A RACIONALIDADE SUBSTANTIVA DEMONSTRADA NA … · dessa racionalidade na prática administrativa....

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Organização, Recursos Humanos e Planejamento A RACIONALIDADE SUBSTANTIVA DEMONSTRADA NA PRÁTICA ADMINISTRATIVA Maurício Serva Doutor em Administração pela EAESP/FGV, Pesquisador na École des Hautes Études Commerciales de Montréal, Professor Associado do PPGAlUFRN e Professor Associado da FACS - Faculdades Salvador. RESUMO: Sob a perspectiva geral da emancipação do homem no âmbito do trabalho, este artigo trata do tema da racionalidade em organizações produtivas, enfocando-o mediante a abordagem substantiva da organização, pro- posta por Guerreiro Ramos. Empreende a complementaridade entre essa abordagem de Guerreiro Ramos e a teoria da ação comunicativa, de Habermas, a partir da qual elabora um quadro de análise, examinando empiricamente três empresas de Salvador, Bahia, com o intuito de demonstrar como a razão instrumental e a razão substantiva se concretizam na prática administrativa. Daí, define organizações substantivas e estabelece uma escala de intensidade de racionalidade substantiva, que, juntamente com o quadro de análise, pode ser utilizada para o exame da racionalidade de qualquer organização produtiva. ABSTRACT: Under the general perspective of human's emancipation at work, this article analyzes the rationality in productive organizations through a substantive boarding, according to the proposal of Guerreiro Ramos. It shows the complementarity between the Guerreiro's proposition and the theory of communicative action, created by Habermas. It also propose an analytical board, that examines empiricaly three companies in Salvador, Bahia, aiming to demonstrate how either substantive and instrumental rationalities came true. Finalr. the author defines substantive organizations and establishes a scale of intensity, that jointly with the analytical board, could be useful to examine the rationality of any productive organization. KEY WOROS: substantive rationality, substantive organizations, organizations theory, emancipation. PALAVRAS-CHAVE: racionalidade substantiva, organizações substantivas, teoria das organizações, emancipação. 18 RAE- Revistade Administração de Empresas São Paulo,v. 37, n. 2, p. 18-30 Abr./Jun. 1997

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Organização, Recursos Humanos e Planejamento

A RACIONALIDADE SUBSTANTIVADEMONSTRADA NA PRÁTICA

ADMINISTRATIVA

Maurício ServaDoutor em Administração pela EAESP/FGV, Pesquisadorna École des Hautes Études Commerciales de Montréal,

Professor Associado do PPGAlUFRN eProfessor Associado da FACS - Faculdades Salvador.

RESUMO: Sob a perspectiva geral da emancipação do homem no âmbito do trabalho, este artigo trata do tema daracionalidade em organizações produtivas, enfocando-o mediante a abordagem substantiva da organização, pro-posta por Guerreiro Ramos. Empreende a complementaridade entre essa abordagem de Guerreiro Ramos e ateoria da ação comunicativa, de Habermas, a partir da qual elabora um quadro de análise, examinando empiricamentetrês empresas de Salvador, Bahia, com o intuito de demonstrar como a razão instrumental e a razão substantivase concretizam na prática administrativa. Daí, define organizações substantivas e estabelece uma escala deintensidade de racionalidade substantiva, que, juntamente com o quadro de análise, pode ser utilizada para oexame da racionalidade de qualquer organização produtiva.

ABSTRACT: Under the general perspective of human's emancipation at work, this article analyzes the rationality inproductive organizations through a substantive boarding, according to the proposal of Guerreiro Ramos. It showsthe complementarity between the Guerreiro's proposition and the theory of communicative action, created byHabermas. It also propose an analytical board, that examines empiricaly three companies in Salvador, Bahia,aiming to demonstrate how either substantive and instrumental rationalities came true. Finalr. the author definessubstantive organizations and establishes a scale of intensity, that jointly with the analytical board, could be usefulto examine the rationality of any productive organization.

KEY WOROS: substantive rationality, substantive organizations, organizations theory, emancipation.

PALAVRAS-CHAVE: racionalidade substantiva, organizações substantivas, teoria das organizações,emancipação.

18 RAE- Revistade Administraçãode Empresas SãoPaulo,v. 37, n. 2, p. 18-30 Abr./Jun. 1997

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1. Ver GUERREIRO RAMOS, A. A novactêncie das organizações - umareconceituação da riqueza das nações. Riode Janeiro: FGV, 1981; SYMONS, Gladys.Les femmes cadres dans I'universebureaucratique - une perspective critique.In: Chanlat, J.-F. (dir.) L'individu dansI'organisation, les dimensions oubliées.Québec: Les Presses de l'Université Lavai,pp. 417-429, 1990; BARRETO, César.Sobre a racionalidade humana: conceitos,dimensões e tendências. In: Anais do XVIIENANPAD, v. 9, Salvador: ANPAD, 1993;TENÓRIO, Fernando. Tem razão aadministração? In: Revista deadministração pública. Rio de Janeiro:FGV, v. 24, n. 2, pp. 5-9, 1990; PIZZAJÚNIOR, W. Razão substantiva. In: Revistade administração pública. Rio de Janeiro:FGV, v. 28, n. 2, pp. 7-14, 1994; MAR-TINS, Wellington. Mudança organizacionale ação comunicativa: rumo ao resgate dadignidade e da errnncipação hurrnna. SãoPaulo, EAESP/FGV, tese de doutorado,1994.

A RACIONALIDADE SUBSTANTIVA DEMONSTRADA NA PRÁTICA ADMINISTRATIVA

" nuionntktstt«subsumtiv« srrin umatributo nnturn! doser Iumuuto e qu«rcsittr /liJ psiqur.

A busca da compreensão da razão, enquan-to fundamento das ações humanas, também nointerior das organizações produtivas, temguiado o interesse de diversos pesquisadores.Os estudos de Guerreiro Ramos, Symons,Barreto, Tenório, Pizza Júnior, Martins, e demuitos outros, inserem-se no rol daqueles queexaminam a racionalidade subjacente às açõesdos indivíduos nas organizações, numa pers-pectiva crítica.'

Guerreiro Ramos fundamentou seus estu-dos sobre a racionalidade nas organizaçõesnuma abordagem ampla, por ele mesmo de-nominada "teoria substantiva da vida huma-na associada". Para ele, tal teoria apresenta-ria a razão substantiva como a sua principalcategoria de análise e te-ria a ética como a sua dis-ciplina preponderante so-bre qualquer outra que ve-nha a abordar a vida social.Guerreiro defendia a idéiade uma razão substantivade amplo espectro, confes-sadamente no sentido aris-totélico, que transcendeem muito a estreita relaçãoque atualmente se faz en-tre razão e cálculo. Assim, a racionalidadesubstantiva seria um atributo natural do serhumano que reside na psique. Por meio dela,os indivíduos poderiam conduzir a sua vidapessoal na direção da autorealização, contra-balançando essa busca de emancipação e au-torealização com o alcance da satisfação so-cial, ou seja, levando em conta também o di-reito dos outros indivíduos de fazê-lo. Aschaves para esse balanceamento seriam o de-bate racional e o julgamento ético-valorativodas ações.

