A relação entre técnica e crítica: dominação ou emancipação?

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5/18/2018 Arelaoentretcnicaecrtica:dominaoouemancipao?-slidepdf.com http://slidepdf.com/reader/full/a-relacao-entre-tecnica-e-critica-dominacao-ou-emancipacao A relação entre técnica e crítica: dominação ou emancipação? 1  The relationship between technique and criticism: domination or emancipation? Denilson de Cássio Sil Mestre em História Soc Centro Federal de Educação Tecnológica de Minas Gerais – CEFET M E-mail: [email protected] RESUMO O artigo tem como objeto de estudo a relação entre técnica e crítica na sociedade moderna, com ênfa nas manifestações de dominação e de emancipação. Intenta-se diagnosticar e compreender com a técnica ou a tecnociência submete-se ao exercício do poder político e social, curvando-se às força mercadológico-administrativas e, ao mesmo tempo, reveste-se de potencialidade para a promoçã da autonomia. É levantada a hipótese de que a técnica moderna apresenta um campo de tensão e que a crítica atua ou deve atuar como elemento indispensável de ampliação dos valores humanos. metodologia baseia-se no levantamento bibliográco e na efetivação de uma discussão concatenada teoria crítica da sociedade. Os resultados, embora incipientes, são constituídos pela reavaliação do deba em pauta e pela perspectiva de desdobramento do estudo. Como conclusão, é sublinhado que a técnic constitui-se como fenômeno dinâmico, ligado a diversas instâncias, não apresentando, exclusivament um fundamento nocivo à liberdade humana e ainda menos um caráter, intrinsecamente, benéco. Log é na interação entre técnica e crítica que se situa o âmago do problema da tecnicização, da dominaçã e da emancipação da sociedade moderna. Palavras-chave:  Técnica. Crítica. Dominação. Emancipação.  ABSTRACT The article has as object of study the relationship between technique and criticism in modern society wi emphasis on domination and emancipation manifestations. It attempts to diagnose and understand ho technique or techno science submits to the exercise of political and social power, bowing to marketin and administrative forces and at the same time, coats of potential in promoting autonomy capability. is hypothesized that modern technique has a tension eld in which the critical acts or should act as a indispensable element of human values expansion. The methodology is based on the literature and in th execution of a discussion concatenated with critical theory of society. The results, although preliminar are made by the revaluation of the debate on the agenda and the unfolding perspective of the stud In conclusion, it is noted that the technique is constituted as a dynamic phenomenon, linked to sever instances, not presenting exclusively a harmful foundation to human freedom much less an intrinsical 1  Parte da argumentação ora desenvolvida foi esboçada em Silva, 2014. | Educ.&Tecnol. | Belo Horizonte | v. 19 | n. 3 | p. 59-75 | set./dez. 2014 |

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O artigo tem como objeto de estudo a relação entre técnica e crítica na sociedade moderna, com ênfasenas manifestações de dominação e de emancipação. Intenta-se diagnosticar e compreender comoa técnica ou a tecnociência submete-se ao exercício do poder político e social, curvando-se às forçasmercadológico-administrativas e, ao mesmo tempo, reveste-se de potencialidade para a promoçãoda autonomia.

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    A relao entre tcnica e crtica: dominao ou emancipao?1 The relationship between technique and criticism: domination or emancipation?

    Denilson de Cssio SilvaMestre em Histria Social

    Centro Federal de Educao Tecnolgica de Minas Gerais CEFET MG

    E-mail: [email protected]

    RESUMOO artigo tem como objeto de estudo a relao entre tcnica e crtica na sociedade moderna, com nfase nas manifestaes de dominao e de emancipao. Intenta-se diagnosticar e compreender como a tcnica ou a tecnocincia submete-se ao exerccio do poder poltico e social, curvando-se s foras mercadolgico-administrativas e, ao mesmo tempo, reveste-se de potencialidade para a promoo da autonomia. levantada a hiptese de que a tcnica moderna apresenta um campo de tenso em que a crtica atua ou deve atuar como elemento indispensvel de ampliao dos valores humanos. A metodologia baseia-se no levantamento bibliogrfico e na efetivao de uma discusso concatenada teoria crtica da sociedade. Os resultados, embora incipientes, so constitudos pela reavaliao do debate em pauta e pela perspectiva de desdobramento do estudo. Como concluso, sublinhado que a tcnica constitui-se como fenmeno dinmico, ligado a diversas instncias, no apresentando, exclusivamente, um fundamento nocivo liberdade humana e ainda menos um carter, intrinsecamente, benfico. Logo, na interao entre tcnica e crtica que se situa o mago do problema da tecnicizao, da dominao e da emancipao da sociedade moderna.

