A PSICANÁLISE E A PSICOLOGIA NOS DITOS E ESCRITOS DE MICHEL FOUCAULT

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A PSICANLISE E A PSICOLOGIA NOS DITOS E ESCRITOS DE MICHEL FOUCAULT Arthur Arruda Leal Ferreira

Introduo: Michel Foucault e o nomadismo no pensamento A crtica foucaultiana pretenso de unidade do discurso em funo da noo de autor estabelecida em O que uma autor (1968-B) talvez no encontre maior pertinncia que na reunio de enunciados cunhados pela assinatura do prprio Michel Foucault. Quase impossvel detectar um trao qualquer de permanncia, que no seja o constante ultrapassagem de um pensamento, que sempre apaga suas prprias pistas e produz novas evidncias. Como se a essncia do pensar pudesse ser constantemente se dispensar se re-pensar. Impossvel falar em nome de Foucault, impossvel Ser foucaultiano. Antes de se perguntar "Quem-Foucault?", necessrio se perguntar "Qual-Foucault?", na instantaneidade de um certo texto, no conjunto de foras momentneas que atravessam os enunciados assinados com o seu nome. Da que sob a mscara foucaultiana podemos encontrar o zumbido de um coletivo. Fica difcil portanto avaliar o conjunto de textos foucaultianos conforme um bloco, ou segundo um conjunto de princpios. No possvel jamais reconhecer um sistema filosfico delineando os seus textos. Contudo, segundo Mrcio Goldman (1998), persistiria ao longo dos trabalhos de Foucault: a) um modo de constituio de objetos, b) um procedimento de exame e c) um conjunto de objetivos. Quanto constituio de objetos, Foucault, segundo Goldman, escreveria conforme Carmelo Bene em seu manifesto do menos, extraindo os personagens maiores da cena, e dando vida aos menores e coadjuvantes. deste modo que este pensador procederia, retirando de foco, por exemplo, cincia e ideologia como eternos protagonistas, e introduzindo saber e poder. No que tange ao procedimento de exame, o ponto de partida se encontra numa questo, ou numa luta presente. A partir da, toma-se um determinado objeto em questo como a clnica, a priso, ou a sexualidade, e dissolve-o em suas condies de possibilidade histricas, acontecimentalizando-o e lanando-o na singularidade de suas mltiplas causas. deste modo que tudo que se apresenta como universal e necessrio remontaria a uma contingncia objetivada e rarificada ao longo da histria. Por fim, o seu objetivo, como se pode entrever, poltico. Mas no no sentido de fornecer diretrizes, e sim instrumentalizando lutas. E isto seria realizado de trs modos: 1) tornando crtico o que escapava crtica, atravs da historicizao; 2) problematizando a prpria luta, estabelecendo-a to local e histrica quanto os seus alvos; 3) participando nas prprias lutas atravs da passagem pela alteridade e pela diferena. Contudo, esta constante proposio de objetos, modos de exame e lutas faz entrever a existncia de alguns perodos no pensamento foucaultiano baseado em alguns critrios como: 1) A trama conceitual expressa nos principais objetos postulados: saberes e discursos (arqueologias), poderes e governamentalidade (genealogias), cuidados de si ou ticas (subjetivaes).

2) Os seus alvos crticos: o positivismo, o humanismo-fenomenolgico, o estruturalismo, o marxismo (a comunistologia), e a psicanlise. 3) O que afirma em cada perodo como alternativa: a literatura e o ser da linguagem, a revoluo e os contrapoderes, a liberdade e a possibilidade de estranhamento de nossas formas de subjetivao. Atravs destes critrios possvel mapear cerca de dez perodos no pensamento foucaultiano, sendo a atribuio dos cinco primeiros inspirada no texto de Roberto Machado, Cincia e Saber (1982-A). A tarefa deste artigo ser tentar captar o sentido das transformaes que se escondem sob a assinatura de Michel Foucault ao longo destes dez perodos, e tentar delinear os possveis dilogos desses personagens que a espreitam com a psicanlise e a psicologia. Esta multiplicidade de autores se ver refletida nas seguidas reavaliaes feitas em torno destes temas. Jacques Derrida (1994) se referir relao com a psicanlise utilizando a imagem de uma dobradia de porta (em que Freud seria o porteiro), de um pndulo ou de um balancim, que "sucessivamente abre e fecha, aproxima e afasta, repudia ou aceita, exclui ou inclui, desqualifica ou legitima, domina ou liberta" (op.cit., pp.62-63). deste modo que a psicanlise, de contracincia humana em As Palavras e as Coisas, torna-se mero efeito do dispositivo confessional da sexualidade, ou hermenutica de si crist, ao longo dos trs volumes da Histria da Sexualidade (1976-C, 1984-A e B). A psicologia, apesar de alguma considerao positiva em seus primeiros artigos (dcada de cinqenta), gozar de uma avaliao mais unnime em torno da crtica, apesar das razes se modificarem. Avaliemos esta relao de Foucault com estes saberes perodo a perodo. 1- O Jovem Foucault (dcada de cinqenta) Neste momento seminal, temos a rara oportunidade de ver um Foucault psiclogo, buscando delinear a positividade deste saber. Para este autor (1957-B, p.148), a verdadeira pesquisa psicolgica seria produzida margem da cincia institucional (como por exemplo a psicanlise e a noo de inconsciente, gerada fora dos cnones de uma psicologia oficial da conscincia). A relao entre pesquisa e prtica s seria inteiramente positiva em uma sociedade marcada pelo pleno emprego e com uma tcnica industrial exigente, sem, pois, qualquer contradio. Como esta condio no se cumpre em nossa sociedade, a pesquisa psicolgica s pode nascer dos obstculos das prticas sociais (que seriam disciplinados pela psicologia oficial): Sem forar a exatido, pode-se dizer que a psicologia em sua origem uma anlise do anormal, do patolgico, do conflitual, uma reflexo sobre as contradies do homem com ele mesmo. E se ela se transforma em uma psicologia do normal, do adaptativo e do ordenado, de um modo secundrio, como por um esforo de dominar as contradies (Foucault, 1957-A, pp. 121,122). O objeto de exame por excelncia neste perodo ser o homem concreto na negatividade e na contradio de sua existncia social ao longo da histria. Este homem concreto deslindado no cruzamento de vrias referncias, como o marxismo (a alienao do doente mental como produto de contradies histricas), o existencialismo (a existncia autntica expressa no sonho e na angstia, na qual a loucura seria uma forma inautntica, uma vez que desprovida de liberdade histrica) e

a psicanlise (a importncia do significado e da interpretao na apreenso da negatividade do homem). Buscando uma positividade para esta psicologia do homem concreto, ela ser recusada nas suas vertentes positivistas, uma vez que estas buscam apagar as contradies histricas, como a existente entre um mtodo positivo e o seu objeto, marcado por uma negatividade essencial (Foucault, 1957-A). Da que se possa dizer que a positividade da psicologia s pode vir da negao de sua objetividade e da afirmao da negatividade do homem: "A psicologia s se salvar atravs de uma volta aos Infernos" (op. cit., p.158). Neste quadro, a psicanlise seria a nica das psicologias verdadeiramente positiva, pois daria conta do negativo do homem: "Esse sentido originrio ainda um dos paradoxos e uma das riquezas de Freud, de ter percebido melhor que qualquer outro, contribuindo para recobri-lo e escond-lo" (op. cit., p.158). E, deve-se acrescentar, com a metodologia adequada, qual seja, a busca de significaes objetivas (Foucault, 1957-A). Contudo, a contradio mais notvel no seio da psicologia estaria em seu estatuto como saber crtico, posto que estaria num regime entre a tomada de conscincia de nossa constante produo de iluses, prpria da histria, e a denncia dos erros, inerente s cincias naturais. A psicologia teria pois um estatuto hbrido: crtica como a histria, mas realista como a cincia. Contudo, este saber no atingiria nem a positividade das cincias (a objetividade) nem a da histria (do reconhecimento das iluses), restando apenas o constante ultrapassamento crtico de si que a caracteriza (Foucault, 1957-B., p.144-145). deste modo que este "jovem Foucault" explica a pluralidade da psicologia: ela ocorre porque cada orientao sua (behaviorismo, gestaltismo, psicologia dinmica, etc.) se ergue nesta misso de uma critca hbrida contra as demais, sempre denunciando-as entre a iluso e o erro. 2- Foucault arquelogo (dcada de sessenta) O sentido do trabalho arqueologico de Foucault a ampliao do alvo de suas investigaes, passando do exame das condies de surgimento da psiquiatria (Histria da Loucura), s da clinica (Nascimento da Clnica), e at ao crculo antropolgico que as constitui (As Palavras e as Coisas). A literatura ser tomada nesta fase como uma alternativa a este crculo antropolgico, afirmado-se neste perodo de diversos modos, conforme cada subfase, e em contraste com os objetos examinados ao longo dos deslocamentos arqueolgicos (loucura, clnica, cincias humanas). Neste bojo, a psicanlise e a psicologia sero avaliadas de modo diferenciado conforme as subfases deste perodo. 2.a) Arqueologia da Percepo (Histria da Loucura, 1961-1962) O tema da histria da loucura poderia sugerir a presena de uma histria progressiva da psiquiatria, ao modo das histrias da cincia. Mas segundo Machado (1982-A, pp.9395), se possvel vislumbrar um sentido histrico para a psiquiatria, ele negativo, pois o suposto progresso desta implica o distanciamento daquilo que tomado como referncia para Foucault nesta poca: a experincia trgica da loucura. No se trata de uma essncia imutvel da loucura, mesmo ao "confrontar as dialticas da histria e as estruturas imveis do trgico" (1961-A, p.162). Trata-se de uma experincia (portanto sem qualquer carter universal como promete a pesquisa de uma essncia), e trgica (sem a menor possibilidade de sntese ou pacificao). Neste referencial nietzscheano, o homem concreto deixa de ser a medida da negatividade que lhe atravessa. Torna-se