Vê-se claramente que a proposição acimasoa muito diferente daquela que apresenta àbusca do sucesso individual desprendido daética, apenas pautado no cálculo utilitário eno êxito econômico; esta atitude é típica doembasamento fornecido pela lógica da razãodita instrumental. Guerreiro Ramos reconhe-ceu que, na grande maioria das organizaçõesprodutivas, a razão instrumental prevalececomo lógica subjacente às ações, determinan-do o padrão de "sucesso" a ser atingido, umsucesso orientado pelas "leis" do mercado eegocêntrico por natureza.

Por conseguinte, liberado das premissas

ético-valorativas, o ambiente organizacionaltomou-se propício aos abusos de poder, à do-minação, ao mascaramento de intenções pelasubstituição da verdadeira comunicação huma-na por padrões informativos, dentre outras con-seqüências. Tudo isso acaba conduzindo os in-divíduos a se lançarem numa competição per-manente, produtora de ansiedades e de pato-logias psíquicas. Guerreiro Ramos ressalta queo predomínio da razão instrumental nas orga-nizações produtivas engendra uma sociedadecentrada no mercado, responsável pela inse-gurança psicológica, pela degradação da qua-lidade de vida, pela poluição, pelo desperdíciodos recursos naturais do planeta, além de pro-duzir uma teoria organizacional incapaz de en-

sejar espaços sociais gra-tificantes aos indivíduos.

A formulação deGuerreiro Ramos apre-senta uma forte influên-cia dos estudos de KarlPolanyi," o qual, à frentede uma equipe interdis-ciplinar sediada naColumbia University,fundou a concepçãosubstantiva da econo-

mia, nos anos 40. Polanyi rejeitava a idéia deque a razão instrumental tem que ser empre-gada como o ponto de partida para a análisede toda e qualquer atividade econômica. Ele esua equipe defendiam que a economia deveriaser analisada como um processo social, isto é,inserido na configuração institucional própriade cada sociedade historicamente percebida.A racionalidade instrumental e o mercado nãoserviriam como categorias gerais de análise detodas as economias. Prosseguindo nessadémarche, Polanyi cunhou a expressão con-cepção substantiva, a qual concentra o inte-resse sobre "os valores, a motivação e a polí-tica". Daí a concepção de Polanyi constituiruma das principais fontes de inspiração deGuerreiro Ramos, provavelmente, de onde eleaproveitou o termo substantiva.

A morte de Guerreiro Ramos, aos 67 anos,em plena atividade intelectual e apenas umano depois da publicação de A nova ciênciadas organizações ... , não nos deixa dúvidasde que o seu projeto foi interrompido, poisno prefácio desse livro ele afirmava que, umavez lançada as bases da nova ciência, se ocu-paria de dar continuidade à tal proposta.

© 1997, RAE - Revista de Administração de Empresas / EAESP / FGV, São Paulo, Brasil.

2. POLANYI, Karl et alli. Les systemeséconomiques dans I'histoire et dans lathéone. Paris: Librairie Larrousse, 1975.

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3. O próprio Guerreiro Ramos confirmaclaramente esta opção, ao comentarsobre o seu livro em: Minha dívida aLorde Keynes. In: Revista deadministração pública. Rio de Janeiro:FGV, v. 16, n.2, pp. 91-95, 1982.

4. Ver VASCONCELOS, Flávio.Racionalidade, ética e organizações - umavisão analítica. In: Anais do XVIIENANPAD,v. 9, Salvador, ANPAD, 1993;TENÓRIO, Fernando. Tem razão aadministração? Op. cil.; PIZZA JÚNIOR.Razão substantiva. Op, cit.: CALDAS,Miguel. Explorando outros viveres: ensaiosobre a escolha e a diversidade em designorganizacional. In: Anais do XVIIIENANPAD, v. 8, Curitiba: ANPAD, 1994;BARRETO, César. Sobre a racionalidadehumana: conceitos, dimensões etendências. Op. cit.; OLIVEIRA, Francisco.A teoria crítica e a totalização daracionalidade instrumental ou opessimismo da Escola de Frankfurt. In:Anais do XVII ENANPAD, v. 9, Salvador:ANPAD, 1993.

5. Ver ROTHSCHILD-WHITT, Joyce. Thecollectivist organization: an alternative tobureaucrartic models. In: Rothschild-Whitt, J. & Lindenfeld, F. (dirs.) Work-place democracy and social change.Boston: Porter Sargent Publishers,1982; HUBER, Joseph. Quem devemudar todas as coisas as alternativasdo movimento alternativo. Rio deJaneiro: Paz e Terra, 1985; GAGNON, G.& RIOUX, M. A prooos d'autogestion etd'émancipation. Ouébec: IORC, 1988;DUPUIS, Jean-Pierre. Le ROCC deRimouski, la recherche de nouvettessolidarités. Ouébec: IORC, 1985;BHÉRER, H. & JOYAL, A. Lecheminement de I'entreprise altemative:mirages et réalités. Montréal: Albert-Saint-Martin, 1987; DEFOURNY, J. Lesecteur de I'économie sociale enBelgique. In: CIRIEC Working paper.Liége, Université de Liége, n. 92-05;HABERMAS, J. Teoria de la accióncomunicativa. Madrid: Taurus, vols. I e11, 1987; NERFIN, M. Ni príncipe nimercader, ciudadano: una introducciónai Tercer Sistema. In: Socialismo eparticipação. Lima, CEDEP, n. 41,1988;TEMPLE, D. Les ONG's comme chevalde Troie. In: IFDA Dossier. Nyon: IFDA,n. 60, 1987.

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o PROBLEMA ENFOCADO POR ESTEESTUDO: O "IMPASSE"

As idéias de Guerreiro Ramos vêm tendogrande ressonância nos meios acadêmicos, no-tadamente no Brasil, onde a abordagem subs-tantiva da organização tem muitos adeptos. Di-versos autores brasileiros vêm elaborando traba-lhos pautados na análise de organizações toman-do como base a racionalidade substantiva, ense-jando gradativamente a criação de mais um temaespecífico de estudos organizacionais no país.

Uma questão crucial é que Guerreiro Ra-mos ao propor a abordagem substantiva das or-ganizações, o fez de maneira puramente con-ceitual, como ele próprio confessara. Menos doque fornecer ilustrações factuais de suas teses,ele preferiu, naquele momento, apresentá-las pormeio de um discurso teórico por excelência, ela-borado em alto grau de abstração.' Ao visitar osestudos organizacionais sobre a racionalidadesubstantiva elaborados após Guerreiro Ramos,para termos uma idéia do "estado da arte" noBrasil, constatamos que todos esses trabalhos,'apesar de muito bem elaborados, não avançamsobre a prática administrativa, pois não conse-guem sair do prisma conceitual.

Os autores brasileiros criticam e denunciama razão instrumental, opondo a ela a racionali-dade substantiva. No entanto, não conseguemcomprovar empiricamente se esta última podeser empregada na gestão de organizações pro-dutivas. Em outras palavras, os autores nãodemonstram claramente, por meio de exem-plos retirados de organizações reais, como seconcretiza a razão substantiva na tomada dedecisão, na divisão do trabalho, no controle,no estabelecimento de normas, na comunica-ção e em outras variáveis tipicamente admi-nistrativas. Decorridos 14 anos da morte deGuerreiro Ramos, seus seguidores ainda nãoconseguem ilustrar factualmente aquilo quedefendem. Para nós, este é um grave proble-ma para o avanço da teoria, uma substanciallacuna nesse campo de estudos, que denomi-namos impasse.