    Palavras-chave: Tcnica. Crtica. Dominao. Emancipao.

    ABSTRACT The article has as object of study the relationship between technique and criticism in modern society with emphasis on domination and emancipation manifestations. It attempts to diagnose and understand how technique or techno science submits to the exercise of political and social power, bowing to marketing and administrative forces and at the same time, coats of potential in promoting autonomy capability. It is hypothesized that modern technique has a tension field in which the critical acts or should act as an indispensable element of human values expansion. The methodology is based on the literature and in the execution of a discussion concatenated with critical theory of society. The results, although preliminary, are made by the revaluation of the debate on the agenda and the unfolding perspective of the study. In conclusion, it is noted that the technique is constituted as a dynamic phenomenon, linked to several instances, not presenting exclusively a harmful foundation to human freedom much less an intrinsically

    1 Parte da argumentao ora desenvolvida foi esboada em Silva, 2014.

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    beneficial character. Therefore, it is the interaction between technique and criticism that lies at the problem heart of technification, domination and emancipation in modern society.

    Keywords: Technique. Criticism. Domination. Emancipation.

    INTRODUOO presente artigo resulta de um esforo inicial de pesquisa e aborda a relao entre tcnica e crtica, entendidas, introdutria e, respectivamente, como ao racional, direcionada a determinados fins, em busca de resultados eficazes, e ato de pensar com maturidade. A nfase da anlise recai sobre o carter multidimensional de tal relao, atentando-se para a dominao uso da tcnica visando assegurar a hegemonia de determinados interesses, classes e/ou grupos sociais e a emancipao elaborao da conscincia crtica, da autonomia e da cidadania envolvidas no processo.

    O objetivo precpuo deste estudo, portanto, compreender a articulao entre tcnica e crtica e, a partir dela, problematizar os possveis encadeamentos de dominao e/ou de emancipao. Pretende-se, tambm, traar algumas das principais linhas interpretativas afins, buscando-se identificar as tendncias histrico-sociolgicas da questo. Igualmente, intenta-se expor uma sntese que possa servir de introduo e de estmulo ao debate. Para tanto, a metodologia baseou-se no levantamento bibliogrfico, na leitura e na formulao de discusses, que, em maior ou menor grau, aproximam-se da abordagem da [...] teoria crtica da sociedade.. (HABERMAS, 2012, p. 671-727). O texto, assim, constitui tanto um empenho de anlise conceitual quanto um exerccio de investigao do que tem sido denominado de histria do tempo presente. (KOSELLECK, 2006) ou modernidade tcnica (BRSEKE, 2002). Toma-se, pois, como recorte espacial, o painel das sociedades imersas no devir da tecnologizao e da cientifizao, inerentes s reconfiguraes comunicacionais, logsticas, polticas, culturais, econmicas e territoriais em curso. (SANTOS, 2012).

    Parte-se das hipteses de que:

    a) a tcnica tem servido dominao, podendo, contudo, ser transformada pela crtica; b) a superao da perspectiva dicotmica por meio da elaborao de um vis dialtico, capaz de delinear

    e coadunar a tcnica e a crtica, assinala a viabilidade de se passar da dominao emancipao.

    Seguindo tais proposies, o artigo foi dividido em trs partes. Na primeira, so apresentadas as linhas gerais do debate, expondo-se as anlises sobre a dominao poltica e social no mundo tecnicizado. Na segunda, traado o panorama de determinadas caractersticas da modernidade, apresentando-se os rumos da teoria crtica, ligados exequibilidade de se promover a emancipao humana. Por fim, seguem as consideraes finais, voltadas a apreender a interao entre tcnica e crtica e a responder indagao exposta no ttulo do texto.

    Tendncias interpretativas sobre a tcnica Tcnica, vinda do grego techn, refere-se arte, ofcio, indstria, concatenada aos verbos fabricar, construir, produzir e aos substantivos ferramenta, instrumento. (FERREIRA, 2010). Sobressai o contorno polissmico dessa palavra, que pode designar [...] procedimentos, instrumentos, processos e estilos dos mais dspares, sejam eles ligados ao campo da arte e da literatura, ao da produo

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    industrial e agrcola, ao da comercializao de produtos, ao do ensino, dentre outros.. (PIRES, 2005, p. 1). Diante desse fato, preciso esclarecer que a problematizao, ora manejada, distancia-se de um uso indiscriminado de tal termo, que, dada sua amplitude, pode, conceitualmente, esvaziar-se. Sem incorrer a uma vaga generalizao nem a um enrijecimento fechado de seus significados, a tnica, aqui, correlaciona-se com as reas tcnico-cientfica e social, considerando tanto o elemento de formao e de transformao do meio (SANTOS, 2002), quanto sua instrumentalizao para a dominao e/ou a emancipao. Nesse sentido, leva-se em conta tambm a tcnica social, avaliada por Cornelius Castoriadis (1997, p. 309)2 como [...] o mais poderoso aparelho j criado pelo homem [...], ou seja, [...] a rede das relaes sociais..

