A publicação das obras de Marx após a sua morte (1883-1939) - René Zapata

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A PUBLICAÇÃO DAS OBRAS DE MARX DEPOIS DE SUA MORTE (1883-1935)* René Zapata Tradução de Ricardo Figueiredo de Castro" ZAPATA, René. "La publication dês oeuvres de Marx après mort 1883-1935". In: LABICA, George (diretor). Loeuvre de Marx, un siècle après (Colloque international 17-20 mars 1983). Paris, Centre National de La Recherche Scientifique; Université de Paris-X Nanterre, 1985. Revisão da tradução do francês por Roberto Acízelo de Souza. 25 anos, licenciado e bacharel em História pela UFF e professor do Magistério Público Es- tadual. Revista Arrabaldes. Ano l, n s 2, set./dez. 1988 119

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História das edições das obras de Karl Marx entre 1883 e 1935. - Tradução e apresenta de Ricardo Figueiredo de Castro

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A PUBLICAÇÃO DAS OBRAS DE MARX DEPOIS DE SUA MORTE(1883-1935)*

René Zapata

Tradução de Ricardo Figueiredo de Castro"

ZAPATA, René. "La publication dês oeuvres de Marx après sã mort 1883-1935". In:LABICA, George (diretor). Loeuvre de Marx, un siècle après (Colloque international 17-20mars 1983). Paris, Centre National de La Recherche Scientifique; Université de Paris-XNanterre, 1985. Revisão da tradução do francês por Roberto Acízelo de Souza.

25 anos, licenciado e bacharel em História pela UFF e professor do Magistério Público Es-tadual.

Revista Arrabaldes. Ano l, ns2, set./dez. 1988 119

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A P R E S E N T A Ç Ã O

Já se vão mais de cem anos desde que Marx nos deixou. Muitos políticos, militantes eteóricos lutaram e lutam pelas suas idéias; revoluções já foram tentadas; algumas saíram vitorio-sas outras fracassaram no ovo; no entanto, talvez por isso mesmo, os pensamentos conservadore reacionário berram aos quatro ventos que o pensamento marxista está morrendo, que o mar-xismo está numa crise da qual sairá direto para o inferno de onde nunca deveria ter saído, esque-cendo-se do caráter construtivo e positivo de uma crise, cacoete típico e sintomático de um pen-samento não-dialéticoa. Entretanto, não só o conjunto do pensamento de Marx não é bem co-nhecido como também, e principalmente, a história de sua difusão e recepção pelas diferentesculturas, como diz René Zapata - talvez com um pouco de exagero - "ainda não encontrou o seuhistoriador".

Procurando contribuir para a superação do segundo problema, mais ao nosso alcance,ARRABALDES escolheu publicar este artigo, que nos dá uma didática introdução à importantís-sima questão das edições das obras de Marx desde a sua morte até 1935, quando o espectro sta-linista encobre o processo de divulgação das obras do idealizador da "filosofia da práxis".

O artigo ora traduzido, através de uma caracterização e sistematização cronológica dasedições das obras de Marx, no período acima citado, nos dá indicações para esboçarmos como aapreensão e a compreensão destas foram determinadas pelas vicissitudes históricas. Mais con-crelamente, como a obra de Marx foi apreendida pelos intelectuais, militantes e sociedade em ge-ral, não só pela natureza do corpus marxista então disponível, como também pela interação des-se corpus com o caldo cultural então predominante e pelos embates e questões políticas he-gemônicas.

O Marx de hoje não é o Marx da época de Marx, nem muito menos o da época da Revo-lução Russa, embora ele permaneça o mesmo. Isso não só pelos motivos acima expostos, mastambém, e sobretudo, pela natureza do pensamento de Marx, que se propunha não a formularuma filosofia supra-histórica - uma doutrina - mas sim um pensar que se vê a si próprio enquan-to algo historicamente determinado e em constante contato com a realidade.

