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V COCAAL – Colóquio de Cinema e Arte da América Latina 1 A QUESTÃO DA IDENTIDADE NO DOCUMENTÁRIO “NOSOTROS, ELLOS Y YO (2015)", DE NICOLÁS AVRUJ Claudinei LODOS Mestrando em História pela Unifesp [email protected] RESUMO O conflito entre israelenses e palestinos é retratado a partir do documentário argentino de Nicolás Avruj. A experiência de sua viagem para a região do conflito em 2000 e o processo de produção que durou quinze anos tratam de um problema que permeia o filme, a questão da identidade. A guerra nesta região, representada no documentário, é atravessada pela história do diretor que narra a sua experiência nesta viagem através do personagem Nicolás. Este artigo procura refletir e problematizar o conflito de identidades tanto do personagem quanto dos povos israelenses e palestinos que estão representados neste documentário. PALAVRAS-CHAVE: Documentário. Israelenses. Palestinos. Conflito. Identidade. O DOCUMENTÁRIO DE NICOLÁS AVRUJ O documentário argentino NEY (Nosotros, Ellos y Yo, Nicolás Avruj, 2015) 1 retrata o conflito entre israelenses e palestinos no ano 2000, quando eclodiu a segunda intifada 2 . Avruj foi visitar seu primo em Israel neste período, e foi surpreendido pois 1 NEY: Nosotros, Ellos y Yo. Direção: Nicolás Avruj. Produção Executiva: Diego Lerman. Edição: Andrea Kleinman. Campo Cine. Argentina: 2015, DVD, (85min), colorido. Prêmios e Festivais: Mostra Internacional de Cinema de São Paulo 2015 - Indicado ao Troféu Bandeira Paulista; Festival de Tandil 2015 Melhor Filme; Festival Latin Arab 2015 Menção Especial TAL (Televisión America Latina); BAFICI 2015 (Mostra Panorama); Festival de Cine de La Habana 2015. 2 Intifada significa levante palestino, a primeira aconteceu em dezembro de 1987. Em 1993, o Estado de Israel e a liderança palestina firmaram um acordo em Oslo que ficou conhecido como o processo de paz. Segundo Pappé, este acordo trouxe terríveis consequências para o povo palestino, uma vez que não havia uma proposta de reparação da limpeza étnica provocada por Israel desde 1948, no regime ditatorial de ocupação. Devido às disputas políticas, o primeiro ministro de Israel, Ehud Barak, procurou retomar o acordo que ficou paralisado após o assassinato de Isaac Rabin, primeiro ministro de Israel, em 1995. Na visão de Pappé, seria uma traição ao povo palestino - que lutava pela independência nacional - se a proposta para o acordo de Camp David no ano 2000 fosse aprovada. Arafat não assinou o acordo “e por isso os estadunidenses e israelenses o castigaram de imediato,

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A QUESTÃO DA IDENTIDADE NO DOCUMENTÁRIO “NOSOTROS, ELLOS Y YO (2015)", DE NICOLÁS AVRUJ

Claudinei LODOS

Mestrando em História pela Unifesp [email protected]

RESUMO

O conflito entre israelenses e palestinos é retratado a partir do documentário

argentino de Nicolás Avruj. A experiência de sua viagem para a região do conflito em

2000 e o processo de produção que durou quinze anos tratam de um problema que

permeia o filme, a questão da identidade. A guerra nesta região, representada no

documentário, é atravessada pela história do diretor que narra a sua experiência

nesta viagem através do personagem Nicolás. Este artigo procura refletir e

problematizar o conflito de identidades tanto do personagem quanto dos povos

israelenses e palestinos que estão representados neste documentário.

PALAVRAS-CHAVE: Documentário. Israelenses. Palestinos. Conflito. Identidade.

O DOCUMENTÁRIO DE NICOLÁS AVRUJ

O documentário argentino NEY (Nosotros, Ellos y Yo, Nicolás Avruj, 2015)1 retrata o

conflito entre israelenses e palestinos no ano 2000, quando eclodiu a segunda

intifada2. Avruj foi visitar seu primo em Israel neste período, e foi surpreendido pois

1 NEY: Nosotros, Ellos y Yo. Direção: Nicolás Avruj. Produção Executiva: Diego Lerman. Edição: Andrea Kleinman. Campo Cine. Argentina: 2015, DVD, (85min), colorido. Prêmios e Festivais: Mostra Internacional de Cinema de São Paulo 2015 - Indicado ao Troféu Bandeira Paulista; Festival de Tandil 2015 – Melhor Filme; Festival Latin Arab 2015 – Menção Especial TAL (Televisión America Latina); BAFICI 2015 (Mostra Panorama); Festival de Cine de La Habana 2015. 2 Intifada significa levante palestino, a primeira aconteceu em dezembro de 1987. Em 1993, o Estado de Israel e a liderança palestina firmaram um acordo em Oslo que ficou conhecido como o processo de paz. Segundo Pappé, este acordo trouxe terríveis consequências para o povo palestino, uma vez que não havia uma proposta de reparação da limpeza étnica provocada por Israel desde 1948, no regime ditatorial de ocupação. Devido às disputas políticas, o primeiro ministro de Israel, Ehud Barak, procurou retomar o acordo que ficou paralisado após o assassinato de Isaac Rabin, primeiro ministro de Israel, em 1995. Na visão de Pappé, seria uma traição ao povo palestino - que lutava pela independência nacional - se a proposta para o acordo de Camp David no ano 2000 fosse aprovada. Arafat não assinou o acordo “e por isso os estadunidenses e israelenses o castigaram de imediato,

