A Reinvenção Do Detetive Em Tempos Pós-utópicos.

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Marta Maria Rodiguez Nebias RESUMO:Este artigo objetiva analisar a figura do detetive na narrativa brasileira contemporânea, mais especificamente, dos personagens Mandrake e Espinosa. Foram selecionados como corpus dois romances policiais: A grande arte, de Rubem Fonseca e Perseguido, de Luiz Alfredo Garcia-Roza, tendo por base o termo pós-utópico, criado por Haroldo de Campos para definir os tempos atuais.PALAVRAS-CHAVE: Detetive. Pós-utópico. Reescritura.

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  • A REINVENO DO DETETIVE EM TEMPOS PS-UTPICOS.

    Marta Maria Rodiguez Nebias

    RESUMO:Este artigo objetiva analisar a figura do detetive na narrativa brasileira contempornea, mais especificamente, dospersonagens Mandrake e Espinosa. Foram selecionados como corpus dois romances policiais: A grande arte, deRubem Fonseca e Perseguido, de Luiz Alfredo Garcia-Roza, tendo por base o termo ps-utpico, criado por Haroldode Campos para definir os tempos atuais.

    PALAVRAS-CHAVE: Detetive. Ps-utpico. Reescritura.

    Uma fico no um problema, um enigma. Um problema pede uma soluo,

    um enigma no tem soluo. Luiz Alfredo Garcia-Roza

    A fico brasileira atual marcada por uma pluralidade de vertentes que convivem

    pacificamente e podemos considerar a narrativa policial uma das mais produtivas. Porm,

    importante ressaltar que esta precisou superar a rejeio da crtica, que a via como marginal, para

    que enfim encontrasse seu reconhecimento, o que ocorreu, entre ns, por volta de 1980, quando

    passou a servir de espao para discusses tericas sobre a prpria literatura, atendendo, dessa

    forma, a um leitor mais especializado sem deixar de atender ao leitor comum, procura de puro

    entretenimento. Esse duplo alcance da leitura, caracterstico da fico contempornea, representa

    uma mudana da relao do escritor com o mercado editorial, em que h a preocupao de

    produzir uma obra de qualidade, mas que tambm agrade ao mercado. Anteriormente, o que

    predominava era o pensamento modernista de que uma obra, para ter qualidade, no deveria ser

    popular.

    Alm da diversidade, a fico atual marcada pela releitura dos modelos e,

    consequentemente, sua reescritura. Esta aparece claramente na narrativa policial, com a

    reinveno do detetive, que passa a ser mais humanizado, mais de acordo com o contexto social

    atual, em que no h mais certezas e a verdade relativizada. Porm, antes de tratarmos da

    literatura policial tal como se apresenta entre ns, importante que analisemos os seus

    primrdios.

    Os estudiosos consideram o conto The murders in the Rue Morgue, de Edgar Allan Poe,

    publicado em 1841, sob a forma de folhetim, a primeira narrativa policial moderna, sendo o

    personagem Dupin, com sua mente privilegiada e sua infalibilidade, o prottipo do detetive

  • moderno. O romance policial surge, portanto, na sociedade europeia do sculo XIX, em que

    imperava o pensamento cientificista e a crena na racionalidade do mundo. Assim, com Edgar

    Allan Poe nasceu a escola policial clssica, o romance de enigma, que seria representado

    posteriormente por outros escritores, como Conan Doyle e Agatha Christie, com seus

    memorveis personagens Sherlock Holmes e Hercule Poirot, verdadeiras mquinas de pensar

    capazes de, atravs de uma anlise fria e meticulosa dos fatos, decifrar os mais complicados

    enigmas.

    O objetivo principal do romance de enigma, na poca em que surgiu, seria o de

    estimular o raciocnio lgico e entreter o leitor. O escritor de romances policiais S.S. Van Dine

    enumerou vinte regras s quais, segundo ele, um autor de romances policiais, para ser respeitvel,

    deveria submeter-se. Entre elas, h uma que ilustra essa viso, que mencionamos anteriormente,

    de que a literatura policial seria um gnero menor:

    O romance policial um gnero muito definido. Nele o leitor no procura nemfolhos literrios, nem virtuosismos, nem anlises aprofundadas demais, mas umcerto estimulante do esprito ou uma espcie de atividade intelectual, comoencontra assistindo a uma partida de futebol ou debruando-se sobre palavrascruzadas(VAN DINE apud BOILEAU; NARCEJAC, 1991, p. 39-40).

