, no trabalho comparativo da versão adaptada por Rinaré

com o texto original de Machado de Assis. Segundo Carlos Magno Gomes (2008, p.116), o

conceito de leitor estético, que se preocupa com o “como” um texto foi construído, pode ser

usado como uma metodologia de leitura que privilegia o ato de ler como um exercício de

comparações artísticas e culturais que o texto carrega. Assim, a leitura estética constitui-se em

uma proposta interdisciplinar para o ensino de literatura.

Na obra de Rinaré, o dialogismo com o texto de Machado se estabelece de forma

explícita, anunciada na quarta capa: “O conto O alienista, que narra as peripécias de Simão

Bacamarte, ganhou, pelas mãos do poeta Rouxinol do Rinaré, mais uma excelente adaptação

para a Coleção Clássicos em Cordel” (2008, quarta capa). Pode-se notar, pela afirmação, que a

obra pertence a uma coleção que adapta clássicos diversos sob a forma de cordel. Na mesma

quarta capa, encontra-se um trecho do livro de Rinaré no qual este solicita de um “Ser” supremo

a inspiração para produzir uma boa adaptação da obra de Machado de Assis:

Ó Ser que tem me inspirado Nos romances que já fiz, Agora conduz meu estro, Para que eu seja feliz, Adaptando este conto De Machado de Assis. (2008, quarta capa).

Essa estrofe, presente na quarta capa, foi retirada da abertura do livro de Rinaré. Ela

revela o respeito do escritor pela produção de Machado, sobretudo, a sua preocupação em

adaptar um texto de autor tão reconhecido, cuja produção pertence à cultura erudita.

Justamente, a subversão da produção de Rinaré não está na temática, nem no conteúdo do

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conto de Machado de Assis, pois os parafraseia. A subversão do texto de Rinaré reside na

forma, na transposição de um texto narrativo em prosa, constituído pela linguagem dita culta,

para um texto em versos, cuja linguagem rimada e mais informal é própria do cordel. Assim, a

adaptação da narrativa canônica para o texto popular provoca um desvio de público; se o

primeiro é fruído por uma classe prestigiada, o segundo está acessível a qualquer leitor. Desse

modo, a paráfrase de Rinaré democratiza a cultura.

À estrofe de abertura, segue-se outra com a mesma intenção que revela quem é o

“Ser” superior e, por consequência, a perspectiva cristã que assume a narrativa em versos de

Rinaré:

Deus, em sua onisciência E seu saber soberano, É quem pode perscrutar (Sem incorrer no engano) Os sondáveis mistérios Da mente do ser humano! (RINARÉ, 2008, p.15)

O quarto verso dessa estrofe atua como anúncio do futuro, pois afirma que somente

Deus conhece, sem engano, a mente do ser humano. Configura-se como estrofe-moldura que

reforça o anúncio de futuro, utilizando para tanto de um dito popular aparece também:

No mais profundo da alma Mesmo na razão mais pura Há segredos, incertezas, E assim, pois, se conjetura Que até a mente mais sã Tem um pouco de loucura... (RINARÉ, 2008, p.16)

Podemos perceber pelas três estrofes de abertura que o narrador, antes de começar a

recontar a história, dialoga com o texto já produzido de forma explícita. Dessa forma, a narrativa

propriamente, inicia-se na quarta estrofe em diante:

Conforme antigos cronistas No Brasil colonial, Na Vila de Itaguaí Tinha um nobre especial Que foi o maior dos médicos Do Brasil e Portugal. (RINARÉ, 2008, p.16)

Como se pode observar, elementos narrativos do conto de Machado – como o enredo,

a menção a relatos de antigos cronistas, às personagens, ao espaço e tempo – são mantidos.

Contudo, altera-se a apresentação formal da diegese que assume as características da literatura

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de cordel. Assim, permanecem no livro as características formais tradicionais dos folhetos.

Preserva-se, então, a sextilha – estrofes com seis versos –, a rima externa – no esquema A, B,

C, B, D e B –, e mantém-se a divisão poética das sílabas desses versos em redondilha maior.