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ao chegar lá ficou sabendo que o primo havia viajado para a Argentina. Em Israel,

Avruj decidiu ir de Jerusalém até a cidade de Jericó. Após um longo tempo de

caminhada, alguns palestinos o receberam em sua casa e serviram a ele algo para

beber. Pela sua declaração, a recepção palestina o constrangeu e, a partir desta

experiência, decidiu que iria registrar a sua viagem. Este material resultou na

produção deste documentário. Nicolás Avruj, com sua câmera na mão, percorreu

partes do território de Israel, Cisjordânia e Faixa de Gaza, hospedando-se nas casas

de judeus israelenses e árabes palestinos.

As cenas do documentário se passam nas terras israelenses e palestinas, mas nos

primeiros 6min45s do filme a história contada é sobre a família de Nicolás Avruj. O

documentário, portanto, pode ser dividido em duas partes: a primeira diz respeito à

história de vida do personagem Nicolás, e a segunda trata da perspectiva deste

personagem sobre o conflito israelo-palestino, a partir da experiência e registros de

imagens captadas por Nicolás Avruj em sua viagem - que durou 88 dias - para as

terras israelenses e palestinas no ano 2000.

No centro da tela, assim que o filme exibe a sua primeira cena, uma mulher fixa o

olhar na câmera enquanto procura compreender a sua imagem refletida no espelho.

Com seus cabelos claros, pele envelhecida e uma postura elegante, ela demonstra

não apenas curiosidade pelo objeto contemplado, mas também serenidade e

domínio sobre a situação. Ao seu lado, um jovem com a câmera nas mãos observa

a sua reação afetuosamente, como se estivesse revelando mistérios que ela não

poderia descobrir sozinha. Os dois fazem da câmera, já na primeira cena, o

elemento mais importante da trama. No decorrer das próximas cenas, o

documentário dá voz à mulher do primeiro plano que começa a revelar-se a partir

dos objetos expostos em uma sala. O jovem que outrora filmava o espelho e aquilo

que era refletido por ele, agora conduz a mulher, visando tirar dela o valor atribuído

apressando em apresentá-lo como um belicista.”2 Esta humilhação, segundo Pappé, acrescida da visita provocadora de Ariel Sharon a Esplanada das Mesquitas, desencadeou a segunda Intifada. (PAPPÉ, 2008: 318-319)

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a cada objeto, ou a cada signo, como ela mesma menciona: “Aqui estão todos os

meus amores, todos os signos”3.

Em uma reunião familiar, a narrativa fílmica conta sobre as tradições da casa. Esta

reunião representa a história tanto da mulher quanto do jovem que a acompanha.

Nem tudo é dito pela narrativa do documentário, mas é compreendido pelo todo que

envolve as imagens e as músicas que conectam uma história com a outra. Nas

cenas, Nicolás apresenta-se como um personagem da trama e também como o

homem da câmera. Apenas em algumas cenas ele é filmado por outrem. A sua face

aparece no espelho, com a câmera e em outros momentos, sem ela. A mulher em

destaque na primeira cena do documentário, agora está sentada a mesa, em meio à

reunião promovida pela família. Suas palavras começam a desvelar valores que

serão questionados no desenrolar deste documentário: “Esta noite quatro gerações

à mesa mantém a herança de 4000 anos viva. Estarmos juntos é essencial. E, além

disso, um brinde especialmente à solidariedade familiar, à integridade familiar e a

paz em Israel”4.

Em seguida, Nicolás passa a contar a história da sua infância. O documentário exibe

uma foto colorida dele com seus amigos da escola. Nesta foto, Nicolás está ao

centro, segurando uma placa com os dizeres: Escuela Integral Dr Herzl J 4 1980.

