A Punição Do Escravo Negro Segundo Os Escritos Jesuíticos
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8/18/2019 A Punição Do Escravo Negro Segundo Os Escritos Jesuíticos
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A PUNIÇÃO DO ESCRAVO NEGRO SEGUNDO OS ESCRITOS JESUÍTICOS
Rodrigo de Sá Netto*
Resumo: O artigo pretende demonstrar a vinculação entre as técnicas de controle sobre os
escravos prescritas pelos escritos jesuítas no Brasil colonial, fundadas sobretudo na punição
física, e a prática penal, igualmente baseada no castigo corporal, vigente na Europa até o final
do século XVIII, quando essa mentalidade penal será questionada em favor de métodos mais
sutis e preventivos de punição e controle, como descrito por Michel Foucault.Palavras-chave: Jesuítas - escravos - punição
Abstract: The article intends to show the link between the technics of control on the slaves
prescribed by the jesuitic writings in the colonial Brazil, based mainly in the physical
punishment, and the penal practice, equally based in the corporal punishment, valid in the
Europe until the end of the XVIII century, when this penal mentality was questioned in favour
of more preventive and subtle methods of control and punishment, as described by MichelFoucault.
Keywords: Jesuits - slaves - punishment
A gestão do trabalho escravo no Brasil colonial, se concretamente era tida como
questão de foro pessoal cabendo a cada senhor resolvê-la como melhor lhe conviesse, não foi
assunto negligenciado pelos jesuítas que se dispuseram a pensá-la pautando-se, sobretudo,
numa moral religiosa. Seus textos, localizados temporalmente em princípios do século XVIII,
estampam táticas de controle do escravo que refletem o momento histórico de sua produção,
obedecendo a uma lógica punitiva vinculada ao "direito penal real" (HESPANHA, s/d: 239) e
onde a punição corporal aparecerá como principal meio de repressão e controle, atuando por
via do medo suscitado pelo exemplo e da memória do sofrimento físico. Pretendo mostrar
como as técnicas violentas prescritas pelos jesuítas no controle do trabalhador escravo
Técnico em Assuntos Culturais do Arquivo Nacional/ Mestrando em História pela
Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro - UNIRIO
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ligavam-se à prática penal europeia então vigente, marcada pelas formas físicas de punição
características daquilo que Foucault (1996: 86) chamou de "sociedades penais", ou seja, as
sociedades onde o exercício de poder sobre os seus membros se dá através da punição,
geralmente corporal, das infrações já cometidas. Essa forma de poder irá perdurar até finais
do século XVIII, quando irá se consolidar na Europa, ainda segundo Foucault (1996: 86), a
era da "ortopedia social" onde o poder se manifestará não mais por via da simples punição
sangrenta dos crimes, mas pretenderá, através de "uma rede de instituições de vigilância ecorreção" (FOUCAULT, 1996: 86) direcionar as ações individuais para fins úteis e corrigir
suas potencialidades para o crime pretendendo suprimi-lo antes mesmo que aconteça
(FOUCAULT, 1996).
Como os escritos que brotaram nos primeiros anos da colônia não problematizaram a
escravidão, podemos situar a tomada de consciência por parte dos letrados coloniais sobre a
questão da melhor gestão da escravatura a partir de meados do século XVII, período que
marcaria uma nova fase na apreciação do cativeiro, quando o assunto despontará como objeto
de reflexões mais aprofundadas. Essa guinada fica evidente em alguns sermões do padre
Antônio Vieira, no Compêndio Narrativo do Peregrino das Américas de Nuno Marques
Pereira, nos escritos Cultura e Opulência do Brasil por suas Drogas e Minas, Economia
Cristã dos Senhores no Governo dos Escravos, assinados pelos jesuítas André João Antonil e
Jorge Benci, e no Etíope resgatado empenhado, sustentado, corrigido, instruído e libertado,
que, apesar de não ter sido escrita por um jesuíta, mas pelo padre secular Manoel Ribeiro
Rocha, também iremos tratar aqui por manter semelhanças com a literatura jesuítica nas
técnicas punitivas que prescreve.