Entendemos que o desenvolvimento da abor-dagem substantiva nas organizações produtivasexige imediatamente um redirecionamento nofoco das pesquisas. Este realinhamento signifi-ca dirigir o foco para a dimensão da prática ad-ministrativa, da gestão propriamente dita. Amudança de rumo é necessária e urgente a fimde impedir que os estudos dessa abordagem

percam-se em intermináveis discussões, repe-tições, críticas sem propostas concretas e elo-cubrações exclusivamente conceituais que ser-vem quase que somente aos acadêmicos, en-fraquecendo assim a potencialidade "explosi-va" da proposta original de Guerreiro Ramos.Os difusores da razão substantiva nas organi-zações precisam demonstrar a exeqüibilidadedessa racionalidade na prática administrativa.Não podemos nos esquecer que atuamos numdos campos mais pragmáticos da atualidade.A teoria administrativa deve advir da prática.

Eis então, o problema central que aqui as-sumimos enfrentar: o impasse representadopela ausência de evidências que demonstremclaramente a concretização da racionalidadesubstantiva nas práticas administrativas.

DELINEAMENTO DA PESQUISA

Para fazer face ao problema acima descri-to, evidentemente, teríamos que realizar ummeticuloso trabalho de campo. O primeiro pas-so foi retomar ao estudo de Guerreiro Ramos,de modo a retirar dali as diretrizes que poderiaminicialmente orientar as decisões sobre o traba-lho de campo a empreender. Reexaminando oreferido estudo, constatamos diversas referên-cias a um tipo de organização que o autor de-nominou isonomias. As isonomias foram des-critas enquanto tipo ideal, embora o autor afir-masse que nos Estados Unidos, país onde es-creveu o seu livro, havia muitas organizaçõesque se aproximavam daquele tipo ideal. Eis aorientação que buscávamos para começar a pla-nejar o trabalho de campo: se nos propomos ademonstrar a razão substantiva na prática, nadamais evidente do que buscar organizações que,supostamente, apresentassem traços em comumcom o tipo ideal isonomias, pois, segundoGuerreiro Ramos, a razão substantiva é predo-minante nas isonomias.

Examinando a literatura disponível, pude-mos encontrar vários estudos' que dão contada existência de organizações assemelhadas àsisonomias em diversas partes do mundo. Res-tava-nos, então, ir a "campo". Assim, dirigimo-nos a três pequenas empresas privadas, atuan-tes no setor de serviços (educação infantil, pro-dução artística, editora, clínicas médico-psi-cológicas) na cidade de Salvador, na Bahia.Uma vez que tínhamos o interesse em analisaras práticas administrativas dessas empresas, asações dos seus participantes, estabelecemos que

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6. A riqueza contida no importanteconceito de cotidiano administrativodeve-se ao seu idealizador, prol. JuvêncioBraga de Lima. Um detalhamento desseconceito pode ser encontrado em LIMA,Juvêncio & TEIXEIRA, A. "O cotidianoadministrativo de pequenos produtoreshortigranjeiros", in: Anais do XVIIIENANPAD,v. 4. Curitiba, ANPAD, 1994.

A RACIONALIDADE SUBSTANTIVA DEMONSTRADA NA PRÁTICA ADMINISTRATIVA

Se uma orgaJJizaçãoprodutiva consegur

obter êxito sem seguirpreaominanremrnte as

diretivas darscionetktsdeInstrum eJJtal

dominsntr. entôo elaupresrntn um alto graude uutonomts e também

de auto-orgsntzsção.

a principal metodologia do trabalho de camposeria a observação participante. Durante oitomeses seguidos (abril a dezembro de 1993) rea-lizamos o trabalho de campo nas três empre-sas, empreendendo um esforço etnográfico ba-lizado por variáveis tipicamente administrati-vas, isto é, as ações cotidianas dos membrosdas empresas ao implementar processos de to-mada de decisões, de es-tabelecimento de normas,de divisão do trabalho, degestão de conflitos, de co-municação, dentre outros.Em suma, o trabalho decampo implicava a parti-cipação efetiva no "coti-diano administrativo'"das empresas estudadas.

Este é um estudo denatureza qualitativa. Asua perspectiva analíticasegue uma orientação quepoderíamos, por analogia,caracterizar como autore-ferencial. Tal analogiatem inspiração nos estudosde Francisco Varela eHumberto Maturana.?Nesses estudos, os autores- reconhecidos pela comunidade científicacomo dos mais importantes no desenvolvimen-to do paradigma da complexidade' - ao exa-minar as estruturas e o funcionamento do sis-tema nervoso central humano, estabeleceramuma perspectiva analítica que busca exami-nar o fenômeno que se quer conhecer, em simesmo. Isto quer dizer que se opta por "pene-trar" nas dimensões internas do fenômeno ousistema em análise, nas suas operações singu-lares, visando desvelar a lógica interna e suaidentidade, porém não desprezando o ambien-te, e sim examinando como o sistema integraem suas operações as variáveis ambientais.Essa perspectiva analítica autoreferencialé mundialmente conhecida como a Teoria daAutopoiesis, ou lógica dos sistemas auto-or-ganizados. Ela pode ser bastante útil no cam-po da teoria organizacional, se bem emprega-da por meio de analogias ou de metáforas.Gareth Morgan percebera essa possibilidadequando declarou que "dentre outras conseqüên-cias interessantes, a autopoiesis nos ajuda aver que as explicações da evolução, da mu-dança e do desenvolvimento das organizações

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devem dar lugar especial aos fatores que de-terminam a identidade de uma organização e,por conseqüência, as suas relações com o mun-do"? Desde alguns anos, tentamos difundir noBrasil o emprego dessa perspectiva para a aná-lise de organizações. 10

A nossa intenção aqui é de aprofundar aomáximo o estudo de cada empresa pesquisa-

da, desvelando a sualógica interna, a sua racio-nalidade predominante ecomo ela se concretizanos atos administrativosdos indivíduos que acompõem. Varela eMaturana argumentamque a autopoiesis é umbom caminho para ana-lisar e compreender alógica interna de funcio-namento e a identidadedos sistemas que têmelevado grau de autono-mia, a ponto de produ-zir a sua auto-organiza-ção; os seus parâmetrosorganizativos não são de-finidos por modelos e im-posições externas, e sim

pela autonomia dos seus fatores internos. Nóssupomos que se uma organização produtivaconsegue obter êxito sem seguir predominan-temente as diretivas da racionalidade instru-mental dominante no mundo empresarial, en-tão a organização em questão apresenta umalto grau de autonomia, e conseqüentemente,de auto-organização. Daí a analogia com aperspectiva auto referencial, contida na Teo-ria da Autopoiesis.

