A QUESTÃO DA TÉCNICA E O PENSAMENTO CALCULADOR EM HEIDEGGER

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“Existência e Arte”- Revista Eletrônica do Grupo PET - Ciências Humanas, Estética e Artes da Universidade Federal de São João Del-Rei Ano IV - Número IV janeiro a dezembro de 2008. A QUESTÃO DA TÉCNICA E O PENSAMENTO CALCULADOR EM HEIDEGGER Leandro Assis Santos (Bolsista/PET Filosofia UFSJ) Paulo Soares de Rezende Neto (Bolsista/PET Filosofia UFSJ) Glória Maria F. Ribeiro (Orientadora/Tutora/PET Filosofia UFSJ) Agência Financiadora: MEC/SESu/DEPEM RESUMO: O presente trabalho tem como objetivo compreender como Martin Heidegger (1879-1976) entendeu a questão da técnica e especialmente o pensamento calculador a partir do discurso pronunciado na celebração do 175º aniversário do nascimento do compositor Conradin Kreutzer em 30 de Outubro de 1955, publicado na obra Serenidade, de 1959. Igualmente iremos nos valer dos textos Introdução à Metafísica, de 1935, notadamente A Questão Fundamental da Metafísica, além da conferência A Questão da Técnica presente na obra Ensaios e Conferências, de 1954. PALAVRAS-CHAVE: Técnica, Pensamento Calculador, Obscurecimento do Mundo. questionamento acerca da técnica se mostra inevitável quando se pergunta pelo modo como o homem moderno está disposto neste mundo. Ora, pelo quê e como é afetado e o que significa, “hoje”, no tempo da tecnologia avançada, ser tomado pelo mundo? Iremos nos apoiar em uma citação do filósofo extraída de Introdução à Metafísica. Esta reza o seguinte: Mas ainda nos falta a perspectiva essencial de saber, em que medida essa investigação, em si mesma Histórica, da questão do Ser traz consigo uma correspondência intrínseca até mesmo com a História Universal do mundo. Acima dizíamos: por toda parte acontece um obscurecimento do mundo, cujos processos Essenciais são: a fuga dos deuses, a destruição da terra, a massificação do homem, a primazia da mediocridade (HEIDEGGER, 1969, p. 71). Algo espantoso nos assalta neste texto. Obscurecimento do mundo, por assim dizer, do “nosso mundo”, do nosso tempo, está intimamente relacionado à clareza, ao estereótipo, à logicidade, isto é, ao desenvolvimento do mundo técnico, do modelo tecnológico, do científico. O Progresso entenda-se: um desenvolvimento sem pátria, sem identidade, pois é global, globalizado. Nisto vigora o predomínio do indistinto, do imperceptível, e no que tange às relações humanas, do superficial. Mas como se estrutura esse predomínio da superficialidade, isto é, em que se funda esse predomínio? E nesse sentido, em que medida esse predomínio é o fenômeno no qual se assenta àquele obscurecimento do mundo? O

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O presente trabalho tem como bjetivo compreender como Martin Heidegger (1879-1976) entendeu a questão da técnica e especialmente o pensamento calculador a partir do discurso pronunciado na celebração do 175o aniversário do nascimentodo compositor Conradin Kreutzer em 30 de Outubro de 1955, publicado na obra Serenidade, de 1959. Igualmente iremos nos valer dos textos Introdução à Metafísica, de 1935, notadamenteA Questão Fundamental da Metafísica, além da conferência A Questão da Técnica presente naobra Ensaios e Conferências, de 1954.

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  • Existncia e Arte- Revista Eletrnica do Grupo PET - Cincias Humanas, Esttica e Artes da

    Universidade Federal de So Joo Del-Rei Ano IV - Nmero IV janeiro a dezembro de 2008.