O marxismo tem, pois, sua história. E uma boa obra que se propõe a estudá-la e compre-endê-la num sentido aberto e não-dogmático é a História do Marxismob, obra coletiva de vá-rios volumes dirigida por Eric Hobsbawnc. Outra obra, não tão exaustiva mas também importanteé Considerações sobre o Marxismo Ocidental01 de P. Anderson. Um excelente guia e indis-pensável obra de referência e consulta é o Dicionário do Pensamento Marxista0. A obracoletiva 1'oeuvre de Marx, un siècle après, 1883-1983, da qual esse artigo foi traduzido, éuma obra que analisa não só questões do pensamento marxista como também de que maneira elefoi interpretado por diferentes culturas, como a muçulmana, italiana, etc. Quanto ao Brasil, po-deríamos dizer que A derrota da dialética' é um pioneiro e imprescindível estudo sobre as con-dições da introdução do marxismo no Brasil.

Para uma análise ensaística sobre a crise do marxismo ver: ANDERSON, Perry. A criseda crise do marxismo: introdução a um debate contemporâneo. São Paulo, Brasiliense,1985.

HOBSBAWN, Eric etalli. História do Marxismo. Rio de Janeiro, Paz e Terra.

Ver, especialmente, sobre a temática em questão, o artigo de Eric Hobsbawn, "A fortunadas edições de Marx e Engels", publicado no volume l, "O marxismo no tempo de Marx".ANDERSON, Perry. Considerações sobre o marxismo ocidental. Porto, Edições Afronta -mento, s/d.BOTTOMORE, Tom (editor). Dicionário do pensamento marxista. Rio de Janeiro, JorgeZaharEd., 1988.KONDER, Leandro. A derrota da dialética. A recepção das idéias de Marx no Brasil, até ocomeço dos anos trinta. Rio de Janeiro, Ed. Campus, 1988.

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O objetivo desta intervenção1 é situar o histórico da publicação dasobras de Marx depois de sua morte, e, em particular, as tentativas de ediçõesdas obras completas até 1935. Não se trata, portanto, de fazer revelações, masde estabelecer um quadro cronológico geral, indicar balizas, formular certosproblemas críticos, assinalar lacunas com o objetivo de abrir um amplo debatesobre uma história que ainda não encontrou o seu historiador (por razões es-sencialmente políticas, como veremos adiante). Pois não se deve esquecer quereatamos aqui com uma velha tradição do movimento operário: aquela que con-siste em colocar e em se colocar a questão, sem dúvida embaraçosa, do esta-do em que se encontra a publicação das obras de Marx. Por que embaraçosa?Porque por um lado sua resolução nos obriga a um trabalho rigoroso de críticados textos que temos lido, traduzido ou editado, e, por outro lado, porque estetrabalho crítico nos obriga, por sua vez, a abandonar certos mitos: citemos, dememória, a discussão sobre a correspondência Marx-Darwin e Darwin-Aveling2, o artigo de Olivier-René Bloch "Marx, Renouvier e a história do mate-rialismo"3, assim como o debate sobre a edição dos cadernos de Marx sobre acrítica da economia política (Ed. Bangeville, Rubel et Lefèvre). E, sem dúvida, .haverá também importantes debates sobre o trabalho de edição de Engels doslivros II e III do Capital quando serão traduzidas as variantes dos textos deMarx sobre as quais ele trabalhou, e que foram publicadas nos últimos volumesda segunda edição soviética das obras de Marx e Engels4.

Assim, hoje não há mais nenhuma dúvida de que a história da edição dasobras de Marx se reveste de um interesse teórico fundamental: é essencial vol-tar atrás e determinar quais foram os percalços, as dificuldades e, sobretudo, opreço político de sua publicação. Isso nos permite, também, saber com pre-cisão quem pôde ler o quê e quando (e em qual língua), o que não deixa de serimportante para o estudo da difusão-recepção do marxismo.

Podem-se distinguir três etapas a partir de 1883:

- 1883-1895: isto é, o período que vai da morte de Marx à morte de En-gels, durante o qual este último é o principal responsável pelas edições dasobras de Marx;

- 1895-1917: etapa no curso da qual certos dirigentes importantes dasocial-democracia alemã (notadamente Kautsky, Bebei, Mehring e Bernstein)prosseguem o trabalho de edição de Engels, mas de maneira muito menos sis-temática e crítica;

- 1917-1935: etapa de preparação e publicação da primeira MEGA, soba direção de D. B. Riazanov, personagem-chave na história da edição dasobras de Marx e que, no seio do Instituto Marx-Engels de Moscou, prosseguirá,durante mais de uma década, com trabalhos críticos de um valor excepcional.