Embora possamos notar uma linguagem simples, adequada ao público jovem, esta

difere da linguagem de cordel, pois não prevalecem as marcas formais da linguagem oral

popular, nem no emprego do léxico, nem no da sintaxe. Ao invés de utilizar uma linguagem mais

despojada, mais próxima da oralidade, Rinaré opta por uma linguagem que se aproxima da

utilizada pela norma dita culta. Nas estrofes a seguir pode-se notar o emprego da forma verbal

culta, para indicar o passado anterior, no caso, o pretérito mais-que-perfeito do indicativo, e o

uso do pronome dêitico em próclise:

Era Simão Bacamarte Um grande especialista, Que estudara em Coimbra Um excêntrico cientista Famoso por seus estudos Como médico alienista [...] Para acolhê-los, tratá-los, Não tinha hospício ou suporte. Os loucos mansos nas ruas, Os bravos entregues à sorte Na própria casa, trancados Em um quarto, até a morte! (RINARÉ, 2008, p.18)

Se Rinaré opta por uma linguagem mais próxima da culta, por outro lado, a enunciação

do narrador aproxima-se mais da linguagem do jovem leitor do que do discurso do protagonista

Simão Bacamarte. No discurso do médico-cientista e até em seus pensamentos, permanece o

apreço pela linguagem preciosista, figurativizando seu racionalismo associado à pompa que

ostenta para os moradores de Itaguaí. Pode-se notar que, mesmo em seus pensamentos, o

alienista emprega a mesóclise:

Esta decisão do médico Não é difícil entendermos. Pois, ao dividir tarefas, Pensou ele nestes termos: – Dedicar-me-ei somente Ao estudo dos enfermos!

Essa estratégia permite-lhe resgatar o mesmo espírito de ironia fina de Machado que

ridiculariza o racionalismo científico exacerbado, sobretudo, as vaidades daqueles denominados

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nobres na sociedade do Brasil colonial. As observações realizadas até aqui nos permitem

visualizar a manutenção da comicidade criada em torno da figura do médico alienista. Vladimir

Propp observa que o riso é provocado pela repentina descoberta de algum defeito oculto

(PROPP, 1976. p.55 ). No folheto de Rinaré, como também no texto machadiano, o riso é

provocado pela repetição de traços caricaturais da personalidade do protagonista que seriam

inadmissíveis ou inaceitáveis.

O discurso do narrador de Rinaré, ao se filiar à norma culta, impede que haja grande

discrepância entre seu relato e a enunciação do protagonista. Todavia, pode-se observar que o

tom exacerbado, marcado pelas exclamações, aparece somente na enunciação de Simão

Bacamarte; ao narrador cabe um relato mais contido.

Estruturação da obra de Rinaré

O texto, de Rouxinol do Rinaré, configurado sob a forma de cordel, desdobra-se em

dois momentos narrativos. O primeiro atua como moldura, abertura para a obra; o segundo

figurativiza a história de Simão Bacamarte e pode ser divido em três atos.

Logo na abertura, o narrador em primeira pessoa invoca o auxílio divino para realizar

seu relato, opondo-se, assim, à visão do protagonista da obra que ignora qualquer auxílio que

não seja o da ciência. Desse modo, Rinaré posiciona seu narrador de forma antagônica à

condução ideológica da personagem principal.

Apesar de inserir seu discurso e comentários no relato, o narrador é observador, não

realiza performance alguma na diegese. Seu relato é ulterior, narrando uma história alheia. Para

tanto, apropria-se da técnica dos contadores tradicionais, sobretudo, dos cronistas, anunciando:

“Conforme antigos cronistas” (2008, p.16). A opção de Rinaré pelo apoio da enunciação em

relatos anteriores feitos por cronistas, estabelece dialogia com a abertura do conto de Machado:

“As crônicas da vila de Itaguaí dizem que em tempos remotos vivera ali um certo médico, o Dr.