Prosseguindo nadémarche do delineamen-to da pesquisa, gostaríamos de detalhar os ob-jetivos aos quais nos propomos a atingir:a) Fornecer um quadro de análise que permita

identificar e demonstrar, a partir de dadosempíricos, como a racionalidade substanti-va se concretiza nas práticas administrati-vas de organizações produtivas, como elase traduz nas ações cotidianas referentes àtomada de decisão, ao controle, à comuni-cação, e outras práticas administrativas;

b) a partir da operacionalização desse quadro,identificar e demonstrar também a concre-tização da razão instrumental, permitindoassim detectar qual dos dois tipos é predo-

7. Ver VARELA, Francisco. PrincipIes ofbiological autonomy. New York: ElsevierN. H., 1979; VARELA, Francisco. L'auto-organisation: de I'apparence aumécanisme. In: Dumouchel, P. & Dupuy,Jean-Pierre (dirs.) Colloque de Cérisy:/'auto-organisation, de la physique aupolitique. Paris: Seuil, 1983; VARELA, F.& MATURANA, H. Autopoiesis and cog-nition. Boston: D. Reidel, 1980.

8. Conl. DUPUY, Jean-Pierre. Drdres etdésordres - enquête sur un nouveauparadigme. Paris: Seuil, 1982.

9. MORGAN, Gareth. Images deI'organisation. Québec: ESKA, p. 278,1989.

10. Ver SERVA, Maurício. O paradigma dacomplexidade e a análise organizacional.In: Revista de administração deempresas. São Paulo: FGV, v. 32, n. 2,pp. 26-35, 1992.

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11. HABERMAS, J. Teoria de la scctôncomunicativa. Op. cit.

12. BARRETO, César. Sobre aracionalidade humana: conceitos,dimensões e tendências. Op. cít.

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minante nas práticas administrativas dasorganizações estudadas.Como um dos resultados produzidos a par-

tir do emprego do referido quadro de análise,poderemos em seguida identificar se uma or-ganização é substantiva ou não: se nela predo-mina a racionalidade substantiva, será o casode classificá-la como organiZllfão substantiva.

CONSTITUiÇÃO EOPERACIONALlZAÇÃO DOQUADRO DE ANÁLISE

Diante do impasse ao qual nos referimosacima, buscamos a sua solução. Ao nosso ver,o alcance dos objetivos aqui propostos exigeque a abordagem de Guerreiro Ramos seja com-plementada por uma teoria de ação. A que nosparece mais adequada a esse fim é a Teoria daAção Comunicativa, elaborada por Habermas."Assim, trabalhamos com essas duas teoriasnuma perspectiva de complementaridade, quepudesse nos proporcionar condições para aanálise dos dados do nosso estudo. As duasteorias, além de terem como ponto de partidaa emancipação do ser humano face aos cons-trangimentos da autorealização impostos pelasociedade contemporânea, constituem um casoflagrante de complementaridade, especialmen-te para os que se lançam no estudo da razãosubstantiva nas organizações. Tal possibilida-de já havia sido sinalizada por Barreto."

A identificação das duas racionalidades ea detecção da predominância de uma delaspressupõem a comparação entre os seus indi-cadores. O primeiro passo para comparar con-figurações distintas é defini-las de forma clara,bem como os seus elementos constitutivos. Umavez que optamos por trabalhar com uma teoriade ação, prosseguiremos nesta linha e definire-mos a ação racional substantiva, com base nosestudos de Guerreiro Ramos e Habermas: açãoorientada para duas dimensões: na dimensãoindividual, que se refere à autorealização, com-preendida como concretização de potenciali-dades e satisfação; na dimensão grupal, quese refere ao entendimento, nas direções dasresponsabilidade e satisfação sociais. Por con-seguinte, os elementos constituído da açãoracional substantiva são:a) autorealização - processos de concreti-

zação do potencial inato do indivíduo, com-plementados pela satisfação;

b) entendimento - ações pelas quais se esta-

belecem acordos e consensos racionais, me-diadas pela comunicação livre, e que coor-denam atividades comuns sob a égide daresponsabilidade e satisfação sociais;

c) julgamento ético - deliberação baseada emjuízos de valor (bom, mau, verdadeiro, fal-so, certo, errado etc.), que se processa atra-vés do debate racional sobre as pretensõesde validez emitidas pelos indivíduos nas in-terações;

d) autenticidade - integridade, honestidadee franqueza dos indivíduos nas interações;

e) valores emancipatôrios - aqui se desta-cam os valores de mudança e aperfeiçoa-mento do social nas direções do bem-estarcoletivo, da solidariedade, do respeito à in-dividualidade, da liberdade e do compro-metimento, presentes nos indivíduos e nocontexto normativo do grupo;

f) autonomia - condição plena dos indiví-duos para poderem agir e expressarem-selivremente nas interações.Do mesmo modo, a partir dos trabalhos de

Guerreiro Ramos e de Habermas em perspec-tiva de complementaridade, definimos a açãoracional instrumental e seus elementosconstitutivos como: ação baseada no cálculo,orientada para o alcance de metas técnicas oude finalidades ligadas a interesses econômi-cos ou de poder social, através da maximiza-ção dos recursos disponíveis. São seus elemen-tos constitutivos:a) cálculo - projeção utilitária das con-

seqüências dos atos humanos;b) fins - metas de natureza técnica, econô-

mica ou política (aumento de poder);c) maximização dos recursos - busca da efi-

ciência e da eficácia máximas, sem ques-tionamento ético, no tratamento de recur-sos disponíveis, quer sejam humanos, ma-teriais, financeiros, técnicos, energéticos ouainda, de tempo;

d) êxito, resultados - o alcance, em si mes-mo, de padrões, níveis, estágios, situações,que são considerados como vitoriosos facea processos competitivos numa sociedadecapitalista;

e) desempenho - performance individualelevada na realização de atividades, cen-trada na utilidade;

f) utilidade - dimensão econômica conside-rada na base das interações como um valorgeneralizado;

g) rentabilidade - medida de retomo econô-

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A NACIONALIDADE SUBSTANTIVA DEMONSTRADA NA PRÁTICA ADMINISTRATIVA

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mico dos êxitos e dos resultados esperados;h) estratégia interpessoal - aqui entendida

como influência planejada sobre outrem, apartir da antecipação das reações prováveisdesse outrem a determinados estímulos eações, visando atingir seus pontos fracos.Definidos os tipos de ação racional e seus

respectivos elementos, partiremos para o rea-grupamento lógico desses elementos face acada processo organizacional, estabelecendodessa forma o quadro de análise. Os processosorganizacionais que em conjunto compõem adinâmica cotidiana das empresas estudadas es-tão segmentados nas ru-bricas que orientaram otrabalho de campo, guian-do os procedimentos dacoleta de dados. Por pro-cessos organizacionais en-tendemos aqueles nosquais os indivíduos defi-nem, mediante ações espe-cíficas, o caráter básico doempreendimento grupaldo qual participam. As-sim, os membros do gru-po delineiam seus padrõesde interrelação e tambémas fronteiras e limites da ação grupal perantea sociedade. Não é por outra razão que taisprocessos estão inseridos, há bastante tempo,no rol dos temas de estudo privilegiados pelamaioria dos autores da teoria das organizações.Os processos organizacionais que nos propo-mos a analisar são em número de onze, sendosete deles considerados como essenciais: hie-rarquia e normas, valores e objetivos, tomadade decisão, controle, divisão do trabalho, co-municação e relações interpessoais, ação sociale relações ambientais. Os outros quatro são de-nominados complementares: reflexão sobre aorganização, conflitos, satisfação individual,dimensão simbólica.