    Essas regras, que foram bastante reproduzidas, apesar de terem sido muitas vezes

    contestadas, equipararam o romance policial ao divertimento de palavras cruzadas, tratando-o,

    ainda, como algo to esquematizado e objetivo quanto uma receita. Van Dine, entretanto, no foi

    o nico a considerar o romance policial subliteratura. Thomas Narcejac, cultuado estudioso do

    gnero, tambm opinou:

    Com toda sua incrvel perfeio mecnica, h uma coisa que o romance policialno : ele no , em nenhum sentido real do termo, um romance. No passa deuma anedota, do relato amplificado de um incidente determinado, que noexprime seno a mais superficial filosofia da conduta humana e que no realizanenhuma outra catharsis do que aquela da curiosidade. (NARCEJAC apudALBUQUERQUE, 1979, p. 221)

    No sculo XX, surgiria nos Estados Unidos o chamado romance noir, sob o contexto de

    grande confuso poltica que se seguiu Primeira Guerra Mundial, com a quebra financeira de

    1929. Nesse momento, percebemos uma mudana em relao concepo da narrativa policial

    clssica. Em 1945, com a publicao da coleo Srie Noire, por Marcel Duhamell, d-se o

  • reconhecimento, pelo pblico, do roman noir, que contrasta com os romances policiais

    tradicionais, como se observa no trecho abaixo, transcrito do texto de apresentao existente nos

    primeiros volumes da coleo:

    O leitor desprevenido que se acautele: os volumes da Srie Noire no podem,sem perigo, estar em todas as mos. O amante de enigma Sherlock Holmes ano encontrar nada a seu gosto. O otimismo sistemtico tampouco. Aimoralidade, admitida em geral nesse gnero de obras, unicamente paracontrabalanar a moralidade convencional, a se encontra bem como os belossentimentos, ou a amoralidade simplesmente. O esprito raramenteconformista. A vemos policiais mais corrompidos do que os malfeitores queperseguem. O detetive simptico no resolve sempre o mistrio. Algumas vezesnem h mistrio. E at mesmo, outras vezes, nem detetive. (DUHAMELL apudREIMO, 1983, p. 52-53)

    Em uma fase conturbada como aquela, em que cresce o desemprego e o crime se

    organiza, torna-se difcil para o leitor aceitar um personagem como Dupin, totalmente fora da

    realidade social. Assim, o heri passa a ser mais humanizado; o mtodo da intuio e a

    experincia substituem o raciocnio lgico.

    Segundo Vera Lcia Follain de Figueiredo (1988, p. 22), a passagem do romance de

    enigma para o noir seria a passagem do pensamento para ao, pois enquanto naquele o detetive

    chegava verdade atravs do raciocnio, neste ele se envolve na perseguio dos suspeitos,

    tentando alcanar a verdade atravs da fora e da intuio. Temos como principais representantes

    dessa escola Dashiell Hammett, considerado por muitos o iniciador do romance noir, e Raymond

    Chandler.

    A narrativa policial brasileira, apesar de surgir dezenas de anos depois do famoso conto

    de Edgar Allan Poe, tambm tem sua origem atrelada ao folhetim. Alusio Azevedo pode ser

    considerado o precursor do gnero no Brasil, com a publicao do romance-folhetim Mattos,

    Malta ou Matta?, em 1885. Esta obra, assim como outras do mesmo autor que foram publicadas

    na mesma poca, no considerada por muitos um romance policial propriamente dito, apesar de

    nela estarem presentes os trs elementos bsicos da narrativa policial criminoso, vtima e

    detetive. Entretanto, verificamos traos policiais e, alm disso, uma peculiaridade dessa narrativa

    em relao escola clssica: o autor satiriza as dificuldades da polcia brasileira em resolver o

    enigma. Percebemos, portanto, j nessas obras iniciais, uma dificuldade de lidarmos com a ideia

    de uma sociedade justa em que o crime surgia como exceo, marginalidade a ser combatida para

    que o equilbrio se restabelecesse (FIGUEIREDO, 1988, p. 21).

  • Apesar de encontrarmos j no final do sculo XIX as primeiras manifestaes, ainda

    que embrionrias, do gnero no Brasil, ser na primeira metade do sculo XX que surgiro as

    histrias policiais propriamente ditas, mais precisamente em 1920 (79 anos depois da estreia de

    Dupin), em que publicada no Brasil, tambm sob a forma de folhetim, O mistrio, esta sim

    considerada pela maioria dos estudiosos a primeira narrativa policial brasileira. Este folhetim foi

    escrito em parceria por Medeiros e Albuquerque, Afrnio Peixoto, Viriato Correia e Coelho Neto.