I) ENGELS EDITOR DE MARX: 1883-1895

Quando da morte de Marx três tarefas recaem sobre Engels: terminar apublicação do Capital; exercer o que poderia se chamar de vigilância teórica epolítica no seio da social-democracia alemã e da II Internacional; e, enfim, pros-seguir seus próprios trabalhos teóricos. Lembremo-nos de que, na época, a so-cial-democracia alemã está em uma situação de semiclandestinidade, o quecriará obstáculos ao trabalho de edição5.

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As principais publicações deste período são as seguintes:

1883 Terceira edição alemã do livro l do Capital, com um prefácio deEngels.

1884 Trabalho assalariado e capital (texto estabelecido e prefaciado porEngels).

1885 Primeira edição alemã de Miséria da filosofia, com um prefácio deEngels, intitulado "Marx e Rodbertus".Publicação do livro II do Capital (começo de julho).Terceira edição alemã de Revelações sobre o processo dos comu-nistas em Colônia, com um prefácio de Engels: "Algumas palavrassobre a história da Liga dos Comunistas".

1886 Engels publica seu "Ludwig Feuerbach e o fim da filosofia clássicaalemã" no Neue Zeit* (órgão teórico da social-democracia alemã,fundado em 1883 por Kautsky).

1887 Primeira edição inglesa do Livro l do Capital (tradução de EdwardAveling e Samuel Moore, no qual Engels, sem dúvida, muito contri-buiu)6.

1888 Reedição, sob a forma de livro, de Ludwig Feuerbach, de Engels,apresentando em anexo as "Teses sobre Feuerbach", de Marx, re-digidas pouco tempo depois de terem publicado A sagrada família.

1891 No número 18 de Neue Zeit são publicadas, editadas por Engels,"Glosas marginais ao programa do partido operário alemão" (textomais conhecido sob o título Crítica ao programa de Gotha)7.Reedição da tradução alemã de A guerra civil na França, por oca-sião do 209 aniversário da Comuna**, com um prefácio de Engels.

1894 Publicação do livro III do Capital, editado por Engels.

II) DA MORTE DE ENGELS À REVOLUÇÃO DE OUTUBRO: 1895-1917

Quando da morte de Engels em 1895, uma parte importante da obra deMarx já se encontra editada e publicada, notadamente os três primeiros livrosdo Capital. Mas seu desaparecimento retardará consideravelmente as ediçõese publicações ulteriores: não somente não se conta mais com sua inigualávelperícia na leitura e interpretação dos manuscritos de Marx, mas também pro-blemas testamentários tornarão mais árduos os trabalhos de edição. A consti-tuição do Marx-Engels Nachlass'" não se dará sem dificuldades: por um lado,os membros da família Marx ainda vivos só cederão progressivamente à so-cial-democracia alemã seus direitos sobre a herança literária8; e, por outro lado,os dirigentes do Partido - engajados nas polêmicas cada vez mais acerbas eprofundas sobre a natureza do marxismo e a estratégia política a seguir9 - nãohesitarão em retardar a publicação de certas obras, ou, quando muito, a darapenas versões truncadas de certas partes, sobretudo da correspondência, afim de não estimular os conflitos pessoais em suas próprias fileiras. Dito isto,textos importantes foram publicados no curso destes vinte anos:

Novo tempo (N. do T.)O autor se refere à efêmera Comuna de Paris (N. do T.)Espólio Marx-Engels (N. do T.)

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1897 Reedição de Zur Kritik der politischen Ókonomie, com um prefácio deKautsky. Nesta reedição, figura pela primeira vez a famosa "Introdução"de 1857.The eastern question. A reprint of letters written between 1853 and 1856dealing with the events ofthe Crimean War, editado por E. M. Aveling e E.Aveling.

1898 Salário, preço e lucro, editado por E. M. Aveling.1899 The story of the life of Lord Palmerston e Secret diplomatic history of the

