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6° Encontro da ABRI
Perspectivas sobre o poder em um mundo em definição
A RECONSTRUÇÃO PÓS-BÉLICA DO IRAQUE COMO UM FATOR
DETERMINANTE PARA O FORTALECIMENTO DA INSURGÊNCIA NO PAÍS:
UMA LEITURA CRÍTICA DO PROCESSO.
Autora: Natali Laise Zamboni Hoff (Mestrado em Ciência Política - UFPR)
Área Temática: Segurança Internacional, Estudos Estratégicos e Política de Defesa
Belo Horizonte
25 a 28 de Julho de 2017
RESUMO O artigo analisa as Reformas no Setor de Segurança no processo de reconstrução pós-bélica do Iraque em 2002, após a invasão de uma Coalização Internacional, liderada pelos Estados Unidos. O trabalho observa ainda em que medida a reconstrução do Iraque pode ter corroborado para o fortalecimento da insurgência no país. O estudo está centrado na atuação da Coalitional Provisional Authoriry (CPA) no Iraque nos anos de 2003 e 2004, buscando observar as principais medidas e estratégias tomadas pelo órgão no que concerne ao setor securitário. Essa pesquisa utilizou-se da leitura crítica de fontes primárias e fonts secundárias sobre o processo de state-building do Iraque. O trabalho está dividido em três seções. Na primeira, apresenta-se a organização da CPA e suas principais características. Na segunda seção, aborda-se além abordagem adotada pela CPA para com o Setor de Segurança, também a própria conceptualização do mesmo. Já na terceira seção, apresenta-se a análise dos Ordens Diretivas da CPA relativas ao setor de segurança, buscando compreender como foram construídas e pensadas as suas instituições. Palavras-Chave: Iraque, Setor de Segurança, CPA.
INTRODUÇÃO
Em 20 de março de 2003, os Estados Unidos a frente de uma Coalizão Internacional,
integrada pelo Reino Unido, Austrália, Dinamarca e Polônia, invadiu o Iraque com o objetivo de
derrubar o governo de Saddam Hussein. A fase inicial do conflito se desenvolveu de maneira
rápida, em decorrência da pouca resistência oferecida pelo exército iraquiano aos poderes
invasores. Saddam Hussein acabou sendo destituído em menos de um mês do início do conflito.
Os motivos alegados pelo governo norte-americano para a invasão foram substancialmente a
necessidade de derrubar o regime ditatorial de Saddam Hussein e instaurar uma democracia no
país; a necessidade de remover as armas de destruição em massa que supostamente existiam
no país; e ainda, impedir que a ligação suspeita entre o Iraque e a Al-Qaeda se fortalecesse.
Vários questionamentos foram feitos com relação a essas motivações, sobretudo pelo fato de
que a Organização das Nações Unidas (ONU) já havia desarmando o Iraque e não haviam
evidências suficientes para vincular o regime ba’athista à Al-Qaeda (HILTERMANN, 2007, p.5).
Apesar da facilidade encontrada na campanha militar de invasão, o período pós-conflito
mostrou-se muito mais complexo. A ocupação e a tarefa política de reconstruir as instituições
estatais iraquianas apresentaram inúmeros desafios aos poderes intervenientes, principalmente
com o florescimento da insurgência contrária a presença externa no país. É importante destacar
que com o colapso das estruturas governamentais iraquianas após o fim da guerra, a missão de
reformar o Estado Iraquiano acabou se transformando em um exercício prolongado de
construção de Estado (state-building). A construção de um Estado por poderes internacionais
demanda que a ordem seja reestabelecida após o conflito. E somente depois de estabelecer a
ordem e a segurança, a capacidade administrativa do governo pode ser reconstruída e,
finalmente, o desenvolvimento econômico sustentável implementado (DODGE, 2006). Assim, a
escalada da violência nos momentos imediatos após a guerra e a falta de preparo das forças
ocupantes para responder a ela, acabaram por constituírem-se em dois dos principais problemas
do Iraque durante e após a ocupação.
Tendo isso em conta, esse artigo busca analisar as reformas no setor de segurança
realizadas pela Coalition Provisional Authority (CPA) no período de 2003-2004 e em que medida
isso colaborou para a consolidação de grupos insurgentes no país. A pesquisa será realizada a
partir da análise das ordens emitidas pela CPA relacionadas ao setor de segurança, buscando
apreender quais o impactos das mesmas para o Iraque naquele momento e também na leitura
crítica de fontes secundárias a respeito do processo de reconstrução do Iraque. O artigo está
estruturado em três seções, na primeira apresenta-se a operacionalização da invasão e
ocupação do território iraquiano, evidenciando o papel da CPA nesse momento. Na segunda
seção aborda-se como o setor de segurança foi abordado pela CPA, observando as principais
políticas implementadas. Já na Terceira seção, analisam-se as Ordens emitidas pela CPA
referentes ao setor de segurança no Iraque, elucidando como se deu o processo de reforma e
reconstrução dele no país no período pós-conflito e seus impactos na sociedade iraquiana.