    A QUESTO DA TCNICA E O PENSAMENTO CALCULADOR EM HEIDEGGER

    Leandro Assis Santos (Bolsista/PET Filosofia UFSJ) Paulo Soares de Rezende Neto (Bolsista/PET Filosofia UFSJ) Glria Maria F. Ribeiro (Orientadora/Tutora/PET Filosofia UFSJ) Agncia Financiadora: MEC/SESu/DEPEM

    RESUMO: O presente trabalho tem como objetivo compreender como Martin Heidegger (1879-1976) entendeu a questo da tcnica e especialmente o pensamento calculador a partir do discurso pronunciado na celebrao do 175 aniversrio do nascimento do compositor Conradin Kreutzer em 30 de Outubro de 1955, publicado na obra Serenidade, de 1959. Igualmente iremos nos valer dos textos Introduo Metafsica, de 1935, notadamente A Questo Fundamental da Metafsica, alm da conferncia A Questo da Tcnica presente na obra Ensaios e Conferncias, de 1954.

    PALAVRAS-CHAVE: Tcnica, Pensamento Calculador, Obscurecimento do Mundo.

    questionamento acerca da tcnica se mostra inevitvel quando se

    pergunta pelo modo como o homem moderno est disposto neste mundo. Ora, pelo qu e como afetado e o que significa, hoje, no tempo da tecnologia avanada, ser tomado pelo mundo? Iremos nos apoiar em uma citao do filsofo extrada de Introduo Metafsica. Esta reza o seguinte:

    Mas ainda nos falta a perspectiva essencial de saber, em que medida essa investigao, em si mesma Histrica, da questo do Ser traz consigo uma correspondncia intrnseca at mesmo com a Histria Universal do mundo. Acima dizamos: por toda parte acontece um obscurecimento do mundo, cujos processos Essenciais so: a fuga dos deuses, a destruio da terra, a massificao do homem, a primazia da mediocridade (HEIDEGGER, 1969, p. 71).

    Algo espantoso nos assalta neste texto. Obscurecimento do mundo, por assim

    dizer, do nosso mundo, do nosso tempo, est intimamente relacionado

    clareza, ao esteretipo, logicidade, isto , ao desenvolvimento do mundo

    tcnico, do modelo tecnolgico, do cientfico. O Progresso entenda-se: um

    desenvolvimento sem ptria, sem identidade, pois global, globalizado. Nisto

    vigora o predomnio do indistinto, do imperceptvel, e no que tange s relaes

    humanas, do superficial. Mas como se estrutura esse predomnio da

    superficialidade, isto , em que se funda esse predomnio? E nesse sentido,

    em que medida esse predomnio o fenmeno no qual se assenta quele

    obscurecimento do mundo?

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    Predomnio da superficialidade l-se: preponderncia, supremacia (primazia)

    do frvolo, do fugaz, o domnio do sem importncia produtor do passageiro e do

    no profundo em todas as relaes, do vazio e insignificante modo de ser, do

    oco pensamento. Pensar participar autenticamente da realidade (Cf. Fogel,

    2003, p. 1). vencer a indiferena, solapar a apatia, aniquilar o oco e o ftil.

    No obstante, deve-se indicar que frvolo, fugaz, etc. no devem ser

    entendidos como algo depreciativo. Estes tambm so modos de ser do

    homem. Alis, ignorar o ftil e o frvolo na vida do homem seria algo

    contraditrio, uma vez que ambos so necessrios vida humana. O problema

    t-los como modos predominantes de ser. Conforme Heidegger, o

    predomnio da superficialidade se funda em um modo especfico de

    pensamento, a saber, o pensamento calculador que se contrape ao

    pensamento meditante.

    No se deve entender calculador unicamente no sentido de fazer clculos, de

    usar frmulas. Anterior a isso, deve-se entender o termo no sentido de instituir

    regras, se valer de formas para se padronizar, cristalizar o mundo como se este

    fosse um dado substancial, objetivo matematizado. a configurao do

    instrumentalismo e funcionalismo do pensamento. Neste sentido, o

    pensamento calculador coincide com a objetivao daquilo que prtico e

    programvel, quer dizer, do pragmtico e operacional. A tecnologia (forma

    derivada da cincia moderna) regida essencialmente pelo pensamento que

    calcula, pensamento este que possui como caracterstica fundamental reduzir a

    um plano todo modo de se estruturar o saber cientfico de forma que tente

    configurar o mundo como uma coisa completamente formada e acabada.

