A questão do existencialismo no filme Luz de Inverno

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(2010) A questão do existencialismo no filme Luz de Inverno (Ingmar Bergman) Escrito por Adriano Negris

 

“O que são ainda essas igrejas, se não os mausoléus e túmulos

de Deus?”

- Friedrich Nietzsche, A Gaia Ciência.

I

O presente trabalho tem por objetivo apresentar, em linhas gerais, uma das

correntes filosóficas mais influentes do século XX – o existencialismo. A historicidade

do termo e o desenlace de suas questões garantem, sua participação no debate filosófico

contemporâneo. Assim sendo, o movimento de trazer à luz a questão do existencialismo

adquire extrema significação para uma discussão de conceitos como vida, alma liberdade

e a existência de Deus. Dessa maneira, é legitimo perguntar: o que é o existencialismo?

Uma vez proposta a pergunta– o que é o existencialismo? –, entendemos que a

melhor maneira de responder a indagação será descrevendo o como se dá o pensamento

existencialista. Nesse sentido, elegemos como fio condutor de nossa investigação o texto

do filósofo francês Jean-Paul Sartre O Existencialismo é um Humanismo. Explicamos a

escolha. O referido texto pode ser tomado como uma leitura introdutória por levantar os

pontos de maior destaque concernentes ao existencialismo, além de primar pela clareza e

forma de acabamento. Aliado à obra de Sartre apontamos o filme Luz de Inverno do

diretor sueco Ingmar Bergman como fonte de riquíssimo debate acerca do

existencialismo, tendo em vista a própria temática do filme e a lida existencial que nele é

articulada.

II

A descrição de um comportamento filosófico muitas vezes resta sintetizada em apenas

uma expressão como é o caso do existencialismo. Para defini-lo recorrentemente

emprega-se a formulação: “o existencialismo concebe que a existência precede a

essência”. Mas o que exatamente se quer dizer com essa expressão?

De acordo com Sartre, dizer que a existência precede a essência significa que “o homem

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primeiramente existe, se descobre, surge no mundo, e que só depois se define. O homem,

tal como concebe o existencialista, se não é definível, é porque primeiramente não é

nada. Só depois será alguma coisa e tal como a si próprio se fizer. Assim, não há

natureza humana, visto que não há Deus para a conceber” 1

A posição existencialista é nitidamente marcada pela impossibilidade de se atribuir

existência a categorias metafísicas que possibilitem articular um fundamento ontológico

para o mundo e para o próprio homem. O existencialismo nega qualquer viabilidade de

uma instância supra-sensível para determinar os desígnios do mundo ou impor uma

natureza concebida a priori ao homem. Existir é simplesmente estar posto, ser posto, ser

jogado no mundo.

A inexistência de uma natureza preexistente ao próprio homem lhe confere um modo de

ser peculiar. O homem a cada momento de sua existência coloca seu próprio ser em

jogo. Somado a isso, a ausência de determinações a priori faz com que ele, a cada vez,

recaia na incessante possibilidade de se determinar enquanto homem. O homem,

existindo, é uma “folha em branco”, no qual há sempre uma nova possibilidade de se

reescrever. Conforme alude Sartre, o homem é um projeto de si.

A visão existencialista, procura conferir, de fato, uma responsabilidade muito maior as

escolhas realizadas pelo homem ao longo de seu caminho existencial. Isso porque o

homem não é guiado por nenhum valor ou princípio transcendente para orientar a adoção

de suas escolhas. O homem está sozinho diante das opções que o mundo lhe oferece.

Num primeiro momento, essa constatação pode ter um tom negativo. Ora, a inexistência

de um Deus pode tornar a existência gratuita e carente de sentido; isso de tal maneira

que a vida poderia ser compreendida como um verdadeiro absurdo. Nesse sentido,

“Jean-Paul Sartre, em seu romance La Nausée, descreveu com requinte excepcional a

experiência da náusea – uma das modalidades de experiência negativa existencial

passiva”. 2

Por outro lado, o existencialismo não é uma via de acesso ao niilismo – entendido como

um nada de vontade. O homem como projeto tem à sua frente a tarefa existencial de se

construir, de modo que é totalmente livre para executar esse empreendimento. Nesse

ponto, é oportuno nos reportar ao texto de Sartre que diz:

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“Estamos sós e sem desculpas. É o que traduzirei dizendo que o homem está

condenado a ser livre. Condenado porque não se criou a si próprio; e, no

entanto, livre porque, uma vez lançado no mundo, é responsável por tudo

quanto fizer”. 3

O homem é liberdade na exata medida em que é livre para se escolher. Contudo, a

dimensão da liberdade não se restringe ao indivíduo. O peso existencial da liberdade é

tamanho que além de se escolher, o homem também escolhe a todos os homens. É dizer:

ao adotar uma escolha baseada na minha liberdade, eu projeto uma imagem do objeto

dessa escolha e, de maneira significativa, tenho que compartilhá-la com toda a

humanidade. Estou só na minha escolha, porém compartilho o mundo com a

humanidade. Assim, toda escolha transcende o âmbito da liberdade do indivíduo.