18th century, editados por E. Aveling.1902 Cartas a Kugelmann, publicadas primeiro em Neue Zeit, depois sob forma

de livro.É também em 1902 que F. Mehring publicará as Gesamme/te Schriften K.Marx's und F. Engels 1841 bis 1850 ~ Aus dem literarischen Nachlassvon K. Marx, F. Engels und F. Lassalle, em 4 volumes, na Dietz, de Stutt-gart.O volume l (março de 1841 a março de 1844) contém: Tese sobre a filo-sofia de Epicuro, certos artigos da Gazeta Renana, a Introdução à críticada filosofia do direito de Hegel e A propósito da questão judaica.O volume II (junho de 1848 a maio de 1849) contém artigos publicados naNova Gazeta Renana (período de Colônia).O volume III (maio de 1848 a outubro de 1850) contém igualmente artigospublicados na Nova Gazeta Renana (período de Hamburgo).No volume IV figuram as cartas de F. Lassalle a K. Marx e F. Engels, es-critas entre 1849 e 186210.Com a publicação da Herança literária toda uma vertente da obra de Marxse abria à análise, que se desenvolveria principalmente depois da Segun-da Guerra Mundial, quando serão republicados e traduzidos os chamadosManuscritos de 1844.O segundo maior acontecimento desta etapa é a publicação por Kautsky

entre 1905 e 1910 das Teorias da mais-valia, livro IV do Capital, apesar de to-das as lacunas e erros que comporta esta edição11.

Enfim, deve-se assinalar a publicação das coletâneas das seguintes car-tas, que, à época, permitirão aprofundar o estudo da ação política de Marx:

1906 Briefe und Auszüge aus Briefen von K. Marx, Joh. Phil. Becker, Jos.Dietzgen, F. Engels an F. A. Sorge.

1908 Cartas de K. Marx e F. Engels a Nikolai-on (N. Danielson), em russo.1913 Der Briefwechsel zwischen F. Engels und K. Marx 1844 bis 1883, editada

por A. Bebei e E. Bernstein. Esta edição em 4 volumes contém 1386 car-tas que cobrem o período entre 1844 e 10 de janeiro de 1883. Apesar desua importância, a edição de Bernstein se caracteriza por lacunas notó-rias, por cartas truncadas e, sobretudo, por prefácios tendenciosos rela-cionados aos conflitos políticos e pessoais no seio da social-democraciaalemã12.Assinalemos enfim a edição das Cartas inéditas de K. Marx e F. Engels

sobre a Internacional, traduzidas para o francês por G. Hirtz e publicadas em OMovimento Socialista, n° 261-262, em 1914.

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III) D. B. RIAZANOV E A PRIMEIRA MEGA: 1917-1935

Com o desencadeamento da Primeira Guerra Mundial interrompe-se apublicação das obras de Marx. Simultaneamente - com a crise da II Internacio-nal, e ulteriormente com o nascimento da III - abre-se um longo período de con-flitos em torno da herança de Marx, porque se trata para os bolchequiques de'arrancar' (materialmente inclusive) as obras de Marx das mãos da social-de-mocracia, o que coloca o problema da análise das modalidades da transferência- se podemos nos exprimir assim - da legitimidade teórica e revolucionária domovimento socialista da social-democracia alemã ao partido bolchevique russo,e, indiretamente, da II à III Internacional.

A respeito do plano de edição, devemos sublinhar aqui o papel fundamen-tal exercido por David Borisovich Riazanov (Goldendakh) (1870-1938), queserá o editor da primeira MEGA, e uma das principais figuras intelectuais dosanos 20 na URSS. Apesar da importância de suas múltiplas atividades, sua vi-da e sua obra não foram ainda objeto de nenhum trabalho de pesquisa naURSS ou alhures. Com efeito, Riazanov pertence àquela categoria de 'banidosda história' (oficial) por causa de sua postura crítica e independente para comas instâncias dirigentes do partido (antes e depois de 1917), mas principalmentepor causa de sua expulsão do partido em 1931, no curso da 'bolchevização' domarxismo, que o conduzirá à morte durante a deportação com numerosos ou-tros militantes13.

Se o histórico da publicação e da recepção das obras de Marx na Rússiaantes de 1917 é bem conhecido e documentado, o mesmo não ocorre em re-lação à época pós-revolucionária. Muito freqüentemente, imaginamos que a to-mada do poder pelos bolcheviques foi acompanhada por uma 'ditadura do mar-xismo', quando os fatos mostram o contrário: os militantes bolcheviques dota-dos de uma sólida formação em matéria de marxismo se contam no máximo emcentenas, e, fora deste círculo reduzido, conhecia-se mal ou pouco as obras deMarx, Engels e Lenin. Uma das primeiras tarefas dos bolcheviques será, preci-samente, instituir uma rede de publicação e difusão dos 'clássicos', assim comouma rede de ensino do marxismo, o que, ao longo dos anos 20, não se darásem dificuldades. Neste quadro, convém recordar aqui certos fatos que podemesclarecer a envergadura do projeto de Riazanov.