mais uma das figuras aptas a silenciar a loucura: "Se (Pinel) libertou o louco da desumanidade de suas correntes, acorrentou ao louco o homem e a sua verdade" (Foucault, 1961-B, p.522). A recusa ao homem concreto remete a um abandono do referencial marxista, presente na mudana do conceito de alienao. Deste modo, este retirado de seu vis trans-histrico, e associado a uma das formas em que a loucura foi capturada pela razo moderna, como verdade do homem, na qual o louco se encontra imerso: "a alienao ser depositada como verdade secreta no corao de todo conhecimento objetivo do homem" (Foucault, 1961-B, p.457). O que se mostrar consonante com esta experincia trgica da loucura ser a literatura enquanto ausncia de obra. Segundo Machado (1999, captulo 1), esta relao passa por trs aspectos: 1) ambas seriam linguagens; 2) a loucura seria a verdade da obra literria; 3) verdade essa que se daria na ausncia de obra. O conceito de ausncia de obra seria proveniente de Artaud, apontando para uma escrita no limiar entre a loucura (ausncia de sentido) e a obra (produo de uma ordem determinada). De todo modo, a linguagem do louco, dada numa autoimplicao que no apontaria para nada mais alm dela (o vazio da linguagem), serve de modelo para a compreenso da literatura, e medida para julgar o suposto progresso da psiquiatria. Agindo num sentido excludente, a constituio do dispositivo psiquitrico revelar em seu desenrolar o silenciamento, a distncia e a tentativa de domnio da experincia trgica da loucura. Esta histria ser contada na partio entre dois nveis, o da Percepo (que vir mais tarde a configurar o que Foucault nos anos setenta designa por poder) e o do Conhecimento (que vir a se transformar em saber em As Palavras e as Coisas), distribudos em trs grandes perodos: Renascimento (do fim da Idade Mdia at 1650, data inicial do Grande Internamento), Idade Clssica (de 1650 at 1789, e a suposta libertao dos loucos por Pinel) e Modernidade (que engloba a atualidade). Somente a experincia trgica da loucura permaneceria imvel ao longo dos tempos. Ainda que ao longo da fase arqueolgica mudem os alvos de pesquisa para a clnica e para as cincias do homem, estes perodos permanecero os mesmos. Mesmo sendo mudados os referenciais da pesquisa foucaultiana, persevera a hiptese do primeiro perodo, da psicologia gerada atravs dos avessos da prtica, ou, conforme frmula de Frederic Gros (1997, p.80), da luz das empiricidades nascendo na escurido. No presente caso, a escurido refere-se s baixas origens da psicologia ligadas ao movimento de internao massiva da loucura (perodo clssico) e fixao de uma natureza humana como verdade da loucura a partir da paralisia geral, loucura moral e da monomania: "o homo psychologicus descendente do homo mente captus" (Foucault, 1961-B, p.522). Para utilizar novamente uma imagem de Gros (1997, p.79), o homem e a psicologia "apiam sua positividade no vazio furioso do insensato". Quanto ao homem, este "s se torna natureza para si na medida em que capaz de loucura [...] forma principal e primeira do movimento com o qual a verdade do homem passa para o lado do objeto e se torna acessvel a uma percepo cientfica" (Foucault, 1961-B, p.518). No que diz respeito psicologia: O paradoxo da psicologia "positiva" do sculo XIX o de s ter sido possvel a partir do momento da negatividade: psicologia da personalidade por uma anlise do desdobramento; psicologia da memria pelas amnsias; da linguagem pelas afasias, da inteligncia

pela debilidade mental. (op. cit., p. 518). A loucura moderna sob a qual repousa o homo psychologicus seria marcada por uma srie de aporias, que se veriam refletidas no campo do conhecimento. deste modo que a loucura reflete ora a verdade mais primitiva, ora a verdade mais terminal do homem; ora a loucura representa o triunfo do orgnico (materialismo), ora a maldade em estado selvagem (espiritualismo); ora o acmulo de razes que se desdobra na irresponsabilidade (determinismo), ora a ausncia de qualquer razo plausvel; ora uma contradio na prpria razo em vigor, ora a necessidade da razo do outro, como no tratamento moral (op.cit., pp. 512-514). Em suma, neste sentido que se pode dizer que a psicologia tributria da loucura, mas no vice-versa. De modo que possvel afirmar que Foucault pretende tomar a desmedida como medida da psicologia: Ela [a psicologia] est sempre na encruzilhada entre dois caminhos: aprofundar a negatividade do homem ao ponto extremo onde amor e morte pertencem um ao outro indissoluvelmente, bem como o dia e a noite, a repetio atemporal das coisas e a pressa das estaes que se sucedem - e acaba por filosofar a marteladas. Ou ento exercer-se atravs de retomadas incessantes, os ajustamentos do sujeito e do objeto, do interior e do exterior, do vivido e do conhecimento (op. cit., p.522). A psicanlise desbancada por Nietzsche como via de acesso ao negativo do homem. Nesse incio dos anos sessenta, passa a ter estatuto ambguo, pois se Freud teve a vantagem de se opor estrutura asilar, por outro lado, ele est includo na linhagem mdica inaugurada por Pinel: Freud fez deslizar na direo do mdico todas as estruturas que Pinel e Tuke haviam organizado no internamento. Ele de fato libertou o doente dessa existncia asilar na qual tinham alienado seus "libertadores". Mas no o libertou daquilo que havia de essencial nessa existncia; agrupou os poderes dela, ampliou-os ao mximo, ligando-os nas mos do mdico... (Foucault, op.cit, p. 503). Contudo, como lembra Derrida (1994), Histria da Loucura um dos textos mais ambguos de Foucault, onde seu pndulo oscila mais, pois em vrias outras passagens a psicanlise vista como prxima experincia da desrazo clssica abafada pela psicologia moderna (posio presente em todo o livro, com exceo dos dois ltimos captulos): Freud retomava a loucura ao nvel de sua linguagem, reconstitua um dos elementos essenciais de uma experincia reduzida ao silncio pelo positivismo. Ele no acrescentava lista dos tratamentos psicolgicos da loucura uma adio maior; reconstitua, no pensamento mdico, a possibilidade de dilogo com o desatino... (Foucault, 1961-B, p.338). 2.b) A Arqueologia do olhar (Nascimento da Clnica, 1963-1964)

Do mesmo modo que opera em relao histria da psiquiatria, Foucault, no exame da clnica, pretende pr prova o seu estatuto atemporal, atravs de um suposto olhar que se apuraria progressivamente. Pelo contrrio, ela se constituiria atravs de diversas articulaes entre o visvel e o dizvel. Para tal, o par estrutural Ver-Dizer (ou olhar loquaz, olhar-linguagem, espacializao-verbalizao, etc.) se impe como conceito fundamental. Aqui, cada termo pertence ao outro numa relao intrnseca, de resto bem diversa da distncia do par Percepo-Conhecimento. tambm em O Nascimento da Clnica (1963-B) que Foucault faz a primeira referncia ao termo arqueologia, presente no subttulo. As fases desta histria so as mesmas de Histria da Loucura: haveria uma protoclnica clssica (com o predomnio do dizer sobre o ver, marcada por uma taxonomia dos sintomas, relacionando-os como signos dentro de uma botnica das espcies patolgicas ideais) e uma antomo-clnica moderna (com o privilgio do visvel no par estrutural, remetendo a patologia no mais a um conjunto de signos ideais, mas ao volume corporal dos tecidos), intermediadas por uma clnica na passagem do sculo XVIII para o XIX (com equilbrio entre viso e discurso, onde sintoma e sentido se equivalem). A referncia s prticas sociais, ou como Foucault chama neste livro, estruturas tercirias da medicina, do-se na primeira metade do livro, numa abordagem prxima da que ser retomada no perodo genealgico, ainda que se sustente aqui uma concepo repressiva do poder. A tese de Foucault sobre as estruturas tercirias da medicina remete soluo de compromisso entre as foras presentes no perodo da Revoluo francesa: entre o corporativismo dos mdicos, buscando codificar o ensino profissional para controle dos charlates; o liberalismo emprico, associado ao fim dos privilgios, associando qualquer conhecimento ao olhar livre; e o assistencialismo, presente na instituio hospitalar, enquanto depsito de doentes pobres, com o fim de isol-los do convvio com outras classes. A clnica costura estas demandas enquanto ensino emprico-prtico que distingue os mdicos dos oficiais de sade em sua formao, os primeiros atuando sobre os pobres depositados nos hospitais, que pagariam a sua assistncia com a exposio para uma pedagogia clnica a ser revertida mais tarde em tratamento seguro para as classes mais altas. Mantm-se aqui a mesma lgica de gnese pelo avesso das prticas inaugurada pelo primeiro Foucault e prosseguida na Histria da Loucura, conforme atesta Frederic Gros (1997, pp. 75-82). Da mesma maneira que se devem buscar as origens da psicologia na loucura, a da clnica deve ser buscada na morte: "Isto que estabelece a rigidez de um cadver o frio rigor das leis que comandam a vida"(op. cit., p. 80). De toda maneira, esta lgica que permite que pela primeira vez se estabelea no ocidente uma cincia do indivduo, tomando o homem como objeto: "A velha lei aristotlica que interditava sobre o indivduo o discurso cientfico foi levantada quando, na linguagem, a morte encontrou o lugar de seu conceito" (Foucault, 1963-B, pp. 195-196). Na dcada seguinte, genealgica, caber prtica do exame e no mais morte ou loucura a gnese do indivduo. Ainda que o entorno de seu pensamento se modifique, as palavras do jovem Foucault ainda ecoam: O homem ocidental no pde se constituir a seus prprios olhos como objeto da cincia, ele no se toma no interior de sua linguagem, nem se d a si seno na abertura de sua prpria supresso: da experincia da Desrazo, nascem todas as psicologias e a possibilidade mesma da psicologia; da integrao da morte no pensamento mdico nasce uma

medicina que se constitui como cincia do indivduo (Foucault, op. cit., p.227). Outra passagem relevante as d quando Foucault relaciona o surgimento das Cincias Humanas passagem de uma medicina regulada pela noo de sade para uma mais recente regida pelo conceito de normalidade: Se as cincias do homem apareceram no prolongamento das cincias da vida, talvez porque estavam biologicamente fundadas, mas tambm porque o estavam medicamente; sem dvida por transferncia, importao e, muitas vezes metfora, as cincias do homem utilizaram conceitos formados pelos bilogos; mas o objeto que eles se davam (o homem, suas condutas, suas realizaes individuais e sociais) constitua, portanto, um campo dividido segundo o princpio do normal e do patolgico. (op. cit., p.40). Por outro lado, inaugura-se a fase de aproximao com a psicanlise, que segue at As Palavras e as Coisas. No texto A loucura, ausncia de obra (1964-A), Foucault considera quatro desvios da linguagem, remetidos a quatro modos de loucura: as palavras sem sentido (prpria dos insensatos, imbecis e dementes), as blasfematrias (dos violentos e furiosos), as palavras com sentido proibido (dos libertinos e teimosos) e a linguagem esotrica (para onde a loucura migra no incio da modernidade). Esta quarta modalidade apontaria para uma forma da linguagem e da loucura que somente a psicanlise daria conta, na medida em que toma-a no como uma ordem oculta, "mas como reteno e suspenso do sentido, como criao de um vazio onde possa se alojar no um, mas vrios e diferentes sentidos" (Plbart, 1989, p.115). Tal concepo faz eco com a tese exposta em Nietzsche, Marx e Freud (Foucault, 1964-B), em que a interpretao vista no como uma escavao de sentidos, mas como uma sobreposio destes por sua fora, sem que haja um primeiro termo de origem. 2.c) A Arqueologia do Saber (As Palavras e as Coisas, 1965-1967). Neste livro Foucault ir tambm se posicionar no interior da contenda mais marcante do pensamento francs da poca: a que opunha estruturalistas e fenomenlogos. Ainda que o privilgio concedido histria distancie-o do perfil de um estruturalista clssico, e que a sua idia de estrutura se aproxime mais da de Georges Dumzil do que da de Claude Lvi-Strauss e Jacques Lacan, do lado destes que Foucault ir se perfilar. Irmana-se a estes ao negar o privilgio do conceito de homem ("apenas um rosto a se desvanecer na areia") e de sujeito em prol de um sistema de linguagem pura (1966-B, p.32), ou ser da liguagem. As diferenas com relao ao entendimento do que seja esta linguagem pura, e o privilgio da histria se tornaro mais latentes no proximo subperodo, e o estruturalismo inicial de Foucault ceder sua negao, como ocorre com vrias de suas alianas ao longo de seus trabalhos. Neste texto ser proposta uma nova trama conceitual. Teramos de um lado os saberes, ou os conjuntos de enunciados que so possveis dentro de uma poca (anteriores a qualquer legitimao cientfica), e por outro, aquilo que subjaz arqueologicamente a estes, a pistm, que fornece uma lgica ou uma estrutura congruente a todo este conjunto de saberes. A pistm, com suas caractersticas de profundidade e globalizao (cf. Machado, 1982-A, pp. 149-150), refere-se condio de