OCUPANDO O IRAQUE: A CPA E A RESPONSABILIDADE DE RECONSTRUÇÃO DO
ESTADO IRAQUIANO
A invasão do Iraque em 2003 e consequente queda do regime ba’athista de Saddam
Hussein gerou um profundo vácuo de poder no Iraque. Esse cenário demandou que as forças
ocupantes assumissem a responsabilidade integral de governar e reconstruir o Estado
iraquiano. É importante destacar que o Iraque foi tratado legalmente em 2003 como uma
nação conquistada, diferentemente de outras intervenções realizadas no cenário internacional
a partir da década de 1990. Esse fato aumentou ainda mais as controvérsias entre os atores
internacionais a respeito dessa operação. As motivações frágeis apresentadas pelo Governo
Bush e a eterna desconfiança de que os interesses geopolíticos e econômicos dos Estados
Unidos no Oriente Médio constituíam as reais intenções americanas no Iraque, faziam com
que não houvesse um consenso internacional referente ao evento. Internamente, o passado
iraquiano, marcado pela ocupação e intervenção1 britânica na década de 1920, favoreceu
ainda mais uma associação negativa da população a presença norte-americana no país. As
justificativas contestáveis apresentadas por George W. Bush para a guerra, sobretudo por não
terem sido encontradas armas de destruição em massa após a invasão, dificultaram ainda
mais a legitimidade dos poderes intervenientes na sociedade iraquiana e corroboraram para
formação de grupos de resistência civil.
O planejamento da guerra e da ocupação do Iraque baseou-se na perspectiva norte-
americana de que seria preciso apenas reformar as instituições iraquianas, implementando a
mudança de um regime autoritário para um governo democrático a partir das estruturas
estatais já existentes. Essa concepção é significante para avaliar uma grande falha no
planejamento e operacionalização da ocupação: a manutenção da ordem no período imediato
pós-conflito. Os policy makers norte-americanos acreditavam que as instituições iraquianas
estariam intactas, podendo ser utilizadas para impor a lei e a ordem no país. No entanto, o
Iraque havia passado por 3 guerras2 em duas décadas e sofrido por 13 anos com as sanções
proveniente do Conselho de Segurança (CS) da ONU, de modo que o Estado encontrava-se
devastado (DODGE, 2006, p.188).
Dentre os tópicos fundamentais de atuação da CPA pode-se citar a ajuda humanitária
e alimentar, a realização da operação de paz visando a segurança da população e do Estado,
estabelecendo uma autoridade provisória e as condições para a transição democrática e
econômica. A reconstrução da infraestrutura iraquiana também era um dos elementos centrais
1 O país já havia sido ocupado pelos britânicos e passado por um processo de state-building na década de 1920. 2 Guerra do Golfo (1990-1990); Guerra Irã-Iraque (1980-1988) e Guerra do Iraque (2003).
para a CPA, uma vez que somente assim o país poderia voltar a se desenvolver e garantir um
ambiente ideal para a consolidação das instituições democráticas (UNITED STATES
GOVERNMENT ACCOUNTABILITY OFFICE, 2003).
Nesse contexto, o Escritório de Reconstrução e Assistência Humanitária (ORHA - Office
for Reconstruction and Humanitarian Assistance) foi criado em 20 de janeiro de 2003 pelo
governo americano. O objetivo pretendido pelo órgão era atuar como uma administração
provisória no Iraque até a criação de um governo civil democraticamente eleito. O tenente-
general do Exército dos Estados Unidos aposentado, Jay Garner, foi nomeado diretor do ORHA.
Com a dissolução do ORHA e a criação da CPA, ele se tornou o primeiro chefe Executivo da
agência. Seu mandato, no entanto, durou apenas de 21 de abril de 2003 até 11 de maio de 2003,
quando Garner foi substituído por L. Paul Bremer.
Bremer herdou do Escritório de Reconstrução e Assistência Humanitária (ORHA), que
tinha sido estruturado na crença de que a administração iraquiana permaneceria em vigor e
qualquer ocupação americana seria de curta duração (DOBBINS et al, 2009, p.XIV). O processo
tornou-se mais longo e custoso e a expectativa inicial de reformar o Estado rapidamente
transformou-se em um processo de state-building3. Para dar conta dessa missão a CPA foi criada
e possuía duas missões simultâneas e por vezes concorrentes. Primero, a CPA deveria dirigir o
país, ocupando o lugar deixado pelo regime de Hussein. Em segundo, a agência era responsável
pela difícil tarefa de (re)construir as instituições iraquianas, de modo que possibilitasse o
autogoverno após o fim da ocupação (PERRY et al, 2015, p.332). É importante ressaltar que em
2003, quando a CPA assumiu o controle do Estado iraquiano, não ficou claro por quanto tempo
ela permaneceria no poder, contudo em novembro desse mesmo ano, é tomada a decisão de
acelerar a transferência de poder. A CPA deveria entregar o poder para um governo provisório
iraquiano até julho de 2004.
A CPA foi construída a partir do zero e todas as relações burocráticas, tiveram de ser
trabalhadas e definidas. Foram estabelecidos quatros setores nos quais a CPA deveria
desenvolver as suas atividades: segurança, serviços essenciais, economia e governança (CPA,
2003). Paul Bremer chegou em Bagdá em maio de 2003 e possuía poderes plenos com relação
a administração da CPA. Sua incumbência era a de governar o Iraque e promover o
desenvolvimento de uma democracia que serviria de modelo para todo o Oriente Médio. Bremer
poderia dispor de todos os bens e funcionários do Estado iraquiano e possuía autoridade
executiva, legislativa e judicial. As instruções que recebia de Washington costumavam ser
3 O governo norte-americano denominava os esforços de reconstrução do Iraque de nation-building. Porém, considerando que nation-building prevê ações e políticas que articulem elementos culturais, sociais e linguísticos, capazes de fomentar uma identidade coletiva que não precisa estar contida em Estado, enquanto que o state-building caracteriza-se como um processo mais limitado, focado na reconstrução das instituições burocráticas que
compõem o Estado, sem necessariamente buscar consolidar uma identidade comum. É possível concluir que os esforços americanos no Iraque configuraram-se com um processo de state-buildingI, voltado para as instituições estatais.
bastante gerais e, em sua maioria, orais (DOBBINS et al, 2009, p.XIII). A CPA trabalhava de
maneira associativa com outras agências no terreno, a principal delas era a Força-Tarefa
Combinada 7 (Combined Joint Task Force 7 - CJTF-7), braço militar norte-americano no Iraque.