    Jrgen Habermas (2011, p. 509) faz avanar a conceituao e prope [...] uma distino entre meios tcnicos e regras tcnicas.. Por tcnica, entende-se, alm de um conjunto de meios voltados efetivao de determinados fins, com o uso de instrumentos, mquinas e autmatos, tambm [...] um sistema de regras que define a ao racional.. As regras da escolha racional so denominadas estratgias e as regras da ao instrumental, tecnologias. Ainda assim, as tecnologias, segundo Habermas (2011, p. 509) podem se transformar em [...] princpios que definem procedimentos, deixando de ser propriamente um meio tcnico.. Nota-se que o conceito, sob esse prisma, no pretende enquadrar o fenmeno estudado em uma categoria fixa. Em vez disso, procede-se a uma anlise que, por um lado, define de forma flexvel suas ferramentas tericas, e, por outro, tenta captar os matizes da experincia tcnica-social.

    A apologia explcita e invarivel aos mritos da tcnica to idealizada quanto o outro extremo, a negao in totum de suas potencialidades emancipatrias - acompanha o processo de institucionalizao da mesma, irradiando-se dos ncleos que cobiam a manuteno e a expanso do controle sobre tal alada, a saber: indstria, foras armadas, administrao e centros de pesquisa cientfica. (GIDDENS, 1991; HABERMAS, 2011; BURKE, 2012). Outras alegaes, mais refinadas, admitem as limitaes e distores da modernidade, mas partem de igual pressuposto liberal-conservador, focado nas vantagens do progresso tcnico-cientfico. Nesse enleio, apregoam-se as benesses da libertao do ser humano ante o trabalho fsico, os riscos evitveis, os sofrimentos e os perigos, registrados ao longo da histria, em face do predomnio da automatizao da produo de bens e de servios, em uma atualidade cada vez mais ciberntica. Alega-se que o progresso tcnico supera, necessariamente, a fechitizao e a alienao e que estende o domnio do comportamento racional.

    A dimenso ideolgica desse discurso manifesta-se na prpria recusa em admitir a interferncia das dimenses poltica, econmica e social no mago tcnico-cientfico. A tecnocracia incorpora uma espcie de neopositivismo e ergue-se em defesa de uma suposta neutralidade ou objetividade. Arrazoa-se sobre a [...] predominncia da eficincia e da competncia., tendo como fundamento princpios como:

    [...] a concepo da poltica como reino da incompetncia, da corrupo e do particularismo; o tema do desinteresse das massas a respeito da res publica com a consequente profissionalizao do decision-making; a tese do declnio das ideologias polticas e a substituio de uma espcie de koin tecnolgica. (FISICHELLA, 1998, p. 1235).

    2 Citando Mannheim (1962), Sandra Pires (2005) aproxima-se, indiretamente, de Castoriadis e entende as tcnicas sociais como a totalidade das [...] prticas e instrumentos que tm por objetivo final a modelao do comportamento humano e das relaes sociais.. (MANNHEIM, 1962 apud PIRES, 2005).

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    Habermas (1968, p. 74) identifica na tecnocracia uma ideologia sui generis, que pode penetrar:

    [...] na conscincia da massa despolitizada da populao e desenvolver uma fora legitimadora. A eficcia peculiar desta ideologia reside em dissociar a autocompreenso da sociedade do sistema de referncia da ao comunicativa e dos conceitos da interao simbolicamente mediada, e em substitu-lo por um modelo cientfico. Em igual medida a autocompreenso culturalmente determinada de um mundo social da vida substituda pela autocoisificao dos homens, sob as categorias da ao racional dirigida a fins e do comportamento adaptativo.

