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Bernardo Lucas A questão anarchista

[S]er revolucionário não é ter o coração repleto de ódio nem o espíritofechadoàcompreensãodosnobresideaisquelevantarãoaosastrososerhumano.É-serevolucionáriopelaideia,pelaacçãooupelosentimento;equandodesteparteaaspiraçãoquearrojaà lutae impeleatéaosacrifício,aalmaflorescenapurezaimarcescíveldabondade.Entãoorevolucionáriosofrecomtodasamágoas, juntaas suas lágrimas às de todos os infelizes, faz seus todos os desesperos alheios,comoparatornarmaissuaveopesoenormedasgrandesaventuras.

Quem não há de ser revolucionário ante as profundas desigualdades quemanchamacivilizaçãoactual?Seriaprecisoterocoraçãoempedernidopara lhesassistir impassível. Quantas vezes, dentromesmodos tribunais, a almade todosnósseconfrangeerevolta,aoveradesgraçahumanacaindodeabismoemabismo,representadaporumréuquevemexpiarcomosuaumaculpadasociedadeinteira!

Não estranhemos, portanto, que estes homens se tenham insurgidotambém,aoveremunsemcasaamisériaoupoucomenos,aoverem-nadiaadiaaseu lado,nacasados irmãosecompanheiros, -dosquecavama terraenão têmpão,dosquetecemasedaeoveludoevestemandrajos(...).

(...)

Apalavraanarquia,exprimindoumcorpodedoutrinapolítica,apareceuaprimeiravezcomProuhdon.Éafórmuladeumregimedeliberdadeemquecadaum a si próprio se governasse; corresponde ao que os ingleses designam pelaexpressãoself-government.

Desenvolvimento da iniciativa individual, a mais larga descentralizaçãoadministrativa, finalmentea federaçãodas forçassociais -eis,portanto,oquesedeveprocurareemverdadesedestacanoanarquismoproudhoniano.

(...)

Hoje, não se está precisamente no anarquismo proudhoniano.Naturalmente, a ideia tem evolucionado, mas, como outrora, também hoje nãorepresentaocaoseestálongedesignificaraaniquilaçãodetodasasobraseforças

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civilizadoras.Asuacaracterísticaéaadmissãodavidaedesenvolvimentosociaissem a intervenção do Estado, cujas funções se substituem ou pela simplesactividade de cada um ou pela de associações entendendo-se livremente. Nestesentido,asnumerosascompanhiasdecaminhosdeferro,entresirelacionadaspormeio de correspondência, de delegados e de congressos, e tendo chegado aefectuarporacordootransportecombinadodemercadoriasedepassageirosnassuasdiversaslinhas,comumaharmoniaatalpontoadmirávelqueumviajanteemcomboioexpressopodeatravessartodaaEuropasemmudardecarruagemeumfardo pode ser remetido amilhares de quilómetros sem que o remetente tenhaoutra formalidade a cumprir alémda de encher umpequeno bocado de papel, -estas companhias funcionando sem a existência de um governo central doscaminhos de ferro oferecem, na opinião dos anarquistas, umdos exemplosmaisfrisantesdapossibilidadedavidasocialindependentementedegovernos.E,comoexemplos,citamaindaaassociaçãoinglesadossalva-vidas(Life-boatAssociation)eabemconhecidaSociedadedaCruzVermelha.1

Em torno da ideia característica do anarquismo gravitam diversosprincípios e teorias, muitas vezes tomados como parte essencial da doutrinaanárquica,contraosquaissedirigemtalvezdepreferênciaosmaisvivosataquesdosadversários,masqueemverdadenãosãoexclusivodaqueladoutrina.Aideiada abolição da propriedade individual está neste caso, defendem-na osanarquistas, como a defendem também os sectários de várias outras doutrinasmenosavançadas.

Ocupando-nos por agora da ideia fundamental, é de justiça dizer que sepode discordar dela, mas não poderá com verdade afirmar-se que seja furto deespíritosmesquinhosouhajaparaahumanidadeproveitoemapagá-la.