Nicolás narra a sua história e apresenta, neste momento, a mulher que protagoniza

os primeiros cinco minutos do documentário. Ela é a sua avó, que fundou o grupo

Mulheres Argentinas Sionistas. A narrativa de Nicolás, inspirada na história de vida

do diretor deste documentário passa a conduzir a trama após registrar o intenso

vínculo dele com a sua avó. Sendo assim, ele narra o seu Bar Mitzva5, a sua viagem

para Israel na adolescência, a ida do primo para Israel - em 1999 - e a sua viagem

no ano seguinte para visitar o primo. 3 Informação fornecida pela avó de Nicolás no filme NEY (Nosotros, Ellos y Yo, Nicolás Avruj, 2015). Op. cit. 4 Idem. (grifo meu) 5 Bar Mitzva significa “filho do mandamento”. É uma cerimônia judaica em que o menino com 13 anos comemora a sua maioridade religiosa. Disponível em: http://www.morasha.com.br/leis-costumes-e-tradicoes/bar-mitzva.html Acesso em 30/01/2018.

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De um lado do Atlântico a história da família deste judeu-argentino diz respeito às

tradições judaicas e o quanto isto está implicado na maneira como ele vê o conflito

entre israelenses e palestinos. Do outro lado do Atlântico, para começar a contar a

história daqueles povos, o documentário exibe numa tela negra uma música que

pinta o mapa do Oriente Médio. Em cada nota surge a cor que desenha as formas

geográficas desta região. Os mares e os rios que delimitam o mapa aparecem em

azul. Em destaque, surgem do centro do mapa, ocupando a extensão compreendida

como Estado de Israel e as terras da Palestina, a cor vermelha e verde. O Estado

Árabe é a menor porção, em vermelho, e o restante o Estado Judeu, em verde.

O documentário elege alguns dias da viagem de Nicolás para comunicar ao

espectador o conflito na região. Ele viajou por três meses filmando árabes e judeus e

para além de transitar nas cidades de Jerusalém e Tel Aviv, ele adentrou nas terras

palestinas para conhecer de perto este povo e suas condições de vida. Nicolás faz

da câmera o seu diário de viagem, em que registra os lugares onde esteve, as

pessoas que entrevistou e as imagens que mais chamaram a sua atenção.

O título do documentário sugere ao espectador que as pessoas que são retratadas

nele devem fazer parte de determinado grupo social. Em entrevista6, Avruj não

esclarece sobre o grupo que para ele representa “nosotros”, segundo ele, o título foi

criado no final da edição e pode representar tanto a família como amigos e não-

amigos. Também pode ser a comunidade próxima ou os argentinos. O que está

elucidado na entrevista e também no filme é a representação do “yo”, porque Nicolás

é um personagem que representa a própria história do diretor deste documentário.

Este aspecto subjetivo pode tratar tanto da instrumentalização do que concerne à

ficção quanto das questões identitárias implicadas na construção do personagem

inspirado na sua própria vida.

6 Nicolás Avruj concedeu uma entrevista com o objetivo de colaborar para o desenvolvimento desta

análise no dia 17/11/2017, na produtora Campo Cine da qual ele é sócio com o cineasta Diego Lerman, em Buenos Aires, Argentina.

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A produção deste documentário durou quinze anos desde que Avruj retornou de sua

viagem para a Argentina. Segundo Avruj, esta produção contou com algumas

versões antes da última que resultou no lançamento em 2015. A primeira versão

durava três horas e não tinha Nicolás como personagem, era apenas uma sequência

de imagens da sua viagem, mas sem a sua história. Avruj relata que esta versão

agradou o seu professor de língua árabe. Em seguida, ainda fez outra que tampouco

terminou e depois deixou de trabalhar nele por mais ou menos dois anos. Quando

retornou a edição desenvolveu um trabalho em que recorria às suas memórias. Este

último resultou em uma narrativa que deu a Nicolás Avruj um prêmio de melhor

roteiro do INCAA (Instituto Nacional de Cine y Artes Audiovisuales) no ano 2011.

Com este prêmio, sobretudo ele aponta que aprendeu que deveria terminar o projeto

que havia começado. Assim sendo, passou a editar, juntamente com a sua equipe,

as imagens registradas por ele na sua viagem, e a produção do documentário

decidiu inserir a história de Avruj que seria contada por ele em primeira pessoa.

O documentário nos permite refletir sobre a subjetividade do discurso concernente à

experiência de vida do diretor tanto na viagem, em 2000, quanto na sua produção,

durante os quinze anos. A análise do viés subjetivo dos discursos a partir da história

de vida pode ser corroborada através das proposições de Pierre Bourdieu. Os

estudos sobre a história de vida, segundo Bourdieu, possibilitam relativizar um relato

biográfico ou autobiográfico de forma que haja um afastamento do relato em relação

à experiência vivida de fato. O autor afirma que “o relato autobiográfico se baseia

sempre [...] na preocupação de dar sentido, de tornar razoável, de extrair uma lógica

ao mesmo tempo retrospectiva e prospectiva, uma consistência e uma constância,

estabelecendo relações inteligíveis”. Bourdieu considera que o relato biográfico ou

autobiográfico é um discurso que pode ser compreendido como uma “ilusão

retórica”, tendo em vista que é um discurso produzido com o objetivo de conceder

sentido e significado à história de vida. (BOURDIEU, 1996: 184)