Ao nível institucional é criado em 1920 uma comissão especial no seiodas Edições de Estados (Gozizdat) - chamada "comissão Marx" - encarrega-da da edição e da difusão de suas obras. Além de Riazanov, seus principais di-rigentes eram Mecheriakov (que, a partir de 1924, se tornará um dos principaisdirigentes da Internacional camponesa) e 1.1. Skortsov-Stepanov, tradutor doCapital (com Bazarov) e um dos protagonistas das controvérsias filosóficas dosanos 2014. Com a criação do Instituto Marx-Engels15 em 1921, o projeto de umaedição crítica das obras completas de Marx e Engels em alemão começa a tor-nar-se realidade. Riazanov, que antes da guerra trabalhou na Alemanha e naÁustria em estreita colaboração com os social-democratas, reuniu em torno desi uma equipe de colaboradores de alto nível e estabeleceu assim, na Europa,uma rede de representantes do Instituto.

Preparando a primeira MEGA, Riazanov desenvolve uma atividade in-cansável no seio do Instituto: reedições de traduções dos 'clássicos', publi-cação das obras completas de Plekhanov, Kautsky, Hegel, etc., edição dasobras dos materialistas do século XVIII, dos principais populistas, etc16.

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Graças às suas ligações de amizade com os editores alemães das obrasde Marx, Riazanov constitui em Moscou entre 1920 e 1930 um fundo importantede clichês de manuscritos de Marx, assim como de manuscritos comprados no-tadamente pelo representante do Instituto na Europa ocidental, BorisNikolaevski17. Por outro lado, Riazanov redige as introduções crítico-históricaspara os diferentes volumes, introduções que não são apenas um manancial deinformações, mas que por seu caráter sistemático (e polêmico) marcam o inícioda 'marxologia'.

O plano de Riazanov para a primeira MEGA é imponente18. Ela deviacontar aproximadamente com 40 volumes, divididos em quatro partes:- a primeira, em 17 volumes, devia abarcar todos os escritos de Marx e En-

gels, com exclusão de tudo aquilo que se relaciona com o Capital e à corres-pondência (7 volumes para o período que vai até 1852, 7 outros para o perío-do 1852-1862, e 3 para os anos de existência da l Internacional (1864-1876);

- a segunda parte, em 13 volumes, devia conter os quatro livros do Capital as-sim como todos os textos e cadernos que se relacionam com a crítica daeconomia política, cuja importância para a gênese do Capital Riazanov já su-blinhava na época;

- a terceira parte devia incluir toda a correspondência, e uma quarta o índicelógico dos temas e nomes próprios.

O que foi efetivamente realizado está longe de corresponder a este planomas o resultado é, contudo, importante: ao todo, foram publicados 12'9 volumesentre 1927 e 1935, dos quais somente 6 editados (oficialmente) por Riazanov.

Dos 17 volumes previstos para a primeira parte, somente 7 foram publi-cados:

1 Marx: escritos e trabalhos até início de 1843, com cartas e documentosanexos (em 2 partes), Frankfurt am Main, 1927, editado por Riazanov20;

2 Engels: escritos e trabalhos até início de 1844, com cartas e documentosanexos, Berlim, 1930, editado por Riazanov;

3 Marx e Engels: A sagrada família e escritos de Marx do início de 1844 atéinícios de 1845, Berlim, 1932, editado por Adoratskii;

4 Engels: A situação da classe trabalhadora na Inglaterra e outros escritosde agosto de 1844 até junho de 1846, Berlim, 1932, editado por Adoratskii;

5 Marx e Engels: A ideologia alemã 1845-1846, Berlim, 1932, editado porAdoratskii21;

6 Marx e Engels: trabalhos e escritos de maio de 1846 a março de 1848,Moscou-Leningrado, 1933, editado por Adoratskii;

7 Marx e Engels: trabalhos e escritos de março a dezembro de 1848, Mos-cou, 1935, editado por Adoratskii.

Da segunda parte do plano de Riazanov nenhum volume foi publicado, eda terceira, consagrada à correspondência, somente 4:

1 Correspondência Marx-Engels, 1844-1853, Berlim, 1929, editado por Ria-zanov;

2 Correspondência Marx-Engels, 1854-1860, Berlim, 1930, editado por Ria-zonov;

3 Correspondência Marx-Engels, 1861-1867, Berlim, 1930, editado por Ria-zanov;

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4 Correspondência Marx-Engels, 1868-1883, Berlim, 1931, editado por Ado-ratskii.