Simão Bacamarte, filho da nobreza da terra e o maior dos médicos do Brasil, de Portugal e das

Espanhas.” (MACHADO DE ASSIS, 1986, p.107).

O narrador de Rinaré, parafraseando o de Machado, relata de forma descontraída,

como quem dialoga com o leitor, a curiosa história de um médico-cientista. No folheto, já no

primeiro ato, o narrador afirma que, após retorno de Coimbra, Bacamarte decide fixar-se na vila

de Itaguaí. Neste local, elege para esposa uma jovem viúva, Dona Evarista, desprovida de

atrativos. Essa eleição permite que o especialista não se distraia em sua missão de exercer a

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medicina. Na vila, Simão manifesta seu desejo de fundar uma instituição, na qual os alienados

poderão ser tratados.

No segundo ato, instaura-se o conflito inicial, pois as pessoas de Itaguaí, acostumadas

a manter os “Os loucos mansos nas ruas,/Os bravos entregues à sorte/Na própria casa,

trancados/Em um quarto, até a morte!” (RINARÉ, 2008, p.18), discordam da possibilidade de

reuni-los em um mesmo espaço. A comunidade local, a princípio, considera imprudente essa

ideia. O padre chega a verbalizar sua discordância, afirmando que a intenção do especialista

sinalizava sinal de desequilíbrio mental: “– Tal ideia – disse o padre –/É sintoma de demência.”

(RINARÉ, 2008, p.18). Contudo, posteriormente, o alienista defende suas ideias “[...] com

arroubos/De médico especialista,/E aprovam, os vereadores,/Enfim, seu ponto de vista.”

(RINARÉ, 2008, p.19). Após a aprovação pela Câmara do projeto de Bacamarte, cria-se um

novo imposto para a manutenção do centro de internação, denominado, pela cor de suas

janelas, de Casa Verde.

O terceiro ato desdobra-se em três momentos nos quais Simão Bacamarte produz três

teorias. No primeiro momento, o alienista interna pessoas que a sociedade classifica como

dementes. Entre elas, destacam-se quatro personagens curiosas que, justamente por isso, são

representadas nas ilustrações de Erivaldo. A primeira acredita que é a estrela d’alva: “Ficava

horas esquecidas/Assim, querendo saber/Se o sol já tinha saído/Pra ele se recolher” (RINARÉ,

2008, p.23); a segunda, que possuía linhagem nobre, narrava para si mesma, batendo na testa,

sua genealogia na seguinte ordem: – Deus, um ovo,/Uma espada, o rei Davi,/A púrpura, o

duque, o marquês/E eu, este conde aqui.” (RINARÉ, 2008, p.23); a terceira que era Deus e, por

isso, exigia adoração: “Prometendo o céu em troca;/Do contrário, a perdição.../Esse era o João

de Deus,/Que supunha-se Deus João!” (RINARÉ, 2008, p.23); e a quarta que possuía tal poder

de profecia que precisa ficar sempre em silêncio: “pra dizer algo escrevia:/Encucou que se

falasse/O mundo se acabaria.” (RINARÉ, 2008, p.24).

Pode-se notar na caracterização dessas personagens que Rinaré mantém a crítica

machadiana à valorização da genealogia nobre, ao passado da Igreja católica com suas

promessas de um lugar no céu, remetendo à venda de indulgências, e aos que creem em

superstições.

O objetivo do médico é estudar os internos com afinco, visando à obtenção da cura.

Embora o doutor verbalize para seu amigo, o boticário Crispim, que concebe seu trabalho como

uma missão, um “serviço humanitário” (RINARÉ, 2008, p.21), comparável ao da caridade,

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também menciona que os casos recolhidos servem de fonte de estudo, experiência que ele

realiza em nome da ciência. Assim, o leitor é convocado a refletir acerca dos interesses do

médico que, ao tomar aqueles indivíduos como cobaias para a constatação de suas teorias, não

são altruístas. Logo, seu discurso deve ser recebido de forma crítica.