É ao lado da CJTF-7 que a CPA atua pela reconstrução do setor de segurança iraquiano.
O primeiro documento de regulação que estabeleceu a CPA e suas responsabilidades foi
promulgado e assinado por Bremer em 16 de maio de 20034. O documento definia que a CPA
exerceria temporariamente os poderes de governo no Iraque, buscando restaurar as condições
de segurança e estabilidade, objetivando a criação de um ambiente estável, no qual o povo
iraquiano pudesse decidir livremente o seu futuro. A regulação também incluía os esforços para
a reconstrução das instituições nacionais e locais, de modo que facilitasse a recuperação
econômica e política do Iraque. A autoridade descrita na regulação seria exercida pelo
administrador da CPA, isto é, Paul Bremer. Nesse mesmo documento definiu-se ainda que
Bremer governaria através da emissão de regulações e ordens diretivas, às quais teriam força
de lei e sua validade garantida até a instituição de um governo democrático no Iraque (CPA,
2003, p.1-2)
A primeira política implementada pela administração norte-americana no Iraque envolveu
a De-ba’athification das estruturas políticas e da sociedade civil iraquiana, estando contida nas
Ordens nº 1, 4 e 5, nos Memorandos nº 1 e 7, todos da CPA. A Ordem n° 15, que instituiu a a
De-ba’athification do Estado e da sociedade, foi planejada e implementada com o objetivo de
eliminar as estruturas do partido e remover a sua liderança de cargos de autoridade, garantindo
que eles não retornassem ao poder. Para isso, os indivíduos que ocupavam posições nas três
primeiras camadas administrativas de todos os ministérios do governo nacional, corporações
afiliadas e outras instituições governamentais (por exemplo, universidades e hospitais) seriam
entrevistados para averiguar uma possível afiliação com o Partido Ba'ath e sujeitos a
investigação por conduta criminal e risco para a segurança (CPA, 2003, p.1-2). Essa ordem
incluía até 85.000 pessoas que supostamente eram fiéis ao regime de Saddam, eliminando
efetivamente a liderança, mas junto com ela a capacidade técnica superior para universidades,
hospitais, transportes, eletricidade e comunicações (PFIFFNER, 2010, p.78-79). Dessa forma,
Ao dissolver a maior parte da liderança burocrática iraquiana, Bremer ignorou a visão de Max Weber existente há mais de um século: "Um sistema de funcionários racionalmente ordenados [a burocracia] continua funcionando sem problemas depois que o inimigo ocupou a área; Apenas precisando mudar os altos funcionários. O corpo burocrático de funcionários continua a operar porque é de interesse vital de todos os envolvidos, inclusive acima do inimigo ". Nesse caso, os americanos ocupantes não agiram em seu próprio interesse (PFIFFNER, 2010, p.79)6
4 Coalition Provisional Authority Regulation Number 1 cpa/reg/16 may 2003/1. 5 De-Ba`athification of Iraqi Society cpa/ord/16 may 2003/01. 6 Tradução livre: “In disbanding most of the leadership of the Iraqi bureaucracy, Bremer ignored Max Weber’s insight from a century ago: ‘A rationally ordered system of officials [the bureaucracy] continues to function smoothly after the enemy has occupied the area; he merely needs to change the top officials. This body of officials continues to
Portanto, essa medida minou a disponibilidade de funcionários capacitados para atuar
nos mais diversos setores da reconstrução pós-conflito e ainda alienou milhares de pessoas dos
processos decisórios do Estado. Enquanto Garner havia planejado uma abordagem gradual para
a de-Baathification, a abordagem de Bremer era mais abrangente e draconiana (PFIFFNER,
2010, p.78). Lembrando que o partido Ba’ath estava no poder desde a década de 1960 no Iraque
e filiar-se ao partido era uma das poucas maneiras de ascender socialmente no país, logo,
poucos eram os funcionários especializados iraquianos que não estavam vinculados ao regime.
(PFIFFNER, 2010, p.80).
A centralização de poder na CPA fez com que a reconstrução do Iraque se
caracterizasse por possuir poucos canais de diálogo com a população local. A abordagem
concedida pelos Estados Unidos não priorizou a reconciliação entre os grupos étnicos e
sectários presentes no Iraque. Paul Bremer e sua equipe deram privilégios aos grupos
minoritários durante o regime de Saddam, como os Curdos e os Xiitas, deixando a maioria
sunita à margem dos processos decisórios. Hashim destaca que a identidade do país foi
construída, com a ajuda dos britânicos, pela minoria sunita. Muitos desses indivíduos se
beneficiaram do Estado com características neo-patrimoniais7 instituído pelo partido Ba’ath e,
embora se ressentissem do autoritarismo de Saddam, sentiram a perda de seus privilégios.
Os sunitas voltaram a tentar desempenhar um papel político no Iraque pós-Saddam, como é
evidente devido à sua participação no Conselho de Governadores, criado em julho de 2003.
Porém, o que se pode observar no Iraque foi o redirecionamento dos recursos políticos para
longe dos grupos sunitas (HASHIM, 2003, p.3-4).
A elite exilada durante os anos de domínio do partido Ba’ath se converteu no principal
canal mediador entre a população e a alta gerência da CPA, no entanto esse grupo não
representava os interesses da maioria dos iraquianos, dificultando ainda mais a aproximação
entre os indivíduos e o governo provisório. Assim, a CPA, com assessoria do time da ONU
em Bagdá, criou o Conselho de Governo Iraquiano (IGC) em julho de 2003. Bremer definiu a
composição do ICG após longas negociações com sete ex-exilados (DODGE, 2006, p.196).