Eseépreciso invocaronomedealguémemconfirmaçãodestaspalavras,sejaodeSpencerqueeuofereçaàconsideraçãodosincrédulos.Ograndefilósofoinglês,quetãobrilhantementesedestacanaciênciacontemporânea,oqualificado1Kropotkine,Aconquistadopão,trad.,Porto,1896,pp.200,209e212.

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de Aristóteles moderno pelo alto e largo voo do seu espírito, o "mestre de nóstodos", como lhe chama Ferri, guerreia abertamente o Estado, reduzindo-lhe asfunções à administração de justiça, e compreendendo, até, que esta se irá a talponto simplificando e reduzindo, de maneira a numa época longínqua deaperfeiçoamento social ela mesmo se tornar inútil. "Assim como, diz o ilustrefilósofo,jánãoéhojeprecisoproibiraantropologiaeofetichismo,tambémumdianãohaveránecessidadedeproibirohomicídio,ofurtoeosdelitosmenosgravesque o nosso código penal recorda. Uma vez que a natureza humana, pelo seudesenvolvimento,chegueaestardeharmoniacomaleimoral,nãohaveráprecisãode juízes nem de códigos; desde que a respeito de tudo, como a respeito dealgumascoisassucedejá,elaentrenoverdadeirocaminho,seráinútilparadirigiroshomenscolocar-lhesemfrentearecompensaouapenafutura".2

(...)

[Note-se] a serenidade do Visconde de Ouguela, falando a respeito doanarquismo:

"...Aameaçapendentesobreassociedadenãoestánadesvairadaebrutalagressão devida aos explosivos, manipulados por vários loucos ou algunsfanáticos...Operigoestánoantagonismoquesemanifestaentreasbases,emqueassentam as instituições existentes, e os princípios afirmados pela ciência emquase todas as províncias do saber. É esta discórdia insuperável que gera aanarquia, criando um desequilíbrio tão violento nas sociedades, que só poderáterminar pelo predomínio das novas doutrinas, tanto mais que as classesilustradasclaraouocultamenteaceitamasafirmaçõespreconizadaspelaciência.

Osanarquistasnãosão,pois,esseshomens,que,porqualquermodoqueosconsideremos,pertencemaosdomíniosdapatologiacerebral.Anarquistassãoasclasses ilustradas, que esposam as doutrinas modernas, estudadas em Darwin,Spencer,Haeckeletantooutros,que,aplaudemosevolucionistasesociologistasda2Spencer,Lamaniereetlamode,(Essais,I),p.165,cit.porFerri,Socialismoecriminalità,Torino,Turim,

1883,p.207.

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actualidade, e que se acham, por esse facto, em oposição aberta com todos ospreceitosqueofendemamarchadaevolução".3

(...)

[Veja-se]osnr.conselheiroAntóniodeSerpaPimentel,ochefedopartidoregenerador, o dignopar do reino, oministrodeEstadohonorário.No seu livrosobreOanarchismoeaquestão social, estedistintopublicista reconheceque "asfunções do governo e das autoridades cada vez se vão restringindo... As funçõesgovernamentaispropriamenteditas - acrescentaS.Ex.ª - asque implicamcomamaior liberdadecivil, vão-se restringindoamanteraordempública, administrarjustiça e defender o país contra agressões externas. Quanto mais a civilizaçãoprogride e vai sendo maior o número de homens ilustrados e práticos na vidasocial,maisoexercíciodestasfunçõessevairestringindo.Nunca,pois,deixarádehavergovernos,mascadavezmaisasuaacçãoirádeixandodesefazersentir.Nãose chega ao ideal, mas para ele se caminha indefinidamente".4 É uma opiniãoinsuspeita.

Eosnr.conselheiroAntóniodeSerpa,comumalealdadequemuitoohonra,não tem receio de declarar, referindo-se ao ideal anarquista: "Este ideal,praticamente irrealizável, é todavia o ideal para que caminhamos e devemoscaminhar sempre."5 Tem mesmo o desassombro de declarar simpático oanarquismo,quandoestedefendealiberdadehumana.6

(...)