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Para além da experiência de vida do diretor Nicolás Avruj, no que tange ao ponto de

vista fílmico, este documentário pode se enquadrar em dois modos da classificação

que Bill Nichols faz acerca do gênero documentário, a saber, o expositivo e o

participativo. O primeiro modo, conforme Nichols, “agrupa fragmentos do mundo

histórico numa estrutura mais retórica ou argumentativa do que estética ou poética

(também) dirige-se ao espectador diretamente, com legendas ou vozes que [...]

recontam a história”. (NICHOLS, 2005: 139). O documentário de Nicolás Avruj

retrata o conflito israelo-palestino a partir das lentes do diretor e também questiona

sobre o fato de cobrarem dele um lado do conflito. No modo participativo, segundo a

classificação de Nichols, percebe-se a presença dos documentaristas no campo.

Sendo assim, o autor afirma que

eles vivem entre os outros e falam de sua experiência ou representam o que experimentaram [...] dá-nos uma ideia do que é, para o cineasta, estar numa determinada situação e como aquela situação consequentemente se altera (também) a entrevista representa umas das formas mais comuns de encontro entre cineasta e tema. (NICHOLS, 2005: 153-159)

Ainda neste viés, é válido ressaltar que o cinema documentário argentino, após a

década de 1990, passou por renovações do ponto de vista formal, estilístico,

discursivo e também temático do gênero documentário. Uma das características

desta renovação diz respeito aos documentários em que o diretor é também autor e

protagonista, assumindo estes papéis a partir de diferentes estratégias discursivas.

(PIEDRAS, 2014: 21) Conforme Piedras,

os usos da primeira pessoa no documentário argentino contemporâneo são tão abundantes como multiformes. A irrupção de um crescente número de filmes que adotam este formato a partir de 2000 é também produto de um contexto sociopolítico de pós-crises, em que o campo artístico é reconfigurado a partir da emergência da experiência e da subjetividade como eixos necessários para sustentar um discurso sobre o mundo (...).(PIEDRAS, 2014: 29)7

7 “Los usos de la primera persona en el documental argentino contemporâneo son tan abundantes como multiformes. La irrupción de un creciente número de películas que adoptan este formato a partir de 2000 es también producto de un contexto sociopolítico de poscrisis (Giunta, 2009), en el que se reconfigura el campo artístico a partir de la emergencia de la experiencia y de la subjetividad como ejes necesarios para sostener um discurso sobre el mundo (...)”(tradução nossa) (PIEDRAS, 2014: 29)

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Piedras também considera a autobiografia como uma das modalidades do cinema

documentário em primeira pessoa. A principal característica deste subgênero é “uma

proximidade extrema entre o sujeito e o objeto do relato”. O autor propõe que o

cinema autobiográfico pode compreender aqueles filmes cuja primeira pessoa

apresenta-se em crise de identidade. (PIEDRAS, 2014: 77) Portanto, problematizar

os aspectos de produção do documentário e também o contexto social a partir da

experiência de vida do diretor nos permite desvelar a questão que atravessa a

trama: o conflito de identidades.

IDENTIDADES EM CONFLITO

Eu pedia, por favor, para que ninguém me perguntasse se eu era judeu. Como não havia turistas, tinha medo. Podiam achar que eu fosse de alguma força secreta israelense. Eu queria apagar qualquer indício.8

A questão da identidade aparece no documentário desde as primeiras cenas. A

relação entre os árabes e judeus da região do conflito é atravessada pela

representação do personagem construído por Nicolás Avruj em primeira pessoa. No

filme, Nicolás descobre o histórico de perdas dos palestinos e a real situação em

que eles viviam no ano 2000, privados dos direitos básicos de qualquer cidadão. O

conflito de identidades torna-se o eixo da discussão que permeia o documentário. O

que procuramos refletir nesta análise no tocante à identidade de Nicolás, para além

de compreender o contexto social representado nas imagens do filme, são as

possíveis razões que levaram Nicolás a ocultar a sua identidade judaica em meio

aos palestinos. Assumir-se judeu era o mesmo que ser israelense e parte da família

nacional do Estado opressor?

Na Faixa de Gaza, junto ao palestino Hamed e seus amigos, Nicolás não se sentiu

confiante para revelar a sua origem, conforme sua declaração no documentário em

que afirma: “Em secreto, guardava a ilusão de que Hamed não guardava rancor 8 Informação fornecida por Nicolás Avruj no filme NEY (Nosotros, Ellos y Yo, Nicolás Avruj, 2015). Op. cit.

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contra os israelenses. Não sei se ele me notava. Mas por segurança não me senti

capaz de dizer.”9

Nicolás entrevistou um jovem israelense em Tel Aviv que também o interrogou

acerca da sua posição diante da questão judaica no pós-guerra. Ele não soube

responder ao questionamento do jovem israelense e após esta declaração parou de

gravar por algumas semanas.

