A (RE) CONSTRUÇÃO IDENTITÁRIA E PROJETOS DE...
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ÁREA TEMÁTICA: MIGRAÇÕES, ETNICIDADE E RACISMO
A (RE) CONSTRUÇÃO IDENTITÁRIA E PROJETOS DE FUTURO DE JOVENS BRASILEIROS
EM PORTUGAL
GRACIOLI, Maria Madalena
Doutora em Sociologia
Faculdade de Filosofia Ciências e Letras de Ituverava
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Palavras-chave: Jovens; futuro; identidade; projetos
Keywords: young people; future; identity; projects
PAP0681
Resumo
Esse texto resulta de investigação realizada entre setembro de 2010 e maio de 2011, nas regiões de
Lisboa, Costa da Caparica e do Porto, colocando o jovem brasileiro, imigrante em Portugal, como
categoria central do estudo, revelando o complexo processo de (re)construção identitária e os
diferentes projetos de futuro pautados em elementos de autoidentificação, majoritariamente
relacionados com a origem brasileira. Foram identificados três tipos de estratégias identitárias
utilizadas pelos jovens brasileiros, uma corresponde aos jovens que tentam a todo custo preservar a
identidade brasileira, e para isso apegam-se às memórias do vivido no Brasil, outra, corresponde aos
jovens que aceitam negociar a identidade, e como defesa criam uma imagem negativa dos próprios
brasileiros, e, por último, aqueles que, mesmo assumindo uma identidade brasileira, demonstram
disposição em assimilar elementos da cultura portuguesa e encontrar e criar identificações com os
jovens do país anfitrião, procurando amenizar o sofrimento das perdas deixadas para trás. Apesar das
adversidades que o processo migratório apresenta, os jovens imigrantes apostam no futuro, esperam
ter uma vida melhor e deparar-se com o sucesso. Para alguns, o futuro é planejado para ser vivido em
Portugal; para outros, em diferentes países europeus, América do Norte ou Austrália, mas para a
maioria dos jovens entrevistados, no Brasil, sua terra de origem.
Abstract
This paper results from research carried out between September 2010 and May 2011,the regions of
Lisbon, Costa da Caparica and Porto, putting the young Brazilian immigrants in Portugal, as the
aim of this study, revealing the complex process of identity (re)construction and the various projects
for the future guided by elements of self-identification, mostly related to Brazilian origin. We
identified three types of identity strategies used by young Brazilians, one corresponds to young
people who try at all costs preserve the Brazilian identity, and for that cling to memories of living in
Brazil, another corresponds to young people who will negotiate the identity, as a
defense and creates a negative image of Brazilians themselves, and, finally, those who, even
assuming a Brazilian identity, demonstrate willingness to assimilate elements of Portuguese culture
and find and create identification with the young people of the host country, seeking to alleviate the
suffering of loss of things left behind. Despite the adversities that the migratory
process presents, young immigrants bet on the future, expect to have a better life
and encounter success. For some, the future is planned to be lived in Portugal: for others, in
different European countries, North America or Australia, but for most young people interviewed, in
Brazil, his native land.
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INTRODUÇÃO
Em geral as pesquisas sobre a imigração brasileira em Portugal têm dado prioridade aos estudos das
características da imigração, destacando questões econômicas, de gênero, e estereótipos atribuídos aos(às)
brasileiros(as). Este texto, que resulta de uma pesquisa desenvolvida como pós-doutoramento no Centro de
Estudos Sociais – CES/UC, realizada em 2011, e, financiada pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado
de São Paulo – FAPESP, procura aproximar os estudos de juventude dos estudos migratórios,
especificamente da imigração brasileira em Portugal. A ideia desta investigação é contribuir por meio da
apresentação de diversas categorias de análise, com a discussão de um amplo campo de investigação sobre
estudos de juventude em contextos migratórios.
Os estudos migratórios, sobretudo os de brasileiros em Portugal, têm abarcado diversos espaços de análises a
respeito da comunidade brasileira; no entanto, os jovens não fazem parte dessas investigações, normalmente
são direcionados para categoria trabalhador, outras dimensões do mundo juvenil são ignoradas. Portanto, é
uma difícil tarefa construir o panorama qualitativo de análise dessa população, uma vez que é necessária a
compreensão de uma identidade dividida entre dois lugares, o país de origem, e o país acolhedor, e, ainda,
porque não se trata apenas de investigar um migrante temporário ou um migrante permanente, mas a atenção
foi direcionada para um migrante transnacional, focado num processo social que cruza fronteiras geográficas,
culturais e políticas.