Na Casa Verde, os doentes são classificados, conforme o comportamento, em

categorias: “Alucinações diversas,/Delírios, monomanias...” (RINARÉ, 2008, p.24). Simão analisa

seus hábitos, gestos, palavras, aversões e simpatias. À essa constatação, o narrador, apoiando-

se na sabedoria popular, afirma: “Diz um ditado que “cada/Louco tem sua mania”. (RINARÉ,

2008, p.25). Em seguida, passa a narrar o comportamento do médico que “Mal comia e mal

dormia,/Estudando e anotando/ Fenômenos que descobria.” (RINARÉ, 2008, p.25). O fervor pela

leitura de Bacamarte pode remeter o leitor à personagem Dom Quixote, de Cervantes.

Enlouquecida e cômica, ingênua como Bacamarte, acreditava no que lia, desconsiderando a

observação empírica e os conselhos dos que o rodeavam.

Com o recurso do silogismo lógico aliado ao da ironia, o narrador relata as manias do

médico, provocando o leitor a um exercício dedutivo: se Simão tem manias e o ditado é válido,

então, também possui algo de louco. Dessa forma, Rinaré mantém em seu texto o convite à

participação do leitor, próprio da produção machadiana.

A obsessão do alienista pelo trabalho leva sua esposa à preocupação com o

alheamento do marido. Este, friamente, revela-lhe que tem obtido significativos ganhos

financeiros com a Casa Verde, por isso lhe pagaria as despesas de uma viagem ao Rio de

Janeiro, onde poderia se divertir e esquecer das angústias e preocupações. A menção aos

ganhos financeiros faculta ao leitor refletir sobre o discurso inicial do médico de que associava

seu ofício à caridade.

No momento da partida da mulher, Simão não se comove, pois a única coisa que o

interessa, o abala, é a ciência. Mesmo no momento da despedida, ele perscruta a população ao

seu redor. O narrador alerta o leitor para este fato: “– Leitor, dizer é preciso –/Procurava ele

algum louco/Junto à gente de juízo.” (RINARÉ, 2008, p.28).

Em um segundo momento, o doutor elabora outra teoria, visando à ampliação de seus

conhecimentos acerca da psicologia: a de que entre as pessoas consideradas sãs há sempre um

espírito insano. Assim, ele recolhe à Casa Verde indivíduos que, embora passem despercebidos

socialmente, desenvolveram comportamentos e hábitos estranhos. O parodoxo dessa eleição

advém exatamente do que pode ser considerado exótico, divergente, pois para essa detecção

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faz-se necessária a observação do que vem a ser corrente, comum, considerado comportamento

normal. O leitor recorda que Simão desconsidera o senso comum; assim, seus critérios são

aleatórios e incoerentes. Além disso, são tendenciosos, pois o médico interna todos os que se

opõem às suas teorias.

Há, então, uma revolta na vila, tendo como líder o barbeiro Porfírio, denominado de

Canjica. Justamente, por isso, a oposição ao médico fica conhecida como a “Revolta dos

Canjicas”. Os Dragões da Cavalaria tentam contê-la, mas após o primeiro embate, os soldados

postam-se ao lado de Porfírio, obrigando o capitão a depor as armas. O barbeiro no poder, leva

à prisão o presidente da Câmara e os vereadores. Entretanto, suas intenções são as de alcançar

uma posição social de destaque, movidas, portanto, pela vaidade, tenta estabelecer um acordo

com o alienista que beneficiasse a ambos. Pede a este que liberte alguns dos internos para

apaziguar os ânimos dos moradores da vila. Simão, apesar de pasmo, parecendo aceitar o

acordo, pede alguns dias ao barbeiro. Ao término do prazo, solicita o recolhimento de um grupo

de aclamadores. Essa atitude enfraquece a confiança do povo da vila em Porfírio que é deposto

do cargo de liderança por outro colega de profissão, o barbeiro João Pina. Em pouco tempo,

entretanto, a ordem é restabelecida pela tropa do vice-rei; João Pina, logo, perde a liderança na

vila, e os vereadores são restituídos à Câmara. Esse fato demonstra o apreço do rei por Simão

que lhe permite: “[...] tudo o que quis –/Nada ao médico foi negado.” (RINARÉ, 2008, p.42). A

antítese utilizada por Rinaré – tudo e nada –, para descrever o poder se Simão, revela que o

poder sem limites só pode conduzir a um caminho: o da injustiça.