Mas,dir-se-á,operigodoanarquismonãoestácomSpencer,nemdentrodaesfera especulativa onde o acompanham diversos filósofos: o mal surge na

3Spencer,Problèmesdemoraleetdesociologie,pref.,p.VII.

4ConselheiroAntóniodeSerpaPimentel,Oanarchismoeaquestãosocial,2.ªed.Lisboa,1898,pp.61e62.

5Ob.cit.,p.61.

6Ob.cit.,pp.26e85

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propaganda, com os anarquistas militantes, ao pretenderem operar atransformação,senãoaaniquilaçãosocial.

(...)

Quanto à transformação social, não se estranhará por certo que osanarquistas pretendam realizá-la, pois lógica e natural é a passagem domundoespeculativoparaomundoreal.PontoassenteemfilosofiasetornouparatodoseemevidênciaocolocouGuyau,oautordeEsquissed'unemoralesansobligationnisanction,umdosmaislúcidosespíritosreivindicadospelosanarquistasque"todaaconcepçãoéumprincípiodeacção".Nemsecompreenderiaqueasconcepçõesdossociológicosfossemdestinadasapairareternamentenasnuvens.

(...)

Aí está Reclus, uma das mais lídimas personagens, a atestá-lo com aafirmativadequeoprimeirofactotrazidoàluzpelaciênciasocialéquenenhumarevolução pode dar-se sem uma evolução preparatória, - excepção feita, é claro,das chamadas revoluções palacianas, que não representam importância socialalgumaeparaasquaisbastaporvezesopunhalafiadodeumsicário.7

"Pode dizer-se, afirma ainda este ilustre publicista, que a evolução e arevolução são dois actos sucessivos de um mesmo fenómeno: a evoluçãoprecedendoarevolução,eestaprecedendoumaevoluçãonova,mãederevoluçõesfuturas.Dar-se-ãoalteraçõesnavidasemrupturassúbitasdeequilíbrio?Poisnãodeve a revolução suceder necessariamente à evolução, tal como o acto sucede àvontadedeactuar?Umaeoutradiferemapenasnaépocadasuaaparição.Seumdesmoronamentoobstróio leitodeumriacho, juntam-seaságuasaodecimadoobstáculo, forma-se um lago a pouco e pouco; subitamente, por infiltração nodique,o resvalardeumseixodeterminaocataclismo:abarreiraé impelidacomviolência, eo lagoesvaziadovolta a ser riacho.Eisumapequena revolução... E acriança,comoéquenasce?Depoisdeter,durantenovemeses,habitadoastrevas7EliséeReclus,L'évolution,larévolutionetl'idéalanarchique,3.ªed.,Paris,1898,p.58.

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doventrematerno,étambémcomviolênciaqueoabandona,rasgandooinvólucro,chegando até às vezes a matar a mãe. Tais são as revoluções, consequênciasnecessáriasdasevoluçõesqueasprecederam."8

(...)

Oamorlivre,proclamadopelosanarquistas, longedeser,comoàprimeiraimpressão se pode imaginar, uma promiscuidade incondicional, significa umestado regularmonogâmico, bemque profundamente diverso domatrimónio dehoje.9Oquesepretendeapenasdestruiréaactualconstituiçãojurídicadafamíliae com ela a base egoísta em que presentemente assentam as uniões conjugais.Proclama-se uma família que em sua constituição não ofenda as indicações danaturezaeondeamulhersubaemdignidadeedireitos.

Omesmo Jean Grave que obsidiou o governo,muito ao contrário do quetalvezosobsidiadosesperemdele,declara,depoisdeterexpostoaantinomiaentreointeresseeaafeição:"Osanarquistas,quetêmsidoacusadosdequererdestruirafamília, querem mas é destruir aquele antagonismo, baseá-la na afeição para atornarem mais duradoura. Nunca sustentaram que o homem e a mulher, queestimassemviverjuntosduranteavidainteira,nãoopudessemfazer,emvirtudedeserlivreasuaunião.Nuncativeramemmenteproibiraopaieàmãeaeducaçãodosfilhos,comproclamaremaliberdadesdestesúltimos,quenãodevemmaisserconsideradoscomoumacoisa,propriedadedosseusdescendentes."10

8Ob.cit.,pp.16-17.