Em grande parte dos estudos migratórios, a juventude possui quase total invisibilidade, raramente a
expressão “jovem” ou “juventude” aparece, pois, se for identificada e considerada como uma categoria social
específica, que possui condições diferentes da infância, das demandas do mundo adulto e das necessidades
dos idosos, tornar-se-ão imprescindíveis outras formas de olhar e considerar essa população, uma vez que,
para essa categoria social, há uma série de implicações que afetam diretamente as políticas de acolhimento
em atividades culturais, esportivas e de lazer, a inserção no ensino superior e no mercado de trabalho.
Destarte, as experiências de jovens enquanto imigrantes são distintas e múltiplas, o que implica em diversas
maneiras de viver a juventude; quer a partir da luta diária, dos projetos tecidos em ritos de alegria, dor e
saudade, num país e numa cultura diferente, o ser jovem já não lhe confere a mesma identidade e, agora, num
novo lugar, em novas configurações, vão construindo, reconstruindo e negociando suas identidades.
Os resultados da investigação permitiram avaliar que o processo de (re)construção da identidade e os
elementos de autoidentificação, são majoritariamente relacionados com a origem brasileira. Nesse processo,
foram identificados três tipos de estratégias identitárias utilizadas pelos jovens brasileiros, uma corresponde
aos jovens que tentam a todo custo preservar a identidade brasileira, e para isso apegam-se às memórias do
vivido no Brasil, e outra que corresponde aos jovens que aceitam negociar a identidade, e como defesa criam
uma imagem negativa dos próprios brasileiros, e, por último, aqueles que, mesmo assumindo uma identidade
brasileira vão, aos poucos, assimilando elementos da cultura portuguesa e buscando identificações com os
jovens do país anfitrião, procurando amenizar o sofrimento pelas perdas.
As diferentes estratégias identitárias levam os jovens a elaborar também diferentes projetos de futuro, alguns
pensam em voltar ao Brasil, outros pensam em terminar os estudos, fazer curso superior e depois voltar com
diploma “europeu”, acreditando que terão maiores oportunidades de conseguir bons empregos; outros
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pensam em juntar dinheiro e fazer um “pé de meia” para montar o próprio negócio no Brasil; há, ainda,
aqueles que pensam em aventurar-se em novas migrações, para outros países europeus, Estados Unidos,
Canadá e Austrália, e, por fim, aqueles que pensam que o seu futuro é mesmo viver em Portugal, planejando
entrar para a Marinha, arrumar um emprego, um(a) namorado(a) e constituir família nesse país.
1 – (RE) CONSTRUÇÃO IDENTITÁRIA
A identidade cultural assenta-se em elementos culturais ao estabelecer uma diferença entre “nós” ou “eu” e,
o “outro” ou “outros”, desse modo, os processos de construção da identidade individual ou coletiva podem
usar conteúdos da cultura, que fornece elementos para desenhar as fronteiras simbólicas daquilo que é
“nosso” ou “meu” e aquilo que é do “outro” ou dos “outros”. A construção da identidade não se alimenta
apenas de referências culturais, mas também sociais, tais como idade, gênero, classe social. Portanto, as
referências sociais e culturais são preponderantes na construção da identidade juvenil.
Os jovens participantes desse estudo frequentam diferentes espaços na sociedade portuguesa, escola de
educação básica e secundária, cursos profissionalizantes, universidades, trabalho, espaços de cultura e lazer.
São nesses ambientes que têm a oportunidade de conviver com jovens portugueses e entrar em contato com a
cultura portuguesa, mas nem sempre essa experiência é positiva, muitas vezes é permeada por preconceito,
discriminação e por estereótipos, que são atribuídos porque portam as marcas da sua cultura de origem.
Nesses novos espaços os jovens sentem-se num verdadeiro labirinto, e veem poucas possibilidades de saída,
já que na trajetória como imigrante, sua identidade começa a desintegrar-se, uma vez que vão perdendo os
vínculos com a cultura e com os amigos da sua terra natal, e ainda, não conseguem estabelecer conexões com
a cultura e, nem relações de amizade e parceria com jovens do país acolhedor. Dessa forma, a sua identidade
manifesta-se de forma descontínua e fragmentada; não conseguem construir os degraus necessários para
subir íngreme ladeira da inserção na nova sociedade, em consequência, criam estratégias identitárias como
forma de sobreviver ao que aqui e agora encontram à sua disposição.