O holocausto nunca voltará se Israel existir. Nós te defendemos mesmo que não venha para Israel. Nós te defendemos. Entende? As pessoas morrem aqui todos os dias, é sério. Um amigo meu foi morto há uma semana. A maioria das pessoas aqui é da terceira geração (...) Seus avós vieram da Alemanha ou de outros lugares. Por que não veio? (...) Se não estivéssemos aqui, em Israel, não haveria conflito. Entende? Mas pelo outro lado, se não estivéssemos aqui, seríamos perseguidos por todo o mundo, caçados. É uma boa pergunta. Por que você não? Como judeu precisa fazer sua parte. É o seu país. Você precisa fazer alguma coisa.10

O documentário mostra que a viagem de Nicolás no ano 2000 para Israel foi como

“tirar o véu” colocado pela sua família. Ele não conhecia Israel e nem o seu inimigo.

Enquanto questiona sobre o conflito, ele começa a refletir sobre a sua identidade. O

documentário corrobora com o debate sobre os problemas de identidade que fazem

parte da sociedade israelense-palestina e que foram intensificados a partir de 1948 -

devido à fundação do Estado de Israel - especialmente com o aumento da imigração

judaica, reforçada pela política sionista que visava à expansão dos assentamentos.

Segundo Bauman, a problemática da identidade é parte de uma discussão central a

partir da segunda metade do século XX. A identidade não é naturalmente gestada,

mas construída a partir de um esforço, muitas vezes imposta de forma coercitiva

para ser consolidada. Para Bauman, quando se trata de questões relacionadas à

identidade e pertencimento não há rigidez, pois são situações “negociáveis e

revogáveis”, cuja dependência está na escolha do indivíduo e em como este prefere

agir. (BAUMAN, 2005: 17).

9 Idem. 10 Idem.

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Há duas questões importantes na proposição de Bauman: pertencimento e

identidade. Sobre a primeira, discutiremos as implicações históricas decorrentes da

formação do Estado de Israel tendo em vista o que Stuart Hall revela sobre o

sentimento de pertença a partir de uma comunidade imaginada. A segunda questão,

sobre a identidade, se refere a um momento de conflito que o indivíduo se encontra,

em que revela, conforme Hall, a descentração ou o deslocamento do sujeito. A

proposta neste viés é descortinar o conflito de identidade experienciada por Nicolás

no documentário em análise.

A comunidade imaginada é constituída por uma cultura nacional e abarca três

conceitos, a saber: “as memórias do passado; o desejo por viver em conjunto; a

perpetuação da herança.” A ideia em torno da formação desta comunidade é o

sentimento de pertença que os indivíduos devem ter a esta família nacional,

independente de classe, gênero ou raça. A família nacional representa uma

“estrutura de poder cultural” e a sua formação diz respeito às “culturas separadas

que só foram unificadas por um longo processo de conquista violenta – isto é, pela

supressão forçada da diferença cultural.” (HALL, 2006: 58-59).

A fundação do Estado de Israel, em 1948, foi resultado de um processo histórico que

teve início no final do século XIX com o surgimento do sionismo11 na Europa. Os

judeus oriundos de diferentes localidades do mundo ocuparam parte das terras

compreendidas entre o Rio Jordão e o Mediterrâneo. Os nativos daquela terra eram

na sua maioria árabes. Após a formação de Israel como Estado-nação, este

processo migratório transformou os judeus que ali adentraram em israelenses. A

grande parte dos árabes que habitavam a região foi expulsa da terra, alguns foram

mortos no conflito e, para aqueles que permaneceram, acabaram tendo que se

sujeitar ao jugo israelense. A situação agravante neste caso é que os árabes que

permaneceram - a partir do processo violento de conquista israelense, depois de 11 No final do século XIX, o sionismo surge como um movimento político comprometido em estabelecer um lar para o povo judeu. Theodor Herzl, nascido em 1860, foi um judeu austríaco que estabeleceu as bases do sionismo na Europa. Segundo Herzl, “o sionismo é o retorno ao judaísmo e precede o regresso ao país dos judeus”. (HERZL, 1897).

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1948 -, tiveram que participar da formação desta família nacional. Os árabes

resistiram a este processo, mas havia em Israel um remanescente conhecido como

‘Família da Terra’ que, como refere Said:

sua ação era orientada pelo imperativo de permanecer na terra, fortalecendo a coesão da comunidade, acomodando-se ao sistema político israelense e, no entanto, lutando por direitos iguais. (...) Contudo, eles não enfrentaram diretamente a contradição de ser não judeu em um Estado judeu, nem lidaram com as políticas especificamente excludentes do sionismo. (SAID, 2012: 156).