    Pelo exposto, entende-se que este o pensamento que, na maior parte das

    vezes, determina a relao do homem com o mundo. Essa determinao

    ganha faceta de dominao (primazia) medida que forja uma necessidade,

    instaura uma dependncia. Por isso mesmo h a necessidade do novo, isto ,

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    vive-se sobre o jugo e a ditadura da novidade. Entretanto, como visto acima, o

    fugaz oriundo da novidade perfaz necessidade. O problema quando isso

    radicaliza e passa a ser algo cotidiano e habitual. Comunga-se com o novo e

    por isso com o efmero de maneira a produzir e vincular-se intensamente ao

    excesso, demasia e isto na forma da utilizao descomedida do aparato

    tcnico, do objeto tecnolgico.

    Nesta perspectiva, a novidade s pode se fazer nova ao estruturar-se

    aferrada a uma relao na qual preocupa-se apenas com a utilizao

    impessoal daquele aparato ou mesmo na instaurao superficial de relaes.

    Nisto j no h identidade com as coisas, uma vez que no se compreende em

    uma relao cuidadosa com estas, qui com o outro. Este fenmeno do

    obscurecimento vem se desenvolvendo com tal mpeto que, sem hesitao,

    deixa o homem pairar em uma total falta de razes, isto , uma perda de

    sentido to absoluta que a maior parte das relaes (laos) erigidos no mundo

    se tornam frouxos, gastos. Esse des-enraizamento do homem gerado

    essencialmente pela facilidade provinda daquela necessidade fundada no

    descartvel, quer dizer, o que nos necessrio hoje talvez no seja amanh.

    Esta facilidade geradora de medianidade e nivelamento e provem daquela

    impessoalidade, fenmeno que pode originar uma pobreza ou ausncia de

    pensamento.

    Ausncia de pensamento abrange todo modo de ser no qual o homem se

    acha perdido na superficialidade do cotidiano. Perdido aqui, no se identifica

    apenas com aquilo que no encontrado. Constitui-se, antes, em uma

    cadncia em direo ao mundo das ocupaes de forma que o homem se

    perca no meio, isto , se perca no seio da medianidade em relao a tudo de

    maneira que paire em uma total indiferena j que nada o afeta radicalmente.

    Tal indiferena origina-se da no reflexo sobre isso ou sobre aquilo. Afinal, o

    mundo se mostra sempre com a mesma roupagem, com o mesmo vio; porm

    em um vigor enfraquecido e habituado por frouxos laos ou mesmo pelos

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    meios de comunicao, por exemplo, quer dizer, por relaes e meios

    padronizantes, de pouca Memria, j que engaveta-se tudo na memria digital,

    na agilidade operacional, ciberntica um mundo ao alcance das mos.

    O cotidiano por esta via torna-se um fardo, um peso, por isso tedioso

    (comprido... tempo longo), vago, enjoado chatinho. Ironicamente, este

    fenmeno se erige da sede de conhecimento. Embriagado por esta bebida, o

    homem se deixa arrastar pelo labirinto da informao, se deixa envolver pela

    rapidez do sistema, da rede, seduzido pelo mais econmico, pelo aprazvel,

    pela vida feliz como adoram os marketings televisivos. Embriagados da

    bebida rpida frvola, e por isso fugaz da sistematizao do real, o homem

    no se percebe que passa a esquecer de tudo; um esquecimento tpico da

    embriaguez, j que est agitado e envolvido pelo sim, sim, e pelo no, no

    (HEIDEGGER, 1996, p. 60) ao ponto de no se perceber que consumido pela

    funcionalidade do clculo e despotenciado nas baias da inrcia em meditar.