Os jovens ao circularem por diferentes espaços sociais, principalmente aqueles percebidos como
ameaçadores, são desafiados a recorrer às diferentes estratégias identitárias, para afirmação perante si mesmo
e, diante dos outros, defendendo sua liberdade e procurando alcançar seus objetivos.
Caetano, um rapaz de 18 anos, nascido na cidade de Porto Velho – Rondônia, vivendo há três anos na Costa
da Caparica com a mãe e o irmão, relata que a maioria dos amigos é composta por brasileiros, fala da
discriminação e do preconceito que vivencia cotidianamente e demonstra apegar-se à identidade brasileira
como forma de defesa e, expressa o desejo de retorno ao Brasil:
Meu corte de cabelo ainda é o mesmo que usava no Brasil, o estilo das minhas roupas também, no
carro da minha mãe é só música brasileira, não vale a pena escutar fado né? Eu não mudei nada,
e não quero aprender o sotaque português, quando alguém fala que estou falando como os
portugueses, tento mudar, porque sou brasileiro eu não português, e é assim que quero viver.
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Aqui a gente precisa ter muito cuidado porque eles pensam que todos os brasileiros são ladrões,
traficantes e arrumadores de confusão, então eu prefiro andar com meus amigos que são
brasileiros, com meu irmão, meus primos e minha namorada que também é brasileira.
Sinto falta dos meus colegas de lá, crescemos todos juntos, era todo mundo indo para escola junto,
voltando junto, brigava hoje amanhã já estava junto de novo, ia jogar bola brigava, uma hora
depois já estava junto de novo, quando saia para o rio, ou para o sítio, essas coisas assim, era carne
para assar, muita coisa para comer, isso me faz falta, porque aqui isso não existe.
O confronto com um ambiente que não lhe é favorável para expressão e vivência daquilo que considera
natural na juventude, pelas dificuldades de interação com jovens do novo lugar, tende a deixar os jovens
desmotivados, com baixa ou pouca esperança no futuro, um tanto ou quanto sem direção.
O preconceito, a discriminação e as poucas oportunidades são demais angustiantes para esses jovens que
vivem numa fase delicada da vida, são problemas vivenciados a partir de uma posição inferior na sociedade,
surgindo daí um apego às memórias e imagens do país em que nasceu. Há uma tendência em sobrevalorizar
as experiências vividas anteriormente, desejam manter laços com o passado, procurando (re)construí-lo a
partir de representações simbólicas.
O jovem reage à violação da sua identidade, fecha-se às mudanças e a todas as ideias, valores e cultura do
novo lugar de vida, tenta preservar a todo custo uma identidade que não quer colocar em negociação.
Evidentemente, isso é causa de angústia e sofrimento. As violências simbólicas sofridas e a rejeição da sua
identidade cultural são fatores que alimentam a saudade da terra natal e, ao mesmo tempo, dificultam a
identificação e a (re)construção da identidade na terra de chegada.
Desvalorizado nessa nova sociedade, os jovens imigrantes introjetam essa desvalorização. A exclusão que
sofrem em função de serem portadores de uma identidade cultural que é motivo de discriminações e
preconceitos associada à resistência da sociedade em aceitar o imigrante com suas diferenças culturais,
reforçam o sentimento de humilhação espelhado em seu sofrimento.
A socialização dos jovens brasileiros ocorre num quadro de escassez de alternativas. A convivência com
jovens do país anfitrião, muitas vezes numa relação tensa e contraditória, na qual a realização de práticas
juvenis termina subordinada às várias exigências de convivência e a aceitação da negociação da própria
identidade, torna-se a alternativa inevitável para ser aceito no grupo.
Claudio, 17 anos, nascido na cidade de Porto Velho – Rondônia e vivendo há três anos na Costa da Caparica
com a mãe e o irmão Caetano, ao contrário do irmão, sente necessidade de aceitação do grupo e, para isso,
negocia a própria identidade, criando como mecanismo de defesa uma imagem negativa dos brasileiros.
Eu ficava isolado, não tinha amigos, então para ser amigo deles tive que aprender a falar o
sotaque português, ouvia na televisão, ouvia os professores e quando estava na rua ia falando
sozinho para treinar. Também mudei o modo de vestir, porque a gente convive quase sempre,
então quando vejo eles com uma roupa legal, copio, assim uso o mesmo tipo de roupa, as mesmas
marcas.