    Para a urdidura dessa ideologia, recorre-se tanto a um vocabulrio especfico (BOURDIEU; WACQUANT, 2001)3 quanto aos servios de idelogos e expertos (BOBBIO, 1997)4. Nesse sentido, a crtica vem aclarar como o panegrico tecnicista problemtico e est atrelado a determinados interesses e grupos definidos, capazes de emperrar a realizao das promessas da dupla revoluo. (HOBSBAWM, 1977)5. Desde pelo menos o sc. XIX at o XXI, muitas foram as ressalvas em torno das consequncias dos avanos tcnico-cientficos, confrontando a viso colocada acima. Nesse perodo, a tcnica demarcaria no um aumento da racionalidade e do bem-estar, e, sim, a deteriorao do pensamento e a opresso sobre a maior parcela da sociedade.

    No sc. XIX, Karl Marx revelou como o mundo moderno desembocou em prticas que tendem a deformar o ser humano, forando-o a abrir mo de sua identidade e de sua autonomia. Ao faz-lo, o trabalhador no se d conta das causas e dos efeitos de seu esforo nem acessa os benefcios do mesmo, tornando-se vulnervel apatia e alienao. margem da conscincia sobre a condio em que se encontra, limitado realizao de tarefas repetitivas, exaustivas e estranhas a seus prprios interesses, vendendo-se como mo de obra e sujeitado s presses mercadolgicas, os indivduos passariam por um processo de reificao, ou seja, tornar-se-iam mais que humanos, pessoas-coisas, apropriadas pelos donos do poder do sistema capitalista. (MARX, 1989)6.

    Outro pensador de proa, Max Weber, tambm observou, no incio do sc. XX, como o progresso tcnico-cientfico do capitalismo moderno, concretizado na expanso da urbanizao, da industrializao e dos meios de comunicao, engendrou um maior fatiamento do tempo, por meio do controle de horrios de certos indivduos e/ou grupos sobre outros, alm da internalizao da disciplina e da diviso de tarefas7.

    3 Em todos os pases avanados, patres, altos funcionrios internacionais, intelectuais de projeo nos media e jornalistas do top, esto de acordo em falar uma estranha novilngua cujo vocabulrio, aparentemente sem origem, circula por todas as bocas: globalizao, flexibilidade, governabilidade e empregabilidade, underclass e excluso, nova economia e tolerncia zero, comunitarismo, multiculturalismo e os seus primos ps-modernos, etnicidade, minoridade, identidade, fragmentao, etc.. (BOURDIEU; WACQUANT, 2001, p. 1). Os autores salientam que outros termos, como capitalismo, classe, explorao, dominao e desigualdade so evitados e vistos como obsolescentes por idelogos da ordem estabelecida.

    4 Conforme delimitao acionada por Norberto Bobbio (1997), os intelectuais idelogos seriam aqueles que fornecem princpios-guia, valores, ideais, concepes de mundo, e os expertos, os que geram conhecimentos-meio, especficos, baseados no domnio tcnico. Claro est que tal conceituao operacional e no constitui uma essencializao desses dois perfis, que, embora distintos, esto vinculados entre si, em relao de reciprocidade. Esse ngulo dialtico assemelha-se ao que propomos acerca da imbricao entre tcnica e crtica.

    5 Trata-se da Revoluo Francesa, de 1789, e da Revoluo Industrial inglesa. Ambos os eventos tiveram profundas repercusses mundiais. No por acaso, convenciou-se tom-los como marcos do advento da contemporaneidade. Dentre as promessas mais acalentadas esto a libertao do ser humano pela razo e a existncia de um mundo com abundncia, beleza e justia para todos. (Ver tambm: CASSIRER, 1992).

    6 Cornelius Castoriadis (1987, p. 301) observa que, conquanto o termo tcnica no seja frequente na obra de Marx, o assunto central na explicao marxiana da histria e se manifesta quando so explanados, por exemplo, o trabalho, a indstria e as foras produtivas.

    7 A notao do tempo remonta aos primrdios da humanidade, na percepo da passagem dos dias, das noites e das estaes sazonais. Contudo, a partir do sculo XVI, com o advento da modernidade e das primcias do capitalismo, o tempo passou a ser, crescentemente, fracionado. Nos sculos XVIII e XIX, a contabilidade, os relgios portteis e no portteis, juntos presso pela maximizao do lucro, formataram a sincronizao e o disciplinamento do trabalho, em fbricas e oficinas. Para o caso da Inglaterra, E. Thompson verifica que, por meio [...] da diviso de trabalho, superviso do trabalho, multas, sinos e relgios, incentivos em dinheiro, pregaes e ensino, supresso das feiras e dos esportes formaram-se novos hbitos de trabalho e imps-se uma nova disciplina do tempo.. O autor ressalta, ainda, que tal transformao levou, s vezes, muitas geraes para se consolidar. (THOMPSON, 2008, p. 297).