Evidentemente, resta colocar a questão das causas da interrupção dapublicação da MEGA. Três fatores, em parte, a explicam: a evicção deRiazanov em fevereiro de 1931 da direção do Instituto Marx-Engels e do parti-do", sua substituição por V. V. Adoratskii23 e a chegada dos nazistas ao po-der na Alemanha em março de 1933. Com a evicção de Riazanov, e de muitosde seus colaboradores no Instituto, toda uma herança estava irremediavelmenteperdida. Na realidade, Adoratskii não publicou, como editor, senão volumes quejá haviam sido preparados por Riazanov e seus colaboradores. Em seus prefá-cios, que diferem radicalmente daqueles de Riazanov por seu caráter eminen-temente ideológico (estamos, a partir de 1931 em plena 'bolchevização' do mar-xismo), ele não traz nenhum elemento novo que testemunharia um trabalhopessoal de edição. Enfim, com a chegada dos nazistas ao poder, não somentenão era mais possível continuar-se a publicar os volumes em Berlim, comotambém toda a rede de colaboradores social-democratas ou outros estava dis-persada na emigração. Podemos acrescentar que, a partir de 1935, os esforçosserão concentrados na primeira edição russa das obras de Marx e Engels (28tomos entre 1931 e 1951), sempre sob a direção de Adoratskii, que não fezsenão retomar o que já tinha sido feito no plano crítico pela MEGA.

É então, a partir de 1935, que se abre um longo período de mais de quin-ze anos durante o qual a edição das obras de Marx ficará em ponto morto24.Não é um acaso este período corresponder ao processo de consolidação dostalinismo - tanto na URSS quanto no seio dos partidos comunistas da III Inter-nacional - e à aparição dos manuais de materialismo dialético e materialismohistórico. Estes manuais tornar-se-ão, a partir de 1934-1935, os textos de estu-do obrigatório para muitas gerações de estudantes soviéticos25. O golpe final di-rigido, na época, contra o estudo crítico das obras de Marx será a publicação doopúsculo de Stalin, Materialismo dialético e materialismo histórico, cujo caráteresquemático e errôneo não começará a ser denunciado na URSS senão vinteanos depois26.

NOTAS:

1 Esta intervenção é uma versão retocada de nossas duas comunicações no Colóquio*: "Apublicação das obras de Marx na Rússia: do populismo aos 'marxismos' russos(1867-1907)" e "D.B. Riazanov e a publicação das obras de Marx na URSS(1917-1935): questões de história" (reuniões de 17e 18 de março de 1983).

2 Ver os artigos de L.S. Feuer, P.T. Carrol e R. Colp Jr., em Armais of Science, vol. 32 e33, 1975 e 1976. '

3 Publicado emí-a Pensée, n9 191, fevereiro de 1977.

4 Em particular nos tomos 49 e 50, Moscou, 1981.

5 Em 19 de outubro de 1878 é promulgada a lei "contra os conluios perigosos da social-democracia". Esta lei será revogada em 30 de setembro de 1890. Kautsky se estabele-cerá em Londres em 1885 e Bernstein em 1888, depois de sua expulsão da Suíça comoutros dirigentes. E em Londres que Engels lhes ensinará a decifrar a escrita de Marx.

* Colóquio internacional na França entre 17 e 20 de março de 1983, no ano do aniversário damorte de Karl Marx. (N. do T.)

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Lembremo-nos de que Engels estava de posse da maior parte dos manuscritos deixadospor Marx, assim como de sua biblioteca. A este respeito ver os artigos de Paul Meyer,"Die Geschichte dês sozialdemokratischen Parteiarchivs und das Schicksal dês Marx-En-gels Nachlass", Archiv für Sozialgeschichte, Bd. VI/VII, 1966-1967, e de Hans-PeterHarstick, "Zum Schiksal der Marxschen Privatbibliothek", International Review of SocialHistory, vol. XVIII, parte II, 1973, p. 202-222.