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Meus amigos são portugueses, porque aqui conviver com brasileiros é muito pesado, porque a
maioria que está cá não presta, fazem coisas que é crime, então meu relacionamento é mais com
portugueses, com eles posso ir a Lisboa, para discotecas, em Lisboa chama-se docas as discotecas,
ou então, para Almada em cinemas ou Centros de compra.
O mais difícil aqui é fazer amizades, boas amizades, porque fazer amizades com quem não presta
só leva à discriminação, então eu prefiro escolher bem as minhas amizades e ficar longe de
brasileiros.
A problemática da aceitação no grupo fica evidente e, indubitavelmente apresenta-se complexa porque
envolve uma série de elementos que abrangem e constituem aspectos próprios do contexto migratório. O
cenário apresentado é um exemplo dos processos de negociação da identidade, pois a sua dinâmica tem
consequências importantes para o (re)conhecimento da própria identidade. No lar prevalece o coração
brasileiro, é o arroz com feijão, canais de televisão brasileiros (Globo e Record), internet para falar com
amigos brasileiros, o sotaque brasileiro. Desse modo, para o convívio social e a aceitação no grupo, ora
assume a identidade do brasileiro/português e por vezes de português.
A aceitação no grupo depende de negociar a própria identidade, ou seja, perder a identidade brasileira e ceder
lugar a uma identidade ainda não construída. A necessidade brusca de uma nova identidade gera angústia e
sofrimento. Nesse sentido, Elias e Dunning (1992, p. 68) afirmam: “[...] a contenção de sentimentos fortes,
no sentido de alguém preservar um controle regular firme e completo dos impulsos, afetos e emoções é um
fator de origem de novas tensões”.
Essa nova tensão pode ser compreendida sob dois ângulos, o primeiro diz respeito à negação da imagem dos
próprios brasileiros; o segundo, à (re)construção da própria identidade. Normalmente o brasileiro é orgulhoso
da tua identidade, sempre procura ostentá-la seja usando uma camisa da seleção brasileira de futebol, seja
levando uma bandeira brasileira para eventos públicos, ou simplesmente falando o português brasileiro,
desse modo, negar ou esconder a identidade brasileira, ter que assumir em alguns espaços uma identidade
que não é a sua, se revela em angústia e sofrimento.
Para esses jovens, a (re)construção da identidade ocorre num contexto de formação da personalidade, ou
seja, no período entre adolescência e mundo adulto, em que o indivíduo revela-se mais frágil
emocionalmente. Dessa forma, para os jovens brasileiros que vivem em Portugal, a estigmatização e
rotulação são cruéis, pois afetam a sua identidade e foram construídas em uma cultura que lhe é hostil.
Levando em consideração a ideia expressa por Goffman (2008) de que quando acreditamos que alguém com
um estigma não seja completamente humano, e, com base nisso, fazemos vários tipos de discriminações,
muitas vezes sem pensar, significando reduzir suas chances de vida, fica claro que a depreciação da
identidade dos jovens imigrantes tende a se aprofundar e transformar numa fratura e criar uma
descontinuidade no processo de (re)construção identitária.
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Mas a necessidade de convivência pode forçar o processo de (re)construção identitária; a inserção na escola,
no trabalho e em atividades culturais possibilitam maior contato com outras identidades e, dessa forma,
novas maneiras de pensar, de agir, outros valores e normas vão sendo aos poucos incorporados.
Paula, 16 anos, natural de Matosinhos, região metropolitana de Belo Horizonte – MG,
vive há seis anos em Portugal com a mãe e o irmão. A mãe migrou sozinha para Portugal e, ela e o irmão
ficaram um ano com o pai e a madrasta. Assim que a mãe conseguiu juntar dinheiro suficiente, voltou ao
Brasil para buscar os filhos.
Assim que chegou, Paula começou a frequentar escola, na época da entrevista além da escola, possuía um
contrato de trabalho como modelo com uma agência na cidade do Porto e mostrava-se ansiosa, pois estava de
viagem marcada para rever a família no Brasil. A jovem demonstrou fácil adaptação à sociedade portuguesa,
mesmo sofrendo todos os preconceitos e discriminações comuns aos demais jovens brasileiros, mas afirma
que se sente brasileira e que, consegue relacionar-se com os jovens portugueses e aos poucos vai
incorporando elementos da cultura juvenil daquele país, porém isso não significa que é uma adaptação
tranquila, mas pelo contrário, é também marcada por sofrimento e angústias:
Os meus amigos são quase todos portugueses, são todos da escola, conheci todos na escola. [...]