É possível que o maior enfoque conferido ao tema apenas a partir dessa data se ligue à
escalada de complexidade da colonização, trazendo à luz desafios que, na percepção arguta de
alguns letrados, demandavam a atenção dos colonos, sendo esta a posição defendida por
Ronaldo Vainfas (1986). Nesse quadro de "amadurecimento de contradições sociais inerentes
à situação colonial" (VAINFAS, 1996: 85) estaria inserido o problema da gestão do
trabalhador escravo negro que passou a receber maior atenção de uma elite intelectual
resumida, naquele momento histórico, aos jesuítas. Ainda para Vainfas essa guinada
corresponderia a uma "inflexão" (VAINFAS, 1986: 87) da ideologia escravista no Brasil,
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porque a partir desse momento os escritos devotados ao tema passariam a veicular "projetos
de controle social" (VAINFAS, 1986: 87), exibindo também crescente preocupação com os
motins e rebeliões dos cativos.
Por outro lado, também pode ser que esse fenômeno se prenda a razões internas à
própria Companhia de Jesus na conjuntura do final do século XVII. Tal é a hipótese levantada
por Rafael de Bivar Marquese (2004), que associa o surgimento desses escritos às
dificuldades enfrentadas pela ordem religiosa em seu embate com os proprietários de terra, aquem seus textos eram direcionados. Assim, os atritos com a camada senhorial, questionadora
dos privilégios conferidos aos religiosos, como a dispensa no pagamento dos dízimos, teriam
inspirado esses textos, pensados como uma resposta aos fazendeiros neles retratados como
maus gestores de seus escravos, havendo, por isso, "se afastado dos preceitos da moralidade
católica." (MARQUESE, 2004: 51).
O teor dessa censura, de cunho moral e religioso, serve para ilustrar em que bases a
argumentação jesuítica se firmava. A referência primeira, de onde eram retirados exemplos
que legitimassem a escravidão e que servissem de parâmetro para se balizar a relação entre
escravo e senhor, era o próprio texto bíblico complementado, segundo Marquese (2004: 23)
por escritos gregos e romanos sobre agronomia e o governo da casa. Enfim, uma ética
eminentemente cristã, traduzida no que Marquese (2004: 23) chamou de um "discurso bíblico
das obrigações recíprocas", sustenta esses textos que pretenderam regular a prática da
escravidão na colônia, sendo possível dizer que eles representem uma “teoria cristã do
governo dos escravos”, (MARQUESE, 2004: 17), ou mesmo um "projeto escravista cristão"
(VAINFAS, 1986: 93).
Em suas linhas, a escravidão é não apenas legitimada como também tida como obra
pia, idealizada como uma empresa de salvação de almas ao subtrair o negro da África pagã
para cristianizá-lo. Ao mesmo tempo, a questão da punição surge como medida disciplinadora
visando, além da maior aplicação ao trabalho, à correção espiritual dos negros, afeitos, nessa
ótica, ao ócio pecaminoso, sendo o castigo entendido como uma obrigação dos senhores, a
quem cabia zelar pelo encaminhamento das almas sob sua responsabilidade. Assim, quando
seguisse uma certa concepção de justiça que esses jesuítas tanto se preocuparam em formular,
o castigo seria uma condição tanto para a justificação do cativeiro como para a prosperidade
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dos negócios coloniais, constituindo, dessa forma, importante elemento na correta gestão da
mão de obra escrava.
Mas a que tipo de castigo esses textos se referem? Nesse ponto os letrados religiosos
são unânimes, a punição corporal aparece como a tática preponderante de controle e
repressão. Esse castigo deveria ajustar-se, ainda, a uma moralidade cristã, recorrendo os
jesuítas com frequência ao texto bíblico de onde eram extraídos exemplos que balizassem a
sua prática.Sabe-se que, corriqueiramente, o castigo do escravo na colônia fundava-se na
violência física geralmente praticada em público, muitas vezes nos incontáveis pelourinhos
encontrados ainda em algumas das mais antigas cidades brasileiras, tendo chegado aos nosso
dias, também, um farto acervo de objetos de tortura voltados para o castigo do escravo
remanescentes daquela era. Nos textos, longe de estar relacionada ao abuso senhorial, a
violência física surge como procedimento punitivo recomendável, e se eles denunciam o
excesso de violência empregado pelos senhores nas punições, o fazem por questões
relacionadas à dosagem dessa violência e à falta de cuidado na aplicação das penas. Nessa
ótica, a punição deveria ser sim física e dolorosa, mas precisava se ater à sua dimensão
pedagógica, tendo como meta a "correção" do escravo e não a sua incapacitação ou
aniquilação física, precisando o castigo ser "moderado pela razão e não temperado pela
paixão" (BENCI, 1977: 156).