O órgão tinha a função deliberativa e de interlocução entre a sociedade iraquiana e a CPA e
sua importância foi aumentando ao longo dos meses (PERRY et al, 2015). O ICG era um
corpo multiétnico, multisectário, dominado pelos curdos. A maior parte dos membros do
conselho eram líderes exilados durante o regime do partido Ba’ath. Os árabes sunitas
reclamaram muito a sua sub-representação no ICG. Para os sunitas o conselho foi organizado
de maneira étnico cultural (HASHIM, 2003, p.4).
operate because it is to the vital interest of everyone concerned, including above all the enemy’. In this case, the occupying Americans did not act in their own best interests;” 7 Um estado neo-patrimonial caracteriza-se por uma ampla rede de patrocínio (bens materiais, dinheiro e influência) que oferece aos seus apoiadores em troca da lealdade (HASHIM, 2003).
Em novembro de 2003, a CPA em conjunto com o ICG emitiu um acordo que previa o
fim do mandato da CPA até junho de 2004. Ficou acordado que um governo interino iraquiano
assumiria controle do Estado após a saída da CPA. Esse acordo também contemplava a
elaboração da lei de transição (TAL), uma espécie de constituição provisória. A TAL
estabeleceria as estruturas do governo interino e os processos relativos a seleção de um
governo permanente através de eleições diretas até fim de 2005. Essa aceleração do
processo de transição se deu em grande medida por pressões externas e internas. No
entanto, também denotou que os Estados Unidos estavam diminuindo o seu nível de
comprometimento com o Iraque.
Como pode-se perceber a reconstrução do Iraque se deu através de um processo vertical
e com uma participação bastante limitada da população iraquiana. Na próxima seção
analisaremos a abordagem concedida por Paul Bremer e sua equipe às Reformas no Setor de
segurança Iraque, observando que o tom adotado pelo órgão seguiu essa linha geral no modo
de administração.
REFORMAS DO SETOR DE SEGURANÇA E O IRAQUE PÓS-CONFLITO
Muitas instituições estavam envolvidas no planejamento e implementação da reforma do
setor de segurança no Iraque, dentre elas podemos destacar o CENTCOM (Central Command),
a CJTF-7, a CPA e a Agência Central de Inteligência (CIA) dos EUA. A CPA e a CJTF-7 eram as
principais condutoras do processo e embora fossem organizações paralelas trabalhavam em
parceria na reconstrução do setor, compartilhando a responsabilidade. A CPA atuou na criação
e supervisão de políticas que visavam a reforma institucional, enquanto a CJTF-7 foi responsável
pela capacitação da Forças Armadas Iraquianas e da polícia iraquiana. Já a CIA possuía a difícil
tarefa de reconstruir a inteligência iraquiana (RATHMELL et al., 2005, p.15-20). As relações entre
os grupos variavam, havendo falhas de comunicação e no compartilhamento de informações,
configurando alguns pontos de divergências, sobretudo entre os braços militares e o setor civil
da ocupação (PERRY et al, 2015, p.332).
Os maiores desafios de segurança enfrentados pela coalizão logo após ocupar o Iraque
foram a missão de reconstruir as forças de segurança iraquianas (Iraqi Security Forces – ISF) e
reconstruir e reformar as instituições do setor de segurança iraquiano (RATHMELL et al., 2005,
p.01). Esses desafios se concretizaram através de três situações práticas nos momentos iniciais
da ocupação, sendo elas o enfrentamento a insurgência iraquiana, a capacitação de forças
militares e o policiamento das instituições de defesa e segurança pública. Como a situação de
segurança no Iraque se deteriorou muito rapidamente após o conflito, outra função importante
era o acompanhamento e suporte às atividades de reconstrução da infraestrutura iraquiana. A
extensão desses desdobramentos pós-conflitos não havia sido prevista pelo planejamento
americano para o Iraque, e tanto a CPA, quanto a CJTF-7 tiveram de responder rapidamente a
essas questões, buscando estabilizar o setor securitário no país, com o objetivo de assegurar o
state-building. Percebe-se que a Reforma do Setor de Segurança (RSS) acabou sendo um
elemento edificador de todo o esforço para reconstruir as instituições iraquianas. Para que a
ocupação fosse bem sucedida na implementação do seu projeto de Estado, era necessário a
pacificação da sociedade, garantido a lei e a ordem, de modo que a governança democrática
pudesse começar a ser desenvolvida.
Como já foi destacado nesse artigo os Estados Unidos optaram por uma estratégia de
reconstrução que priorizava determinados grupos em detrimentos de outros Iraque. Esse fato fez
com que as forças de ocupação tivessem um relacionamento complicado com a parte sunita da
população iraquiana, base da insurgência no momento imediato pós conflito. As respostas
sunitas variaram do pragmatismo, hostilidade a uma resistência passiva. Os grupos insurgentes
conduziram os EUA a um pequeno e vicioso conflito de baixa intensidade no Iraque. Essa
dinâmica tomou um número significativo de vidas humanas, o ritmo da reconstrução no Iraque e
a credibilidade do governo Bush. É preciso ressaltar que, segundo Hashim, essa insurgência foi
uma surpresa para os norte-americanos e suas motivações não se amparavam em defender o
regime de Saddam, mas sim, em opor-se às forças de ocupação. Logo, a hostilidade sunita
relaciona-se com a maneira como os Estados Unidos se aproximaram dessa comunidade
(HASHIM, 2003, p.4). A imprevisibilidade da organização da insurgência armada e a falta de
políticas capazes de atender às demandas desses grupos impactaram a forma como o setor de
segurança foi abordado pela CPA.