A política sionista é fundamentada na ideia do “mito fundador”12. Para Hall, a

tradição de um povo pode estar relacionada com esta ideia que constitui uma

história linear, funcionando como um elo atemporal. A fundação do Estado de Israel

é resultado de uma política migratória e diz respeito à tradição judaica que inaugura

o movimento de retorno a “terra prometida”. O termo etnia se refere às

características culturais de um determinado povo, tais como: língua, religião,

costume, tradição e pertencimento. No mundo moderno, a ideia de fundar uma

nação baseada na etnia é um mito. Hall salienta que na “Europa Ocidental não tem

qualquer nação que seja composta de apenas um único povo, uma única cultura ou

etnia. As nações modernas são, todas, híbridos culturais.” (HALL, 2006: 62). Tal

como problematizado pelo autor, a cultura nacional não nasce com o indivíduo, mas

é formada e transformada “no interior da representação”. A nação existe como

entidade política e também para produzir sentidos, portanto, ela é um “sistema de

representação cultural.” (HALL, 2006: 49)

No documentário, Nicolás decidiu não revelar a sua origem judaica para os

palestinos de Gaza. Na cena em que filmou a fronteira de Gaza, Nicolás aponta para

indicar a direção em que se localiza a Argentina. Era mais conveniente para ele

naquele momento pertencer à história nacional argentina do que se associar à

12 Segundo Hall, o mito é capaz de “moldar” o imaginário dos indivíduos, influenciando as suas ações e atribuindo sentido a história de vida. Nas suas palavras: “Os mitos fundadores são, por definicão, transistóricos: não apenas estão fora da história, mas são fundamentalmente aistóricos. São anacrônicos e têm a estrutura de uma dupla inscrição. Seu poder redentor encontra-se no futuro, que ainda está por vir. Mas funcionam atribuindo o que predizem a sua descrição do que já aconteceu, do que era no princípio”. (HALL, 2003: 29-30).

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tradição judaica que promoveu o retorno dos judeus para aquelas terras. Todavia, a

partir do excerto citado neste texto, em que o jovem israelense o trata como judeu,

percebe-se que Nicolás assumiu a identidade judaica antes da entrevista. “Por que

você não veio?” Esta pergunta o coloca do lado judeu, de forma que ele também

poderia estar lutando pela terra contra os palestinos e até mesmo ocupando uma

das casas dos diversos assentamentos israelenses. Não apenas ele deixa de

responder à pergunta daquele jovem como também interrompe por um período as

gravações. Infere-se, portanto, que este é um momento de conflito de identidade. No

documentário, Nicolás afirma que o fato de cobrarem dele uma posição acerca do

lado que está o incomoda.

Utilizando das concepções de Hall, o personagem Nicolas é um sujeito da pós-

modernidade, ou seja, um sujeito descentrado. Para o autor, este sujeito não tem

uma identidade “fixa, essencial ou permanente”, o sujeito pós-moderno “está se

tornando fragmentado; composto não de uma única, mas de várias identidades,

algumas contraditórias ou não-resolvidas”. (HALL, 2006: 37). Na entrevista, o diretor

do filme, Nicolás Avruj, disse não se identificar com aquele Israel que ele conheceu

naquela viagem, se não com a imagem de Israel que havia sido construído pela sua

família. No filme, o personagem que retrata a própria história de vida do diretor está

diante de duas representações: a primeira é concernente à ideia do retorno a “Sião”

e formação de um lar para o povo judeu, história contada pela sua família e

idealizada por ele durante a sua infância e juventude; a segunda, diz respeito à

representação do sujeito nacional implicado na formação do Estado-nação que se

configura após 1948. Ambas estão na mesma lógica dos nacionalismos, mas entre

a primeira e a segunda houve o conflito que delineou um cenário de expropriação e

expulsão do povo árabe nativo daquelas terras.

Os conflitos identitários que estão presentes nas cenas deste documentário revelam

um lugar de ambivalência. As fronteiras entre Israel e Palestina representam este

lugar tanto pela geografia da região quanto pela diferença étnica entre judeus e

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árabes - referentes à religião, aos costumes e as tradições. Na fronteira de Erez, a

câmera filma o limite dos dois territórios, enquanto Nicolás narra: “De um lado

estavam os assentamentos israelenses. Do outro, a passagem para Gaza. Decidi

seguir este caminho13”. Ele consegue uma carona que o leva para a aldeia de Beit

Hanoun, em Gaza. Foi neste dia que Nicolás conheceu Hamed, um rapaz que

pertencia à família que o levou até aquela aldeia. Hamed convidou Nicolás para se

hospedar em sua casa e a partir de então, ele conheceu de perto os costumes e os

problemas dos palestinos de Gaza. Em uma entrevista com Hamed, Nicolás o

indaga sobre o povo judeu, e Hamed responde:

As pessoas de Israel que vieram da Alemanha vão para a Alemanha. Os que vieram de Marrocos vão para Marrocos. Do Egito para o Egito, da Argentina para a Argentina. Assim podemos ter paz. Não tem gente boa em Israel. Porque continuam vivendo em nossas terras... Queria dizer outra coisa sobre os judeus: eles têm características muito ruins... Como serem covardes, não serem boas pessoas, odiarem à paz... Muitas coisas assim.14