Em sua essência, entretanto, o castigo pregado se vincularia estreitamente às práticas
punitivas típicas da tradição legal europeia que vigorou até o final do século XVIII, quando as
técnicas punitivas relacionadas ao Antigo Regime foram duramente questionadas por um
movimento de reforma do direito surgido no âmbito do processo revolucionário daquele
século.
Em linhas gerais, nessa antiga prática penal o sofrimento físico tinha enorme
importância, sendo a sua intensidade a variável a ser manipulada no ajuste do castigo ao
delito, um castigo, segundo Foucault (2009: 36), baseado "na arte quantitativa do sofrimento"
e que, além da gravidade do crime, também se media pela posição social do criminoso e suas
vítimas, e era acrescentada de uma parcela representativa do poder soberano ofendido
(FOUCAULT, 2009). Nesse quadro, a punição significaria não só a reparação do prejuízo
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trazido ao reino, mas, sobretudo, a afirmação da força maior do monarca frente ao criminoso,
assimetria de poder ritualizada em espetaculares punições públicas com o papel de manifestar
a supremacia do poder soberano. Ao mesmo tempo, essa encenação punitiva, procurará a
"correção" do faltoso através da memória do sofrimento, pretendendo também desencorajar a
reprodução do delito pelo horror que desperta (FOUCAULT, 2009), sendo que, neste
contexto, mesmo que algumas penas não corporais, como a multa ou o degredo, fossem
comuns, elas ainda assim "tinham como acessório alguma pena física" (FOUCAULT, 2009:35).
Hespanha (s/d), entretanto, tende a relativizar na prática a violência da legislação penal
monárquica, pelo menos em Portugal. Para o estudioso o castigo sangrento tinha aplicação
muito esporádica, sendo que a dureza das Ordenações, que previam a pena de morte para
extensa gama de delitos, cumpriria o papel de dar funcionamento a uma "dialética do terror e
da clemência" ( HESPANHA, s/d: 248), onde a rigidez da lei daria relevo à piedade do rei,
fornecendo ao soberano a oportunidade de surgir como generoso distribuidor do perdão. Ao
mesmo tempo, o peso da lei ficaria notadamente estampado no código legal, constante ameaça
de punições terríveis vinculando uma imagem, por este lado, do Rei enquanto " justiceiro"(
HESPANHA, s/d: 248) e, por outro, na medida em que a ameaça da punição sangrenta pouco
se cumpre, de "pastor"( HESPANHA, s/d: 248) e "pai" (HESPANHA, s/d: 248). Na minha
opinião, não fica claro na argumentação de Hespanha, no entanto, como a ameaça da punição
se fixaria nas consciências dos súditos sem o exemplo visual do castigo público, sobretudo na
sociedade portuguesa do século XVII, abordada pelo estudioso, onde a difusão e o acesso ao
texto legal entre a população, num contexto marcado por alto grau de analfabetismo, era
difícil.