Para a montagem do quadro de análise, em-preendemos o reagrupamento dos diversos ele-mentos constitutivos de racionalidade, obser-vando a correspondência de cada um deles coma natureza intrínseca de cada processo orga-nizacional, de maneira que se possa verificarclaramente a influência dos elementos no de-senrolar dos processos, espelhando o maisfielmente possível o cotidiano das empresasestudadas. Da adequação entre os elementosde racionalidade e os processos organiza-

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cionais resultou o quadro de análise represen-tado no quadro 1. Na primeira coluna estãorelacionados todos os processos trabalhados.Observa-se que nas segunda e terceira colunasfaz-se uma distinção entre os dois tipos de ra-cionalidade que serão cotejados no estudo. En-tão, para cada tipo de racionalidade faz-se cor-responder os seus respectivos elementos cons-titutivos, alocados a cada processo.

Uma vez que se esteja com os dados já agru-pados em função dos processos, pode-se pro-ceder à operacionalização do quadro de análi-se, conforme as três fases abaixo descritas:

• Fase I - Detecçãodos indicadores: cadaelemento constitutivo deação racional, conformedefinimos acima, consti-tui um indicador de ra-cionalidade, seja subs-tantiva ou instrumental.Na primeira fase da aná-lise, deve-se detectar to-dos os indicadores pre-sentes em cada situaçãoobservada, nas situaçõesreconstituídas e opiniõesexpressas nas entrevis-

tas, no exame de documentos etc., tendo emvista o desenrolar de cada processo organiza-cional. Passemos a fase seguinte.• Fase fi - Mapeamento dos indicadorespredominantes: analisando-se um processopor vez, pode-se então reunir todos os indica-dores detectados e verificar qual deles foi pre-dominante ao longo do tempo naquele proces-so examinado. A predominância de um deter-minado indicador revela o elemento que maisdeterminou as ações dos indivíduos e guiou aspráticas operativas da organização em cadaprocesso. Numa visão de conjunto, pode-seafirmar que, durante o período de observação,os indicadores predominantes fundamentarama organização do trabalho, os objetivos orga-nizacionais, os interesses e decisões, os valo-res, os modos de interação, o exercício do p0-der, dentre outras dimensões importantes.

Mapear os indicadores predominantes tra-duz uma posição conceitual claramente defi-nida: não há exclusividade de um só tipo deracionalidade nas ações de indivíduos que com-põem organizações produtivas. A nossa posi-ção conceitual tem por fundamento a idéia deque a dinâmica do cotidiano das organizações

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Quadro 1 - Quadro de análise

Tipo de racionalidade Racionalidade Racionalidadexsubstantiva instrumentalProcessosorganizacionais

Entendimento FinsHierarquiae normas Julgamento ético

DesempenhoEstratégia inter pessoal

Autorealização UtilidadeValores e objetivos Valores emancipatórios Fins

Julgamento ético Rentabilidade

Entendimento CálculoTomada de decisão Julgamento étíco Utí/idade

Maximização de recursosMaximização de recursos

Controle Entendimento DesempenhoEstratégia ínterpessoal

A utorealização Maximização recursosDivisão do trabalho Entendimento Desempenho

Autonomia Cálculo

Comunicação e Autenticidade DesempenhoValores emencipeuuío« /Exito/resultadosrelações interpessoais Autonomia Estratégia inter pessoal

Ação social e Valores emancipatórios Finsrelações ambientais Êxito/resultados

Reflexão sobre Julgamento ético DesempenhoFinsa organização Valores emancipatórios Rentabilidade

Julgamento ético CálculoConflitos Autenticidade Fins

Autonomia Estratégia interpessoal

Autorealização HnsSatisfação individual ÊxitoAutonomia Desempenho

A utorealização UtilidadeDimensão simbólica Êxifo/resultadosValores emancipatórios Desempenho

produtivas implica a presença tanto da razãosubstantiva, quanto da razão instrumental. Oscomportamentos dos membros de um grupoprodutivo não são retilíneos, suas ações desen-rolam-se por meio de trajetos tortuosos, isto é,de avanços e retrocessos nas direções substan-tiva e instrumental, gerando contradições, es-tabelecendo contrapontos. À medida que taiscontradições e contrapontos são enfrentados esolucionados (ou não), novas questões que po-dem conduzir a outras contradições presentese/ou futuras são geradas. Eis aqui, em duaspalavras, nossa visão sobre a dinâmica das or-ganizações produtivas. Por conseguinte, iden-tificar a predominância é assumir que ambasas racionalidades podem estar presentes emtodos os processos organizacionais, num dadoperíodo de tempo.

Assim procedendo, ao final da Fase TI serápossível identificar se a organização pode serconsiderada substantiva. Para tanto, os resul-

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tados da análise deverão necessariamente aten-der as condições seguintes:a) os elementos de racionalidade substantiva

devem ser majoritariamente predominan-tes levando-se em conta o conjunto totaldos onze processos examinados;

b) os elementos desta racionalidade devem sertambém predominantes na maioria dos seteprocessos organizacionais essenciais.A seguir, apresentaremos a última fase, que

constitui um complemento da análise realizada.

Fase III - Identificação da intensidade deracionalidade substantiva: o cumprimento dafase anterior é também um pré-requisito parainferir sobre o grau de intensidade da raciona-lidade substantiva numa determinada organi-zação. Na medida em que num processo já setem detectados todos os indicadores de racio-nalidades, bem como o que é predominante,tal conjunto de indicadores formam uma con-

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A RACIONALIDADE SUBSTANTIVA DEMONSTRADA NA PRÁTICA ADMINISTRATIVA

figuração singular, devido às especifidades da-quele processo, da empresa, das ações e dosvalores particulares dos seus membros. O exa-me minucioso dessa configuração - que im-plica analisar cada indicador detectado, a com-posição total da configuração e a amplitudeda predominância daquele indicador sobre osdemais - conduz à identificação da inten-sidade da razão substantiva em cada processoorganizacional, situando-a entre os graus mí-nima, baixa, elevada e muito elevada. Aofinal do estudo dos onze processos, poder-se-átambém identificar a intensidade de razãosubstantiva para a empresa observada glo-balmente: basta situá-la na média entre asintensidades verificadas para cada um dosprocessos.

Com o intuito de obter uma melhor de-monstração do grau de racionalidade substan-tiva numa organização, estabelecemos umaescala de intensidades, dispostas numcontinuum, representado na figura 1. Nos pó-los extremos desse continuum aparecem inten-sidades improváveis, que denotariam - tantopela exclusividade de racionalidade substan-tiva, como pela sua ausência absoluta - a exis-tência (igualmente improvável) de uma orga-nização totalmente regida pela razão substan-tiva ou pela razão instrumental. Tais pólos têm,apenas, um valor heurístico, eles complemen-tam o entendimento da proposta, possuem pu-ramente um valor referencial, na medida emque permitem ao leitor exercitar teoricamentehipóteses sobre no que resultaria uma progres-são retilínea na direção de quaisquer das ex-tremidades do continuum.