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    A dominao, assim, tendeu a se instituir com o teor legal-burocrtico, a partir de orientaes que se proclamavam racionalizantes, atingindo, inclusive, a cultura e a religio. Diante da contabilizao dos diversos patamares da vida, da matematizao das relaes sociais e das respostas tcnicas e cientficas para o conjunto da realidade, ocorreu o que Weber denominou de desencantamento do mundo, a crise do universo sagrado ou mgico. (WEBER, 1979; 1984)8.

    Somando flego crtica, Martin Heidegger, em 1938, referiu-se a um encantamento, no diante de uma f transcendente, mas da imanncia material, feito por [...] descobertas, invenes, indstrias, a mquina: ao mesmo tempo a massificao, o abandono, a pauperizao, tudo como desprendimento do fundamento e das ordens [...].. Nas franjas da irracionalidade, manifesta-se a [...] incapacidade de meditao [...], pois [...] o progresso vai na direo do ente como crescente abandono pelo ser.. (HEIDEGGER apud, ROCCO, 2006, p. 40). A tecnicizao, ento, entendida como obstruo ao livre pensamento, com vistas a um projeto de maquinao e de controle sobre os homens e a natureza.

    Passada a Segunda Guerra Mundial (1939-1945), reagruparam-se pensadores em torno do que se convencionou chamar de Escola de Frankfurt, a qual, malgrado marcada pela heterogeneidade de seus integrantes, apresentava pressupostos tericos e preocupaes temtico-investigativas comuns9. Expoentes desse grupo, Theodor Adorno e Max Horkheimer (2002, p. 9) retomaram a crtica da sociedade, dando maior nfase ora indstria cultural e s artes, ora s relaes socioeconmicas e polticas, recusando quaisquer tipos de dogmatismo, inclusive, o de tipo cientfico-positivista:

    O que no se diz que o ambiente em que a tcnica adquire tanto poder sobre a sociedade encarna o prprio poder dos economicamente mais fortes sobre a mesma sociedade. A racionalidade tcnica hoje a racionalidade da prpria dominao, o carter repressivo da sociedade que se auto-aliena.

    Adorno e Horkheimer (1985) ajuzam que a racionalidade moderna, ao pretender submeter tudo o que natural ao sujeito, visto como portador autocrtico de uma objetividade totalizante e cabal, tende a aplainar todas as anomalias do pensamento burgus, revelia de questes tico-morais. O autor alarga a crtica para alm de certa dose de ceticismo e de relativismo, frente ao saber racional e desmantela a pretenso cientificidade. Torna-se exposta fragilidade da separao entre valores cientficos e extra cientficos, posto que ambas as categorias so vulnerveis reificao, ao mesmo tempo em que se situam na interao com antinomias, paradoxos e contradies, inerentes ao horizonte humano. (GANEM, 2009).

    8 Nos termos de Weber (1979, p. 165) A crescente intelectualizao e racionalizao no indicam [...] um conhecimento maior e geral das condies sob as quais vivemos. Significa mais alguma coisa, ou seja, o conhecimento ou crena em que, se quisssemos, poderamos ter esse conhecimento a qualquer momento. Significa, principalmente, portanto, que no h foras misteriosas incalculveis, mas que podemos, em princpio, dominar todas as coisas pelo clculo. Isto significa que o mundo foi desencantado. J no precisamos recorrer aos meios mgicos para dominar ou implorar aos espritos. [...] Os meios tcnicos e os clculos realizam o servio.. (Grifo do autor).

    9 Escola linha de pensamento correlata ao Instituto de Pesquisa Social, associado Universidade de Frankfurt - iniciada na dcada de 1920 e formada por pensadores como Max Horkheimer Theodor W. Adorno, Herbert Marcuse, Friedrich Pollock, Erich Fromm, Otto Kirchheimer, Leo Lwenthal e Walter Benjamin. Seus membros tornaram-se crticos tanto do capitalismo estadunidense quanto do socialismo sovitico e indicaram rumos alternativos para as mudanas sociais e a autonomia humana. O grupo de pesquisa possua um vis interdisciplinar, agregando cientistas sociais, filsofos, psicanalistas e outros, e se pautava pela autocrtica de inspirao kantiana, visando emancipao a partir da problematizao dos prprios pressupostos tericos adotados. Sob esse ngulo epistemolgico, questionado o enrijecimento da viso bifurcada de anlise, o predomnio do mundo sobre a conscincia, do materialismo sobre o idealismo, da prxis sobre a teoria, e vice-versa, pois tais esferas so entendidas como interdependentes, enleadas entre si, dialeticamente. Um dos principais componentes do que se pode chamar do segundo perodo da Escola de Frankfurt, aps a morte de Adorno, Jrgen Habermas, que investiga os fundamentos intersubjetivos do agir comunicativo. Ver: HORKHEIMER, 2003; MOGENDORFF, 2012.