A Reforma do Setor de Segurança (RSS) enquanto um conceito é cada vez mais
importante no planejamento dos processos de (re)construção de Estados, mostrando-se como
um elemento central para a restauração da autoridade estatal em contextos pós-conflitos
(CHAPPUS; HÄNGGI, 2013, p.168). Essa significância advém do argumento de que um setor de
segurança ineficaz converte-se em obstáculo para o desenvolvimento sustentável de um país,
para a consolidação democrática de suas instituições e para o alcance da paz doméstica e
internacional. O setor de segurança inclui todas as estruturas de provisão, gerenciamento e
supervisão da segurança interna e externa. Dessa forma, as RSS abrangem o Estado e a
população, representando uma ruptura com as visões convencionais de segurança (CHAPPUS;
HÄNGGI, 2013, p.168). Ressaltando que o state-building é um processo complexo, que requer
a articulação de múltiplos fatores, incluindo a centralização do poder coercitivo e a divisão do
poder entre centro e periferia, em situações pós-conflito, esse cenário é ainda mais problemático,
envolvendo muitos atores e tarefas diversas em um ambiente instável e passível de retomada
da violência (PAPAGIANNI, 2007, p.256). Logo, as reformas no setor de segurança são
imprescindíveis para que os poderes intervenientes criem um ambiente estável, sendo entendido
como a base para as demais reformas.
Dodge define que é essencial para a consolidação de um projeto de state-building a
imposição da ordem, para então avançar para uma administração focada na capacitação
institucional (DODGE, 2006). A habilidade do Estado para impor ordem à sua população e
monopolizar os meios de violência coletiva, está no cerne de qualquer definição de capacidade
estatal e avaliação da construção do Estado. Sendo assim, é a partir da natureza e qualidade da
plataforma de segurança que emergem todas as outras tentativas de construção do estado. A
forma como a ordem foi imposta ao Iraque, moldou profundamente a interação, ou mais
precisamente a falta dela, entre a população e as instituições incipientes do estado e, em última
instância, desempenhou o papel fundamental nas falhas da construção do estado no Iraque
(DODGE, 2006, p.191).
Assim, as reformas do setor de segurança visam mais do que a restauração do
monopólio legítimo do uso da força pelo Estado, mas a criação das condições necessárias para
que o novo governo tenha capacidades de fornecer segurança a sua população de forma efetiva.
Embora uma grande variedade de intervenções e programas possam servir a este objetivo geral,
em termos práticos, a natureza da reforma será determinada pelo contexto ao qual está inserida
e pelos interesses dos atores intervenientes naquele processo de state-building. Não havendo
um modelo comum para as reformas (CHAPPUS; HÄNGGI, 2013, p.171).
Cada país é um caso em especial e as reformas devem ser promovidas de acordos com
as necessidades e particularidades do contexto. Porém, existe uma tendência no cenário
internacional em dividir os problemas enfrentados pelos países intervindos em três categorias
relacionadas ao objetivo geral da agenda de reforma. Estes são o contexto do desenvolvimento
socioeconômico, da democratização e da consolidação da paz (pós-conflito) (CHAPPUS;
HÄNGGI, 2013). Tendo isso em conta, passaremos agora para a análise das reformas realizadas
pela CPA no setor de segurança no Iraque, buscando investigar em que medida as estratégias
adotas possibilitaram um ambiente ideal para os esforços de reconstrução no país.
Em março de 2003, após a rápida vitória da coalizão que removeu o regime de Saddam
Hussein, a superioridade militar parecia incontestável e a estabilização do terreno deveria ser
uma tarefa simples, no entanto, essa impressão se dissipou rapidamente. Nas semanas
seguintes da invasão, a violência, o surto de criminalidade e as pilhagens se alastraram pelo país
e os militares norte-americanos se mostraram incapazes de manter a ordem no Iraque,
aumentando a instabilidade securitária. Dodge ressalta que estudos sobre operações de
manutenção da paz dizem que o vácuo de segurança é enfrentado em praticamente todas as
operações de transição de regime, sendo que a imposição da lei e da ordem entre as primeiras
seis a doze semanas é crucial para a credibilidade e legitimidade do ocupante (DODGE, 2006).
A falha da CPA e demais atores no terreno em estabilizar o Iraque e reestabelecer a ordem no
território foi fundamental para a consolidação e crescimento de grupos insurgentes.
A RSS no Iraque buscou abranger a transformação do sistema de segurança de uma
maneira convergente com as normas democráticas que estavam sendo instauradas no país e
princípios de boa governança, incorporando parte da premissa liberal da reconstrução da
segurança. Assim, o sistema de segurança deveria ser repensado afim de colaborar com a
transição política de um Estado autoritário para um regime democrático. Como já foi enunciado,
a RSS deve se preocupar com a estabilidade do Estado e também com o bem estar de sua
população. O desenvolvimento econômico e criação de instituições capazes de garantir a
estabilidade securitária são indissociáveis, de modo que os problemas das população tem suas
origens na forma como esses sistemas são constituídos (RATHMELL et al., 2005, p.7).