possibilidade histrica de um conjunto de saberes aparentemente dispersos num perodo, nutrindo-os como o seu "hmus" (Canguilhem, 1970). Esta "experincia pura da ordem e de seus modos de ser" (Foucault, 1966-A, p.10) o que permite se pensar numa estrutura histrica (por mais contraditrio que seja este termo) dos saberes, como, por exemplo, a representao, enquanto pistm do perodo clssico, dada na tomada dos objetos atravs da relao de signos, analisando-os, ordenando-os e classificando-os, como prprio da histria natural, anlise das riquezas e gramtica geral dos sculo XVII e XVIII. Em oposio a esta lgica taxonmica com fundamento divino, a modernidade atravs das cincias empricas (biologia, economia e filologia) penetraria mais alm das superfcies semiticas, se aprofundando no volume dos corpos, escavando um objeto at ento inusitado: o homem enquanto ser histrico e finito, uma vez que vivo, falante e produtor de valores. Este mesmo homem que, de objeto emprico, reduplicado em fundamento transcendental pela filosofia, desbancando Deus e fechando em torno de si um crculo, que Foucault denominar antropolgico. Crculo em que o homem ganha duplo estatuto de ser transcendental e emprico, fonte do cogito e limite impensado deste, retorno e recuo de toda origem. Neste crculo, a filosofia crtica de Kant, que buscava separar entre um nvel emprico e outro transcendental, ser esquecida. deste modo que o crculo antropolgico, de efeito da negatividade das prticas nas fases anteriores do pensamento foucaultiano, torna-se pistm, condio de possibilidade dos saberes modernos, como a psicologia e as demais cincias humanas. Com as mudanas na anlise da modernidade, muda tambm o a priori histrico da psicologia, estabelecendo-se em Foucault uma segunda hiptese quanto gnese deste saber. deste modo que a psicologia, como as cincias humanas, reduplica o homem como objeto emprico no homem como ser transcendental, atravs da representao (ressuscitada da idade clssica) numa conscincia. Reduplicao, uma vez que o homem como fundamento j seria, por sua vez, uma duplicao filosfica do homem escavado como objeto emprico pelas cincias empricas (biologia, economia e filologia). Este quadro reduplicado das Cincias Humanas configurado atravs de um triedro (incluindo aqui tambm os modelos formais das matemticas). Assim, na psicologia, o que se encontra reduplicado o transcendental positivista da norma, que por si j a duplicao da anlise emprica da funo em biologia. Mas perfeitamente possvel se pensar uma psicologia nos duplos da economia (conflito e regra) ou da lingstica (significao e sistema). Cincias empricas (ou do homem), filosofias antropolgicas e sistemas formais constituem os eixos do triedro moderno em que a psicologia, junto com as cincias humanas, ocupar o volume interno (Foucault, 1966A, pp. 450-451). Em funo desta minuciosa descrio da pistm moderna, que Canguilhem (1970, pp.146-147) comparar analogicamente o que foi a Crtica da Razo Pura para as Cincias Naturais, com o que pde ser As Palavras e as Coisas para as Cincias Humanas. Alm destas consideraes presentes em As Palavras e as Coisas, Foucault, numa curiosa entrevista a Alain Badiou (Foucault, 1965, p. 440), define a psicologia como uma Cincia Humana singular, uma vez que em oposio s demais: como cincia da alma em oposio fisiologia; como cincia do indivduo em oposio sociologia; e como cincia da conscincia em oposio s filosofias de Nietzsche e Schopenhauer, oposio esta mais decisiva, e que reaglutina todo o campo das cincias humanas em torno da noo de inconsciente (mas ainda dentro do crculo antropolgico). Ressalta tambm o aspecto normativo da psicologia, tal como ser deslindado no perodo

genealgico: "Toda psicologia uma pedagogia, todo deciframento uma teraputica, voc no pode saber sem transformar" (op. cit., p. 444). De igual modo ressalta a importncia de Dilthey na definio das cincias humanas em oposio s cincias naturais, e em torno da hermenutica, "tcnica [...] que no tem cessado de existir no mundo ocidental desde os primeiros gramticos gregos, dentre os exegetas da Alexandria, dentre os exegetas cristos e modernos"(op. cit., pp. 446-447). Curiosa hiptese sobre a gnese das Cincias Humanas (e da Psicologia) sob as graas da hermenutica, que comear a ser desenvolvida quinze anos mais tarde no perodo dos estudos sobre o cuidado de si. A psicanlise tem aqui a sua fase de elogio mximo. Forma junto com a etnologia e a lingstica (pontas de lana do estruturalismo na poca), as Contracincias Humanas, que dissolvem o ser humano em suas anlises: Em relao s cincias humanas, a psicanlise e a etnologia so antes contracincias; o que no quer dizer que sejam menos racionais ou objetivas do que as outras cincias, mas sim que as abordam contra a corrente, reconduzindo-as ao seu suporte epistemolgico e que no cessam de desfazer este homem que nas cincias humanas faz e refaz a sua positividade (Foucault, 1966-A, pp. 492). Contudo, na entrevista concedida a Alain Badiou, Foucault (1965) volta a situar a psicanlise e a interpretao no mesmo Crculo Antropolgico em que se encontra encerrada a psicologia experimental. Mais ainda: toda a Psicologia bem como as Cincias Humanas se encontrariam redefinidas pela noo de inconsciente: ela redefiniria velhos problemas, como as oposies indivduo X sociedade e alma X corpo, dissolvidas em prol do conceito de psych (op.cit., p.441). Aqui a psicanlise e a psicologia situam-se do lado da exegese e da hermenutica, e em oposio literatura e loucura, posicionadas no mbito da semiologia (Foucault, 1965, pp. 442-443). Se no primeiro caso a linguagem buscada como uma interpretao ltima, na semiologia ela tomada no vazio de suas leis. Balanando ainda mais o pndulo referido por Derrida, Foucault, em um outro texto da mesma poca, Nietzsche, Marx e Freud (Foucault, 1964-B), sustenta que este trio de pensadores se irmana ao tomar a interpretao a partir da infinitude, da violncia, da falta de um referente primeiro e de um interpretante. A interpretao, presente aqui como uma estranha fuso entre o domnio dos saberes e o da linguagem, visvel numa "regio entre a loucura e a pura linguagem" (op. cit., p.27) marca o vazio da linguagem com que a psicanlise dialogar. A interpretao ter seu espao privilegiado no pensamento foucaultiano da prxima subfase, sob o nome de discurso. Mas a psicanlise no mais: o pndulo ser paralisado no seu ponto mais distante. . 2.d) Perodo de transio: a Arqueologia dos enunciados (Arqueologia do Saber, A Ordem do Discurso, 1968-1970) Morey (1996, p.17) descreve Arqueologia do Saber como um livro possuidor de uma metodologia ficcional inteiramente escrita em condicional, que no se aplica a nenhum outro livro seu. Da o equvoco de Dreyfus e Rabinow (1995) em julgar o seu fracasso

terico deste texto como tendo conduzido genealogia. Pelo contrrio, podem ser vistas caractersticas antecipadoras da genealogia se forem comparadas as caractersticas dos discursos com a subseqente analtica genealgica do poder. Da mesma forma com que o poder proceder na genealogia, os discursos se impem como unidade de anlise, se propondo na sua materialidade, disperso, raridade e fora irruptiva a substituir as antigas unidades tradicionais da anlise. Da a recusa s grandes unidades da linguagem como esprito, sujeito, autor (no seriam mais fundamentos, mas funes variveis e complexas do discurso), obra e escrita (meras substitutas das noes anteriores), objeto, rea temtica, mtodo, estilo e conceito (formados atravs das regras das formaes discursivas), significado, frase, proposio e estrutura (meros produtos da monarquia do significante). Em A Ordem do Discurso, Foucault (1970, pp. 60-70) define pela primeira vez a sua tarefa como genealgica, ainda que no se refira analtica dos poderes: ela diria respeito ao exame dos discursos em sua disperso, descontinuidade e regularidade; enfim, em seu poder de afirmao, prprio de um positivismo feliz. Os discursos constituem objetos que sintetizam caractersticas dos saberes e do ser da linguagem (nesta poca praticamente desaparecem os textos sobre linguagem literria), e que, por outro lado, antecipam as caractersticas dos poderes na sua fora, materialidade e disperso. Seguindo formulao da A Arqueologia do Saber (1969), o discurso composto por enunciados, que so regulados em sua disperso por formaes discursivas. Quando um conjunto de enunciados se singulariza em torno de uma formao discursiva, tem-se uma positividade, que prpria de um saber; positividade esta que no necessariamente cientfica, mas que pode at vir a s-lo em funo de seu limiar. Se a Arqueologia do Saber privilegia a descrio dos elementos do discurso e sua regulao, a Ordem do Discurso (1970) trata dos seus riscos e restries, a fim de "conjurar o discurso em seu zumbido" (op.cit. p. 50). Se os riscos do discurso podem ser externos (poder e desejo) ou internos (acaso e acontecimento), os sistemas de excluso tambm o so externos (proibio da palavra, segregao da loucura e vontade de verdade) e internos (comentrio, autor e disciplina), alm dos mecanismos de restrio (ritual, sociedade de discurso, doutrina e apropriao social do discurso), que visam selecionar os sujeitos/temas. O mesmo tema ir nortear seu primeiro curso no Collge de France (1997-A), em que ope a Vontade de Saber (discursiva) Vontade de Verdade. Chega tambm a afirmar como alvo de exame as relaes do discursivo com o no-discursivo, ou prticas sociais (Foucault, 1971). Mas no determina os modos de relao, nem ainda realiza uma analtica do poder. Por isto tudo se trata de um perodo de transio, o canto de cisne da arqueologia. Nesta trama conceitual, a psicologia no alvo de grande novidade em sua abordagem, a no ser na sua considerao como efeito da Vontade de Verdade no interior do campo discursivo (conferir a Ordem do Discurso, 1970), ou da sua histria enquanto descrio gentica sempre retomada criticamente, em oposio descrio epistemolgica, formal e dedutiva das matemticas (Conferir Sobre a Arqueologia das Cincias, 1968A, p.46). Quanto psicanlise, cessa a aliana prpria dos meados desta dcada. Surge a figura dos instauradores da discursividade, englobando Marx e Freud, a fim de dar conta de uma relao especfica de autoria nas Cincias Humanas (O que um autor?, 1968-B). Esta idia, j presente desde Nietzsche, Marx e Freud (1964-B), aponta para uma figura de autor diversa das Cincias Naturais, em que nestas a presena de um nome, como por exemplo no Teorema de Tales, aponta apenas para uma homenagem. Neste caso, o ato de fundao do autor pertence a um mesmo conjunto de