No terceiro momento, Bacamarte cria outra teoria, assim, liberta todos os internos e

recolhe os classificados como ponderados, em equilíbrio com suas faculdades mentais. Para o

médico, uma mente sem desvio é anormal, por isso merece ser estudada pela ciência. Como

obtém sucesso em suas curas, Simão percebe que a Casa Verde fica vazia e começa a refletir

se de fato todos os pacientes eram loucos e foram curados ou se ele apenas despertara algo

latente em seus cérebros. Enfim, deduz que nunca houve louco na vila: “Pela nova teoria,/Não

há um bom sem defeito./Portanto, a loucura era/A exceção do conceito;/Demente era quem

tivesse/Um equilíbrio perfeito.” (RINARÉ, 2008, p.48). Refletindo se tal teoria teria sido

construída em vão, deduz que ele era considerado equilibrado, paciente, sagaz, firme,

verdadeiro, dotado de moralidade, logo merecia ser tratado. Trancou-se na Casa Verde e iniciou

o estudo de si mesmo. Apesar de todo seu conhecimento em ciência, morreu como interno. A

essa constatação, afirma o narrador: “Leitor, se conclui aqui:/Era ele o único louco/Da Vila de

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Itaguaí!!!” (RINARÉ, 2008, p.48). Desse modo, Rinaré mantém a estratégia de diálogo do

narrador com o leitor, própria da produção machadiana.

Como se pode notar, se as obras de Machado e de Rinaré diferem no plano formal, no

semântico, ambas mantêm o mesmo sentido. Assim, a atualização da obra machadiana efetiva-

se, nos planos da linguagem e da estruturação frasal sintética, própria do cordel. As diferenças

na transposição do texto de Machado para o de Rinaré podem ser observadas a seguir na cena

que representa o desfecho de ambas obras:

Fechada a porta da Casa verde, entregou-se ao estudo e à cura de si mesmo. Dizem os cronistas que ele morreu dali a dezessete meses, no mesmo estado em que entrou, sem ter podido alcançar nada. Alguns chegam ao ponto de conjeturar que nunca houve outro louco, além dele, em Itaguaí; mas esta opinião, fundada em um boato que correu desde que o alienista expirou, não tem outra prova, senão o boato; e boato duvidoso, pois é atribuído ao padre Lopes, que com tanto fogo realçara as qualidades do grande homem. Seja como for, efetuou-se o enterro com muita pompa e rara solenidade. (MACHADO DE ASSIS, 1986, p.158).

Assim o alienista Trancado morreu ali. Mesmo com toda Ciência, Leitor, se conclui aqui: Era ele o único louco Da Vila de Itaguaí!!! (RINARÉ, 2008, p.48).

Rinaré, visando à obtenção de um discurso próximo ao da oralidade e do cordel,

utiliza-se de frases curtas, enxutas, e de versos rimados. Ainda, objetivando estabelecer um

diálogo direto com o leitor, fecha seu texto com a conclusão de que o único louco era Simão.

Essa estratégia perde de vista a riqueza da personagem antitética a Bacamarte, no caso, o

padre. Tal personagem é muito presente no texto de Machado e, no desfecho da obra, sendo

responsável pela internação do próprio médico.

Confrontando o narrador de Machado com o de Rinaré, pode-se notar que o do

primeiro escritor atribui a um boato a conclusão de que nunca houvera outro louco, além de

Bacamarte em Itaguaí. Aliás, o boato era duvidoso, pois atribuía-se ao padre essa conclusão,

justamente ele que tanto enaltecera as qualidades de Simão. Fica evidente a ironia do narrador,

pois, pelas peripécias do padre na narrativa, pôde-se notar sua oposição ao médico. Ainda,

conforme a teoria de Bacamarte, as qualidades de “grande homem” enquadravam-no na

categoria de indivíduos equilibrados; logo, paradoxalmente em desajuste com a normalidade.