Em suma, a idéia de trabalhar com umcontinuum corrobora a posição conceitual aci-ma declarada. Queremos dizer que ao final daanálise, realizada nos moldes propostos poreste estudo, identifica-se a intensidade de ra-zão substantiva e situa-se a organização numdeterminado ponto do continuum. Daí, sejaqual for o ponto em que a organização estejasituada, isto é, da intensidade mínima à muitoelevada, significará sempre que a racionali-dade instrumental também estará presente,

fazendo parte da dinâmica daquela organiza-ção. Seguindo esse princípio e transpondo-opara um raciocínio lógico, cada ponto docontinuum equivale ao seu inverso se quermedir a intensidade de razão instrumental, ouseja, a intensidade mínima de razão substanti-va equivale à muito elevada de razão instru-mental, ou ainda a intensidade baixa de razãosubstantiva equivale à elevada de razão ins-trumental, e assim por diante.

O continuum, visto unicamente em si mes-mo, deslocado de todo o trabalho analítico queo precede e o determina, não possui a essen-cialidade e a profundidade que o exame mi-nucioso, a análise exigente e elaborada de to-dos os tipos de dados disponíveis. Ocontinuumé apenas um instrumento auxiliar na avalia-ção da racionalidade nas organizações. Trata-se de uma solução de sintetização das avalia-ções meticulosamente efetuadas. Deve ser con-cebido apenas como um instrumento anexopara facilitar a visualização da classificaçãorelativa das empresas estudadas. Se o continuumespelha razoavelmente a análise, ao passo queadiciona uma informação visual qualitativa eútil, então ele cumpre o seu papel.

AS EMPRESAS DA PESQUISA

O presente estudo comporta a análise detrês empresas de serviços, situadas na cidadede Salvador. A seguir, faremos a descrição decada uma delas, retratando o design que apre-sentavam durante o período da pesquisa decampo, o ano de 1993.

A primeira empresa chama-se Casa ViaMagia. Trata-se de uma empresa privada comdois sócios, criada em 1984. Em termos orga-nizacionais, a empresa é composta de trêssubunidades semi-autônomas: uma escola in-fantil com cerca de 300 alunos; uma produto-ra de arte e uma clínica congregando 15 pro-fissionais que prestam serviços de psicotera-pia individual e de grupo, aulas de música, psi-copedagogia, medicina naturista e homeopá-tica, ajustamento corporal, aulas de teatro, den-tre outros. Cerca de 50 pessoas trabalham na

Figura 1 - Continuum de intensidade de racionalidade substantiva

mínima baixa

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totalmenteelevada

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totalmentesubstantiva

média elevada muitoelevada

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empresa. É um empreendimento de grande su-cesso nos ramos onde atua, principalmente aescola, que é considerada uma das melhoresescolas infantis do Estado.

A segunda empresa chama-se EspaçoLumiar e congrega duas subunidades. É umafundação de direito privado. Em tomo de 30pessoas participam do empreendimento, com-preendendo os membros fixos e os colabora-dores eventuais. A empresa foi fundada noano de 1992. Sua unidade principal é umaclínica que oferece serviços de psicoterapia,medicina naturista, ajustamento corporal etarô de autoconhecimento. A clínica é o cora-ção da organização, sede principal e onde estáa maior parte dos seus membros. Dez pessoastrabalham na clínica, compreendendo duas re-cepcionistas. Os custos são rateados igualmen-te por todos os profissionais prestadores deserviços. As recepcionistas são empregadas erecebem salários na média do mercado de tra-balho em Salvador. A segunda subunidade éa Editora Deva, direcionada para a divulga-ção da alimentação e me-dicina naturais, da filoso-fia e análise social. Um deseus produtos, uma revis-ta trimestral intitulada Vi-vências, é distribuído emvários estados do país e emalguns países estrangeiros.Sua tiragem é de 3.000exemplares. Também li-vros são publicados pelaeditora. Nela trabalham,como membros fixos, duaspessoas, o seu editor e umauxiliar. Cerca de 15 pes-soas trabalham como co-laboradores (responsáveispor seções da revista) ecomo prestadores de servi-ços gráficos e jornalísticos.Eles não se fixam cotidia-namente na sede e são remunerados por tare-fa a cada edição.

A Espaço Aquarius (nome fictício) é a me-nor empresa dentre as três. Trata-se de umaempresa privada, registrada como associaçãode profissionais liberais. Foi fundada em 1988.A empresa constitui-se primordialmente deuma clínica psicológica, composta de sete pro-fissionais e três empregados. Além de psicote-rapia, oferece também serviços de medicina ho-

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meopática, de psicopedagogia e de lazer or-ganizado (excursões ecológicas e "acampamentoverde"). É uma empresa que goza de um con-ceito invejável no seu ramo em Salvador devidoa alta qualidade dos serviços prestados. Isto pa-rece explicar o fato da empresa não sofrer pro-blemas de ordem financeira mesmo numa épo-ca de crise econômica generalizada. A sua de-manda é relativamente estável, assegurandotambém uma estabilidade econômica no negá-cio desde a sua fundação. Como as anteriores,esta também pode ser apontada como uma em-presa de sucesso dentro de seu ramo específicode atividades.

Apresentaremos a seguir os resultados daanálise das três organizações.

A RACIONALIDADE SUBSTANTIVANA PRÁTICA ADMINISTRATIVA

O quadro 2 demonstra resumidamente osresultados do exame das três empresas. Elasintetiza os três quadros de análise específi-

cos, aplicados respecti-vamente a cada empre-sa. Pode-se verificar quepara cada um dos pro-cessos organizacionaisdispostos na primeiracoluna, estão relaciona-dos apenas os indicado-res que se revelaram pre-dominantes a partir daanálise dos dados. Porexemplo, para o proces-so de hierarquia e esta-belecimento de normas,pode-se ver que tanto naCasa Via Magia quantona Espaço Lumiar asações de entendimentoforam predominantes -um indicador de racio-nalidade substantiva -

enquanto que na empresa Espaço Aquariusos fins predominaram, revelando aqui a su-premacia da razão instrumental. Na últimalinha do quadro 2, em destaque, estão indica-das as intensidades de racionalidade substan-tiva, obtidas a partir das médias observadasdos onze processos organizacionais em cadaempresa. Esta é a base para o posicionamen-to das empresas no continuum, objeto da fi-gura 2.

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A RACIONALIDADE SUBSTANTIVA DEMONSTRADA NA PRÁTICA ADMINISTRATIVA

Como se pode depreender do quadro 2 eda figura 2, apenas as empresas Casa Via Ma-gia e Espaço Lumiar devem ser consideradascomo organizações substantivas. A análise re-velou a predominância dos indicadores de ra-zão substantiva, tanto no conjunto dos onzeprocessos organizacionais, como no subcon-junto dos sete processos essenciais. A EspaçoAquarius apresenta uma clara predominânciade indicadores de razão instrumental no con-junto total dos processos analisados, manten-do a maioria face aos processos essenciais,embora aqui atenuada; conseqüentemente, ograu de intensidade de razão substantiva queembasa suas práticas é baixo.

Os oito meses ininterruptos de observaçãoparticipante nessas organizações nos propor-

cionaram coletar um verdadeiro manancial dedados, o que nos dá plenas condições de re-portar detalhadamente a análise de cada umdos processos organizacionais estudados nastrês empresas. No entanto, tal empreendimen-to não caberia nas dimensões de um artigo; osleitores interessados em conhecer a análisedetalhada dos dados poderão ter acesso à mes-ma no texto que originou este artigo. 13 Assim,buscaremos destacar aqui apenas alguns ex-tratos da referida análise, verdadeiras liçõesdo terreno que somente o trabalho de campopode fornecer para a tentativa de compreen-são do fenômeno das organizações substanti-vas. Esperamos que tais observações empíricaspossam dar vida às representações contidas noquadro 2 e na figura 2.