A liberdade do homem também revela outra faceta de sua existência. Diante do mundo,

o homem se vê imerso em sua liberdade de assumir escolhas, porém, não há nada que

exista anteriormente ao homem no qual ele possa pautar suas escolhas. O modo ser do

homem é livre e solitário, além disso, gera responsabilidade para com os demais

homens. O homem está condenado a ser livre e responsável pelas suas escolhas, daí se

dizer que o homem é angústia de estar em eterno abandono frente à sua liberdade.

No existencialismo sartreano o homem está condenado de tal modo à liberdade que é

impossível a ela escapar. Entretanto, a liberdade permite que o homem crie mecanismos

para tentar se furtar de sua própria liberdade. A esse comportamento evasivo do homem

Sartre chamou de má-fé. Sartre menciona que “todo homem que se refugia na desculpa

que inventa um determinismo é um homem de má-fé”, e mais adiante continua: “A má-

fé é evidentemente uma mentira, porque dissimula a total liberdade do compromisso. No

mesmo plano, direi que há também má-fé, escolho declarar que certos valores existem

antes de mim; estou em contradição comigo mesmo, se ao mesmo tempo os quero e

declaro que se me impõem”.4

Dessa forma, sem a pretensão de esgotar o tema, esclarecemos alguns conceitos

estruturais do existencialismo de Sartre. Também é importante esclarecer que o tema é

complexo, sendo certo que um entendimento mais apurado do existencialismo requer

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uma pesquisa profunda e de maior rigor. No entanto, para a finalidade aqui estabelecida,

cremos que foi possível conceber um solo fértil para articular a questão do

existencialismo e sua relação com o filme de Ingmar Bergman.

III

O filme que nos dispomos a trabalhar se intitula Luz de Inverno, produção sueca do ano

de 1962, duração de aproximadamente de 80 minutos, com roteiro e direção de Ingmar

Bergman.

O filme é construído em três grandes cenas. A primeira se passa no interior de uma

igreja localizada numa isolada vila sueca. A segunda transcorre na casa da personagem

Märta, que é apaixonada por Thomas Ericsson, o pastor da comunidade. O filme termina

com a cena da sacristia de outra igreja, onde começa os atos litúrgicos.

O pastor Thomas começa o filme celebrando uma missa para a minúscula

congregação de fiéis, apesar da gripe e de sua grave crise de fé. Quando o personagem

Jonas o procura, devido a notícia de que a China intencionava criar uma bomba atômica

e assim o mundo poderia ser destruído, Thomas não consegue ajudá-lo. Logo depois,

Jonas se mata e sua mulher aceita tudo com complacência.

Cansado, sem ter o que falar aos fiéis, em especial em momentos de desespero -

quando eles mais necessitam de ajuda –, o pastor vê sua igreja esvaziar até que, no final

do filme, reza uma missa somente para Marta e outros dois personagens que lhe ajudam

a celebrar as missas.

IV

O filme de Bergman, num primeiro plano, trata sobre a crise da fé cristã. Thomas, o

pastor, inicia o filme demonstrando sinais dessa crise que somente se acentua após o

diálogo com o pescador Jonas.

Ao investigar as possíveis causas da crise de Thomas, deparamo-nos com a principal

elaboração do existencialismo. A impossibilidade de constituição de categorias a priori

em relação à existência humana é um interdito para a existência de Deus, pois, de acordo

com o existencialismo, a existência precede a essência. Essa constatação se extrai do

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próprio comportamento de Thomas. Numa passagem do filme, Thomas revela que ele e

Deus viviam num mundo organizado onde tudo fazia sentido, mas quando confronta esse

mundo como a realidade da guerra, o mundo por ele vivido se desmorona. Thomas se

refere à incompatibilidade da idéia de um Deus e a facticidade do mundo. Ao compará-

los, Thomas verifica que a miséria do mundo não condiz com a concepção de um Deus

cristão. Assim, após confrontar a idéia que tinha de um Deus com a realidade do mundo,

Deus se transforma em algo de feio, um Deus-aranha, um monstro. Deus fica

silencioso...

Ora, a crise de Thomas somente ocorre porque ele simplesmente acredita no

equívoco da existência de uma essência eterna e bondosa anterior à sua própria

existência. Dito de outra maneira: Thomas cria a ilusão de Deus para explicar a sua

existência e quando tenta aplicá-la ao mundo, certifica-se do seu erro e entra em crise.

Para ele, Deus está silencioso...

A personagem Märta, que compartilha a maioria das cenas do filme com Thomas parece

consciente de sua condição existencial. Ela dirige-se a Thomas e diz: - Deus nunca

falou, pois Deus não existe. Só isso.

O conteúdo de uma carta de Marta dirigida a Thomas reforça essa compreensão.