Inicialmente Bremer optou pela dissolução do exército nacional iraquiano através da
Ordem N° 28. As forças de segurança dissolvidas pela CPA incluíam 385.000 soldados nas forças
armadas, 285.000 de funcionários no Ministério do Interior (polícia) e 50.000 em unidades de
segurança presidenciais. Essa medida deixou milhares de pessoas sem trabalho, criando um
grupo significante de cidadãos hostis a ocupação americana (PFIFFNER, 2010, p.80). Essa
abordagem não apresentou resultados positivos, o novo exército iraquiano levou vários anos
para se configurar como uma instituição confiável e competente. Já a força policial que não havia
sido dissolvida teve um desenvolvimento ainda mais lento (PERRY et al, 2015, p.XXII). Esses
erros estratégicos converteram-se em fontes de instabilidade nos primeiros anos de ocupação,
ampliando o vácuo de segurança pós-conflito. Perry et al afirma ainda que essa falha não está
apenas na retenção da polícia e dissolução do exército, mas sim na falta de reforma e
reconstrução dessas forças em um tempo hábil.
RECONSTRUINDO O SETOR DE SEGURANÇA NO IRAQUE: DAS ORDENS A
INSURGÊNCIA
Nesta seção apresentaremos os esforços da CPA no setor de segurança no Iraque,
buscando investigar como a agência abordou as principais reformas e seus efeitos imediatos
para o projeto que estava sendo implementado no país. Para isso, as Ordens diretivas
relacionadas à Reformas do Setor de Segurança emitidas pela CPA serão analisadas
qualitativamente, de modo a investigar em que medida a sua atuação pode ser considerada um
fator determinante para o fortalecimento da insurgência no período pós conflito.
Antes de passar para a análise das ordens é importante destacar que a resistência civil
iraquiana se intensificou no decorrer da permanência da CPA à frente da administração do
Iraque. Quando a insurgência surgiu em 2003 houve pouca preocupação da CPA com a questão
(HASHIM, 2003, p.2). Porém, de acordo com relatórios da ONU, a situação de segurança no
Iraque começou a deteriorar-se em junho de 2003. Os relatórios do coordenador humanitário da
8 Order Number 2: Dissolution of Entities (23 May 2003).
ONU para o Iraque mostram que os ataques contra as organizações internacionais e da força
multinacional começaram a aumentar durante junho e julho de 2003. Segundo o Secretário Geral
da ONU, em agosto de 2003 a situação geral de segurança já havia se deteriorado quase que
completamente. Foi o mês marcado pelos bombardeios da embaixada da Jordânia no dia 7, e
da sede da ONU em Bagdá no dia 19. Em 2004, essa situação de insegurança e tensão se
intensificou no Iraque. De acordo com o Iraq Body Count, o número de civis mortos durante a
gestão da CPA cresceu quase que exponencialmente, tendo pouco mais de 500 civis mortos em
maio de 2003, para mais de 1.300 em abril de 2004 (CORDESMAN, 2004, p.13). Hashim
descreve a insurgência iraquiana como caracterizada por ser de baixo-nível, descentralizada e
localizada, não havendo necessariamente uma coordenação entre os diferentes grupos
insurgentes (HASHIM, 2005, p.347).
Como já foi citado anteriormente as duas primeiras Ordens da CPA instituíram a
de’baathification do Estado e sociedade iraquianos (Ordem n° 1) e a dissolução das forças
armadas (Ordem n° 2). Essas medidas tornaram-se a base para a maneira como o processo foi
conduzido, uma vez que tiveram profundos impactos na sociedade iraquiana e acabaram por
alimentar a insurgência. Milhares de iraquianos perderam os seus postos de trabalho a partir
dessas novas regulações e não poderiam mais se sustentar. Aliado a isso, está ainda o
crescimento da animosidade da sociedade civil com a ocupação em reação às medidas
implementadas. Dessa forma, além de minar a infraestrutura necessária para a atividade social
e econômica do Estado, a CPA também fortaleceu o posicionamento de alguns grupos
insurgentes e contrários a sua permanência no Iraque. A dissolução das forças armadas e a
inabilidade da CPA para reestruturá-las em tempo hábil, fizeram com que não houvesse
segurança suficiente para a consolidação de uma boa governança no período pós conflito. A
partir disso a insurgência se fortaleceu, se aproveitando da instabilidade securitária e social no
Iraque e absorvendo milhares de iraquianos insatisfeitos com a ocupação e suas medidas
arbitrárias (PFIFFNER, 2010, p.76).
A partir da Ordem n° 2 e a dissolução das forças armadas, a constituição de um novo
corpo militar, capaz de responder aos problemas de segurança e garantir a estabilidade no
Iraque, passou a ser uma preocupação central para a CPA e para a CTJF-7. A dissolução das
forças iraquianas foi implantada no dia 23 de maio, dissolvendo o Exército, a Força Aérea, a
Marinha, a Força de Defesa Aérea e outros serviços militares regulares iraquianos. Encerrou as
atividades ainda da Guarda Republicana, da Guarda Republicana Especial, da Diretório de
Inteligência Militar, da Força Al Quds, do Quwat al Tawair, Saddam Fedayeen, da Milícia do
Partido Ba'ath e outras entidades. A Seção 5 dessa ordem definia que a criação de um novo
exército iraquiano seria o primeiro passo para a capacitação nacional de autodefesa no Iraque
livre. Assim, em agosto de 2003 é aplicada a Ordem n° 229 para a criação do novo exército
iraquiano e a Ordem n° 2310 que apresentava o novo código de disciplina militar (CPA, 2003,
p.3).
Em setembro de 2003 a CPA estabeleceu com a Ordem n° 2811 o Corpo de Defesa Civil
do Iraque, uma agência temporária de segurança emergencial para o país. O Corpo de Defesa
Civil era composto por iraquianos e visava complementar as operações realizadas pelas forças
militares da Coalizão no Iraque, sobretudo para sanar a necessidade urgente de combater os
grupos organizados e indivíduos que faziam uso da violência no Iraque. O órgão era autorizado
a desempenhar funções administrativas, incluindo o patrulhamento de áreas urbanas e rurais,
operações de busca e apreensão de armas ilegais, serviços de resposta a desastres e de busca
e resgate, prestação de apoio a missões humanitárias, realização de patrulhas conjuntas com as
Forças da Coalizão e outras atividades destinadas a construir um relacionamento amistoso com
as forças de ocupação (CPA, 2003). A criação dessa entidade se deu sobretudo pela dificuldade
que as tropas da coalizão vinham enfrentando no Iraque, sofrendo com múltiplos ataques de
grupos insurgentes.