transformaes lgicas que este sistema sofrer ao longo do tempo (Foucault, 1968-B, p.61). Dentre os instauradores de discursividade, ao contrrio do que ocorre nas Cincias Naturais, o retorno a um autor aponta para uma volta, ao mesmo tempo legitimadora (no se trata apenas de uma homenagem) e diferencial, escavando no texto vrios outros discursos possveis: "a instaurao de discursividade heterognea em relao s suas transformaes ulteriores" (op. cit., p.62). Aqui a fundao se encontra, pois, em relao de retrao ou excesso com relao aos desenvolvimentos subseqentes. Segue-se da que a validade dos discursos subseqentes no se encontra pertinente em relao sua estrutura ou normatividade intrnseca, mas ao prprio apelo aos instauradores. este reexame contnuo, franqueado pela discursividade, que se permite a contnua releitura de Marx e Freud, mas jamais de Galileu e Newton. 3- Foucault genealogista (dcada de setenta) O objeto postulado, os poderes no so mais do que a traduo para o campo da prticas sociais das propriedades dos discursos: materialidade, disperso, fora irruptiva e raridade. deste modo que Foucault prope uma nova analtica do poder, de natureza blica, de resto oposta liberal e marxista, ambas baseadas no binmio contrato-opresso (conferir Foucault (1976-D, p. 175). Assim, no haveria um nico poder que emana de cima, do Estado, propriedade de uma classe (a burguesia), atuando por razes econmicas, e operando apenas no sentido repressivo, ou quando muito, produzindo ideologia, ou falsa conscincia. Tal leitura do poder de cunho econmicojurdico, prpria do poder soberano, no reconhece uma multiplicidade de poderes que se espalham por todas as direes da sociedade (trata-se de uma rede sinptica, de capilaridades), ao modo de lutas contnuas e sem sujeito, situadas nas relaes, entre os corpos, podendo ser aglutinadas ou no por um Estado ou por uma classe social, no apenas reprimindo, mas principalmente produzindo saberes, desejos e estados corporais, e gerando resistncias e contra-poderes. Esta nova analtica do poder (Foucault recusa o termo teoria) aponta para outra matriz, distinta da liberal-marxista, ao apontar a guerra como modelo. Parafraseando Clausewitz: "A poltica a guerra prolongada por outros meios" (op. cit., p.176). Na relao com tal configurao do poder se instala um novo papel do intelectual, no mais na enunciao de caminhos e direes a serem seguidas, mas na problematizao das relaes de poder atuais e destruio das evidncias a elas ligadas, para tal se engajando em torno de lutas locais (em oposio ao intelectual global), inventando novos mecanismos de resistncia, e buscando sancionar e dar voz aos contra-poderes (conferir Foucault, 1972). O sentido da genealogia pode ser visto em um esmiuar, de modo cada vez mais detalhado as formas de poder: das formas jurdicas (a medida, o inqurito e o exame) passa-se separao entre os poderes soberano (baseado na lei) e disciplinar (baseado na norma), e da subdiviso deste entre uma biopoltica (sobre populaes) e uma antomopoltica (sobre indivduos); ambos fariam parte da biopoder. O poder pastoral, proposto no final dos anos setenta, rene todas as propriedades do biopoder (individualizador e coletivizante), modificando contudo a noo de poder, vista no mais do ponto de vista da guerra contnua, mas a partir da governamentalidade. Estes deslocamentos e esmiuamentos na analtica dos poderes determinaro as subfases deste perodo. Nestas sero enunciadas hipteses diversas sobre a gnese da psicologia, da psicanlise e das cincias humanas, que iro se desdobrando conforme os poderes postulados. As psicologias e as cincias humanas vo ser vistas se produzindo e se reproduzindo neste amlgama de poderes. Mas de todos estes saberes nenhum ter

tanto destaque quanto psicanlise. De uma crtica parcial no incio do perodo, ao se alinhar s teses do Anti-dipo de Giles Deleuze e Felix Guatari, Foucault passa no final da dcada a tomar a psicanlise como alvo principal de suas problematizaes, questionando inicialmente o dispositivo da sexualidade, e em seguida, j no perodo seqente, a hermenutica do desejo. A dobradia citada por Derrida se mover na direo de um fechamento das portas psicanlise. 3.a)As Formas Jurdicas (A verdade e as formas jurdicas, 1971-1973) O primeiro modo em que a questo do poder tematizada se d atravs da relao entre as modalidades jurdicas historicamente determinadas e as formas de verdade. Relacionar aqui o poder e a verdade no possui o tom de denncia, a ser concluda na busca de desenlace entre os termos. Neste aspecto, a verdade no um objetivo a ser atingido, mas um objeto a ser estudado. deste modo que a Medida, como modo grego de justia, engendra o Conhecimento Matemtico; o Inqurito, gerado na Idade Mdia serve de parmetro para as Cincias da Natureza; e o Exame, produzido na Modernidade, conduz s Cincias Humanas (cf. Foucault, 1997-B). Em outros textos como A verdade e as formas jurdicas (1973-C) e Vigiar e Punir (1975-A, Foucault no trata da Medida, mas da prova, ou justa entre os homens, em que a justia e a verdade eram decididas por interveno da graa divina, tal como se procedia na Antigidade. De todas as formas de verdade, as Cincias Humanas so as que menos se distanciam de sua estrutura jurdica de origem. desta forma que "o exame, meio de fixar ou de restaurar a norma, a regra, a partilha, a qualificao, a excluso" visto como a "matriz de todas as psicologias, sociologias, psiquiatrias, psicanlises, em suma, do que se chama, cincias do homem" (Foucault, 1997-B, p. 20). As demais hipteses que se seguiro neste perodo sero um aprofundamento desta. Contudo, cabem as referncias psicologia como um quinto poder, numa sociedade em que at o poder poltico passa a ter funo teraputica (Foucault, 1973-B). Trata de igual modo (1997-C, p.42-43) do surgimento do sujeito psicolgico no sculo XIX, como efeito de uma nova fsica do poder, marcada por uma tica (em que o panoptismo o maior smbolo da vigilncia constante), uma mecnica (disciplina da vida, do tempo, das energias) e uma fisiologia (normalizao por intervenes corretoras). Quanto psicanlise, Foucault endossa de incio as teses de O Anti-dipo de Deleuze e Guatari, num prefcio edio americana (1973-A). Aqui, um dos trs adversrios da nova concepo desejante arrolada no Anti-dipo so: "Os deplorveis tcnicos do desejo os psicanalistas e semilogos que registram a cada signo e cada sintoma e que gostariam de reduzir a organizao mltipla do desejo lei binria da estrutura e da falta" (op. cit., p.198). A crtica nitidamente enderea-se a Lacan. Mas o ataque fundamental psicanlise feita em uma palestra A Casa dos Loucos (Foucault, 1975B), em que a psicanlise considerada como uma das formas iniciais de despsiquiatrizao, ou quebra da relao entre o poder e a verdade sobre o louco que o psiquiatra propaga no espao asilar. Contudo, o esforo de despsiquiatrizao da psicanlise se revelaria incompleto, pois se por um lado o poder de enunciar a verdade cede ao silncio do analista, por outro, a recluso se recodifica no poder mdico ritualizado na cena analtica. Aqui retoma-se uma velha tese presente na Histria da Loucura da psicanlise como ampliadora dos poderes mdicos. Das tentativas de despsiquiatrizao, ou quebra desta equao verdade-poder, promovidas pelas

psicocirurgias, psicofarmacologia, psicanlise e antipsiquiatria, somente a ltima romperia este teorema por completo (op. cit., pp.125-126), uma vez que no recodifica nem o saber nem o poder psiquitrico na sua destituio do espao asilar. neste sentido que a antipsiquiatria se impe enquanto contra-poder e modo de questionamento do saber mdico. 3.b) Normatizao e disciplina (Vigiar e Punir, 1973-1975) Aqui, os poderes passam a ser repartidos entre duas grandes modalidades: a Soberana, de onde derivam todos os pressupostos clssicos da concepo jurdico-econmica de poder, e a Disciplinar, donde se legitimam os poderes das Cincias Humanas, da Medicina e Psiquiatria, e seu respectivo modo de saber, qual seja, o Exame. Se a forma Soberana opera conforme o critrio da Lei, a Disciplina atua conforme o princpio da Norma, de natureza biolgica e vital. O poder soberano representa um instrumento da monarquia no combate aos poderes feudais, substituindo a guerra pelo tribunal, pelo litgio judicirio, fazendo reaparecer o direito romano nos sculos XIII e XIV (Foucault, 1976-B, pp.24-25). Posteriormente a burguesia passa a usar este modo de poder jurdico calcado no direito para dar forma s trocas econmicas, e em seguida, pr em xeque a prpria monarquia (op. cit., p. 25). Este modo de poder, em que atravs da lei se atua por decretos e enunciados sobre uma realidade representada como cdigo inflexvel, apresenta alguns inconvenientes: se mostra descontnuo (o castigo espordico e exemplar), com malhas largas (por onde operaram o contrabando e a pirataria), oneroso (freiando o fluxo econmico atravs de impostos sucessivos, por exemplo) e rgido (na interpretao cabal da lei). A disciplina, por outro lado, tem sua origem em dois modelos de controle dos indivduos (conferir Foucault, 1975-A, pp. 173-174): o da peste (de esquadrinhamento de uma populaco) e o da lepra (excluso). Esta nova forma de poder representa uma malha mais fina e flexvel do poder, atuando sobre os corpos em ao, ordenando-os ao longo do tempo e do espao, e visando extrair deles o mximo de docilidade e utilidade. Para tal, opera uma distribuio dos indivduos em um espao fechado (hospitais, casernas, fbricas, por exemplo), controlando o seu tempo, atravs de um sistema de vigilncia (em que o Panopticum o caso exemplar na medida em que permite o mximo de visibilidade de todos sem ser visto), e produzindo um saber administrativo, que mais tarde gerar as cincias humanas (Machado, 1982-B, pp. XVII-XVIII). No se trata mais de um "controle-represso", mas de um "controleestimulao" (Foucault, 1975-C, p.147). Surgem novos atores do poder, zeladores da norma, separando o anormal do normal como o joio do trigo: professores, juzes, psiquiatras, mdicos e psicanalistas (Foucault, 1979-B, p.54). Os indivduos so o seu alvo e efeito por excelncia: "o indivduo no o outro do poder: um de seus primeiros efeitos. O indivduo um efeito do poder e simultaneamente, ou pelo prprio fato de ser um efeito, seu centro de transmisso. O poder passa atravs do indivduo que ele constituiu" (Foucault, 1976-A, p. 183-184). deste modo que a priso cria o delinqente, o hospcio produz o doente mental, e a confisso e as cincias humanas inventam o indivduo em sua verdade (Machado, 1982-B, pp.XIX-XX). O caso exemplar desta ciranda dos poderes a histria das punibilidade, tal como descrita em Vigiar e Punir (1975-A). Se no perodo clssico, sob a gide do Poder Soberano, predominavam os suplcios, que se abatiam sobre os corpos desde o momento da suspeita at a condenao (no havia a separao absoluta entre