Seja como for, o atrelamento dos textos brasileiros a mentalidade penal que vigorava
na Europa do século XVII e de boa parte do XVIII, pelo menos no âmbito do texto jurídico, é
facilmente verificável. Neles a violência física é o castigo invariavelmente prescrito, dada a
sua importância no quadro jurídico da época, a condição social inferior do negro e a evidente
impossibilidade de aplicação das penas não corporais os escravos. Assim, Jorge Benci (1977:
126) frisará a necessidade "da vara e do castigo" para a correção dos "imprudentes e maus",
recomendando que a punição correta, ministrada por "senhores prudentes e discretos"
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(BENCI, 1977: 162) consista de "açoites ou de ferros" (BENCI, 1977, p. 162). Dirá ainda
Benci (1977: 162): "Primeiramente, obrando o servo contra o que deve, deveis usar dos
açoites", acrescentando que, nos casos em que eles não bastassem, sempre se poderia recorrer
aos ferros "prendendo-o ou com grilhões, ou com correntes" (BENCI, 1977: 164-165), técnica
que, longe de se aproximar da prisão contemporânea, é ainda uma forma essencialmente física
de punição por objetivar a imobilização do corpo e a dor dela decorrente. Essa natureza
corporal do castigo é reforçada por Antonil (2007: 91) que recomenda "chegar-lhes com umcipó às costas com algumas varancadas", definindo a punição ideal como "açoites moderados,
ou com os meterem uma corrente de ferro por algum tempo, ou tronco." (ANTONIL, 2007:
102), e o mesmo parecer encontramos nos posteriores escritos do padre Manoel Ribeiro
Rocha, onde o castigo correto é definido como "palmatória, disciplina, cipó e prisão"
(ROCHA, 1992: 97). Em suma, a crença de que a melhor forma de controle do
comportamento do escravo fosse a violência física fica bem sintetizada, novamente, em Benci
que, pregando que se evite as injúrias, forma infrutífera e mesmo pecaminosa de punição,
alude Salomão, para quem "o servo não pode ser ensinado com palavras" (BENCI, 1977:
152), apontando, em seguida, o castigo como meio correto de fazê-lo.
Mas se a punição era indiscutivelmente física, a sua dosagem foi motivo de debate. Os
textos jesuíticos condenam de forma unânime os excessos cometidos no castigo, advogando
que a punição deveria ser moderada e aplicada com método, sendo sempre proporcional em
intensidade ao delito cometido, e nessa proporcionalidade transparece, novamente, o vínculo
entre o castigo aqui formulado e a prática punitiva europeia anterior ao século XVIII. Isso é
notável em Rocha (1992: 98), para quem a quantidade da punição "deve-se proporcionar, e
medir pela maioria, ou minoria da culpa" e em Benci (1977: 125) que pregava a aplicação de
um castigo "acomodado a sua culpa", ao mesmo tempo em que recomendava, em alguns
casos, o fracionamento da pena, isso porque, dizia ele, "pode haver nos escravos delitos tão
graves e atrozes, que mereçam muito maior número de açoites" (BENCI, 1977: 163-164),
cabendo, entretanto, evitar que a punição custasse a vida ou incapacitação do punido que
personificava, ao mesmo tempo, investimento em dinheiro necessário de preservar e homem
que cumpria "corrigir".
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Mas esse castigo, corporal e ajustado quantitativamente ao delito, pretende inibir
determinado comportamento através da lembrança da dor, experimentada pelo punido, e do
horror do espetáculo punitivo testemunhado pelo público (FOUCAULT, 2009). Esse efeito
"pedagógico" da punição física é registrado por Rocha (1992, p. 90), segundo quem, para o
escravo indócil, "será necessário, para o corrigir, que a repreensão vá acompanhada, e
auxiliada também com castigo" e por Benci (1977, p. 125), que prescreve a punição corporal
para que o escravo "se não acostume a errar, vendo que seus erros passam sem castigo"acrescentando que essa punição serve, ainda, "para que não tornem a cometer os mesmos
erros, pelos quais são castigados" (BENCI, 1977, p. 161), e que "os açoites são medicina da
culpa" (BENCI, 1977, p. 164). Já a sua força exemplar transparece em Benci (1977, p. 161)
que, comentando a eficiência dos açoites e correntes, assevera: "basta só que os veja o servo,
para que se reduza e meta a caminho e venha à obediência e sujeição de seu senhor". Essa
eficácia do exemplo punitivo, os jesuítas sabiam, tinha como fundamento o medo, já que,
diria Benci (1977, p. 127 e 139), "nenhuma coisa aos homens dá mais ousadia para
delinquirem e soltarem a rédea aos vícios, do que saberem que não hão de ser castigados seus
delitos." e "não temendo pois o servo o castigo, como há de deixar de fazer sua vontade?" O
medo e a dor surgem, enfim, como pilares do castigo, chegando Benci (1977, p. 139) a citar
como um dos problemas da punição desregrada a diminuição de sua eficácia pela capacidade
do cativo de se acostumar a ela, tanto mentalmente, pois "pouco a pouco lhe perde o medo e o
temor", quanto fisicamente, pois sua pele calejada dos açoites dificultaria o expediente de lhe
infligir dor.