Essa ironia é reforçada na ênfase atribuída à cerimônia fúnebre, pois realizada com muita pompa

e solenidade, qualidades muito apreciadas pelo médico em vida.

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O jogo enunciativo do narrador de Machado de colocar em dúvida o que a população

de Itaguaí afirmara instaura lacunas que precisam ser preenchidas pela capacidade dedutiva e a

projeção imaginativa do leitor. Essa capacidade dedutiva, por sua vez, requer um leitor atento

que tenha presente na memória as constantes oposições do padre a Bacamarte. Além disso,

solicita um leitor que, pela projeção imagética, perceba a figurativização no par antitético: médico

e padre, que recobre significados mais profundos como a oposição entre religião e ciência, fé e

ceticismo, emoção e racionalismo. Sobretudo, entre cristãos e árabes, pois Simão esconde do

padre que é um arabista, estudioso da língua, literatura e cultura árabe. Justamente por isso,

elege uma frase do Corão a qual Maomé declara que os doidos são veneráveis, “[...] pela

consideração de que Alá lhes tira o juízo para que não pequem” (MACHADO DE ASSIS, 1986,

p.110), e manda gravá-la na fachada da Casa Verde, atribuindo-a Benedito VIII, a fim de agradar

ao padre. Paradoxalmente, os termos ciência, racionalismo e ceticismo são representados por

uma personagem vaidosa que se revela, na obsessão da descoberta de uma cura,

desequilibrada. A oralidade no texto de Machado é assegurada pelo apoio no dito popular, o dos

cronistas, além do emprego de expressões orais pertencentes à época.

O narrador de Rinaré dirige-se diretamente ao leitor e apresenta sua conclusão,

desconsiderando o papel desempenhado pelo padre, antagonista das teorias de Simão. Essa

opção narrativa de Rinaré revela sua concepção a respeito dos horizontes de expectativa do

jovem leitor. Para o autor, a conclusão deve ser explícita, pois do contrário não seria apreendida.

Com essa decisão, Rinaré apresenta um narrador soberano que fecha a narrativa de forma

judicativa, impedindo que a presença de lacunas leve o leitor à reflexão e dedução. Contudo,

Rouxinol também aponta que Simão era arabista e temia as reações do padre. Assim, embora

não coloque em relevo a oposição entre ambas personagens no final da diegese, mantém-na no

interior do texto.

Vale destacar, conforme Marisa Khalil (2005, p.209), que a adaptação de Rinaré, ao

privilegiar um léxico mais corrente, também objetiva transpor a linguagem do século XIX para o

XX e, ainda, deslocá-la do discurso do adulto para o do jovem. Para a autora, retomando

Foucault, a adaptação de Rinaré realiza um sistema de repetibilidade dos enunciados. Dessa

forma, não modifica a identidade do enunciado, representando uma variação.

O texto não-verbal

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O texto não-verbal, produzido por Erivaldo, dialoga com o texto verbal e amplia suas

significações. As ilustrações coloridas da capa em cores primárias sinalizam que a obra

interessa aos jovens. Nesta, pode-se ver a vila de Itaguaí com construções próprias do século

XIX, bem como com personagens vestidas com roupas da época. Simão Bacamarte aparece em

primeiro plano, representado de jaleco branco observando a interação das demais personagens.

Entre elas, estão os quatro alienados curiosos, representados em seus gestos de bater na testa,

tapar a boca, representar com braços e pernas abertos uma estrela e de forma autoritária, com o

dedo em riste, anunciando sua origem nobre, a esposa do médico, o padre, os barbeiros: Porfírio

e João Pina. A personagem Simão é a única que rompe a margem na qual se enquadram as

ilustrações da capa, antecipando assim que passa dos limites estabelecidos.