investigao e punio), numa mtrica perfeita da vingana contra a quebra da Lei, tomada como injuria ao corpo do soberano; na alvorada da modernidade, erguem-se as "vozes humanistas" contra o excesso de violncia da justia. Contudo, mais do que bons sentimentos, o que os reformistas vo buscar um dispositivo mais eficiente de controle do delito, que atinja mais as representaes dos no-infratores atravs de punies exemplares do que simples vinganas aos infratores. Mais do que reparao ou vingana, a punio deve ter fim educativo, e visar um efeito global. Contudo, no momento em que estas reformas se impunham na virada para o sculo XIX, comea a se disseminar sem qualquer teorizao prvia, as prises. A novidade que, estas, visam produzir no efeitos no corpo, mas na "alma" dos delinqentes, observ-la, descrev-la, corrigi-la: "alma, priso do corpo" (op. cit., p.32). A priso aqui atua como um dispositivo disciplinar de normatizao autnomo, e mesmo a par da justia, com todos os seus mecanismos de recompensa e punio. Tributados menos pelo crime do que pela conduta do preso neste espao. Da todos os mecanismos de observao e todos os saberes da derivados. A psicologia, como toda Cincia Humana, produzida atravs do Poder Disciplinar e pela normalizao (1975-C, pp.150-151), em que a histria das prises apenas um dos casos. Ou ainda, no confronto do Poder Disciplinar com o Poder Soberano, como sugerido em Soberania e Disciplina (1976-A, pp. 189-190). Trata-se aqui da quarta hiptese foucaultiana. Como as prises so os objetos privilegiados de anlise do Poder Disciplinar nesta subfase, encontramos na genealogia destas vrios elementos para entender a sua irrupco. Em primeiro lugar, como j destacado na subfase anterior, a psicologia e as demais Cincias Humanas so tributrias das prticas de exame. A se acrescentar aqui, um processo de maior individualizaco dos examinados no regime disciplinar, de modo diverso do regime soberano, onde a individualizaco se manifestaria nas camadas superiores : O momento em que passamos dos mecanismos histricos-rituais de formao da individualidade a mecanismos cientfico-disciplinares, em que o normal tomou o lugar do ancestral, e a medida, o lugar do status, substituindo assim a individualidade do homem memorvel pela do homem calculvel, esse momento em que as cincias do homem se tornaram possveis, aquele em que foram postas em funcionamento uma nova tecnologia do poder e uma outra anatomia poltica do corpo (op. cit., pp.171-172). Do surgimento uma maneira mais especfica, Foucault vai tentar demonstrar que estas prticas disciplinares so to importantes para o surgimento da psicologia, quanto mensurao dos limiares diferenciais das sensaes, legitimada pela Lei de Weber. O que garantiria uma cauo cientfica e jurdica no seu poder de atuao sobre os corpos: Dir-se- que a estimao quantitativa das respostas sensoriais podia ao menos usar a autoridade dos prestgios da fisiologia nascente e que a este ttulo merece constar na histria dos conhecimentos. Mas os controles da normalidade eram, por sua vez, fortemente enquadrados por uma medicina ou uma psiquiatria que lhes garantiam uma forma de "cientificidade"; estavam apoiados num aparelho judicirio que, de

maneira ou indireta lhes trazia cauo legal.. (op. cit., p. 259). A psicanlise, por outro lado, cotejada na deriva histrica que constitui os saberes e prticas psiquitricas. Inicialmente, ela vista como constituda "contra um certo tipo de psiquiatria (a da degenerescncia, da eugenia, da hereditariedade)", desempenhando, especialmente em pases como Brasil, "um papel libertador" (Foucault, 1975-C, pp. 150). Isto, contudo, no teria um sentido elogioso psicanlise, pois no se excluiria aqui seus "efeitos que entram no quadro de controle e da normalizao" (op. cit., pp. 151). Nem aboliria outras relaes mais profundas com conceitos e experincias psiquitricas. o que se pode encontrar no curso proferido no Collge de France no perodo de (1974-1975), Os Anormais. Neste curso, Foucault (1975-D, pp. 349-350) opera duas genealogias da psiquiatria em que o conceito de instinto se colocaria como chave. De um lado teramos, a masturbao infantil, considerada verdadeira pandemia no sculo XVIII, que demarcaria a sexualidade na base de diversas doenas e que instruiria uma srie de racionalizaes no espao familiar. Por outro, encontraramos o impasse surgido pela presena dos "crimes imotivados", cujo autor no podia ser classificado em um quadro de demncia clssico. Este impasse entre o sistema judicirio e o alienismo clssico encontraria a sua soluo no conceito de instinto, enquanto um conjunto de automatismos que irromperiam em circunstncias bastante especiais. Tal conceito, cuja base se encontraria na experincia de possesso (op. cit., pp. 282-283), faz com que a psiquiatria se desloque do "eixo conscincia-delrio" para o eixo "insconsciente-automatismo" (op. cit., p. 179), promovendo uma ampliao dos poderes de gerncia da psiquiatria na direo dos aparatos judicirio e familiar. Um dos exemplos da reunio destas duas genealogias, pode ser encontrada na Psychopathia Sexualis de Heinrich Kaan, que, em 1844, bem antes do surgimento da psicanlise prope um instinto sexual na base de diversas patologias (op. cit., p. 353). nesta genealogia dupla do conceito de instinto na psiquiatria, que se pode enxergar um duplo efeito contemporneo, a eugenia e a psicanlise: E, finalmente, a psiquiatria do sculo XIX vai se encontrar, nos ltimos anos desse sculo emoldurada por duas grandes tecnologias, vocs sabem, que vo bloque-la de um lado e dar-lhe novo impulso de outro. De um lado a tecnologia eugnica, com o problema da hereditariedade, da purificao da raa e da correo do sistema instintivo dos homens por uma depurao da raa. Tecnologia do instinto: eis o que foi o eugenismo, desde seus fundadores at Hitler. De outro lado, tivemos, em face da eugenia, a outra grande tecnologia dos instintos, o outro grande meio que foi proposto simultaneamente, numa sincronia notvel, a outra grande tecnologia da correo e da normalizao da economia dos instintos, que a psicanlise. A eugenia e a psicanlise so essas duas grandes tecnologias que se ergueram, no fim do sculo XIX, para permitir que a psiquiatria agisse no mundo dos instintos (op. cit., p.167).

3.c) O Biopoder (A Vontade de Saber, 1975-1977) Foucault postula neste perodo uma terceira forma de poder. Se o Poder Disciplinar (ou antomo-poltica) produz os indivduos atravs do exame com fins de normalizao, instruindo as Cincias Humanas, a Biopoltica, far surgir em meados do

sculo XVIII as populaes (grupos de indivduos governados por leis biolgicas), por meio de tecnologias de saber (como a Estatstica) empreendidas pelos rgos administrativos dos Estados europeus, visando disciplinar o coletivo e dele extrair sua mxima utilidade. O saber a ser produzido por esta biopoltica torna-se condio de possibilidade das Cincias Sociais. A reunio destas duas formas de poder constituiria o Biopoder. Para dar conta da arqueologia da psicanlise, vinculando-a a um conjunto de prticas discursivas e no-discursivas sobre a sexualidade, Foucault de igual modo cria a noo de dispositivo. Este no seria nada mais do que o conjunto heterogneo, a rede em que se enlaariam o discursivo e o no-discursivo (no se v aqui mais o saber e o poder como unidades segregadas), com relaes de funes vicariantes e intercambiveis entre as partes (um discurso pode ser um programa, um ocultamento ou a reinterpretao de uma certa prtica), e visando responder a uma determinada demanda histrica (Foucault, 1977, p.244). A psicologia no se encontra enredada nesta nova malha conceitual. Ela sai de cena mediante o ataque que passa a ser promovido em direo psicanlise. como se a psicologia no fosse mais um adversrio altura. Em A Vontade de Saber (1976-C) lanado o primeiro grande ataque de Foucault psicanlise, atrelando-a ao dispositivo da sexualidade e ao dispositivo anterior a este, o confessional da carne, de origem crist. Contrariando a hiptese repressiva da qual a psicanlise se julga libertadora, o dispositivo de sexualidade se estabelece na associao do sexo como a nossa verdade mais cara, rendendo um misto de interdio e falatrio. Deste ponto de vista, a psicanlise pouco possuiria de original. Esta argumentao ser melhor esmiuada no que se segue. De incio a psicanlise criticada em sua concepo de poder. Se, por um lado, alguns psicanalistas como Jacques Lacan e Melanie Klein, ao contrrio de Freud e Reich, no mais opem instinto, desejo ou pulso ao poder, pensando-os todos em relao complementar, por outro lado, sua concepo de poder permanece ainda atrelada ao modelo jurdico da soberania, tomando-o como lei, proibio, ou regra, tal como os etnlogos ainda fazem (Foucault, 1976-B, pp.23-24, 41). Como ser visto, este vnculo no gratuito, pois um dos modos com que a psicanlise se liga ao dispositivo da sexualidade atrelando-o ao da aliana, de cunho soberano: "sistema de matrimnio, de fixao e desenvolvimento dos parentescos, de transmisso dos nomes e dos bens" (Foucault, 1976-C, p. 100). Ligao com o Poder Soberano, mas de igual modo com a Bio-poltica, reguladora de populaes, e a Antomo-poltica individualizante: se no corpo-indivduo, o controle pela normalizao do sexo visa coibir o dispndio sem finalidade procriativa, no corpo-espcie, a regulao tem como alvo a prole saudvel e a gesto da populao (Ribeiro, 1993, pp.183). Pareia-se o sexo com a sade, tomandose esta como um valor a fim de zelar por sua pureza. Contudo, em A Vontade de Saber (1976-C), Foucault vai mais alm, remetendo o sexo a um dispositivo (o da sexualidade), que finca longas razes na histria e tem na psicanlise um de seus ltimos ramos. Mezan (1985, pp. 103-104) delineia a estratgia deste livro em quatro pontos: 1) mostrar a falsidade da hiptese repressiva da sexualidade alardeada pela psicanlise como sua suposta supressora; 2) assinalar que na verdade h uma exploso discursiva que vem desde a pastoral crist da carne (anterior ao sculo XVIII e ao dispositivo da sexualidade); 3) estabelecer a continuidade entre este regime eclesial e o cientfico atual; 4) demarcar a psicanlise como um dos efeitos deste movimento (e no a ruptura revolucionria com relao ao

cristianismo, sexologia, ou psiquiatria) . Conforme j destacado, o conceito central deste texto, que articular em rede todas estas pretenses, o de dispositivo da sexualidade. Ser novamente Mezan que nos guiar na heterogeneidade inerente a este conceito, relacionando-o s quatro causas aristotlicas: "Matria: A sexualidade. Forma: A confisso. Funo: Fixar a sexualidade sobre o sistema [dispositivo] de alianas [ou de parentesco, de natureza soberana]. Finalidade: estabelecer uma tecnologia diferenciada do sexo para uso das elites" (op.cit., p.98). Contudo, a marca mais notvel e surpreendente deste dispositivo visando estranharmos o que se mostra presente o pareamento que ele produz entre sexo e verdade: "o que aconteceu no Ocidente que faz com que a questo da verdade tenha sido colocada em relao ao prazer sexual? Esta a minha questo desde a Histria da Loucura (Foucault, 1977, p.258). Neste esquema em que, atravs da sexualidade no se fabrica prazer, mas verdade" (op. cit., p.262), a psicanlise gozaria atualmente de largo privilgio: "Ela nos promete, ao mesmo tempo, nosso verdadeiro sexo e a verdade de ns mesmos que vela secretamente nele" (Foucault, 1978-A, p.4). Este dispositivo da sexualidade, que nutre como hmus, tem em sua histria uma longa linha de continuidade. Se o dispositivo da sexualidade surge no sculo XVIII, antes havia o dispositivo da carne, que se lana no tempo em direo ao cristianismo primitivo, confisso e ao processo de direo da conscincia. So estes processos que permitem o acoplamento da verdade ao sexo: "Por confisso entendo todos estes procedimentos pelos quais se incita o sujeito a produzir sobre sua sexualidade um discurso de verdade que capaz de ter efeitos sobre o prprio sujeito" (Foucault, 1977, p.264). O que muda precisamente no sculo XVIII, na passagem do dispositivo da carne ao da sexualidade, o investimento de natureza mdico-cientfica dos discursos, em detrimento do eclesistico, mas ainda mantendo-se o esquema confessional, que atrela o sexo nossa primeira e mais ntima verdade. Como a psicanlise se enreda neste dispositivo da sexualidade? Passemos a palavra a Foucault (1976-C, p. 122-123): Vimos que ela [a sexualidade] desempenha vrios papis simultneos neste dispositivo: mecanismo de fixao da sexualidade sobre o sistema da aliana; coloca-se em posio adversa em relao teoria da degenerescncia; funciona como elemento diferenciador na tecnologia geral do sexo. Em torno dela, a grande exigncia de confisso, que se formara a tanto tempo, assume um novo sentido, o de injuno para eliminar o recalque. deste modo que a sexualidade, afastada do modelo biolgico da degenerescncia, reencontra o da lei, atravs do desejo. E assim a soberania pode ser vista no seio da sexualidade, por intermdio da lei que a regula como poder negativo de interdio na figura do Pai/Rei (Ribeiro,1993, p.185). De igual modo, este dispositivo da aliana reativado pela psicanlise congruente ao da pastoral da carne, mas com uma inverso: se na pastoral da carne, a lei impunha carne uma armao jurdico-legal, na psicanlise a sexualidade anima as regras de aliana, saturando-as de desejo. So enfim estes os trs vetores que animam o dispositivo da sexualidade sobre o qual se ergue a psicanlise: a) dispositivo da Aliana, b) pastoral da Carne, e c) referncias mdicojurdicas da Sexualidade. Em outros termos, poderes soberanos, disciplinares e biopolticos.