    Entretanto, ser somente na dcada de 1980 que o gnero ocupar um lugar mais destacado.

    O romance policial brasileiro, que se desenvolveu tardiamente, buscar na escola noir o

    seu modelo de detetive, um homem comum, como Sam Spade, de Hammett, que age movido

    mais pela intuio do que pela deduo lgica. Segundo Flvio Carneiro,

    Spade a o espelho da crise americana do final dos anos 20, em que o sonho setransformara em pesadelo e um detetive como Dupin pareceria completamentedespropositado. essa poca, ps-utpica, que vai inspirar a criao de umdetetive mais prximo da dvida, sem muitos motivos para acreditar numfuturo brilhante (2005, p.20).

    O termo ps-utpico, criado por Haroldo de Campos (1997) e utilizado por Flvio

    Carneiro, relevante para definirmos a fico brasileira contempornea, ou seja, a poca

    posterior ao modernismo, em que deixamos de ter um projeto literrio e um adversrio a ser

    combatido. Segundo Haroldo, o momento utpico regido pelo princpio-esperana, enquanto

    o momento ps-utpico, pelo princpio-realidade. A condio para a caracterizao do

    momento utpico seria a existncia de um grupo de escritores com um projeto literrio e um

    adversrio definido. O que caracteriza os momentos utpicos, portanto, segundo o autor, uma

    transgresso ruidosa, ou seja, uma ruptura, uma inovao que no passa despercebida. J o

    momento ps-utpico caracterizado pela transgresso silenciosa, que a princpio no se faz

    notar, como o caso das narrativas policiais que encontramos atualmente, que so inovadoras no

    por negarem o passado, mas por fazerem uma releitura das narrativas policiais clssicas.

    Assim, o romance policial surgir mais destacadamente no Brasil em uma poca ps-

    utpica. De acordo com Vera Lcia Follain de Figueiredo (1988, p.22),

    poderamos dizer que agora [1980] encontra solo frtil, em funo da ausnciade maiores motivaes polticas, da generalizada descrena em projetos detransformao, permitindo que o olhar se volte para a decadncia da sociedadee abrindo caminho para a atitude nostlgica e, ao mesmo tempo, negativa que

  • caracteriza o detetive do roman-noir, mergulhado no cinismo, atravs do qualdisfara a persistncia de ideais romnticos, inadequados ao contexto.

    Podemos explicar esta recorrncia do gnero policial tambm pela tendncia atual da

    fico brasileira, que passa a ter como marca uma relao mais prxima do escritor com a mdia e

    o mercado editorial, buscando um dilogo com a cultura de massa, na expectativa de reconquistar

    e reeducar o leitor comum.

    importante destacar que, em relao narrativa policial brasileira, percebemos uma

    reformulao do gnero, uma releitura crtica dos modelos, procurando reinventar o detetive de

    acordo com novas condies culturais, em que j no cabem as certezas nem tampouco a pura

    intuio de escolas anteriores (CARNEIRO, 2005, p. 308).

    A obra de Rubem Fonseca teve importncia fundamental na revitalizao do gnero

    policial por associar um enredo instigante, que estimula a curiosidade do leitor, ao

    questionamento, transgredindo e, ao mesmo tempo, reafirmando as regras do gnero. Tambm

    fundamental para o gnero policial brasileiro na contemporaneidade a obra de Luiz Alfredo

    Garcia-Roza, que surge nesse contexto em que literatura e mdia assumem uma nova relao.

    Prova disto a Srie Policial, lanada pela Companhia da Letras, com a inteno de popularizar a

    literatura e valorizar os novos autores nacionais, colaborando para a constituio de um novo

    status para o gnero policial. Garcia-Roza foi o autor brasileiro que mais publicou romances na

    Srie Policial, contando atualmente com nove ttulos.

    Percebemos ento o surgimento do detetive ps-utpico, que est mais de acordo com

    nossas condies culturais, sem deixar de dialogar com as escolas anteriores. Os maiores

    exemplos desse detetive reinventado so os personagens de Rubem Fonseca e Luiz Alfredo

    Garcia-Roza, Mandrake e Espinosa, dos quais trataremos a seguir.