Vamos ao café, ao shopping, damos uma volta quando o dia está bom, é sempre assim, vamos ao
cinema, costuma ser sempre assim, não se compara com o Brasil.
Eu digo, sou apaixonada por Portugal, se eu tivesse que voltar a morar para o Brasil eu não tinha
coragem. A vida que a gente leva no Brasil é completamente diferente da vida que a gente leva
aqui, é muito mais fácil aqui que no Brasil, eu acho que sim.
Aqui tem uma lojinha brasileira, e quando dá com aquela vontade matar a saudade, a gente vai lá
e compra alguma coisa. Maria-mole, sou doida por Maria-mole, farinha do Brasil, pimenta,
aquelas pimentas no pote, de tudo... E depois quando a minha mãe quer fazer comida brasileira,
como vaca atolada com mandioca, ela adora mandioca com açúcar, a gente vai comprar assim o
que precisa.
Em Matosinhos, lá tem sempre festa brasileira, de segunda até domingo. Todo sábado a gente vai.
Embaixo é restaurante e em cima tem um bar, o pessoal vai lá jantar e depois vão lá para cima
dançar. Eu gosto muito, me sinto no Brasil.
Os excertos acima permitem a compreensão de que o processo de construção de identidade encontra-se em
constante transformação, na medida em os indivíduos se relacionam, quer com o grupo a que pertence, quer
com o “outro” grupo. Não se trata de desconstruir a identidade, mas reconstruí-la por meio de marcadores
diferentes e ao mesmo tempo iguais, que confrontam na convivência com os jovens portugueses e colocam o
desafio da sobrevivência e aceitação no grupo. Não há para os jovens outra saída, ou buscam a aceitação do
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grupo e encontram amigos para “sair” e conversar ou, entram num processo de isolamento, muitas vezes
gerador de depressão, por isso, o esforço que muitos jovens fazem para serem aceitos no grupo.
Certamente que a maioria dos jovens sente necessidade de partilha de muitas experiências próprias desta fase
da vida, isso tem um peso maior para a conquista de relações de amizades, seja com jovens brasileiros seja
com portugueses, porque são nesses relacionamentos que ocorre os processos partilhados de aprendizagem e
descobertas do significado da vida social, porque o contato entre duas culturas torna a vida mais rica de
significados.
Mesmo que a maioria dos amigos seja composta por portugueses, isso não leva a jovem a ter um sentimento
de pertença com a sociedade acolhedora. Nem a convivência e nem mesmo as melhores condições de vida
nesse país eliminam as diferenças que o jovem imigrante carrega em relação aos jovens portugueses e nem
apaga os vínculos com suas origens.
Desenraizados da sua cultura, longe dos amigos de infância, a ausência de reconhecimento pela sociedade
acolhedora, a dificuldade de estabelecer vínculos mais profundos de amizade, contribuem para construção de
uma identidade dividida, por vezes contraditória e incerta.
Sofrendo influências diversas e porventura conflitantes, os jovens têm de desbravar o caminho para
afirmarem sua própria identidade. Trata-se muitas vezes de uma senda difícil, obter o reconhecimento, quer
dos diferentes grupos sociais do país de acolhimento, quer dos do país de origem.
2- PROJETOS DE FUTURO
Geralmente o futuro é visto como algo situado numa linha temporal cuja especificidade é ir sempre em
frente, é progredir, sem voltar ao ponto de origem, sem fechar o círculo. O passado, o presente e o futuro são
perspectivas temporais, assim, o futuro é sempre projeto para depois do agora, mas impossível projetá-lo sem
ligações com o presente.
Os jovens constituem a categoria social mais preocupada com o futuro, porque inevitavelmente um dia
deixarão de ser jovens e entrarão no mundo adulto. Para os jovens imigrantes além dos conflitos clássicos
dessa fase da vida, como desenvolvimento psicológico, preocupações com os estudos e trabalho, também
deparam-se com os conflitos no processo de (re)construção identitária, além da preocupação com o futuro,
onde e como viver no futuro. Percebem que no que tange às oportunidades no país acolhedor, estão em
desvantagem em relação aos jovens que aí nasceram.