3.d) A Governamentalidade e o Poder Pastoral (Perodo de transio, 1978 -1979) Para alm do Biopoder, Foucault comea a estudar no final dos anos setenta a governamentabilidade, ou o governo enquanto gesto (de sade, higiene, natalidade e raas) das populaes, movimento surgido no sculo XVI. A Governamentabilidade se cristaliza entre ns como Racionalidade de Estado, que a doutrina repartida entre uma Razo de Estado, que busca determinar as especificidades do governo, e a Polcia, enquanto conjunto de objetivos, objetos e instrumentos do Estado a fim de controlar homens e riquezas. Foucault ir pr esta Racionalidade de Governo em contraste com diversos elementos: com o que a antecede e se ope, a Arte de Governar Soberana; com o que a suscede e se ope, o Liberalismo; e com o seu associado enquanto condio de possibilidade dos Estados modernos, o Poder Pastoral. Antes da Racionalidade Governamental existia o que Foucault chama de Arte de Governar Soberana, tendo como um de seus principais representantes Maquiavel, e sendo baseada no reforo de poder do prncipe, expresso na proteo apenas da extenso territorial. Como reao essa Arte de Governar, surge a partir do sculo XVI uma srie de manuais que iro lhe contrapor objetos de atuao, objetivos e estratgias polticas diversas: tem-se como alvo a gesto de riquezas e homens em diferentes nveis de governo que se implicam mutuamente, seja o de si (moral), o da famlia (economia), e o do Estado (poltica). Esta exposio da razo de governo em seu estado nascente segue a linha de manuais como os de Guillaume de La Perrirre. Mas esta racionalidade no se coloca de modo puro no interior das prticas de governo na poca. A razo de governo, expressa inicialmente no mercantilismo e no cameralismo, se encontra entrelaada com a soberania. O que desbloqueia, desenlaa e libera esta nova governamentalidade a exploso demogrfica da populao do sculo XVII na Europa. Com isto, a famlia deixa de ser modelo de governo e se torna instrumento de interveno; a populao transforma-se em alvo e instrumento para o governo; e a economia, de governo das famlias, torna-se um modo racional de interveno e controle, ou um nvel singular de realidade, uma vez que a soberania se veja superada (cf. Foucault,1978-B, pp.280-281). Quanto ao liberalismo, este visto como uma prtica, e no uma ideologia, uma teoria, ou mesmo uma representao. E esta prtica a de sempre pr a governabilidade em questo, seja em nome da sociedade, ou ainda do mercado, no sendo, portanto, um movimento apenas doutrinrio. Do mesmo modo que a governamentalidade para a soberania, o liberalismo se valeu de incio dos recursos da razo de governo como o sistema parlamentar e as polticas econmicas para se expressar (Foucault, 1997-D, pp.93-94). Contudo, uma das principais escolas liberais, a de Chicago, chega a inverter o processo: o mercado no apenas um instrumento crtico do governo, mas a prpria como racionalidade que regularia outros domnios sociais, como a famlia, a natalidade, a delinqncia e a poltica penal (op. cit., p.96). Contudo, o elemento mais fundamental nesta correlao com a Racionalidade do Estado o poder pastoral, enquanto condio de possibilidade da governamentalidade. Dando um imenso salto histrico para trs em direo Antigidade, Foucault constata que o tema do pastorado oriental (judaico, egpcio, assrio e mais tardiamente cristo), jamais dando conta do modo poltico operado na Grcia clssica. O poder

pastoral, de origem mais hebraica e propagado pelo cristianismo nascente seria demarcado pelas seguintes caractersticas: 1) o pastor exerce o poder sobre um rebanho e no sobre uma terra; 2) o pastor rene, guia e conduz o se rebanho (basta que o pastor desaparea para que o seu rebanho se disperse); 3) o papel do pastor garantir a salvao de seu rebanho, cuidando de cada indivduo dia aps dia; 4) a relao do pastor para com o seu rebanho de devotamento; tudo o que ele faz est voltado para o bem de seu grupo (Foucault, 1979-A, pp. 80-81). Este dispositivo pastor-rebanho combinado com o da cidade-cidado dar ensejo aos Estados Modernos, em seu poder, ao mesmo tempo coletivizante e individualizante. Esta reaglutinao dos poderes conduz a uma nova analtica diversa da produzida nos perodos anteriores. No artigo O sujeito e o poder (1982-A), Foucault promove uma srie de diferenciaes com relao ao tema do poder, bem diversas do modelo belicista que sustentou ao longo da dcada de setenta: o poder ter na liberdade a sua condio de exerccio. De incio (op. cit., pp.240-242) o poder diferenciado do domnio das capacidades objetivas (trabalho, tcnica e transformao do real) e da comunicao. Estes trs domnios se entrelaam em blocos, que so denominados disciplinas (eis aqui mais um deslocamento conceitual de Foucault). A disciplinarizao nada mais seria que o ajuste mais controlado entre estes trs domnios. De igual modo, distingue o poder do consentimento (transferncia de direitos ou liberdades) e da violncia (mera ao ou domnio sobre corpos); o poder seria ao sobre sujeitos ativos sem qualquer constrangimento. O poder no seria, pois, da ordem do afrontamento, mas do governo, estruturando o campo de ao dos demais indivduos. Nem seria por outro lado, a propriedade do Estado, mas o resultado da interatuao de diversos grupos (op.cit., pp.243-244). De igual modo o poder no se identifica com o confronto, ainda que este encontre o seu termo na codificao de uma relao de poder; a histria das lutas pode se traduzir na histria dos poderes e viceversa (op. cit., pp.248-249). A partir destas diferenciaes, a nota mais marcante do poder a sua existncia em ato, dada na mera ao (ou conduta tanto no sentido de comportamento como de conduzir) dos sujeitos uns sobre os outros, e supondo a liberdade destes expressa na sua possibilidade de resistncia (op. cit., pp. 234, 243). Deste modo a liberdade se coloca numa relao complexa com o poder, tornando-se sua condio e suporte, ao mesmo tempo que dependente dele para a sua existncia em ato (op. cit., p.244). Nesta relaco biunvuca entre liberdade e poder se aloja pois, a resistncia. deste modo que em textos como Omnes et Singulatim (1979-A, pp.98-99) sugerido o questionamento da racionalidade dessa forma especfica de poder que o pastoral. No caso, a critica seria voltada ao seu principal sucedneo, a Racionalidade do Estado, em seus aspectos totalizante e individualizante. Somente deste modo que se pode afrontar esta estranha figura, o Estado, que obtm sua fora do suplemento de vida que ele mesmo fornece e retira de seus indivduos. Seria preciso combater pois os seus efeitos individualizante e totalizante ao mesmo tempo, e no de modo separado Que lugar tem a psicologia e a psicanlise neste esquema? Estas, como as demais cincias humanas e sociais tem que ser combatidas, uma vez que tem sua condio de possibilidade no seio do poder pastoral, ou da governamentalidade (reunindo aquele poder e a Razo de Estado). Seria a quinta hiptese foucaultiana sobre a gnese da psicologia, considerando os saberes individualizantes e coletivizantes: "E, em vez de um poder pastoral e de um poder poltico mais ou menos ligados um ao outro, mais ou

menos rivais, havia uma ttica individualizante que caracterizava uma srie de poderes: da famlia, da medicina, da psiquiatria, da educao e dos empregadores" (Foucault, 1982-A, p. 238). A governamentalidade aponta no s para o governo dos outros, mas tambm para o governo de si que, somado sexualidade como objeto da verdade de si, gera o cuidado de si como objeto do prximo trabalho de Foucault. A questo passa a ser descobrir como um governo de si transformou-se numa verdade de si, prpria do cristianismo. 4- A tica de Si Foucaultiana (O Cuidado de Si & O Uso dos Prazeres, 1980-1984) Como tema principal desta rede conceitual se impe a tica, ou Cuidado de Si, ou Tecnologias de Si, ou ainda, o modo como nos constitumos sujeitos. Nunca demais destacar que este tema, por sua historicidade nada tem a ver com a moderna pesquisa do sujeito como sede necessria e universal do conhecimento. Contudo a constituio deste tema histrico em Foucault possui tambm uma histria. Pode-se dizer que Foucault passa do indivduo examinado na genealogia ao sujeito-sujeitado do Poder Pastoral, chegando ao sujeito governante de si nesta fase. Este tema do sujeito surge no final dos anos setenta, na confluncia entre a governamentabilidade de si (e no mais dos outros) com o da sexualidade, enquanto verdade de si. Nos textos iniciais desta fase (de 1980 a 1982), a sobreposio no sintetizada entre sexualidade e governamentalidade bem patente, gerando este conceito no completamente integrado, que o de subjetividade. Somente nos anos finais deste perodo (1983-1984) que Foucault transformar este governo de si, em que a sexualidade apenas um de seus possveis alvos, e a verdade um de seus possveis modos, em tica. Poder-se-ia pensar numa subdiviso em dois perodos menores nesta fase subjetivo-tica do pensamento de Foucault em funo da renomeao e singularizao do objeto de pesquisa, mas os ltimos anos (1983-1984) nada mais so do que uma organizao sistemtica da pesquisa dos primeiros anos da dcada (1980-1982). Se a pesquisa da subjetivao tem que ser distinta das abordagens epistemologizantes, a tica tem que ser separada do levantamento dos atos e cdigos morais. Estes cdigos ou agem determinando os atos que so permitidos e proibidos, ou atuam apenas determinando o valor de uma conduta possvel. De carter meramente proibitivo ou prescritivo, teriam permanecido quase os mesmos desde a antigidade, regulando a freqncia sexual, as relaes extraconjugais e o sexo com os jovens (Foucault, 1983, p. 265; 1984-C, p.131). A tica, ao contrrio, diz respeito ao modo de relao consigo mesmo (conferir Foucault, 1983, pp.254; 262-263). E seria composta de quatro elementos: a substncia tica (aspecto do comportamento que se encontra ligado conduta moral: pode ser a aphrodisia grega, a carne ou desejo dos primeiros cristos, a sexualidade moderna, a inteno kantiana ou ainda os sentimentos), os modos de sujeio (formas pelas quais as pessoas so chamadas a reconhecer suas obrigaes morais: pode ser uma lei natural, uma regra racional, a ordem cosmolgica etc.), o ascetismo ou prtica de si (meios ou tcnicas utilizados para nos transformarmos em sujeitos ticos, como a hermenutica crist), e, por ltimo, a teleologia (em que visamos nos transformar no contato com a moral: sujeito poltico ativo ou portador de uma bela existncia conforme os gregos, sujeito purificado de acordo com o cristianismo, ou ainda o indivduo autntico para ns).