Quadro 2 - Quadro resumo de análise das três empresas

Empresas Casa Espaço Espaçox

Processosorganizacionais Via Magia Lumiar Aquarius

Hierarquiae normas Entendimento Entendimento Fins

Valores e objetivosValores Valores Valores

emancípatórios emancipatórios emancipatórios

Tomada de decisão Entendimento EntendimentoJulgamento

ético

Controle Entendimento Entendimento Entendimento

Divisão do trabalho Autonomia Autonomia Cálculo

Comunicação eAutenticidade

Valores Desempenhorelações interpes$oais emancipatórios

Ação social e Valores Valores Finsrelações ambientais emancípatórios emancipatórios

Reflexão sobre Valores Valores Finsa organização emancipatórios emancipatórios

Conflitos Fins Autonomia Cálculo

Satisfação individual Autorealização Autoresttzeçêo Êxito

Dimensão simbólicaValores Valores Valores

emancipatórios emancipatórios emancipatórios

Intensidade de Muitoracionalidade Elevada Baixasubstantiva elevada

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13. Ver SERVA, Mauricio. Racionalidadee organizaçiíes: Q fentJmeno dasorganizações substantivas. São Paulo,EAESP/FGV, Tese de doutorado, 1996.

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14. Alain Chanlat vem desenvolvendo umprofundo trabalho sobre a essencialidadeda palavra no processo de gestão, ver:CHANLAT, A. & BÉDARD, R. La gestion,une aflaire de parole. In: CHANLAT, Jean-François. (dir) L'individu dans/'organisation, les dimensions oubliées.Québec: Les Presses de I'Université Lavai,pp. 79-99, 1990.

15. HABERMAS, J. Teoría de la ecctôncomunicativa: complementos yestudios previos. Madrid: Cátedra, p.501,1989.

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A primeira das observações a destacar é aconstatação de que a presença marcante dosvalores emancipatórios e a perseverança empraticar ações orientadas ao entendimento re-velaram-se fundamentais para uma organiza-ção ter o caráter substantivo. Os valores eman-cipatórios foram primordiais para guiar a açãosocial da empresa, compor o sistema de valo-res principais da organização, povoar sufi-cientemente o imaginário do grupo, dando ascores da sua dimensão simbólica e alicerçaros processos de reflexão coletiva sobre a em-presa.

As ações de entendimento se mostraram in-dispensáveis para dar o tom da razão substan-tiva nos "processos duros" da prática adminis-

meio à predominância das ações de entendi-mento também ocorrem ações racionais ins-trumentais.

As organizações da nossa pesquisa que bro-taram da análise como substantivas são orga-nizações movidas a negociação, onde a pala-vra tem uma importância capital, nelas a ges-tão é, de fato, "un affaire de parole", na acepçãode Alain Chanlat." Ainda na dimensão da pa-lavra, gostaríamos de destacar um aspecto quetem estreita relação com a teoria da ação co-municativa. Foi interessante constatar que naCasa Via Magia e na Espaço Lumiar a auten-ticidade e os valores emancipatórios foram oselementos de racionalidade predominantes noprocesso comunicação. Ora, se levarmos em

Figura 2 - Posição das empresas no continuum deintensidade de racionalidade substantiva

Espaço Casa EspaçoAquarius Via Magia Lumiar

t t tI I I

totalmente mínima baixa média elevada muito totalmenteelevada elevada substantiva

trativa: justamente aqueles diretamente liga-dos à questão do poder, tais como a hierarquia,o estabelecimento de normas, a tomada de de-cisões e o controle. As zonas mais estreitamenterelacionadas ao poder são palco de exercício,nem sempre fácil e tranqüilo, do entendimen-to. A noção de entendimento é ampla.Habermas fala em "acordo racionalmente ob-tido" e elabora a teoria da ação comunicativaa partir dessa idéia, destacando no processo acorreção, a verdade e a autenticidade dos indi-víduos. Por sua vez, Guerreiro Ramos fala em"boa regulação da vida humana associada",ressaltando que ela é alcançada pelo debateracional e a superordenação ética. O cotidianode uma organização substantiva não correspon-de nem de longe a uma imagem irreal e adoci-cada da "harmonia" preconizada pela dita cor-rente "holista", muito badalada ultimamenteno Brasil. As ações de entendimento compor-tam o debate racional, o qual muitas vezes acar-reta as tensões próprias de uma ambiênciamarcada pelas autenticidade, autonomia e li-berdade de expressão. Além disso, voltamos alembrar que os comportamentos dos membrosde um grupo produtivo não são retilíneos; em

conta que os valores emancipatórios são do-minantes no contexto normativo daqueles gru-pos (predominam no processo "valores e ob-jetivos" em ambas organizações), então tive-mos a oportunidade de ratificar empiricamen-te uma parte importante da proposiçãohabermasiana: nela, autenticidade e correçãosão dois dos três fatores fundamentais da açãocomunicativa, na qual correção é definida porHabermas como "uma ação correta com re-lação a um contexto normativo dado e reco-nhecido no mundo da vida cotidiano, paraque se possa estabelecer entre ele [o emis-sor] e o ouvinte uma relação interpessoal tidacomo legitimá','?

A autonomia revelou-se importante noprocesso de divisão do trabalho. Quanto maisautonomia se tem para assumir livremente talou qual atividade a desempenhar, ter viva vozno debate que leva à distribuição das tarefas,argumentar e ver os seus argumentos ser alvode contra-argumentações autênticas, maisengajamento com o trabalho é proporciona-do. A natureza substantiva da organizaçãoemergiu também com grande intensidade des-se aspecto.

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A RACIONALIDADE SUBSTANTIVA DEMONSTRADA NA PRÁTICA ADMINISTRATIVA

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A satisfação é o corolário, no nível indi-vidual, do esforço organizacional de cunhosubstantivo. Há evidências de que a autorea-lização é o grande motivo da satisfação emparticipar daquelas organizações. A recom-pensa monetária existe (em geral não muitomais elevada do que em outras empresas domesmo ramo), mas os indivíduos apontaramcomo a fonte maior da sua satisfação a pos-sibilidade de realização dos seus potenciaisprofissionais e pessoais.Aqui, vimos que a auto-nomia se complementacom a autorealização, e adivisão do trabalho coma satisfação.

Quanto a EspaçoAquarius, empresa quenão emergiu da análisecomo organização subs-tantiva, confessamos quenos sentimos extrema-mente gratificados emcontar com ela na pesqui-sa, uma vez que tal fatoensejou-nos uma grandechance de aprendizagem,tanto para o aprofunda-mento do conhecimentosobre organizações subs-tantivas, como para o tes-te do quadro de análise. Pudemos perceber quemesmo apresentando predominância substan-tiva nas rubricas valores e objetivos, dimen-são simbólica, tomada de decisão, e controle,a empresa não pode ser considerada por nóscomo substantiva. Nos demais processos pre-domina a razão instrumental. Esse caso fazemergir com toda a clareza (e os outros doiscasos assim o confirmam) uma das condiçõessine qua non para a predominância da razãosubstantiva numa organização produtiva: ocomprometimento efetivo dos seus membroscom os valores emancipatórios.