Mesmo com todas as adversidades que o processo migratório apresenta, e com as desvantagens que
enfrentam em função dos níveis de formação educacional e profissional dos jovens portugueses serem muito
superiores aos seus, os jovens brasileiros imigrantes nesse país, apostam no futuro, esperam no futuro ter
uma vida melhor e deparar-se com o sucesso, seja profissional, amoroso e financeiro. Tais aspirações
desempenham um importante papel na experiência dos jovens, que precisam criar estratégias individuais
para ingressar nas universidades e mercado de trabalho, aprender a viver e conviver com constantes tensões e
contradições. Essas aspirações os preenchem com objetivos de vida, isto significa buscar uma orientação, um
rumo, um sentido, que contribui para delimitar a sua identidade e buscar o seu lugar e o seu papel no mundo.
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Esse estudo mostra que os jovens brasileiros que vivem em Portugal possuem três diferentes projetos de
futuro: permanecer morando em Portugal, migrar para outro país e, voltar ao Brasil:
Eu quero juntar um dinheiro e quando eu tiver o dinheiro eu vou voltar, já que eu estou aqui, vim
aqui acabar com a minha vida, então pelo menos um dinheiro eu quero levar. (Priscila, 19 anos, 8
meses em Portugal)
Não sei, eu acho que se eu encontrar um emprego aqui eu não volto... não sei, é complicado fazer
muitos planos para muito longe mas o namorado é uma das coisas que mais faz com que eu sinta
vontade de ficar em Portugal, mas também tem todas as outras pequenas coisinhas que me afastam
do Brasil, mas se eu puder eu fico aqui, ou se eu puder eu vou embora daqui para outro país que
não seja... não é que não seja o Brasil mas se é para eu quero ir para outro lugar que seja um
lugar que eu tenha mais oportunidade e que eu passa também fazer... não sei, mas junta uma
porção de estereótipo e... que seja um lugar que tenha mais reconhecimento, no Brasil até que tem
bastante reconhecimento em termos de jornalismo mas... não sei, queria tentar primeiro aqui antes
de desistir e voltar para lá. (Poliana, 21 anos, 14 anos em Portugal)
Eu pretendo voltar, só não tenho a previsão se é daqui a um ano ou pode ser daqui a 5 ou 10 anos.
Preciso tirar aqui um curso superior, para depois voltar para lá, que é para não voltar, como se
diz, não voltar do mesmo jeito que eu saí, então pretendo voltar para lá pelo menos como um
profissional. (Luis, 24 anos, 6 anos em Portugal)
Não sei, porque na verdade, sinceramente mesmo com toda essa crise aqui em Portugal eu não
tenho vontade de voltar a morar no Brasil, não tenho, e... não sei, tenho vontade de ir para
Austrália. (Luciana, 22 anos, 2 anos em Portugal)
Os depoimentos acima ilustram o que os jovens brasileiros que vivem em Portugal possuem como projetos
de futuro. Esse estudo aponta que a maioria afirma que gostaria de voltar para o Brasil, os motivos apontados
são os mais diversos: não querer continuar morando num país frio, não gostar da frieza dos portugueses,
querer viver em um país mais alegre, a família está no Brasil, os melhores amigos estão no Brasil, não ter
perspectiva de futuro num país em crise, porque Portugal é só para ganhar dinheiro e viver é no Brasil, em
Portugal trabalha-se muito e ganha-se pouco, construir um futuro numa cultura que conhece e valoriza, não
querer viver num lugar onde é visto com preconceito e desprezo.
Também os motivos apontados para continuar morando em Portugal são distintos: pela vida melhor e pela
segurança, maiores oportunidades de estudo, quer ir para a tropa; em Portugal não se vive com medo das
pessoas, namorado(a) é português(a), porque não quer viver longe da mãe.
As razões para querer ir para outro país estão ligadas a relacionamentos amorosos, expectativa de melhores
salários, aprender outra língua, buscar novas oportunidades.
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Percebe-se que os jovens estão incertos quanto ao lugar onde pensam que podem ter um futuro melhor. Às
numerosas dificuldades que os jovens imigrantes deparam junta-se mais essa incerteza. Numa fase
especialmente delicada e vinculada à crise de identidade, é posto ao jovem imigrante o desafio de projetar o
futuro e escolher o país onde pretende viver, portanto, encontra-se numa situação de indecisão, conflito e
incerteza, alimentando esperanças, exatamente como diz Bauman (2009, p.31), a “ incerteza é o habitat
natural da vida humana – ainda que a esperança de escapar da incerteza seja o motor das atividades humans”.
Percebe-se uma incerteza por parte dos jovens quanto ao seu futuro. Um retorno ao país de origem pode
significar novamente problemas de reinserção escolar, profissional e sociocultural. Dependendo da idade que
deixou o país pode se sentir um estrangeiro no seu próprio país.