No interior da obra, as ilustrações, sob a forma de xilogravuras monocromáticas – em

azul marinho –, remetem ao cordel, sobretudo, porque estão impressas em papel reciclado. A

folha de rosto da obra apresenta em azul a mesma imagem da capa.

A abordagem do tema é dinâmica, pois se configura tanto no texto verbal, quanto no

visual como repleta de lacunas, provocadas pelas novas teses de Simão. Ela também é

consistente, pois escapa de simplificações nas representações, demonstrando com humor a

capacidade de sedução da obra que pressupõe um leitor curioso e, justamente por isso,

motivado a desvendar os seus significados. Os critérios de internação do alienista solicitam

interação com o leitor, pois o prendem até o final da leitura em busca da detecção de quem de

fato é louco e como se encerrará a história. Essa provocação vem explicitada na apresentação

de Marco Haurélio à obra. Nesta, Haurélio contextualiza a produção de Machado, relaciona a

obra O alienista com o livro Dom Quixote, de Cervantes, contextualizando-o. Além disso, expõe

uma breve biografia de Machado e de Rouxinol, destacando a importância da produção de

ambos.

A preocupação estética na obra de Rinaré centra-se na manutenção do humor e da

ironia característicos da prosa machadiana, da coerência entre linguagem verbal e oral e, ainda,

na dialogia entre texto verbal e não-verbal. Dessa forma, o livro propicia uma experiência

significativa quanto aos usos literários da língua e da ilustração.

A obra de Rinaré dialoga com a de Machado também por meio de seu intertexto com o

cordel e os ditos populares; assim, mobiliza e instiga o leitor a estabelecer relações com outros

textos na leitura. Pelo emprego da temática da loucura, instaurada logo no início da narrativa, a

obra contribui para o desenvolvimento da percepção de mundo do leitor e para a reflexão acerca

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dos comportamentos sociais com os quais se depara, principalmente, acerca de suas próprias

atitudes em relação ao próximo. O texto de Rouxinol faculta ao jovem com pouco contato com a

leitura uma revisão de conceitos prévios relacionados a narrativas ficcionais que apresentam

narradores, geralmente, como personagens observadores que, de forma distanciada, não

interagem com o leitor. Dessa forma, o livro favorece a ampliação de suas referências estéticas e

culturais.

A obra permite ao leitor o reconhecimento, pela leitura, de uma rede dialógica que, por

meio de sua memória, permite-lhe identificar um lastro de narrativas que interagem entre si.

Justamente por isso, são instauradoras de um tempo que, apesar de dinâmico, pode ser

retomado e recontextualizado tantas vezes quantas forem as leituras da narrativa. Esse

reconhecimento, por sua vez, confere prazer na leitura para o jovem leitor, pois ele percebe que

os textos falam entre si (ECO, 1985, p.66), estabelecendo um dialogismo.

O atraente na obra para o leitor

O encantamento do leitor com a obra provém do equilíbrio que encontra na leitura

entre elementos conhecidos e desconhecidos. Conduzido pelo narrador, o leitor entra em contato

com um universo ficcional novo, porém um tanto conhecido, pois é moldado à luz dos contos

populares e sob a forma de cordel, revelando-se seguro e acolhedor. Ao mesmo tempo, depara-

se com desafios propostos pelas indicações de leitura e pelas ilustrações. Dessa forma, essa

combinação entre elementos conhecidos e desconhecidos assegura entre os jovens uma atitude

leitora dinâmica.