    Em A grande arte, de Rubem Fonseca, o detetive Mandrake no utiliza como meio de

    investigao a deduo lgica, como o detetive clssico, mas a intuio e, principalmente, a

    imaginao:

    Os acontecimentos foram sabidos e compreendidos mediante minha observaopessoal, direta, ou ento segundo o testemunho de alguns dos envolvidos. svezes interpretei episdios e comportamentos no fosse eu um advogadoacostumado, profissionalmente, ao exerccio da hermenutica (FONSECA, 1983,p. 8).

  • A busca da verdade atravs da deduo lgica e da ao substituda pela imaginao,

    pois segundo Vera Lcia Follain, nem a observao direta, nem a deduo lgica so suficientes

    para a apreenso de toda complexidade do comportamento humano (FIGUEIREDO, 1988, p.23), j

    que o comportamento humano no lgico e o crime humano(FONSECA, 1983, p. 27).

    Mandrake, ao perceber a impossibilidade de chegar a uma verdade, constri uma verso

    verossmil para os fatos atravs, principalmente, da leitura de textos alheios, como o dirio de

    Lima Prado, usando, segundo o detetive, suas prprias palavras, muitas vezes, retiradas

    diretamente dos Cadernos, procurando preservar os efeitos literrios que ele buscava, afinal,

    Lima Prado se julgava um homem de letras( FONSECA, 1983, p. 172). Rubem Fonseca se

    apropria da ideia do detetive como leitor do mundo, aquele que l pistas, decodifica sinais e

    transforma Mandrake em um leitor de verdade, que gostava de ficar lendo na cama, de manh,

    antes de ir para o escritrio (FONSECA, 1983, p. 38). Esse predomnio da imaginao que

    encontramos em Mandrake caracteriza o detetive ps-utpico, em oposio ao detetive clssico,

    que privilegia o raciocnio, o pensamento lgico, e o detetive noir, que privilegia o instinto e a

    ao como meios de atingir a verdade. O detetive ps-utpico tem conscincia de que esta no

    passa de uma construo discursiva, na maioria das vezes inatingvel: no existem verdades

    absolutas, mas obsoletas (FONSECA, 1983, p. 287).

    Os principais traos do romance policial so mantidos por Rubem Fonseca, porm, sob

    uma forma de reescritura. Assim, vemos em Mandrake uma reescritura dos detetives anteriores,

    principalmente dos detetives do romance negro, pois est ligado ao mundo do crime um

    advogado criminal e se envolve na perseguio dos suspeitos. Como o detetive noir, Mandrake

    tambm um homem de ao, como se observa na declarao da personagem Lilibeth: O dr.

    Medeiros disse que o senhor um homem de ao, para eu no perder tempo com rodeios

    (FONSECA, 1983, p.30).

    Mandrake um personagem atraente, com caractersticas misturadas, no podendo ser

    classificado como heri nem como anti-heri. Como foi mencionado anteriormente, a presena

    do heri s aceita em uma sociedade em que a lei e a ordem esto bem estabelecidas. O detetive

    clssico o modelo de heri moderno, infalvel, representante da ordem. Com o romance negro,

    surge um novo tipo de heri, mais prximo da realidade, mas que ainda representa a ordem. Em

    Rubem Fonseca, o detetive foge dessa funo, que j no cabe no mundo ps-utpico, em que

  • no h mais espao para papis bem definidos. O autor estabelece um dilogo crtico com o

    romance policial clssico e noir, jogando com a ideia do heri que age sem pensar, impelido pela

    paixo, caracterstica muito encontrada nos detetives do romance negro: Metido num mundo de

    artrias cortadas e rgos perfurados, pensando em tornar-me um heri sinistro e vingativo, eu

    no podia ser boa companhia, nem para Ada nem para mim prprio (FONSECA, 1983, p. 89). A

    certeza que caracteriza os romances policiais de enigma d lugar dvida, s incertezas; o

    detetive ps-utpico ctico, desconfiado, imaginativo:

    Talvez as coisas tivessem acontecido assim. Certeza eu no podia ter. Podiaimaginar, concluir, deduzir - no havia feito outra coisa naquela histria toda.De qualquer forma eu estava muito prximo da verdade. (FONSECA, 1983, p.291)

    No captulo final de A grande arte, no s a verdade relativizada, como tambm a

    oposio detetive-criminoso, como percebemos nesse dilogo entre os detetives Raul e

    Mandrake:

    Oua, Mandrake, essa histria nunca foi contada direito. Voc afirma queLima Prado matou as massagistas, mas eu no tenho certeza disso.Est nos Cadernos.Voc interpretou assim. Ningum consegue ler aquela merda. Eu estive comeles nas mos, j se esqueceu? Duvido que voc tenha entendido direito aquelaletrinha. Voc tambm interpretou essa histria de Rosa ter assassinado Cila. Anica coisa que eu sei, com certeza, que Lima Prado era um dos grandes dotrfico de entorpecentes, mas isso jamais poder ser provado.(...) E quem matou as massagistas? Pode ter sido qualquer pessoa. Pode ter sido voc, Mandrake.Acendi um Panatela, escuro, curto.Abre outra garrafa, eu disse, e explica melhor como fui eu.Uma delas foi ao teu escritrio, a outra saiu com voc, na vspera deaparecerem mortas.(...)S comprei a Randall depois que elas foram mortas. Eu no sabia usar umafaca antes. E ainda no sei.Desenhar um P qualquer um desenha. E estrangular, a gente nasce sabendo.Voc inventou que decifrou os Cadernos e pode, assim, inventar a histria quequiser. (FONSECA, 1983, p. 295-96)

    No trecho citado fica claro que os mtodos utilizados por Mandrake para solucionar os

    crimes no so confiveis. Tudo foi deduzido, imaginado, interpretado pelo detetive, e a verdade

  • dos fatos passa a ser inatingvel. Percebemos um dilogo crtico em relao ao policial clssico,

    pois, alm de a idoneidade do detetive ser questionada e o mistrio no ser solucionado, ao ser

    colocada em questo a possibilidade de o prprio detetive ser o autor dos crimes, h a quebra do

    pacto do gnero policial de que o detetive jamais pode ser o culpado.

    Em Perseguido, de Luiz Alfredo Garcia-Roza, apesar de encontrarmos uma escrita mais

    tradicional, no sentido de estar mais de acordo com o policial clssico, tambm percebemos uma

    transgresso, ainda que sutil, ao gnero. Logo no primeiro pargrafo do romance, o detetive

    Espinosa apresentado ao leitor:

    Para no se chocar com as pessoas e no perder o ritmo das passadas,Espinosa chegava a andar com um p na calada e outro no calamento deparaleleppedos da rua, mancando em meio aos transeuntes. No estavaatrasado para nenhum encontro nem se dirigia a nenhum lugarpredeterminado. Ao pegar a rua da Quitanda, fizera-o com o intuito de dobrarna rua do Carmo e passar num sebo que frequentava desde os tempos deestudante de direito. (GARCIA-ROZA, 2003, p. 9)

    Atravs desse pequeno trecho j se caracteriza o delegado Espinosa: um detetive

    instvel, como ficar mais claro adiante, intelectualizado, que frequenta sebos e que percorre as

    ruas do Rio de Janeiro em busca de seus mistrios, como um flneur. Tais caractersticas so

    incomuns aos detetives anteriores, o que faz de Espinosa o modelo do detetive ps-utpico.

    Como j foi visto, podemos considerar que a passagem do romance de enigma para o

    romance noir significa a passagem do pensamento ao. Segundo Vera Lcia Follain de

    Figeuiredo (1988, p.22), o personagem de Rubem Fonseca refaz esse percurso do pensamento

    ao para chegar a outro ponto: a imaginao ficcional. O mesmo se aplica ao personagem

    de Garcia-Roza. De acordo com sua namorada Irene, o que mais a fascinava (em Espinosa) era a

    bizarra combinao de pensamento lgico e imaginao delirante que habitava aquela cabea.

    Assim, percebemos em Espinosa traos do detetive de enigma, como a presena do pensamento

    lgico como meio de alcanar a verdade, porm, a associao da imaginao a esse pensamento

    lgico faz dele um ser nico, absolutamente singular (GARCIA-ROZA, 2003, p. 83) que no

    pode ser considerado um detetive de enigma, tampouco um detetive noir, mas uma reescritura

    desses modelos.

    Espinosa, portanto, um personagem ambguo, instvel, que sempre oscila entre a

    realidade e a imaginao:

  • Na maioria das vezes, sua atividade mental consistia num livre fluxoassociativo de ideias. Tinha a impresso de que em sua mente se travava umaluta constante entre a razo e a imaginao, com franco predomnio da segunda.(GARCIA-ROZA, 2003, p. 79)

    Espinosa estava acostumado a conceder importncia apenas relativa a suasfantasias. Elas eram frequentemente muito elaboradas e nem semprecorrespondiam a uma captao sutil da realidade, e sim sua profusa eenlouquecida produo imaginria. (GARCIA-ROZA, 2003, p.130)