    Em uma passagem de uma conferncia pronunciada em maio de 1958,

    intitulada O que quer dizer pensar? l-se o seguinte trecho:

    Sim, verdade: o que at agora foi dito e toda a discusso que se segue nada tem haver com a cincia e, sobretudo, se a discusso tiver o direito de ser um pensamento. A razo disso que a cincia no pensa. Ela no pensa porque, segundo o modo de seu procedimento e de seus recursos, ela jamais pode pensar a saber, pensar segundo o modo dos pensadores. Que a cincia, porm, no possa pensar, isso no uma deficincia e sim uma vantagem. Somente esta vantagem assegura cincia a possibilidade de, segundo o modo da pesquisa, introduzir-se num determinado domnio de objetos e a instalar-se. A cincia no pensa (HEIDEGGER, 2002. p. 115).

    Nota-se que a ausncia de pensamento se d no seio do pensamento

    calculador, e este, o pensamento da cincia, metdico, no pensa de modo

    reflexivo. No pensar de modo reflexivo significa no pensar a si mesmo e no

    pensar radicalmente em suas prprias aes consequentemente no refletir

    sobre suas consequncias. A ausncia de pensamento, por seu turno, a

    configurao mais evidente do fato de no se pensar sobre aquilo que constitui

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    o prprio mundo, j que cotidianamente o homem est tomado pela facilidade

    habitual e, de certa forma, j pensado. A cincia se apresenta na mesma

    forma. Ela age, calcula, purifica, decanta, experimenta etc., mas no reflete

    sobre si mesma e nem sobre quilo que a circunda.

    O predomnio da superficialidade ganha seu vigor no formato desse no refletir,

    meditar, e por assim dizer se desenvolve em meio a medianidade e

    nivelamento. Entenda-se por medianidade, o modo no qual toda relao

    instaurada no mundo se estrutura por meio da facilitao naquilo que se

    empreende e, por isso mesmo, tais relaes se tornam niveladas.

    O predomnio da superficialidade fruto da ausncia de pensamento. O des-

    -enraizamento do homem em relao ao mundo se apresenta como uma

    vertente deste problema. Da falta de razes nasce a preponderncia daquela

    novidade dita descartvel, isto , efmera, fugaz. Esta estrutura gera, por fim, o

    que Heidegger chamou de primazia da mediocridade. Esta mediocridade

    vigora ao passo que o homem est perdido na relao junto aos entes de

    forma que j no se consegue distinguir deles propriamente. o vigor

    impetuoso do mediano. Tomado pela sede de novidade (sempre fugaz), o

    homem j no atenta para aquilo que realmente se constitui como prprio, isto

    , o realmente necessrio, o que por sua vez, resguarda em si uma identidade.

    Torna-se, assim, um estrangeiro para si mesmo.

    Mas em que medida este homem, que est perdido em meio a essa falta de

    pensamento torna-se estrangeiro para si mesmo? Ora, esse processo no qual

    nos tornamos alheios a ns mesmos o que Heidegger chamou de des-

    -enraizamento. Este fenmeno ganha seu sentido quando o homem imerso na

    primazia da mediocridade esquece todas as suas relaes mais essenciais,

    aquilo que lhe mais prprio, aquilo que lhe constitua mais intimamente.

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    Para evidenciar esse fenmeno, o filsofo alemo se valeu do exemplo dos

    camponeses de sua terra natal. As relaes anteriores ao predomnio da

    tcnica agrcola se davam muito intimamente entre homem e campo. Em sua

    vida no campo, o lavrador atentava-se com o cu na poca das chuvas,

    preocupava-se com a trajetria dos ventos, tinha em seu ofcio o prazer de

    lavrar o solo, de germinar a terra. A fora de seu ofcio j trazia em seu bojo a

    devoo ao divino, f, que no era muito mais que a ausculta obediente e

    dedicada ao mundo. Vivia a descobrir a umidade e fertilidade do solo e a

    solido do caminho do campo (HEIDEGGER, 1977, p. 25). Com o advento do

    pensamento calculador e da tcnica todo aquele sentido de lida e ofcio

    esvaziou-se. No h mais reflexo sobre as atividades a serem

    desempenhadas no campo. No h mais preocupao do campons com a

    colheita, safra que muitas vezes era para sua subsistncia. Campons tornou-

    -se o empresrio (ou peo), e o cuidado e dedicao transformou em previso

    e estatstica.