Nicolás o interrompe com uma pergunta: “Mas fala de características ruins dos

judeus ou dos israelenses?” Hamed responde: “Judeus”. Nicolás insiste: “Dos

israelenses ou dos judeus?” E Hamed afirma: “Não, dos judeus... Também são

características dos israelenses, porque os israelenses também são judeus”.15 Após

está contundente entrevista, antes de deixar Gaza, Nicolás declara:

No princípio, eu havia proposto não dizer que era judeu para ter respostas mais sinceras. Mas depois dessa noite, não diria a ninguém mesmo que me perguntassem. Eu teria que estar disposto a colocar em dúvida a existência do Estado de Israel? Decidi não voltar à casa de Hamed.16

Há um aspecto na questão do descentramento do sujeito que problematiza o lugar

da fronteira, ou seja, não estar nem de um lado e nem do outro, mas no interstício.

13 Informação fornecida por Nicolás Avruj no filme NEY (Nosotros, Ellos y Yo, Nicolás Avruj, 2015). Op. cit. 14 Informação fornecida por Hamed, palestino da Faixa de Gaza no filme NEY (Nosotros, Ellos y Yo, Nicolás Avruj, 2015). Op. cit. 15 Informação fornecida por Nicolas Avruj e Hamed no filme NEY (Nosotros, Ellos y Yo, Nicolás Avruj, 2015). Op. cit. 16 Informação fornecida por Nicolás Avruj no filme NEY (Nosotros, Ellos y Yo, Nicolás Avruj, 2015).

Op. cit.

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Para Bhabha, houve uma mudança nas categorias conceituais que provocou “uma

consciência das posições do sujeito”. Para além das “narrativas de subjetividades” -

que tratam de raça, gênero, lugar da instituição, lugar geopolítico e geração -, do

ponto de vista da teoria, o autor considera inovador e “politicamente crucial” focar

nos “momentos ou processos que são produzidos na articulação de diferenças

culturais. (BHABHA, 1998: 19). O autor ainda salientou que

esses ‘entre-lugares’ fornecem o terreno para a elaboração de estratégias de subjetivação – singular ou coletiva – que dão início a novos signos de identidade e postos inovadores de colaboração e contestação, no ato de definir a própria ideia de sociedade. (BHABHA, 1998: 20).

A reflexão sobre um mundo pós-moderno em que o sujeito está descentrado e

transitando numa localidade transnacional é o que Bhabha propõe sobre o “estar no

além”, num “entre-lugar”, tocar as extremidades e permanecer no espaço

intermediário. É permitir-se não ser uma coisa e nem outra apenas, mas uma

atravessada pela outra. Ainda afirma neste sentido que

a fronteira se torna o lugar a partir do qual algo começa a se fazer presente em um movimento não dissimilar ao da articulação ambulante, ambivalente (...) “Sempre, e sempre de modo diferente, a ponte acompanha os caminhos morosos ou apressados dos homens para lá e para cá, de modo que eles possam alcançar outras margens (...) A ponte reúne enquanto passagem que atravessa.” (BHABHA, 1998: 24).

O documentário em análise representa a história de povos que estão entrelaçados

num espaço geopolítico em conflito há mais de um século. Nicolás não apenas se

deparou com a presença israelense na vida política e social do palestino como

também percebeu que a situação dos palestinos atravessou a sua história. Em uma

cena, após sair das proximidades de Hebron, onde esteve numa única casa

palestina que restou após a expropriação, ele narra: “Vaguei sem rumo em

Jerusalém e Tel Aviv.” Depois, ele encontra alguns israelenses numa manifestação

contra o governo de Israel, e declara: “Alguns israelenses diziam aquilo que eu não

podia dizer em voz alta.”17 As duas declarações revelam o incômodo que Nicolás

sentiu naquele momento ao se deparar com as condições de vida dos palestinos e a

17 Idem.

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realidade da política israelense. Tanto um lado quanto o outro passaram a fazer

parte da história deste judeu-argentino. É provável que ele tenha compreendido que

a sua judaicidade também estava na dor dos palestinos, ainda que sem revelá-la. A

história de Nicolás não era mais apenas o que a tradição familiar o transmitiu, mas

também o que representava Israel na figura do seu inimigo. Não havia como se

desvencilhar, ele estava no “entre-lugar”.