O fato de conduzir uma empresa que sobre-vive bem num mercado competitivo e, parale-lamente, tentar concretizar uma práxis basea-da naquilo que nós acreditamos como razãosubstantiva, é o que melhor define a naturezado desafio que os membros de tais empresasenfrentam em seu cotidiano. Vive-se permanen-temente numa dualidade tensa, pois tenta-seconstruir uma empresa fundada numa ética"substantiva", mas no seio de uma sociedade

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que já lhe oferece um modelo geral, as dire-trizes de base e a lógica das ações, todos es-ses elementos fundantes intuídos de uma ra-cionalidade utilitária, instrumental. O dile-ma entre ser empresa nos moldes tradicionaisou ousar uma práxis emancipatória é diário,expressa-se no cotidiano, nas relações comos colegas profissionais, com os empregadosse eles existem, na adoção ou não de hierar-quia e em que grau, nas formas de comunica-

ção utilizadas, e em mui-tos outros aspectos de es-colha. O dilema é cons-tante, no fundo é a pró-pria expressão do dilemaentre a predominânciada razão substantiva ouda razão instrumentalnas organizações produ-tivas contemporâneas.Um dilema que se nega-do ou ocultado, podeaflorar em contradiçõesnão assumidas e confli-tos não resolvidos, comono caso da empresa Es-paço Aquarius.

Na nossa concepção,para que uma organiza-ção seja realmente subs-tantiva é preciso que o

comprometimento com os valores emancipa-tórios vá além da sua mera difusão; é neces-sário que tais valores comecem a ser pratica-dos dentro da própria organização, principal-mente no desenrolar da prática administrati-va. Observando os casos das empresas CasaVia Magia e Espaço Lumiar, constatamos queo comprometimento efetivo é justamente o fa-tor da ação que opera uma fusão entre os va-lores emancipatórios e as ações de entendi-mento acima destacados. O que não aconte-ceu na Espaço Aquarius. Não se muda umarealidade complexa apenas portando signose professando valores, acima de tudo é preci-so comprometer-se efetivamente com eles nasações cotidianas. A congruência de uma or-ganização, face a racionalidade que lhe é sub-jacente, não começa no produto ou tampoucona imagem ao público; começa sobretudo nosseus processos administrativos internos. Ouseja, de dentro para fora da organização, enão o contrário. Nesse cenário da vida hu-mana moderna, o simulacro não é suficiente

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16. A RAE tem publicado, nos últimosanos, alguns de nossos textos queespelham as fases seqüenciais de nossoestudo sobre as organizaçõessubstantivas, ver: SERVA, Maurício. Ofenômeno das organizações substantivas.In: Revista de administração deempresas. São Paulo: FGV, v. 33, n. 2,pp. 36-43, 1993; SERVA, Maurício. Oparadigma da complexidade e a análiseorganizacional. Op. cit.; SERVA, Maurício& JAIME JÚNIOR, Pedro. Observaçãoparticipante e pesquisa em administração- uma postura antropológica. In: Revistade administração de empresas. SãoPaulo: FGV, v. 35, n. 3, pp.64-79, 1995.

17. Para a contribuição de Godelier aotema em questão, ver: GODELlER,Maurice. Rationalité et irrationalité enéconomie. Paris: Maspero, 1966;GODELlER, Maurice. Présentation. In:Polanyi, K. et alli (dirs.). Op. cit.

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internos.

para concretizar a razão substantiva. Voltamosa recordar que a administração constitui um doscampos mais pragmáticos da atualidade.

CONCLUSÕESA realização deste estudo marca exatamente

dez anos de nossa dedicação à compreensãodas organizações substantivas. Durante essepercurso temos obtido o apoio de muitas pes-soas e organizações, como é o caso da RAE-Revista de Administração de Empresas, a qualnos tem permitido difun-dir os resultados de nos-sos esforços. 16

Na perspectiva geralda emancipação do ho-mem na esfera produtiva,vimos tentando contribuirpara evidenciar que indi-víduos associados em or-ganizações produtivas po-dem: estabelecer relaçõesgratificantes entre si, al-cançar níveis considerá-veis de autorealização eembasar as ações numalógica não utilitária; aopasso que suas organiza-ções alcançam graus dedesempenho satisfatóriosno interior de um mercado competitivo.

As três organizações da nossa pesquisapodem ser consideradas como empresas queatingiram razoável grau de sucesso econômi-co. Salvador, enquanto terceira maior cidadedo país, apresenta uma demanda considerávelpara os serviços oferecidos por essas empre-sas, o que acarreta, por outro lado, uma signi-ficativa oferta que lhe é correspondente. So-bretudo pela sofisticação da cidade, pela con-centração de renda observada e pelos proble-mas típicos de um grande centro urbano in-dustrial, Salvador constitui um mercado atraen-te para a instalação de empresas naqueles ra-mos. O mercado é atraente, logicamente a con-corrência é acirrada. Estudamos três empresasvitoriosas num mercado competitivo, entre asquais, duas emergiram da análise como orga-nizações substantivas.

Sociedades do tipo em que vivemos sãocompostas, em sua larga maioria, por gruposorganizados que interagem na esfera econô-mico-produtiva embasados numa lógica

marcada pelo utilitarismo. No entanto, no casodas duas entidades que brotaram da nossa aná-lise como organizações substantivas, podemosver exemplos atuais de atividades que Polanyicaracterizava como embedded, ou seja, ativi-dades econômicas devidamente engastadas nosocial e com o interesse concentrado sobre osvalores, a motivação e a política. De Polanyi aGodelier," desembocando em Guerreiro Ra-mos, um substancial conjunto de pesquisado-res vêm demonstrando que a sociedade cen-trada no mercado é apenas uma forma recente

de ordenação da vida hu-mana associada. Assimsendo, outras formas deordenação social e deprodução podem ser en-contradas atualmente,exigindo para a sua aná-lise outros instrumentosde interpretação e tam-bém referenciais alterna-tivos à lógica utilitarista.

O problema centralque desencadeou a reali-zação deste estudo foi oda ausência de demons-tração factual da concre-tização da razão substan-tiva nas práticas admi-nistrativas em organiza-

ções produtivas. Um impasse - como o ca-racterizamos - ao avanço da teoria nesse cam-po. Criticar a racionalidade instrumental e cha-mar a atenção para a existência da racionali-dade substantiva, apenas supondo a possibili-dade de aplicação desta última nas organiza-ções, ao nosso ver não é o bastante. Se quiser-mos que o pensamento de Guerreiro Ramos dêfrutos, temos que fazer avançar a teoria e im-pulsionar a prática.

Neste trabalho, assumimos o desafio deafrontar um dos impasses que percebemosexistir no percurso dos autores que empreen-dem estudos sob o tema da razão substantiva,na acepção de Guerreiro Ramos, notadamen-te no BrasiL Pouco a pouco, parece esboçar-se um tema que poderá se constituir num cam-po de estudos organizacionais consolidado nonosso país. Tentar superar os impasses serianão só colaborar para o desenvolvimento des-ses estudos, mas também significa trabalharem prol dos ideais emancipatórios na esferado trabalho. (J

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