Considerando estas categorias ticas, Foucault redelineia o seu projeto de uma Histria da Sexualidade (nome inadequado dentro dos novos propsitos), demarcando novos perodos neste cuidado de si. A partir da possvel vislumbrar uma tica grega clssica, tendo como substncia a aphrodisia (mais centrada na sade e na alimentao do que sobre o sexo), a sujeio como esttico-poltica (levando a que o indivduo busque um auto-governo de modo equilibrado como uma obra de arte), impondo, dentre as tcnicas, a contemplao ontolgica de si (trata-se de uma contemplao ontolgica e no psicolgica, pois o que estava em mira era a alma na universalidade das Idias contempladas) e, como teleologia, a maestria de si (a techne tou biou); uma tica greco-romana (correspondendo antigidade tardia), mantendo a mesma substncia do perodo anterior, mas tendo como sujeio a imagem do ser humano racional e universal (o que no implica a presena de uma verdade no sujeito, mas o conhecimento do mundo e de sua verdade, transmitida atravs da escuta e da memorizao da palavra do mestre), o surgimento de vrias tcnicas de austeridade (como a interpretao dos sonhos, o exame de conscincia, e a escrita de si; todas estas enfocando o que se faz e no o que se pensa) e tendo como finalidade um maior domnio de si (que no visa mais o governo dos outros atravs da poltica, mas o governo de si enquanto ser racional, buscando uma maior independncia do mundo e a preparao para a morte); uma tica crist, tendo com substncia a carne (enquanto ligao entre corpo e alma, conforme termo inventado por So Paulo e retomado por Santo Agostinho), um modo de sujeio religioso ou legal (a lei divina), atravs de uma tcnica de autodecifrao hermenutica, e visando teleologicamente a pureza (e seu corolrio, a castidade) e a imortalidade em um mundo alm. Apesar de Foucault no tratar de modo direto, poderia ser pensada uma tica moderna, a partir de algumas modificaes da tica crist, como a substituio do aspecto religioso pelo cientfico (mas ainda se mantendo o legal) quanto ao modo de sujeio, e a autenticidade ou afirmao do eu como thelos, onde se buscava a sua purificao e recusa, alm da proposio de novas substncias ticas, como os sentimentos e as intenes (Conferir Foucault, 1983, p.263). A partir deste balizamento, desenvolve-se uma hiptese clara sobre a gnese das psicologias (apesar de Foucault ter como alvo mais a psicanlise): elas seriam oriundas de uma forma de subjetivao crist, a hermenutica de si, que seria alvo do exame do quarto volume no concludo da Histria da Sexualidade: As Confisses da Carne. No h mais referncia ao sexo, ou do dispositivo da sexualidade. Para Goldman (1998, p.98), esta mudana se deve primazia naturalizante do desejo tanto dentro do enfoque psicanaltico (como falta e lei), quanto do micropoltico de Deleuze e Guattari (como positividade e produo). Como em ambos os casos o sexo seria um caso particular, no privilegiado do desejo, a genealogia muda de objeto (ainda que o alvo central de Foucault continue a ser a psicanlise). A proximidade com nossa subjetivao psicologizada se daria na manuteno com poucas modificaes de uma substncia tica (o desejo), e de um modo de sujeio (a hermenutica, visando o constante exame e confisso dos pensamentos mais recnditos) oriundos dos primeiros cristos. As diferenas podem ser vistas na teleologia (a purificao ou a virgindade como finalidades crists) e na negao do eu prpria dos primeiros cristos. Ao contrrio desses, ns, modernos, constitumos um novo eu na sua vigilncia e afirmao constantes atravs de uma ascese cientfica (e tambm legal e religiosa): "Desde o sculo XVIII at o presente, as tcnicas de verbalizao tm sido reinsertadas em um contexto diferente pelas chamadas cincias humanas para ser utilizadas sem que haja renncia ao eu, mas para construir positivamente um novo eu" (Foucault, 1982-B,

p. 94). As Cincias Humanas, junto com a importncia hegemnica do sujeito do conhecimento em filosofia, e com a educao crist massiva proporcionam um predomnio atual do "conhecimento de si". (Foucault em sua Conferncia de Toronto em 1982, citado por Morey, 1996, p. 37). Em oposio a este culto de si, a histria nos oferta outros modos de subjetivao, como a esttica da existncia greco-romana, que no possui qualquer valor propositivo que no o de abolir as investiduras universalizantes de decifrao do nosso eu: No culto de si da Califrnia, devemos descobrir o verdadeiro si, separlo daquilo que deveria obscurec-lo, alien-lo; decifrar o verdadeiro reconhecimento cincia psicolgica ou psicanaltica, supostamente capazes de apontar o que o verdadeiro eu. Portanto, no apenas no identifico esta antiga cultura de si com aquilo que poderamos chamar de culto californiano do si; eu acho que so diametralmente opostos (Foucault, 1982-A, p.270). Que alternativas se impem a esta hermenutica de si que vinga do cristianismo primitivo at os dias de hoje, especialmente nos saberes psi? Foucault neste perodo reservar ao intelectual o papel de destruidor das evidncias, atravs do estranhamento do modo como nos constitumos sujeitos na atualidade, apontando para tal outros modos de subjetivao ao longo da histria, como a esttica da existncia grecoromana, sem constitu-los como modelos para ns mesmos. A base para este pensamento ser buscada na filosofia de Imannuel Kant, mas no atravs das suas grandes Crticas, e sim a partir de um pequeno trabalho de 1874 denominado Was ist Aufklrung? (O que o Esclarecimento?). Foucault detecta que, ao mesmo tempo que Kant delimita suas prprias questes que iro conduzir a uma crtica do conhecimento, ou a uma analtica da verdade, por outro lado, ele ir problematizar a prpria atualidade de sua tarefa crtica, abrindo uma reflexo sobre a histria em sua atualidade, ou uma ontologia do presente, indita at ento. Se a primeira tarefa diz respeito a uma crtica transcendental, a segunda abre a possibilidade da crtica histrica, visando identificar o que nos dado como universal e o que nos resta como contingente e arbitrrio A finalidade deste processo seria a constituio de uma nova forma de liberdade, nem propositiva nem essencial ao homem (utpica), mas ao sabor das flutuaes histricas: sabermos que sempre podemos ser outros, estranharmos as nossas figuras mais atuais. Esta seria a nova liberdade heterotpica trazida por Foucault para a filosofia segundo John Rajchmann (1987), e base para uma possvel psicoterapia genealgica, de acordo com Hubert Dreyfus (1990, pp.227-229), considerando as ressonncias de Foucault com os trabalhos existenciais de Maurice Merleau-Ponty, Martin Heidegger e Ludwig Biswanger. por fim esse estranhamento de si que Foucault prope como alternativa mais potente ao modo de subjetivao hegemnico marcado pela hermenutica de si, que persiste desde o incio da cristandade. Enfim, o que ele nos aponta a possibilidade no de nos acoplarmos a uma verdade, mas lanarmo-nos numa deriva de estranhamentos de si, intensificando numa escala menor o descolamento que a histria j nos revela numa escala maior. 5- Concluso: resumo das contribuies de Foucault para uma Genealogia &

Arqueologia da Psicologia e da Psicanlise O desenlace desse levantamento na obra de Foucault permitir algumas rpidas concluses. As seis hipteses foucaultianas quanto origem da psicologia poderiam ser circunscritas trs temas: A) O surgimento do homem como sujeito e objeto de um saber, seja em funo dos avessos de suas prticas ou de sua negatividade essencial (primeira hiptese), seja como representao no crculo antropolgico, via reduplicao do emprico/transcendental, cgito/impensado, recuo/retorno origem (segunda hiptese). B) O surgimento do indivduo como objeto de conhecimento e controle em funo da prtica jurdica do exame (terceira hiptese), ou do poder disciplinar, em contraste (ou no) com o poder soberano (quarta hiptese), ou ainda do poder pastoral (quinta hiptese). C) O surgimento do sujeito tico atravs do cuidado de si greco-romano, que se desloca no cristianismo para um conhecimento (hermenutica) de si. As abordagens sobre a psicanlise, quando esta diferenciada da psicologia, dizem respeito a alianas e distanciamentos crticos. No que tange s alianas, todas ocorrem no perodo pr-arqueolgico e arqueolgico (anos cinqenta e sessenta): A) A psicanlise a nica dentre as psicologias a considerar o homem em sua negatividade inerente, e a trat-lo, portanto, no como um objeto natural, mas sim como um provedor de significaes (perodo pr-arqueolgico). B) A psicanlise se d conta do esoterismo estrutural da linguagem, de sua autoimplicao e ausncia de um termo primeiro na interpretao (da ela ser infinita). Por apontar para a linguagem em seu vazio, ela dissolve o homem como fundamento, instalando-se como contra-cincia humana (arqueologia do olhar e dos saberes). C) A psicanlise, ou mais especificamente, Freud, produz uma nova relao de autoria enquanto instaurador de discursividade, uma vez que seus textos so recobertos diferencialmente por vrios outros que buscam legitimao em sua assinatura (arqueologia dos discursos). Ainda que no se trate propriamente de um elogio, no uma problematizao . Quanto s crticas: A) A psicanlise produz uma despsiquiatrizao relativa; ainda que liberte o discurso do louco de sua verdade, fortalece o poder mdico (arqueologia da percepo e genealogia das formas jurdicas). B) A psicanlise, ainda que nos "liberte" da represso e do modelo biolgico do sexo, se engaja no dispositivo da sexualidade (no entrelaamento do biopoder com o poder disciplinar), que por sua vez tributrio do dispositivo de aliana e da pastoral da carne (sistemas de poder soberanos).

C) A psicanlise liga-se hermenutica de si crist enquanto modo de sujeio de nossos desejos, como substncia tica. Se a psicanlise no parece se favorecer do conceito de homem e de seu crculo antropolgico, ela tem ampla participao na inveno da noo de indivduo e de sujeito entendido como interioridade a ser decifrada e revelada.