9"Elamorlibrenosignificamasquelasupresióndelcódigosexualvigente,launiónlibredelhombreyla

mujerporeltiempoquelesplazcaysinintervencióndeterceros."Dr.E.Z.Arana,Lamujerylafamilia(conferênciapublicadapelogrupodepropagandacomunistaanárquica"Cienciayprogreso",deRosario

deSantaFé,naRepúblicaArgentina),1897,p.76.

Contraaerradainterpretaçãodoamorlivreanarquistaprotestaoconferentenasseguintespalavras:"El

amor libre, tal como loentiendenalgunos,esalgoquenoseesplicaenelgradodecivilizacionaque

hemos llegado, es la negación del progreso en la evolución de la familia, porque importa la

retrogradacióndelaespeciehumana,lapromiscuidaddelostiemposprimitivos,ycontraeseconcepto,

tanfalsocomoantojadizo,protestoennombredeloquesellamadignidadhumana."Ob.cit.,p.75.10JeanGrave,Lasociétémouranteetl'anarchie,Paris,1893,p.72.

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Acercadeoutracensuradirigidaaosanarquistas,apropósitodanegaçãodaideiadepátria,hátambémumaexplicaçãoadar.Nãoqueremapagarnocoraçãohumanoo amorpela terra onde cadaumviu a primeira luz, emborapretendamanularosobstáculosmateriaisemoraisquedepaísparapaísseparamoshomensem multidões inimigas. "Sem dúvida, diz Reclus, é um sentimento natural edulcíssimooamoràterranatal;éumadelíciaparaoexiladoouviraqueridalínguamaternaerevertudoquantolhetrazàideiaolugarondenasceu.Eohomemnãolimitaoseuamorà terraqueoalimentou,à linguagemcomque foiembalado.Asuaalma,expandindo-se,abraçaemnaturalimpulsoosfilhosdamesmaterra,quecom ele partilham as ideias, os sentimentos e os costumes; e, se é elevada egenerosa,essaalmaabrasar-se-ádeumapaixãodesolidariedadeporaquelesdequemintimamenteconheceasnecessidadeseosdesejos.Seéistoo«patriotismo»,ondeháhomemdecoraçãoquenãoosinta?Masopioréquequasesempreestapalavra encobre uma significação completamente diversa de «ternura pelo lugardoseuberço».Sobonomedepatriotismoeoscomentáriosmodernosdequeandacercado, disfarçar-se-ão as velhas práticas de obediência servil à vontadede umchefe,aabdicaçãocompletadoindivíduoanteosdetentoresdopodereanteosquepretendemservir-sedanaçãocomoinstrumentocegodassuasambições."11

(...)

De todas as ideias sustentadas pelo anarquistas, a que mais interessa eexaspera a sociedade capitalista predominante é por certo a abolição dapropriedadeprivada.Estaideia,comocreioterjádito,nãoé,todavia,exclusivadoanarquismo.Tem-na, por exemploo socialismo inscrita no seuprograma; e comistonãomerefiroapenasaosocialismoquesedizrevolucionário,masatéaomaisserenonoempregodosseusmeiosreformadores.12

11Reclus,ob.cit.,pp.113e117.

12 Citando o socialismo integral de BenoitMalon. Vid. dr Afonso Costa,A egreja e a questão social,

Coimbra,1895.

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Bernardo Lucas A questão anarchista

Sem discutir agora o princípio da socialização da propriedade, o que nãopode negar-se é que ele significa o esforço para a resolução do gravíssimoproblemadamiséria:éopãoasseguradoatodos,nãocomoumfavor,mascomoumdireito,ofimdesejadodeumagraveeincomparávelinjustiça.