Mas ligada a inúmeras amarras afetivas, culturais e sociais com o Brasil, a maioria dos jovens mantém o
desejo do retorno, da volta ao local de nascimento. Parece que uma das implicações das migrações é
exatamente este, o desejo dos emigrantes retornarem às raízes, num artifício consciente ou inconsciente.
Porém, mesmo com as dificuldades que os jovens enfrentam vivendo em Portugal, como a exploração no
trabalho, desemprego, dificuldades de estabelecer relações com os portugueses, o preconceito e a
discriminação e, ainda, tendo como objetivo um retorno ao Brasil, muitos insistem em permanecer, pois
ainda esperam conseguir trabalho melhor e juntar dinheiro para poder retornar, sentem vergonha de voltar
em situação igual ou pior do que a que saiu do Brasil, como expressou Cássia, 22 anos, 2 anos em Portugal,
“não posso voltar com uma mão na frente e outra atrás, preciso fazer meu pé-de-meia”.
Em situação parecida estão outros jovens, cujos pais, precisamente as mães, que vivem no Brasil, esperam
que os filhos voltem em situação melhor, como disse Leopoldo, 23 anos, 3 anos em Portugal, “minha mãe
quer que eu volte ou com um diploma superior ou com dinheiro para montar o meu negócio”. Para a família,
o retorno sem dinheiro ou sem sucesso corresponde a uma vergonha, uma humilhação perante parentes e
vizinhos; fato que a família não quer vivenciar.
Dentre aqueles que desejam voltar ao Brasil, destacam-se dois grupos: o primeiro, corresponde àqueles que
querem conseguir dinheiro e voltar para montar o próprio negócio, para isso, moram em quartos alugados
dividindo-os com outros jovens ou famílias. Para esse grupo, as atividades de lazer são aquelas que não
demandam gastos, como ir à praia, conversar com amigos, ver televisão. Todo o dinheiro economizado é
destinado à realização desse objetivo, como demonstra Luis, 24 anos, 6 anos em Portugal, trabalhador da
construção civil:
Ganho 600 euros, uma parte é para mim me manter aqui e a outra parte costuma ser enviado,
costuma ser 200 ou 250 euros. Mando para minha mãe né? E tipo quando ela não precisa, sempre
sobra, porque ela não gasta tudo e o que sobra ela vai guardando. Ela é como se diz... é a minha
tesoureira.
O outro grupo corresponde àqueles que esperam fazer um curso superior e voltar como profissional
qualificado. Esse grupo também pode ser subdividido: no primeiro, aqueles que estão cursando o ensino
básico e secundário e têm esperança em conseguir fazer um curso superior, e também os que já estão no
ensino superior esperam terminar e voltar ao Brasil. O segundo é composto por aqueles que não estão
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estudando, mas desejam retornar aos estudos. Todos acreditam que com um diploma “europeu” terão
melhores oportunidades no Brasil como disse Luciana, 22 anos, 2 anos em Portugal, no momento da
entrevista, desempregada, “eu quero fazer jornalismo, porque agora no Brasil não precisa mais de
certificado, então para concorrer com qualquer um, eu concorro com certificado da Europa”.
Dos cinquenta e quatro jovens englobados nesse estudo, somente dez afirmam não ter medo do futuro, para
todos os outros, o futuro se apresenta sombrio, sinuoso e cheio de perigos que os assustam. Seus medos:
morrer, não conseguir fazer curso superior, ter que voltar ao Brasil sem ter alcançado os objetivos, de perder
a mãe, de não conseguir melhores condições de vida, de ter que ficar para sempre em Portugal, ter que voltar
para o Brasil, de não conseguir voltar aos estudos, de ter que trabalhar a vida toda fazendo coisas que não
gostam. Enfim, o incerto futuro é visto com temor, mesmo porque, como escreveu Bauman, “a vida se passa
na companhia da incerteza” (2009, p.73).
Todos os participantes afirmam depositar esperanças no futuro: fazer curso superior e arrumar um bom
emprego, juntar dinheiro para montar o próprio negócio, juntar dinheiro e voltar para o Brasil, ter uma vida
melhor, voltar para o Brasil com a família, formar e arrumar um bom emprego em Portugal, do Brasil se
tornar melhor, que o Brasil se torne um país com menos pobreza e mais seguro para viver.
É certo que o futuro não se pode prever, ninguém sabe com clareza ou certeza o que irá acontecer no futuro.