    A instabilidade de Espinosa se faz notar, principalmente, em sua peculiar estante de

    livros, classificada por ele como

    uma estante-sem-estante ou, segundo sua descrio, uma estante feita dosprprios livros e que dispensava o uso de madeira ou de qualquer outromaterial. Uma biblioteca em estado puro, sem nenhum elemento que no fosselivro, dizia ele. A engenharia da estante era simples: primeiro uma fileira delivros em p ao longo do rodap; sobre ela, outra fileira de livros na vertical;sobre esta, novamente uma fileira de livros deitados, e assim sucessivamente. Aestante j ultrapassara a altura de Espinosa e, segundo a faxineira, seu equilbriotornava-se cada vez mais instvel (GARCIA-ROZA, 2003, p. 74-75. Grifonosso).

    Espinosa, assim como Mandrake, tambm um detetive-leitor, intelectualizado, o que o

    afasta do detetive do romance negro, que privilegia a intuio e a fora. Aproxima-se do detetive

    clssico ao privilegiar a razo em detrimento da intuio, porm o faz de maneira peculiar, como

    percebemos no trecho abaixo:

    Na grande maioria das vezes, a nica coisa que acontecia era ele perderalgumas horas de sono espera de que sua intuio fosse avalizada pelarealidade. No era um intuitivo nem acreditava em premonies; acreditavanuma razo que tambm trabalhava em silncio, revelia dele prprio,acreditava que as lacunas e as sombras da razo no eram deficincias, maseficincias nem sempre reconhecidas como tais pelo pensante (GARCIA-ROZA,2003, p. 104).

    O equilbrio instvel de Espinosa reflete-se tambm na sua condio de policial no Rio

    de Janeiro, onde, segundo Flvio Carneiro (2005, p. 222), no se sabe precisamente quem o

    bandido e quem o mocinho. Essa instabilidade o retrato da sociedade atual, ps-utpica,

    em que no h mais espao para heris, pois as dicotomias no esto mais definidas. Mandrake e

    Espinosa no so heris, em funo de estarem inseridos em uma sociedade que perdeu a

    inocncia:

  • Saiu da trattoria dizendo para si mesmo que aquela no era a postura doguerreiro dos tempos arcaicos, como tambm no correspondia imagem doheri contemporneo e tampouco podia ser considerada uma ousada filosofia devida. No sou guerreiro, sou tira; no sou heri, sou funcionrio pblico;tampouco sou filsofo, tenho apenas nome de filsofo (GARCIA-ROZA, 2003, p.199).

    Como Mandrake, Espinosa tambm no consegue alcanar a verdade, ficando muita

    coisa no plano das conjecturas, (GARCIA-ROZA, 2003, p. 200) afinal, existem lacunas que

    nunca vamos preencher (p. 201). O detetive ps-utpico tem conscincia de que o final

    incerto, e a verdade, muitas vezes, inatingvel: ... ainda estamos longe do fim. Se que algum

    dia vamos chegar l (p.190).

    Segundo Todorov, o romance policial tem suas normas; fazer melhor do que elas

    pedem ao mesmo tempo fazer pior; quem quer embelezar o romance policial faz literatura,

    no romance policial (TODOROV, 1970, p. 95). Rubem Fonseca e Luiz Alfredo Garcia-Roza

    contrariam a afirmao de Todorov: suas obras possuem um duplo alcance de leitura, podendo ser

    lidas como entretenimento, porm, como vimos, servem tambm de espao para discusses sobre

    a prpria literatura.

    Ainda de acordo com Todorov, o romance policial por excelncia no aquele que

    transgride as regras do gnero, mas o que a elas se adapta (1970, p. 95). Mais uma vez, Rubem

    Fonseca e Garcia-Roza nos provam que possvel transgredir os clssicos e ao mesmo tempo

    reafirm-los, pois mantm os traos essenciais do gnero sob uma forma de reescritura. Ao

    reinventarem o detetive, fazem romance policial e, acima de tudo, literatura.

    THE REINVENTION OF THE DETECTIVE IN POST-UTOPIAN TIMES

    ABSTRACT:This article examines the figure of the detective in contemporary Brazilian literature, more specifically, the caractersMandrake and Espinosa. Corpus were selected as two novels: A grande arte, by Rubem Fonseca and Perseguido, byLuiz Alfredo Garcia-Roza, based on the term post-utopian, created by Haroldo de Campos to define our times.

    KEYWORDS: Detective. Post-utopian. Rewriting.

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    FONSECA, Rubem. A grande arte. Rio de Janeiro: Francisco Alves Editora, 1983.

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