Acredito, porém, que um outro importante aspecto identificado por Foucault (2009)
na prática punitiva da Europa monárquica esteja embutido nos textos: o significado da
punição tanto de reparação do prejuízo trazido ao reino como de afirmação da força maior do
poder soberano. Segundo Foucault (2009, p. 49), nessa concepção jurídica, o crime
corresponderia à uma ofensa pessoal ao Rei, sendo que este, ou "aqueles a quem ele delegou
sua força" desempenharão uma justiça que irá se apoderar do corpo do faltoso "para mostrá-lo
marcado, vencido, quebrado." Ora, no Brasil colonial a monarquia portuguesa delegava
inúmeras atribuições aos particulares, sendo comum, entre os poderosos, a prática da justiça
privada, fato endossado pelos textos jesuíticos que reconhecem o direito senhorial de castigar.
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Sendo a desobediência escrava uma afronta ao senhor e causadora de prejuízo aos negócios
coloniais, acredito podermos interpretá-la, por extensão, como uma afronta também ao
monarca, que delegou ao colono parcela do seu poder, e prejuízo ao reino, cuja prosperidade
dependia da economia colonial. Neste aspecto penso ser ilustrativa uma passagem onde Benci
(1977, p. 167), defendendo que se entregue à justiça oficial o escravo merecedor da pena
capital, afirma que o argumento frequentemente colocado a sua prescrição é o de que isso
"não diz bem com a nobreza e fidalguia do senhor", confirmando o entendimento dos colonosde que a aplicação da justiça aos escravos era atribuição sua.
Procurei mostrar, em suma, como nos trabalhos jesuíticos o castigo físico, mesmo que
complementado pela doutrinação religiosa, desponta como artifício fundamental no exercício
de poder sobre o escravo. Essa técnica de poder se ligaria à legislação penal, ancorada na
violência corporal, que é típica da sociedade europeia do Antigo Regime, fato visível, no caso
português, nas frequentes penas sangrentas previstas pelas Ordenações. Sendo assim, nos
textos jesuíticos, como na prática penal europeia que lhe era contemporânea, segundo
Foucault (1996), o poder agia sobre o delito já acontecido, na forma da punição exemplar e
nela esgotando-se, investindo na dor causada sobre o punido e no medo despertado na platéia,
artifícios dos quais dependia no seu objetivo de desencorajar o crime. Textos posteriores
versando sobre a administração dos escravos, entretanto, surgidos já no contexto da Ilustração
portuguesa e no panorama de reforma do direito e contestação das formas físicas de punição,
esboçarão uma ruptura com a estratégia de dominação visível nas páginas jesuíticas, buscando
meios de controle menos violentos e mais sutis e preventivos que pretenderão manipular o
comportamento do cativo para fins úteis aproximando-se, ainda que de forma tênue, da nova
modalidade de controle individual inaugurada pelo século XVIII batizada por Foucault (2009:
133) de "disciplinas".
BIBLIOGRAFIA:
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ANTONIL, André João. Cultura e opulência do Brasil por suas drogas e minas . São
Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2007.
BENCI, Jorge. Economia cristã dos senhores no governo dos escravos. São Paulo:
Editorial Grijalbo, 1977.
FOUCAULT, Michel. A verdade e as formas jurídicas. Rio de Janeiro: Nau Ed., 1996.
_________________. Vigiar e Punir . Petrópolis: Vozes, 2009.
HESPANHA, António Manuel. A punição e a Graça. In: História de Portugal. O
Antigo regime (1620 - 1807). Direção Mattoso, José. Lisboa: Editorial Estampa, s/d.Vol. IV.
MARQUESE, Rafael de Bivar. Feitores do corpo, missionários da mente: senhores,
letrados e o controle dos escravos nas Américas, 1660-1860. São Paulo: Companhia das
Letras, 2004.
ROCHA, Manoel Ribeiro. Etíope resgatado empenhado, sustentado, corrigido,
instruído e libertado. Petrópolis: Vozes; São Paulo: Cehila, 1992.
VAINFAS, Ronaldo. Ideologia & escravidão: os letrados e a sociedade escravista no
Brasil colonial. Petrópolis: Vozes, 1986.