Entretanto, a imprevisibilidade do futuro não significa que os jovens não precisem se preocupar com ele,
apostar na sorte, no destino ou na vontade de Deus.
Os resultados da investigação mostram que os jovens pensam no “lá e cá” no permanecer e regressar, viver
em Portugal ou no Brasil, colocando os desejos mais num contexto imaginário, porque para muitos, regressar
ou permanecer, está mais na dependência da decisão da família do que da própria vontade. Percebem que
Portugal é um país mais seguro para viver do que o Brasil, e que, as oportunidades de futuro são maiores, no
entanto, não são mais felizes vivendo em Portugal.
Apesar das inúmeras dificuldades que os jovens brasileiros enfrentam em Portugal, o poder da criatividade e
o “jeitinho brasileiro” no sentido positivo da expressão, poderão ajudá-los a ultrapassá-las e encontrar um
caminho seguro para transição para a vida adulta, seja lá ou, seja cá.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
O processo migratório promove um sentimento de pertença ao mesmo tempo em que fixa fronteiras,
delimitando o “eu” ou “nós” majoritário, do “outro”, o estrangeiro, o diferente, carrega uma identidade que o
estereotipa, humilha e estigmatiza. O imigrante convive com representações que vinculam os estereótipos às
ideias de discriminação numa perspectiva de desqualificação. É essa identidade, vinculada aos estereótipos
atribuídos aos brasileiros, que os jovens brasileiros que vivem em Portugal carregam, são marcas da sua
origem que constituem barreiras para uma inserção igualitária na sociedade portuguesa.
A identidade não pode ser esquecida, abandonada, perdida, mas pode ser (re)inventada, (re)construída; sendo
assim, é impossível reconstruir a identidade renunciando à anterior, esquecendo ou abandonando aquela que
é a sua verdadeira identidade. Dessa maneira, ao chegar a Portugal os jovens tiveram de recriar relações,
pois parte das suas experiências de vida ficaram para trás e, novas experiências vão sendo criadas e
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recriadas, assim como as suas identidades que também vão sendo construídas e reconstruídas, pois a
identidade vai se definindo com as relações sociais e as múltiplas interações que marcam o contexto
social. Porém, as poucas relações que os jovens conseguem estabelecer com os portugueses são crivadas
por estereótipos e preconceitos, dessa forma, não conseguem criar liames e nem assimilar a forma de ser
jovem, comum aos jovens portugueses.
Desse modo, os jovens brasileiros tendem a juntar-se a outros jovens também brasileiros, pois estão
unidos por um distanciamento do seu país de origem, da sua cultura, da diferente forma de ser jovem no
Brasil. Carregam o sentimento que é no Brasil que seriam mais felizes, pois mesmo se algum dia
conseguirem o status legal serão sempre tratados como estrangeiros. Mas, contraditoriamente sentem-se
duplamente excluídos, pois, já não vivem mais na sociedade brasileira e ainda não foram aceitos e
inseridos na sociedade portuguesa.
Sentem que o imigrante é discriminado, e o brasileiro ainda mais. Carregam o estigma de ser brasileiro e
sob o olhar português o brasileiro é “burro”, preguiçoso, malandro e as mulheres, prostitutas. A vivência
dessas experiências negativas são acompanhadas de um acervo simbólico, de um conjunto de
informações e interpretações que constituem elementos para o processo de (re)construção da identidade.
Os jovens vivem emocionalmente seu trajeto migratório ao reconstruir as imagens de sua vida. Nessa
reconstrução, transparece o sentimento que simbolicamente traz à tona a saudade e a dor de um projeto
deixado para trás; por isso, vivem um presente de vazios, de dificuldades, de conquistas provisórias e
instantâneas e com uma concepção de futuro um tanto em nível imaginário, reconhecem os poucos
recursos disponíveis e desejam transformá-los em algo possível, concreto. É por isso que os jovens na
condição de imigrantes precisam de pertença, inclusão e reconhecimento, como forma de reduzir a
incerteza e os obstáculos e promover uma tranquila passagem para o mundo adulto.
REFERÊNCIAS
Bauman, Zygmunt (2009). A arte da vida. Rio de Janeiro; Zahar.
Dubar, Claude (2006). A crise das identidades: A interpretação de uma mutação. Porto: Afrontamento.
Elias, Norbert; DUNNING, Eric (1992). A busca da excitação. Lisboa: Difel
Goffman, Ervirg (2008). Estigma: notas sobre a manipulação da identidade deteriorada. Rio de Janeiro: LTC.