6 Recordemo-nos, também, de que a primeira tradução do livro l do Capital é aquela emlíngua russa, publicada em São Petersburgo em 1872. Ver o artigo de síntese de HenryEaton, "Marx and the Russians", JournaloftheHistoryofldeas, janeiro-março 1980, vol.XLI, n9 l, p. 89-112. E em russo: L. Miskevich e A. Chepurenko, "«apitai1 K. Marksa narusskon iazike", em Kommunist, outubro de 1982, n8 15(1223), p. 26-37. A literatura so-viética sobre a difusão-recepção do Capital na Rússia é muito ampla: encontraremos in-dicações bibliográficas interessantes no artigo de G. A. Alekseev, "Otklik na pervii tom'Kapitala' K. Marksa y publitsistike N. K. Mikhailovskogo 1870-1873 godov", Istoria SSSR,n91, 1983, janeiro-fevereiro, p. 112-126.

7 Publicadas com vistas ao Congresso de Erfurt (14 a 20 de outubro de 1891). Elas foramredigidas por Marx em 1875.

8 O testamento de Engels de 29 de julho de 1893 não será publicado senão em 1929 noDas Abend, suplemento vespertino de Vorwãrts. Eleanor Marx-Aveling morre em 1898 ePaul e Laura Lafargue suicidam-se em 1911. Sobre a formação do 'Marx-Engels Na-chlass', ver os artigos de Meyer e Harstick já mencionados, assim como a correspondên-cia Bernstein-Riazanov, IISG, Akte Marx-Nachlass.

9 Ver notadamente K. Kautsky, K. Marxs Cekonomische Lehren (1817), E. Bernstein, DieVoraussetzungen dês Sozialismus und die Aufgaben der Sozialdemokratie e a respostade Kautsky, Bernstein und das sozial-demokratische Programm: eine Antikritik, Stuttgart,1899.

10 Como observou E. Balibar durante os debates do Colóquio, é interessante notar a tentati-va por parte dos social-democratas de construir uma 'troika' Marx-Engels-Lassalle ao ní-vel da edição de sua obras. Seria importante estudar também, desde os anos 40, as mo-dalidades da formação do 'binômio' Marx-Engels e de seu preço político e teórico. Assi-nalemos, enfim, que as primeiras tentativas de edições das obras 'completas' de Marx eEngels remontam aos anos 50. Ver a introdução geral de Riazanov à primeira MEGA, l,vol. l, p. IX a XXVIII.

11 'Theorien über den Mehrwert', aus dem nachgelassenen 'Manuskript Zur Krítik der polits-chen Ókonomie', von K. Marx, herausgegeben vor K. Kautsky. Em 3 volumes: 1) DieAnfánge der Theoríe vom Mehrwert bis A. Smith, 1905. 2) David Ricardo (em 2 partes,1905) e 3) Von Ricardo zur Vu/gárõkonomie, 1910. É somente com a publicação dasMarx-Engels Werke (MEW) na RDA que disporemos de uma edição conveniente do livroIV do Capital.

12 Para uma crítica sistemática da edição de Bernstein, ver a introdução de Riazanov ao vo-lume l da terceira parte de Karl Marx. Friedrich Engels. Historisch-kritische Gesamtausga-be. Werke/Schriften/Briefe MEGA, Berlim-Moscou, 1927-1935, em particular páginas IXaXL.

13 A biografia política de Riazanov é objeto de um trabalho em curso. Encontram-se nume-rosas referências concernentes a Riazanov em diversas obras sobre a história do bolche-vismo, mas não conhecemos nenhum artigo nem obra sobre seu itinerário político e inte-lectual.

14 Ver. R. Zapata, Luttes philosophiques en URSS, 1922-1931, Presses Universitaires deFrance, 1983.

15 Em 1924, o Instituto passa a égide do Comitê Central executivo da URSS. Em 1931, de-pois da evicção de Riazanov, ele se funde com o Instituto Lenin (criado em 1923 e dirigidopor Skortsov-Stepanov até sua morte em 1928), para tornar-se o Instituto Marx-Engels-Lenin, que, por sua vez, tornar-se-á em 1956o Instituto de Marxismo-Leninismo junto aoComitê Central do PCUS.