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    Seguindo uma tendncia interpretativa anloga, Herbert Marcuse (1973) pesquisou a ideologia da sociedade industrial, demonstrando como a tecnologizao-cientifizao embute o exerccio do poder, alm do fato de essa sociedade ser especialmente capaz de refrear as possibilidades de transformao qualitativa da realidade. Visto que [...] a tecnologia serve para intuir formas novas, mais eficazes e mais agradveis de controle social e coeso social [...]. (MARCUSE, 1973, p. 19), at mesmo a capacidade de atuao da crtica estaria situada no limbo da insignificncia:

    Ao defrontar o carter total das conquistas da sociedade industrial desenvolvida, a teoria crtica fica desprovida de fundamento lgico para transcender essa sociedade. O vcuo esvazia a prpria teoria, porque as categorias da teoria social crtica foram criadas durante o perodo no qual a necessidade de recusa e subverso estavam personificadas na ao de foras sociais eficazes. (MARCUSE, 1973, p. 17).

    Em um perodo em que os antagonismos sociais e polticos tornam-se nebulosos, diferentemente do cenrio verificado no sc. XIX, ocorre um recuo da ideia de transformao, a tal ponto que as perspectivas da crtica so identificadas como exerccio de alto grau de abstrao, distante de uma exequibilidade efetiva. A aspirao por mudanas nas relaes de dominao vista como manifestao de preferncias pessoais ou grupais. Por isso, segundo o autor, vive-se em uma sociedade unidimensional, portadora de um pensamento, igualmente, unidimensional, na qual a crtica estaria beira da impotncia, e os movimentos de oposio, da paralisia10.

    No entanto, Marcuse (1973) lembra que a necessidade de mudana atinge cada indivduo e a sociedade como um todo, abrindo fissuras e pontos de tenso. Para o autor, a iminncia de uma hecatombe, o aumento exponencial da produtividade, em paralelo com a destrutividade, a conservao da misria frente riqueza incalculvel, a rendio do pensamento e das esperanas s decises dos poderes institudos, constituem a mais imparcial acusao a essa sociedade industrial, cujo [...] racionalismo arrasador, que impele a eficincia e o crescimento, , em si, irracional.. (MARCUSE, 1973, p. 17). Mesmo Adorno e Horkheimer (2002, p. 9) podem admitir a existncia de brechas, possibilidades ou expectativas de alteraes, visto que as patologias da sociedade tecnicizada no devem ser atribudas [...] a uma lei de desenvolvimento da tcnica enquanto tal, mas sua funo na economia contempornea.. A tcnica, em si, , reconhecidamente, inerente sobrevivncia humana, nos processos de modificao da natureza e de formulao de modos de organizao coletiva. Ao mesmo tempo, revela-se controversa a apropriao que se faz dela como dispositivo de dominao poltica e de poder social.

    Quais seriam, pois, as perspectivas da teoria crtica com o desfecho da Guerra Fria, rumo ao sc. XXI? Passadas as experincias dos regimes nazifascistas e da ordem ps-liberal, quais aspectos das sociedades contemporneas podem ser destacados? Como os alcances e as limitaes da crtica so colocados frente ao desafio da emancipao humana?

    10 Mais do que um imobilismo, Eric Fromm (1981, p. 62-63) considera que a maneira de abordar a vida [...] est se tornando cada vez mais mecnica. Nossa meta principal produzir coisas, e no processo dessa idolatria das coisas transformamo-nos em mercadorias. As pessoas so tratadas como nmeros.. Avulta-se, ento, homo mechanicus, mais fascinado pelas mquinas, muitas das quais massacram milhes de vidas, do que pela natureza, pelas relaes humanas e pela participao ativa na sociedade.