Na carta ela menciona que não acredita na fé de Thomas. Ela nunca passara por aflições

religiosas porque foi criada numa família em que os preceitos eram o carinho, amor e

amizade. Deus e Jesus sempre lhe foram noções vagas.

Por outro lado, o personagem Jonas pretende se matar porque acredita na proximidade

do fim do mundo devido à criação de uma bomba atômica pelos chineses. Nesse

contexto notamos que Jonas, a partir de um evento específico, passa a ter uma

determinada compreensão diferenciada de sua existência. A postura de Jonas demonstra

que ele passa a entender a existência como algo sem propósito, sem significação, já que

Deus não existe. Assim, a melhor solução diante do absurdo da vida é se matar, o que ele

realmente faz nos momentos seguintes à conversa com Thomas, que não consegue

convencê-lo do contrário. Aliás, esse diálogo com Jonas reforça a convicção de Thomas

da inexistência de Deus. Ele mesmo se interroga: - Se Deus não existe, isso realmente

faria alguma diferença? Depois ele conclui: - Não existe um criador. Nenhum provedor

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da vida. Nenhum desígnio.

A cena final do filme pode ser utilizada para ilustrar dois conceitos existencialistas, a

angústia e a má-fé. Thomas se prepara para conduzir os ritos litúrgicos na igreja quando

é interpelado por seu ajudante, que quer discutir a passagem bíblica referente à paixão de

Cristo. A tese de seu ajudante é de que Jesus Cristo teria sofrido mais pelo abandono do

que pelas dores físicas da crucificação.

Como aludimos linhas acima, o sentimento de abandono que é descrito pelo ajudante de

Thomas é característico da angústia sartreana. Assim, Cristo teria sido assolado pela

solidão de sua existência, já que contava com a existência de um Deus que momento

mais crítico de sua vida o teria abandonado. Aparentemente Thomas tende a concordar

com seu ajudante, porém se mantém reticente.

A má-fé de Thomas é percebida desde os primeiros momentos do filme. Thomas olha

para Jesus Cristo pregado na cruz e comenta: “Que imagem ridícula!”. Ao longo do

filme Thomas sempre se pergunta sobre a existência de Deus e em muitos momentos a

sua inexistência lhe parece fazer muito sentido, para ele “acreditar que Deus não existe

faz a vida ter sentido. Seria um alívio! Dor e morte tornar-se-iam coisas naturais”, “um

grande alívio”. No diálogo final com seu assistente, Thomas, mesmo ciente de que toda

sua fé não faz sentido algum, persiste na sua crença e dá início aos ritos cerimoniais para

celebração uma missa para nenhum fiel. Como acentua Sartre, todo o comportamento

que se desvia do compromisso da liberdade e de sua responsabilidade é tido como de

má-fé. Acreditar na existência de Deus é manter-se em plena contradição com a própria

existência, já que nada pode existir que maneira anterior a minha existência. Como

menciona a personagem Märta, “Deus nunca falou, pois Deus não existe. Só isso”.

Esteticamente o filme apresenta um recurso interessante. Como se pode observar, toda a

sonorização é decorrente do próprio ambiente, nada mais. Não há trilha sonora. Com

isso, acreditamos que ausência de um fundo musical representa o silencio de Deus, a

angústia de um Deus que não fala aos seus fiéis; ou melhor, esse recurso realça a

impossibilidade da existência de Deus, uma vez que existência precede a essência.

V

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Conforme todo o conteúdo exposto ao longo deste trabalho, procuramos extrair uma

linha de interpretação do filme Luz de Inverno em cotejo com as estruturas do

pensamento existencialista sartreano. A proposição “a existência precede a essência” no

filme de Ingmar Bergman pode ser captada a todo o momento juntamente com outras

nuances do existencialismo de Sartre. Por fim, vale ressaltar que o existencialismo de

Sartre não se esgota nos limites aqui traçados, sendo certo que outros pontos de sua

filosofia podem ser abordados na mesma medida em que o filme de Ingmar Bergman

também comporta outras interpretações e temáticas diversas.

BIBLIOGRAFIA:

BORNHEIM, Gerd A. Introdução ao Filosofar. O pensamento filosófico em bases

existencialistas. Porto Alegre: Editora Globo. 3ª. Ed. 1976.

___________________. Sartre: metafísica e existencialismo. São Paulo: Perspectiva,

2005

NIETZSCHE, Friedrich. A Gaia Ciência. Tradução, notas e posfácio Paulo César de

Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2001.

___________________. Assim falou Zaratustra. .Tradução: Mario da Silva. Rio de

Janeiro: Civilização Brasileira, 17ª ed., 2008.

SARTRE, Jean-Paul. O Existencialismo é um Humanismo. Tradução: Vergílio Ferreira.

In: Coleção Os Pensadores. São Paulo: Abril Cultural. 1ª Ed. 1973.

http://www.llpefil-uerj.net/filocin/218-a-questao-do-existencialismo-no-filme-luz-de-

inverno-ingmar-bergman

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