Outra preocupação imediata do mandato americano no Iraque foi o controle da armas no
pós guerra e a Ordem n° 312 voltou-se para essa necessidade. O documento estabelecia que o
controle de armamentos era necessário para a criação de um ambiente seguro no Iraque.
Buscava regular a posse de armas leves por parte da população e proibir a posse de armas
pesas. Essa ordem não alcançou os resultados esperados, sobretudo quando observamos o
crescimento da resistência armada no Iraque nos meses iniciais de ocupação (CPA, 2003)
Com relação à Defesa e a Segurança Nacional a CPA demorou para construir as
instituições de segurança nacional para o Iraque e mesmo com a colaboração do ICG foram
feitos progressos limitados em vias de institucionalizar as estruturas de coordenação de nível
inferior. (RETHMELL, 2005, p.25-26). As Ordens 67, 68 e 6913 estabeleceram respectivamente
o Ministério da Defesa em março de 2004 e o Comitê Ministerial para a Segurança Nacional e a
Delegação para criar a Inteligência Nacional em abril desse mesmo ano. A responsabilidade
sobre as Forças Armadas Iraquianas foi transferida para o novo Ministério de Defesa (MoD), que
apesar de manter o mesmo nome do regime anterior, deveria ser operado segundo os princípios
democráticos que estavam sendo instaurados no Iraque. Sua função imediata segundo o
documento era gerir os órgãos de defesa já criados (polícia, exército, políticas de segurança) em
vista de buscar a estabilidade do Iraque, contudo não deveria deixar de dar suporte ás forças da
9 Order 22: Creation of a New Iraqi Army (7 August 2003) 10 Order 23: Creation of a Code of Military Discipline for the New Iraqi Army (7 August 2003) 11 Order 28: Establishment of the Iraqi Civil Defense Corps (3 September 2003) 12 Order 3: Weapons Control (23 May 2003); Order 3 (Revised) (Amended): Weapons Control (31 December 2003 13 Order 67: Ministry of Defence (21 March 2004); Order 68: Ministerial Committee for National Security (4 April 2004); Order 69: Delegation of Authority to Establish the Iraqi National Intelligence Service (1 April 2004)
coalizão e às ordens da CPA. Já o Comitê Ministerial para a Segurança Nacional foi criado para
coordenar às políticas nacionais ao longo dos ministérios com os problemas de segurança. A
partir da autorização do Conselho de Governantes foi instituída a Inteligência Nacional Iraquiana
(INIS - Iraqi National Intelligence Service).
Em junho de 2004 a CPA emitiu a Ordem n° 9114, na qual tentava responder ao problema
das milícias no Iraque, que haviam se proliferado e fortalecido após a queda do regime de
Saddam. Nessa ordem a CPA concedeu às milícias de 9 partidos15 que concordaram com os
planos de transição e reintegração o direito de continuarem as suas operações de forma
limitadas. O documento denominou esses grupos como “elementos residuais” e apresentou uma
abordagem que permitia que esses elementos residuais executassem funções de segurança,
mas apenas com a autorização e sob o comando do MoD. Os grupos que falhassem em cumprir
com os planos e condições estabelecidos pelos poderes de lei iraquianos perderiam os seu
status como elementos residuais e seriam considerados como milícias ilegais. Nem todas as
milícias aceitaram seguir as definições do documento da CPA e um número considerável
continuou operando ilegalmente (GAO REPORT, 2004, p.67). O plano da CPA e o acordo com
os partidos foi coordenado com o MoD, o Ministério do Interior e o Comitê Ministerial para a
Segurança Nacional. Devido a criação do plano já no fim do mandato da CPA, o Governo Interino
ficou responsável por leva-lo adiante. O que se pode observar é que o novo governo do Iraque
falhou em implementá-lo. Havia muita resistência interna com relação aos esforços para integrar
as milícias ao setor de segurança do Estado. Os desacordos entre ambas as parte fez com que
a Ordem n° 91 acabasse morta, mostrando a fragilidade do Governo Interino frente ás maiores
milícias no país (CORDESMAN; DAVIS, 2008, 82-83).
Dodge argumenta que as dificuldades para se estabelecer a lei e a ordem após a
guerra no Iraque têm as suas raízes no tipo de campanha esperada pelos EUA e o tipo de
resistência que supunham encontrar. Os planos dos EUA subestimaram a resistência à
invasão, não apenas pelos regimentos de elite do Iraque, Pela Guarda Republicana Especial,
pelo exército dominante, mas sobretudo pelas forças irregulares iraquianas, composta por
combatentes árabes, que vieram defender o regime da invasão dos Estados Unidos.
(DODGE, 2005, p.5). Nesse mesmo livro, Dodge ressaltou que a ocupação deixou como
legado para o novo governo uma insurgência estimada entre 20.000 e 50.000 combatentes,
organizados em 50 cédulas independentes e com uma coordenação difusa entre elas. Em
2005, Dodge já enfatizava que o governo iraquiano não possuiria as capacidades necessárias
14 Order 91: Regulation of Armed Forces and Militias Within Iraq (2 June 2004) 15 Os partidos eram: Kurdistan Democratic Party (KDP); Patriotic Union of the Kurdistan (PUK); Iraqi Islamic Party, Supreme Council of the Islamic Revolution in Iraq/Badr Organization; Iraqi National Accord; Iraqi National Congress;
Iraqi Hezbollah; Iraqi Comunist Party e Islamic Al-Da’wa Party.
para derrotar a insurgência e estabelecer um poder global no território iraquiano. (DODGE,
2005, p.15).