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    NUANAS DA DOMINAO E DA EMANCIPAO: panorama da modernidade e pertinncia da crtica No obstante as mudanas geopolticas e econmicas, operadas no perodo ps-Guerra Fria, manteve-se a disposio de aprofundamento e de difuso das inovaes tcnicas e tecnolgicas. Houve uma radicalizao das consequncias da modernidade, cujas razes remontam ao sc. XVI (GIDDENS, 1991, p. 163)11 e/ou uma transmutao em outra realidade, ps-moderna (LYOTARD, 1988). No se intenta, aqui, pulverizar o conceito de modernidade, em meio a tantas expresses afins, concorrentes ou complementares, com nfase ora em mudanas parciais ora em rupturas radicais, nem acenar classificao binria de uma viso eurocntrica, em contraste com uma concepo relativista das especificidades locais. Trata-se, antes, de reconhecer que a tecnicizao e a cientifizao perpassam diferentes mbitos da existncia humana e atingem uma escala planetria12. Franz Josef Brseke (2002) cunha o conceito de modernidade tcnica, haja vista o aspecto tcnico como um fio comum s distintas realidades ao redor do mundo e s diferentes tentativas de conceituar a modernidade. A proposta de Brseke (2002) faz eco ponderao de Milton Santos, consoante a qual As pocas se distinguem pelas formas de fazer, isto , pelas tcnicas. Os sistemas tcnicos envolvem formas de produzir energia, bens e servios, formas de relacionar os homens entre si, formas de informao, formas de discurso e interlocuo.. (SANTOS, 2002, p. 177). Ao se fitar a modernidade possvel constatar que:

    Se somssemos todas as descobertas cientficas, invenes e inovaes tcnicas realizadas pelos seres humanos desde a origem da nossa espcie at hoje, chegaramos espantosa concluso de que mais de oitenta por cento de todas elas se deram nos ltimos cem anos. Dessas, mais de dois teros ocorreram concentradamente aps a Segunda Guerra. (SEVCENKO, 2001, p. 24).

    Em meio ao frenesi dessa revoluo tecnolgica, notoriamente no ramo da microeletrnica, formou-se um modelo de sociedade ancorado na idolatria imagem e ao consumo, na fixao a uma suposta novidade que se tornou um dos principais recursos de venda e na centralidade de valores mercadolgicos nos diversos setores da vida. (HOBSBAWM, 1995, p. 259-261; SEVCENKO, 2001, p. 89).

    Na esteira de tais vicissitudes, como j ressaltado, a estampa triunfalista da tcnica impregna o mundo ocidental e atinge uma proporo sem precedentes, contrastando-se com uma realidade, acentuadamente, desigual. Disparidade que, arbitrria e insustentvel, manifesta-se em termos nacionais e internacionais, ameaando os valores da democracia e da justia social. No bojo do desequilbrio entre a taxa de rendimento privado do capital e a taxa de crescimento da renda e da produo (PIKETTY, 2014), emerge uma realidade mundial marcada por mais de 200 milhes de desempregados, atingindo,

    11 Francisco Jos Calanzas Falcon (1989) apresenta alguns dos principais traos da nascente modernidade, impulsionada no sculo XVI e exacerbada do XVIII adiante. So destacados, dessa forma, a gradual mudana da preocupao com a realidade transcendente para a imanente, o avano dos processos de secularizao e de valorizao das experimentaes fsico-matemticas e a difuso do racionalismo e do individualismo.

    12 Milton Santos (2012, p. 24-25), ao avaliar o que denomina de a unicidade da tcnica, afirma: Na histria da humanidade, a primeira vez que tal conjunto de tcnicas envolve o planeta como um todo e faz sentir, instantaneamente, sua presena. De acordo com o autor, tais tcnicas no so isoladas e constituem, historicamente, grupos, que resultam no sistema atual, representado pela chegada da tcnica da informao, por meio da ciberntica, da informtica, da eletrnica. Santos ainda ressalta que esse sistema contamina, inclusive, a forma de existncia de outras tcnicas. Cotejando os embates emergidos da intensificao da modernidade como o indicado por Santos - Anthony Giddens (1991, p. 31) emprega o conceito de desencaixe para se referir ao deslocamento das relaes sociais de contextos locais de interao e sua reestruturao atravs de extenses indefinidas de tempo-espao. A compreenso dos contatos e dos conflitos, condicionados pelas e condicionantes das interligaes entre realidades locais e mundiais, tem sido um dos desafios bsicos da anlise histrico-sociolgica-geogrfica.

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    inclusive, pases industrializados, tidos como desenvolvidos13 e por cerca de 121 milhes de crianas e adolescentes que no vo escola14. Estima-se que quase 1 bilho de pessoas sofrem de desnutrio crnica, especialmente, em pases da frica Subsaariana e do sul da sia, em contraste com a obesidade presenciada em outras naes. Informaes sobre epidemias, nmero de refugiados, esgotamento de recursos naturais e acesso gua potvel e ao saneamento bsico (DOWBOR, 2014)15 reiteram como pode ser nocivo um capitalismo de mercado que se pretende autorregulvel, orientado pela cobia em praticar um pleno controle sobre o pensamento e o comportamento da sociedade. (POLANYI, 1999)16. A prpria tecnocincia tem sido utilizada para exacerbar as discrepncias entre povos e naes17.