BRUNO LATOUR E MICHEL FOUCAULT: ENTRE A CONSTRUO DE UM MUNDO COMUM E A ONTOLOGIA HISTRICA DE NS MESMOS Arthur Arruda Leal Ferreira1 I. Mais alm das epistemologias O que pode haver em comum entre o filsofo-historiador-arquelogo-genealogista Michel Foucault e o filsofo-antroplogo das cincias Bruno Latour? A recusa ao entendimento dos saberes a partir de um modelo epistemolgico. Superar este modelo implica em pr-se para alm dos conceitos de progresso e verdade. Implica em recusar que h um progresso, uma evoluo no conhecimento em direo verdade, e de que esta se d em oposio ao conhecimento comum (semelhante oposio platnica entre doxa e episteme). O conhecimento cientfico, mesmo que opere por meio de simulaes e artifcios manipulveis (muito distante pois de uma revelao intelectual ou sensorial) ainda visto a partir uma concepo excludente da verdade. Mesmo que um novo procedimento operacional possa se mostrar inovador, persevera o platonismo na oposio esperada entre verdade e erro. Neste novo territrio mais alm das epistemologias, em que doxa e episteme no se separam por revelao, ascese ou iluminao, mas por um jogo de foras de natureza poltica, que separa vencedores e vencidos, que podemos encontrar pensadores como Michel Foucault, Isabelle Stengers e Bruno Latour. Para alm das oposies possveis, uma srie de consonncias podem ser sinalizadas entre estes autores: 1) Recusa de qualquer objeto tradicional de anlise como sujeito, objeto, homem, sociedade, natureza, esprito, autor, obra, significado, mtodo, ou rea de investigao, enquanto fundamentantes. 2) Abordagem nominalista, indutiva e microscpica, opondo-se quela tomada como base de grandes unidades de anlise como estrutura, mentalidade, ideologia, esprito de poca etc. Ao invs de serem buscados estes grandes focos de anlise que iluminam a pesquisa de cima baixo, produzem-se pequenos objetos de investigao como enunciados, poderes, prticas de si, sensibilidades, tcnicas de inscrio; em ltima anlise, acontecimentos que, em sua raridade e em sua capilaridade, acabam produzindo grandes dispositivos Trata-se enfim de uma anlise bottom-up e no topdown. 3) Ausncia de assimetria, ao menos entre verdade e erro. Um exemplo disto seria o princpio de simetria de David Bloor, que seria ampliado por Bruno Latour e Michel Callon na superao de oposies como as existentes entre natureza X sociedade, modernos X pr-modernos, e primitivos X civilizados. Em Foucault (1966), a noo de episteme representaria uma condio de possibilidade histrica e singular, de onde verdade e erro se definem. A sucesso desta configuraes histricas no apontaria jamais para um progresso. Mesmo com a mudana dos seus referenciais conceituais, Foucault continuar a tomar a relao entre verdade e erro a partir de um conjunto de foras histricas.

4) Uso instrumental, e jamais exegtico, da filosofia, utilizando-a na colocao de questes e na elaborao de ferramentas conceituais, sem a preocupao de produzir ou justificar sistemas. Em suma, crtica da filosofia clssica, alm da utilizao do pensamento na problematizao do que se mostra atual, e na produo de novas evidncias. Contudo, estes autores mantm distncias e estratgias de afastamento diversos em relao epistemologia. Podemos ver aqui se desdobrar uma srie de diferenas neste grupo, conduzindo a uma gradao em que a postura menos radical caberia Foucault. Neste pode-se observar tanto uma diviso de terreno para com a epistemologia bem como a proximidade com alguns de seus mestres como Georges Canguilhem, ao enfatizar o contraste entre a verdade purificada das cincias naturais e mistura inseparvel das cincias humanas com as prticas sociais que lhes do origem. Desde os anos sessenta, no chamado perodo arqueolgico, Foucault se esmerou em diferenciar o seu trabalho do da epistemologia, notadamente da corrente do Racionalismo Aplicado de Gaston Bachelard e do prprio Canguilhem. Ainda que, conforme Roberto Machado (1982) possam ser vistas algumas ressonncias entre Arqueologia e Racionalismo Aplicado, como a valorizao das rupturas, dos conceitos, e a recusa aberta da noo de recorrncia, pode-se perceber, por exemplo em A Histria da Loucura (1961), a recusa aberta da noo de progresso do conhecimento atravs da denncia de um afastamento paulatino, no da verdade, mas de uma experincia trgica da loucura. Esta recusa a qualquer idia de progresso e evoluo tambm marca dos outros livros foucaultianos deste perodo, como O Nascimento da Clnica (1963) e As Palavras e as Coisas (1966). Tais diferenas se do, porque a epistemologia trata das cincias, ao passo que a arqueologia escava um objeto mais profundo (da o seu nome): percepes, prticas, saberes que estariam anteriores ao nvel cientfico . Diria respeito ao dizvel, ao visvel, ao experiencivel antes que ao verificvel. Esta associao da arqueologia profundidade s seria superada no ltimo livro do seu perodo arqueolgico, Arqueologia do Saber (1969), quando proposto o discurso como objeto de anlise. Esta diviso de tarefas com a epistemologia persistiria no perodo genealgico (anos setenta), quando Foucault se mostra engajado em estabelecer uma relao entre os saberes e os poderes. Para tal, prefere analisar esta relao nas cincias duvidosas (medicina, psiquiatria) do que em cincias como a fsica terica ou a qumica orgnica (Foucault 1977, pp.1-2). Estas seriam oriundas de condies histricas especficas, como as formas jurdicas do inqurito. No entanto, as cincias naturais estariam mais distantes que as cincias humanas das suas condies de possibilidades, quais sejam as formas jurdicas do exame. Da a preferncia de Foucault pelas duvidosas cincias humanas (conferir Foucault, 1973). Mas ainda que Foucault de um certo modo preserve o territrio epistmico, este autor inaugura a anlise de novos objetos: saberes, enunciados, poderes, em muito distantes da cincia e do critrio de verificabilidade responsvel por sua evoluo. Ainda que a trincheira aberta por Foucault na arqueologia e na genealogia restrinja-se ao exame das cincias duvidosas, Latour estende-a na direo das cincias em geral, em sua antropologia das cincias . Este autor proporciona um passo maior na oposio estratgia epistemolgica, e para tal a figura de Michel Serres essencial. Isto, uma vez que prope uma naturalizao da poltica, expressa no contrato natural, em que se sugere a representatividade poltica dos no-humanos. Tendo em mo esta postura, Latour ir remar contra a mar da modernidade, em que teria se buscado a purificao e a ciso entre Natureza & Cincia de um lado e Humanidade & Poltica de outro (da que Jamais teramos sido modernos Latour, 1994). Mar em que o prprio Foucault em As Palavras e as Coisas (1966) se encontraria mergulhado, ao criticar as Cincias

Humanas e as Filosofias Humanistas (dialticas, positivismos, fenomenologias) por operarem uma mistura do nvel emprico com o transcendental num conceito fundamentante de homem. Pois Latour quer, ao contrrio, sancionar a existncia daquilo que a modernidade fez involuntariamente proliferar na sua busca impossvel de purificao: os hbridos de natureza-humanidade e de cincia-poltica, como os partidos verdes e os conclios sobre clima . deste modo que Latour quebra uma srie de assimetrias modernas; se Foucault dissolve a hierarquia entre verdade e erro, Latour desmancha a assimetria entre naturezas e sociedades e, consequentemente, a existente entre modernos e pr-modernos, para os quais esta diviso no possui sentido. Estamos aqui em pleno Imprio do Centro, no Reino dos Hbridos, ou em termos mais recentes (Latour, 2002), fe(i)ctiches , entidades reais ao mesmo tempo que construdas. Sem que nada possa se oferecer como fundamento, ou fonte de crtica. II. Bruno Latour comenta Michel Foucault: epistemologia e assimetria. Como se d em termos textuais este dialogo entre Foucault e Latour? Dada a morte precoce de Foucault nos anos 1980, quando Latour ensaiava seus primeiros escritos, este dilogo tem mais a feio de um monlogo. Monlogo que desponta no reconhecimento da partilha de algumas ferramentas conceituais comuns, feita em alguns textos, como Les vues de l'espirit (1985). A tese de Latour neste artigo que o motor da cincia no deve ser buscado nem no sujeito, nem na mera observao emprica; ele ser encontrado nas pequenas tcnicas de inscrio presentes nos laboratrios, em conjunto com os interesses e as alianas suscitadas por cada pesquisa. Todas as propriedades criativas do chamado esprito cientfico, que eram atribudas infra-estrutura (Marx), aos neurnios (Changeux), ou s capacidades cognitivas (Piaget), passam, com Latour, a serem atributos das tcnicas de inscrio, no seu poder de serem mveis imutveis. Isto ocorreria, uma vez que atravs do uso das imagens so possveis comparaes, variaes de escala, recombinaes, conservao de dados, convencimento, e, o mais importante: o estabelecimento de aliados atravs de seus interesses (op. cit., p.19). neste quadrante que o antroplogo das cincias reconhece a sua dvida para com Foucault, especialmente quanto a descrio do papel das tcnicas de inscrio. A referncia feita principalmente em relao a dois livros de Foucault: O Nascimento da Clinica (1963) e Vigiar e Punir (1975). Passemos a palavra a Latour (op. cit., p. 15) : Em todos seus livros, Foucault segue a transformao dos saberes em cincias mais menos exatas, relaciona este acrscimo de exatido a um dispositivo de inscrio. A vantagem de sua anlise de atrair nossa ateno, no sobre a percepo isso que seria, nos sabemos, insuficiente mas sobre o conjunto do dispositivo que mobiliza, registra e rene. O panptico proporciona aos sbios e vigias a coerncia tica... sem a qual o poder exercido sobre uma grande escala seria impossvel. Com relao ao papel das tcnicas ticas na medicina no Nascimento da Clinica, Latour assim se pronuncia: Em medicina , no o esprito que vai mudar, que vai se tornar mais ctico, mais cientfico, mais experimental, o olhar... E esse olhar, por que ele muda? Porque ele se aplica , no interior do hospital, a um novo regime de inscrio e de traos (op. cit., p. 15). Contudo, ser numa entrevista realizada em 1993 com T. H. Crawford, do Instituto do Militar da Virgnia, que Latour detalha de modo mais preciso suas principais proximidades e diferenas com relao a Foucault. Como no texto Les vues de l'espirit (1985), ele reconhece algumas consonncias do seu trabalho com o genealogista, especialmente em Vigiar e Punir (1975), colocando inclusive alguns artefatos conceituais deste como matriciais aos estudos cientficos atuais:

Eu gosto de Vigiar e Punir. um campo de estudo fascinante na disseminao de poder, eu tambm gosto da idia de regime de enunciados ... mas eu penso que ainda que h uma confuso sobre a sua radicalidade... Eu penso que Vigiar e Punir um livro importante porque Foucault est apontando para um novo fenmeno, que nunca havia sido mostrado antes. Voc precisa no somente de conhecimento para exercer o poder, mas voc precisa tambm de um dispositivo para construir e produzir tanto a sociedade quanto o conhecimento... Mas o panptico o verdadeiro dispositivo tecnolgico intelectual que me interessa. Neste sentido, a disseminao dos laboratrios, sua habilidade de reverter escalas, revertendo de modo to completo a ordem micro e macro, em muito a confirmao da tradio foucaultiana. Mas claro, existem mais dispositivos que o panptico. Existem dzias de tecnologias, como os estudos de laboratrio tem mostrado, elas podem mudar a escala e o tempo, reorganizam o espao, subvertem nveis, etc. ... Laboratrios num sentido geral o modo como os definimos nos estudos cientficos (grifo meu) so o melhor modelo do poder (incluindo os laboratrios dos cientistas sociais e outros centros de clculo). uma linha muito produtiva de pesquisa [a dos estudos cientficos] vinda de Foucault que deixou para o campo de estudos hospitais, clculos, burocraci