O último dia de filmagem, em Tel Aviv, a câmera filma o seu primo Seba e a face de

Nicolás. Os seus olhos fitavam um ponto e outro como quem procura algo e não

encontra. Seba aparece na tela e faz ressoar um acorde numa guitarra azul, mas

não toca nenhuma música. Uma moça acena para a câmera e se despede. Por

alguns segundos, a câmera foca em Nicolás. Ele não demonstra contentamento em

sua face, mas também não demonstra tristeza. Apenas silêncio. O próximo plano, o

espectador contempla o céu azul e a asa do avião. É o retorno dele para a

Argentina. Na ausência de imagem, a tela negra, ouve-se apenas a voz dela:

“Nicolás, baruch haba. Bem vindo! De sua avó, que sabe que teve uma ótima

viagem e espera que você conte como foi.”18

A questão da identidade neste documentário pode ser corroborada através das

proposições tanto de Stuart Hall como de Homi Bhabha. Ambos autores

problematizam o lugar do sujeito pós-moderno. O personagem Nicolás que

protagoniza este documentário representa a história experienciada pelo diretor

Nicolás Avruj durante a sua viagem para Israel, em 2000. Para além da história que

o filme retrata, há o próprio processo de produção que desvela a subjetividade

presente no documentário. Nicolás Avruj levou quinze anos para concluir este

documentário. Ele deixou as terras em conflito, mas levou com ele as lembranças e

as imagens captadas por sua câmera. Nicolás não voltou para a Argentina do

mesmo modo que saiu de lá. Neste momento ele carregava muitas questões das

quais iria refletir no decorrer da produção do documentário. É provável considerar

18 Informação fornecida pela avó de Nicolás no filme NEY (Nosotros, Ellos y Yo, Nicolás Avruj, 2015).

Op. cit.

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que o “entre-lugar” representa este momento de conflito de identidade, e que não se

resolve distanciando-se geograficamente do lugar de confronto. No entanto, tendo

em vista os quinze anos que se passaram para produzir o filme, é relevante afirmar

que isto possibilitou para o diretor Nicolás Avruj, se não se posicionar politicamente

de um lado do conflito, ao menos uma reflexão de quem ele é nesta história. Nicolás

não se vê israelense, mas judeu que está do outro lado do Atlântico. Especialmente

diante dos palestinos, ele é apenas argentino. Assim como afirma Bauman, a

depender do lugar que ele está, a sua identidade pode ser negociada ou até mesmo

revogada.

QUEM SÃO “ELLOS” NO DOCUMENTÁRIO?

As imagens e os diferentes elementos que estão presentes no filme retratam a

história de uma família de judeus na Argentina, o conflito israelo-palestino no Oriente

Médio e a história de uma viagem realizada por um jovem de 24 anos de idade.

Nicolás não apenas testemunhou a segunda intifada, mas, sobretudo desvelou as

causas que explicam este e outros atos de resistência do povo palestino. O

documentário autobiográfico é resultado de um processo longo de estudo e

experimentações que possibilitou a reflexão de Nicolás Avruj sobre o conflito, de

forma que expõe – através da narrativa do protagonista – os embates históricos do

conflito.

Israel e Palestina são territórios diferentes, mas entrecruzados. A Palestina ainda

não é um Estado autônomo, e na luta pela sua soberania a imagem do seu opositor

atravessa a identidade do seu povo. Os israelenses se fortalecem ainda mais para

vencê-los. Por conta do poder cultural que o Estado lhe confere, os judeus

sobrepujam as suas tradições. Porém, nos territórios palestinos, conforme o

documentário revela, os símbolos israelenses são hostilizados. A guerra continua...

Nicolás transitou entre ambos os lugares. Tocou de um lado e de outro, mas não se

viu totalmente reconhecido. Nota-se que as identificações ocorreram com alguns

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entrevistados. O que eles dizem no documentário fez parte de uma seleção da

produção fílmica que diz respeito à subjetividade tanto da imagem quanto da

narrativa sobreposta à imagem. A voz deste documentário pode representar os

povos dali, que ainda não compreenderam o lugar da identidade palestina e nem

israelense, uma vez que ambos os povos permanecem em guerra e a presença do

outro como inimigo é constante. Tanto israelenses quanto palestinos não pertencem

ao grupo de Nicolás. Este está do outro lado do Atlântico, ou ao menos, procura se

ocultar neste lado. Aqueles, ou “ellos” são os outros que no documentário estão

representados. Assim como Nicolás, ambos os povos podem reconhecidamente

estar no “entre-lugar”. Um atravessado pelo outro.

Bibliografia

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HERZL, Theodor. Discurso de Abertura do Primeiro Congresso Sionista. Basiléia - Suíça, 29

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Acesso em 07/08/2017.

NICHOLS, Bill. Introdução ao Documentário. Campinas, SP: Papirus, 2005.

PAPPÉ, Ilan. La limpieza Étnica de Palestina. Traducción castellana de Luis Noriega.

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PIEDRAS, Pablo. El cine documental em primera persona – 1ª ed. – Ciudad Autónoma de

Buenos Aires: Paidós, 2014.

SAID, Edward W. A Questão da Palestina. Tradução Sonia Midori. São Paulo: Ed. Unesp,

2012.