    Esse processo de des-enraizamento ganha inicialmente seu impulso em uma

    necessidade de industrializao do mundo contemporneo, sempre vido

    por submeter todo o real a sua vontade, quer dizer, aos seus programas.

    Aquele campons que antes olhava o cu para prever as chuvas e a trajetria

    dos ventos, hoje, na figura do tcnico ou do empresrio confere na internet a

    previso do tempo; o lavrar do solo antes feito pacientemente durante

    semanas, para depois semear, agora feito em poucas horas com um trator de

    ltima gerao. A umidade e fertilidade do solo, antes compreendidas com uma

    atenta observao e tato, agora so calculadas por programas

    computadorizados criados especificamente para este fim. Ou seja, lidar com a

    lavoura tornou-se hoje, grosso modo, lidar com programas computadorizados,

    e no com terra e minhoca!

    A fora do pensamento calculador se alastra ao passo que o enraizamento

    enfraquece a ponto de perder-se quase totalmente. A tcnica cria assim uma

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    relao de dependncia, ao passo que os homens se valem nica e

    exclusivamente de seus meios para fazer aquilo que antes tinham tanta

    familiaridade, um modo habitual e prprio de lidar com o mundo. Tal fenmeno

    Heidegger nomeou de destruio da terra e fuga dos deuses.

    Concebemos destruio de dois modos distintos. No primeiro, podemos tomar

    essa destruio no sentido do j citado des-enraizamento, isto , essa falta e

    enfraquecimento de laos que se refere ao esquecimento daquilo que melhor

    caracteriza a histria de um povo, no sentido radical que perpassa o mago de

    uma cultura, jogando essa em um plano que a faz se tornar alheia a si mesma

    o campons. O segundo modo de destruio, por sua vez, ganha a

    roupagem daquela industrializao que adquire fora pela necessidade que se

    perfaz descartvel, levando a destruio do homem enquanto pertencente a

    uma cultura, ou seja, a um modo prprio e comum de ser junto s coisas e com

    os outros, de modo que permanea alheio a si e, como colocado acima, seja

    estrangeiro em relao a si mesmo.

    Compreende-se, portanto, que o obscurecimento do mundo est intimamente

    ligado com o pensamento calculador. A primazia da mediocridade que se

    estabelece por meio da medianidade e nivelamento, da superficialidade e

    facilidade que culmina no des-enraizamento do homem; a fuga dos deuses

    como a dissipao do sentido radical de lida com o meio que lhe mais

    prprio; a massificao do homem que disso proveniente, quer dizer, esse

    alheamento (o ser estrangeiro a si mesmo) tornam-se as consequncias mais

    patentes de um tempo que cego para aquilo que constitui primordialmente os

    laos mais habituais do homem.

    Em contraponto ao pensamento que calcula, Heidegger explicita o pensamento

    meditativo. Ora, o homem um ser que pensa, que reflete, medita e este modo

    de pensar s se faz ao passo em que se demora no que est prximo a ns.

    Entendemos aqui esse demorar, quer dizer, estar prximo, como modo de

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    reter-se junto a, deter-se com, isto , morar, habitar, estar tomado por isso

    que lhe familiar, que lhe comum. Por via do pensamento meditante, o

    homem est jogado naquele enraizamento que o pensamento calculador

    ameaa. Ademais, importante salientar que o pensamento calculador, por

    no ter aquele cuidado em demorar-se junto s coisas se constitui finalmente

    em um modo de pensamento que no para, no medita sobre si mesmo e por

    isso mesmo no reflete sobre suas consequncias. Porm, ao seu modo ele

    tambm se faz importante para a existncia do homem contemporneo.

    Conforme Heidegger:

    Seria insensato investir s cegas contra o mundo tcnico. Seria ter vistas curtas querer condenar o mundo tcnico como uma obra do diabo. Estamos dependentes dos objetos tcnicos que at nos desafiam a um sempre crescente aperfeioamento. Contudo, sem nos darmos conta, estamos de tal modo apegados aos objetos tcnicos que nos tornamos seus escravos (HEIDEGGER, 1959, p.23).