O equilíbrio entre elementos conhecidos e desconhecidos presente na obra deve-se à

harmonia do antigo com o atual. Pode-se observar na obra que o escritor resgata o contexto do

século XIX pela linguagem e temática universal, bem como pela estruturação frasal que atualiza-

o. O escritor e o ilustrador, por meio do recurso dialógico da apropriação e da inovação,

produzem um texto individual, rico e poético, mantendo na narrativa o perfil de criação autoral. O

prazer obtido na leitura decorre também da estrutura do texto que solicita uma interação na qual

o leitor “recebe” o sentido ao constituí-lo. Desse modo, a atualização da leitura se faz presente

como um processo comunicativo. Conforme Iser (1999, p.107), esse processo ocorre quando

existem lacunas presentes no texto que indicam os locais de entrada do leitor no universo

ficcional. A obra de Rinaré possui, então, uma estrutura de apelo que invoca a participação de

um indivíduo na feitura e acabamento: é seu leitor implícito. A comunicação ocorre quando esse

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leitor, na busca do sentido, da concretude, procura resgatar a coerência do texto que os vazios

interromperam.

Esse resgate realizado pelo leitor é decorrente da utilização de sua atividade

imaginativa. Para Regina Zilberman (1984, p.79), obras que consideram o leitor, concebem que,

somente por meio de sua atividade, a criação poética alcança seu fim: a transmissão de um

saber. No caso de O alienista em cordel, este saber é emancipatório, pois oferece novos

padrões ou possibilidades de suplantar a norma vigente. Pela leitura, o jovem revê seus

conceitos acerca do fazer ficcional, da adaptação, do texto narrativo sob a forma de versos

rimados, de narradores observadores, de personagens adultos que são interesseiros e realizam

ações que, embora ditas em prol da coletividade, visam somente aos interesses próprios.

Conclusão

A leitura da obra concede ao processo de leitura uma legitimação de ordem existencial,

pois revela ao leitor sua capacidade intelectual, valorizando-o. Essa valorização ocorre quando o

texto o convoca ao desvendamento das atitudes das personagens. Composta pela função

poética da linguagem, contudo narrativa, a obra permite ao leitor deter um saber acerca de um

discurso plurívoco que tanto desautomatiza o uso da linguagem, quanto faculta a percepção de

suas inúmeras realizações. Justamente a interpenetração de discursos na obra, torna-a

contemporânea, pois a caracteriza como definida pelo hibridismo, composta pela cultura erudita

e popular. Segundo, Linda Hutcheon, os romances pós-modernistas são contraditórios, “[...]

usam e abusam da forma paródica, das convenções das literaturas popular e de elite [...].” (1991,

p.40).

A crítica ao hibridismo, conforme João Luís Ceccantini, encobre a “[...] celeuma

emblemática da cisão que ainda hoje afeta o universo da cultura: cultura erudita/cultura de

massa; alta cultura/baixa cultura; arte/indústria cultural [...]”. (2005, p.23). Para o autor, essas

dicotomias presentes no debate cultural revelam uma posição maniqueísta que divide a

produção cultural que circula sob a rubrica dos diferentes gêneros e subgêneros literários, entre

a legítima e prestigiada, e o “resto”.

Hutcheon (1991, p.69) afirma que uma das contradições da ficção pós-moderna é a de

que ela diminui o hiato entre as formas artísticas altas e baixas, e o faz por meio da ironia em

relação a ambas.

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Para Heidrun Krieger Olinto, a defesa exclusiva da literatura clássica e da herança

nacional, como uma forma de manutenção de repertórios provenientes de um saber cultural

canônico, é tão problemática quanto a sua rejeição global. Atualmente, formas culturais mistas

circulam e prevalecem, “[...] e até os textos canônicos são relidos como pontos de cruzamento

de discursos amplos [...]” (2003, p.75).

Essa variedade de discursos, uma vez apresentada em sala de aula, permite ao

mediador aguçar o senso crítico dos jovens leitores e, sobretudo, formar o leitor estético, capaz

de estabelecer analogias entre obras e perceber que elas dialogam entre si.

Em síntese, a obra confere prazer ao leitor implícito porque solicita a sua

produtividade, ou seja, oferece-lhe a possibilidade de exercer a sua capacidade. Pelo exposto,

pode-se, então, perceber que é válida a hipótese de que, pela leitura da obra, o leitor entra em

contato com um texto atraente e lúdico que lhe faculta a ampliação de conhecimentos diversos,

sobretudo, por meio do resgate do seu patrimônio cultural.

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