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Page 6: A publicação das obras de Marx após a sua morte (1883-1939) - René Zapata

16 Sobre os primeiros anos do Instituto ver D. B. Riazanov, Institui K. Marksa i F. Engelsa priTslK SSSR, Moscou, 1924, assim como os diversos volumes da principal publicação doInstituto Archiv K. Marksa i F. Engelsa. Ver também a carta de 2 de fevereiro de 1921 deLenin a Riazanov (Lénine, QEui/res.Paris-Moscou, t. 45, p. 52) que no dizer da Enci-clopédia Soviética se constitui no "programa" no Instituto Marx-Engels.

17 Sobre Boris Nikolaievski, ver o artigo citado de Harstick, p. 212-213, e Revolution and pó-litics in Rússia. Essays in memory of B. l. Nikolaevsky, editado por Alexander e Janet Ra-binowitch, com a colaboração de Ladis K. D. Kristof, Indiana University Press, 1972. Alémdisso, recordemos que, na mesma época, S. Landshut e J. -P. Mayer publicarão uma sé-rie de inéditos de Marx e Engels na Alemanha. Sobre algumas de suas edições ver o arti-go de M. Rubel: "Lês cahiers de lecture de Karl Marx (l: 1840-1853), InternationalReviewof Social History, vol. II, 1957, p. 391-420, e "Lês cahiers d'étude de Karl Marx (II:1853-1856), ibid., vol. V, parte l, 1960, p. 39-76.

18 Vero Vorwort zur Gesamtausgabe de Riazanov, MEGA 1, 1, p. XXII aXXVII.

19 13, se acrescentamos o Sonderausgabe zum vierzigsten Todestage von F. Engels. F.Engels: Herrn Dührings Umwãlzung der Wissenschaft. Dialektik der Natur, Moscou, 1935,editado por V. V. Adoratskii. Lembremo-nos de que a Dialética da Natureza foi publicadapela primeira vez em 1924, quase simultaneamente por Riazanov na URSS, e por Land-shut e Mayer na Alemanha.

20 A segunda parte foi publicada em Berlim em 1929.

21 Sobre o histórico da publicação da Ideologia Alemã ver o artigo de Riazanov: "Marx undEngels über Feuerbach: Der erste Teil der'Deutschen Ideologie", Marx-Engels Archiv,vol. l (1926), p. 205-306; assim como Literaturnoe nasledstvo K. Marksa i F. Engelsa: Is-toria publikatsi i izuchenia v SSSR, Moscou, 1969.

22 Ver D. Joravski, Soviet marxism and natural science, 1917-1932, New York, 1961, p.163-264.

23 Sobre Adoratskii, ver S. Bahne, "Adoratskij an Kaustky", International Review of SocialHistory, Vol. VIII, 1963, parte II, p. 270-281.

24 À exceção da publicação dos Grundrisse der Krit/k der politsche Ókonomie (Rohentwurf,1857-1858), Moscou, 1939-1941, dos quais poucos exemplares circularam fora daURSS. Recordemo-nos, além disso, de que em 1936, Boukharin foi enviado em missão àEuropa para comprar os manuscritos de Marx e Engels dos imigrantes social-democratas.Tentativa que fracassou. Ver Stephen E. Cohen, Boukharin and the bolchevik revolution.A political biography 1888-1938, New York, 1971, p. 365 (tradução francesa, NicolasBou-kharine: La vie d'un bolchevik, Paris, 1979).

25 Podemos seguir facilmente esta evolução nas modificações sucessivas das bibliografiasrecomendadas aos estudantes do Instituto de Professores Vermelhos. Entre 1925 e 1930,o estudo do Capital ocupa um lugar importante nestas bibliografias, mas a partir de 1931aí figuram quase exclusivamente textos políticos (Manifesto Comunista, Crítica ao progra-ma de Gotha, O dezoito brumário, etc. )(ver Pod Znamenem Marksizma, n- 3, 1925, p.268-272 e n9 1-2, 1931, p. 253-255). O manual de materialismo dialético foi redigido porM. B. Mitine e o de materialismo histórico por Razumovski. Recordemo-nos, enfim, deque este período corresponde também ao rápido desenvolvimento da economia políticasoviética, cujos mais importantes representantes foram Eugène Varga, principal econo-mista do Cominterm, e de Lev A. Leontiev, autor de diversas obras sobre o imperialismo ede um manual de economia política A economia política: um curso para iniciantes (1936),que teve uma grande difusão na época.

26 Cf. G. Labica, Lemarxisme-léninisme, Paris, B. Huisman. éd., 1984.

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