    Falamos acima do pensamento meditante em contraponto ao que calcula. A

    reflexo que medita um pensamento lento que busca a causa e o fundamento

    das coisas. Buscar pelo fundamento questionar e aprofundar na prpria

    interrogao, isto , perguntar pelos porqus (Cf. HEIDEGGER, 1969, p. 34). O

    pensamento que medita um pensamento que re-flete sobre si mesmo, que

    pe a si mesmo, alm do mundo que nos circunda, em questo. No entanto,

    esse modo de pensamento tem sido deixado cada vez mais de lado em virtude

    de um no pensar, que instaurado por aquele des-enraizamento que, por sua

    vez, ganha seu sentido no bojo do pensamento calculador.

    O obscurecimento do mundo, cujas caractersticas so a primazia da

    mediocridade, a destruio da terra, a fuga dos deuses e a massificao do

    homem tm sua fora sustentadora nessa ausncia de pensamento. Esta

    ausncia vigora na superficialidade e facilidade na forma em que lidamos com

    o mundo, lida essa que se constitui em uma forma na qual o homem tem de

    modo ameaado sua prpria identidade. Por essas mesmas caractersticas

    essa superficialidade v no pensamento meditante algo que no prtico, de

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    maneira que parea que este seja fora da realidade, ou seja, um pensamento

    desnecessrio, lento, abstrato e intil. Em virtude do vigoroso domnio da

    tcnica, da cincia, o nosso tempo histrico que tanto nos proporciona pensar

    (pensamento meditante) se v obscurecido por uma ausncia de pensamento

    que mediania e nivela todas as relaes de maneira indiferente.

    Mas se estamos to dependentes dos objetos tcnicos de tal maneira que no

    podemos nos desvencilharmos deles, como ficaramos livres ento do jugo do

    pensamento calculador? Heidegger apresenta, enfim, a serenidade.

    Serenidade seria a relao que teramos de estabelecer com os objetos

    tcnicos. Nessa relao teramos de dizer um sim e um no aos objetos

    tcnicos. Um sim no sentido de permitir a utilizao dos objetos tcnicos. E um

    no no sentido de negar a eles um envolvimento naquilo que ns temos de

    mais ntimo e que nos constitui, deixando que eles repousem em si mesmos.

    Essa postura teria ento a possibilidade de estabelecer um novo en-

    -raizamento.

    Referncias Bibliogrficas: FOGEL. Gilvan. O que h com o pensamento hoje? In: taca: Revista dos alunos de ps-graduao em Filosofia. Ed: 2001. pp. 1-12. IFCS-UFRJ. HEIDEGGER, Martin. Introduo metafsica. Traduo, introduo e notas de Emmanuel Carneiro Leo. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1969 (Coleo Biblioteca Tempo Universitrio) __________________. A Origem da Obra de Arte. Traduo de Maria da Conceio Costa. Reviso de Artur Moro. Edies 70: Lisboa. __________________. Serenidade. Traduo de Maria Madalena Andrade e Olga Santos. Lisboa: Instituto Piaget, 1959 (Coleo Pensamentos e Filosofia). __________________. O que quer dizer pensar? In: Ensaios e conferncias. Traduo de Emmanuel Carneiro Leo, Gilvan Fogel, Mrcia S Cavalcante Schuback. Petrpolis: Vozes, 2001 (Coleo Pensamento Humano). __________________. Cincia e pensamento do sentido. In: Ensaios e conferncias. Traduo de Emmanuel Carneiro Leo, Gilvan Fogel, Mrcia S Cavalcante Schuback. Petrpolis: Vozes, 2001 (Coleo Pensamento Humano). __________________. A questo da Tcnica. In: Ensaios e conferncias. Traduo de Emmanuel Carneiro Leo, Gilvan Fogel, Mrcia S Cavalcante Schuback. Petrpolis: Vozes, 2001 (Coleo Pensamento Humano). __________________. Que Metafsica? In: Conferncias e escritos filosficos. Traduo e notas de Ernildo Stein. So Paulo: Ed. Nova Cultural, 1996 (Coleo Os Pensadores).