Assim, a Coalizão Internacional não conseguiu estabilizar o Iraque no momento pós-
conflito, de modo que a resistência civil cresceu muito no primeiro ano de ocupação. As
políticas adotadas pela CPA tão pouco conseguiram responder aos desafios securitários que
dominaram o Iraque. Esse fato acabou comprometendo em grande medida a reconstrução
das instituições governamentais e a instauração da governança democrática. Tanto o
Governo Interino, como o Governo eleito em 2005 não possuíam capacidades suficientes para
lidar com o vácuo securitário deixado pela CPA e a violência no Iraque acabou retomando
grande parte do país.
CONCLUSÃO
Esse artigo apresentou os principais esforços feitos pela CPA para reformar e
reconstruir o setor de segurança iraquiano no período em que governou o país. Como foi
observado, houve uma grande centralização de poder na CPA, isso fez com que o órgão em
muitos casos não agisse de acordo com as reais demandas da sociedade iraquiana. A
abordagem utilizada pela agência acabou marginalizando a comunidade sunita dos processos
decisórios referente à reconstrução do Iraque. Esse fato contribuiu a insurgência fosse
formada sobretudo por grupos sunitas. Esses grupos não reivindicavam a volta de Saddam,
mas protestavam contra a presença estrangeira no Iraque e a falta de representatividade
sunita nas instituições de reconstrução. Os Estados Unidos não previram em seu
planejamento a conformação desses grupos, de modo que as forças de ocupação tiveram
muita dificuldade em responder a insurgência e aos desafios propostos por ela.
As duas primeiras ordens emitidas instauraram a de-ba’athfication do Estado e
sociedade iraquiana e a dissolução das forças armadas. Essas políticas acabaram por se
converter na base dos problemas securitários enfrentados pela CPA na reconstrução
iraquiana. A severidade da Ordem n° 1 afastou do serviço público um número significativo de
iraquianos que haviam tido algum tipo de ligação ao partido Ba’th, dificultando o seguimento
dos planos de reconstrução das instituições. Já a Ordem n° 2 acarretou a dissolução das
entidades de segurança iraquianas em um momento de extrema vulnerabilidade securitária.
Ambas as ordens impactaram a população iraquiana de maneira direta, influindo em seu
cotidiano e organização social. A de-ba’athification foi percebida como muito severa e
fortemente criticada por analistas de relações internacionais. Já a dissolução das entidades
de segurança iraquianas corroborou para a formação de um vácuo de segurança no Iraque.
Hashim observou que as origens e motivações da insurgência iraquiana estavam em
questões materiais, não materiais e políticas ocasionadas pela nova situação sócio-política
iraquiana. O colapso dos privilégios dos árabes-sunitas foi um fator importante para a
formação da insurgência. O autor destaca também que a invasão levou ao fim o Estado que
a comunidade sunita havia idealizado e construído, afetando assim a sua identidade. E para
ampliar a percepção de exclusão política por parte dos sunitas, as políticas adotadas pela
administração de Bush privilegiavam as elites curdas e xiitas na reconstrução do Iraque
(HASHIM, 2005, p.345-346). Esse cenário, aliado a incapacidade da CPA em criar instituições
de segurança em tempo hábil, acabou por possibilitar o fortalecimento de grupos contrários
aos poderes ocupantes. Hashim aponta que os Estados Unidos não possuíam uma imagem
precisa e bem elaborada sobre os grupos insurgente. A ausência de uma imagem nacional
integrada a respeito desses grupos e suas ações dificultou o trabalho da CPA e do exército
americano (HASHIM, 2003, p.3). E essa ausência reflete a inexistência de instituições
capazes de regular e controlar o terreno no momento pós-conflito.
Por mais que no setor de segurança, assim como no restante do país, a CPA optou
por criar novas instituições, amparadas nos princípios democráticos de boa governança, a
falta de representatividade e legitimidade da entidade perante determinados grupos da
população iraquiana, dificultou a instauração de instituições de seguranças efetivas e capazes
de responder aos desafios que se apresentaram. O objetivo principal era estabelecer as
condições necessárias para que a democracia pudesse proliferar no Iraque. Porém, a ordem
e a segurança iraquianas se deterioram muito rapidamente e as novas instituições não foram
criadas na velocidade necessária para dar conta da estabilização do Iraque no pós guerra.
Dessa maneira, grupos insurgentes, amparados em velhos sectarismos e divergências
étnicas acabaram ganhando espaço e força no território iraquiano, dificultando a estabilidade
das instituições recém criadas e a boa governança estatal.
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Ordens:
Order 1: De-Ba‟athification of Iraqi Society (16 May 2003)
Order 2: Dissolution of Entities (23 May 2003)
Order 5: Establishment of the Iraqi De-Ba‟athification Council (25 May 2003)
Order 22: Creation of a New Iraqi Army (7 August 2005)
Order 23: Creation of a Code of Military Discipline for the New Iraqi Army (7 August 2003)
Order 28: Establishment of the Iraqi Civil Defense Corps (3 September 2003)
Order 42: Creation of the Defense Support Agency (19 September 2003)
Order 67: Ministry of Defence (21 March 2004)
Order 68: Ministerial Committee for National Security (4 April 2004)
Order 69: Delegation of Authority to Establish the Iraqi National Intelligence Service (1 April
2004)
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