    No resta dvida de que a tecnicizao participa, ativamente, das aludidas mazelas, pois acoplada aos interesses do mbito financeiro, industrial, militar e administrativo. (GIDDENS, 1991; HABERMAS, 2011; BURKE, 2012). imprescindvel, ento, questionar se h um escoro que permita fortalecer a emancipao do ser humano, concomitantemente ao recuo da dominao. Nesse processo, torna-se palpvel a pertinncia e a indispensabilidade da crtica.

    A crtica da crtica Poderia a tcnica debilitar a crtica, instituindo-se o pensamento unidimensional da sociedade industrial, como sugere Marcuse (1973)? Se, por um lado, tal possibilidade persiste e dilapida a conduo de transformaes imperativas, tornando factvel a sombra de uma comunidade totalitria tecnicista, por outro, a tcnica talvez no seja capaz de abolir a crtica, [...] pelo simples fato de que precisa dela para descortinar novos horizontes.. (SEVCENKO, 2001, p. 17). Segundo Sevcenko (2001), os [...] sistemas polticos que tentaram banir a crtica morreram, sintomaticamente, por obsolescncia tecnolgica.. Portanto, a crtica [...] a contrapartida cultural diante da tcnica, o modo de a sociedade dialogar com as inovaes, ponderando sobre seu impacto, avaliando seus efeitos e perscrutando seus desdobramentos.. (SEVCENKO, 2001, p. 17).

    O termo crtica, derivado do verbo grego krnein significa decidir e discernir, referindo-se pessoa capaz de elaborar juzos ou proceder a julgamentos, com base em critrios - do grego kritrion ligados [...] aos valores mais elevados de uma sociedade.. (SEVCENKO, 2001, p. 18-19). Tolhida de sua capacidade crtica, a sociedade desnorteia-se, dilui sua identidade e seus fundamentos espirituais,

    13 Tamanho quadro de desemprego tem atingido, sobretudo, jovens de 15 a 24 anos, muitos dos quais no trabalham, no estudam nem recebem ensino profissionalizante, colocando em risco a formao produtiva e cidad de uma gerao. Os dados so relativos aos anos de 2013 e 2014. Ver: http://nacoesunidas.org/mais-de-200-milhoes-de-pessoas-estao-desempregadas-em-todo-o-mundo-diz-novo-relatorio-da-onu.

    14 O relatrio Reparao da promessa quebrada de Educao para Todos: resultados da Iniciativa Global Crianas Fora da Escola foi produzido pelo Instituto de Estatstica da Organizao das Naes Unidas para a Educao, a Cincia e a Cultura (UNESCO) em parceria com o Fundo das Naes Unidas para a Infncia (UNICEF) e pode ser acessado na ntegra em http://www.uis.unesco.org/Education/Documents/oosci-global-report-en.pdf

    15 Com base em dados fornecidos pela Organizao das Naes Unidas, Ladislaw Dowbor (2014, p. 13-14) exclama que [...] dez milhes de crianas esto morrendo a cada ano de fome, de falta de acesso gua limpa e semelhantes, meio milho de mes [...] morrem anualmente de parto quando tcnicas baratas e elementares so conhecidas, 25 milhes de pessoas j morreram de Aids enquanto as corporaes discutem as vantagens das patentes [...].. Na referida obra, Dowbor (2014) e os demais autores defendem que as [...] tecnologias e o conhecimento em geral devem servir antes de tudo a construir respostas a esses desafios..

    16 Karl Polanyi (1999, p. 4) analisa o que denomina de incrustao, ou seja, a interdependncia entre economia e sociedade, indicando que a economia antecede o mercado autorregulvel, datado de meados do sc. XIX. Afere-se que Reduzir a esfera do gnero econmico, especificamente, aos fenmenos do mercado fazer desaparecer a maior parte da histria do homem. Por outro lado, ampliar o conceito de mercado a todos os fenmenos econmicos atribuir artificialmente a todas as questes econmicas as caractersticas peculiares que acompanham o fenmeno do mercado.. Conforme o autor, historicamente, a sociedade coordena a economia, sendo que, somente a partir do sculo XIX, com a consolidao do capitalismo, difundiu-se a quimera liberal de que o mercado controlaria a economia e a sociedade.

    17 Com base em dados fornecidos pela UNESCO, Eric Hobsbawm (1995, p. 261), assinala que O pas desenvolvido [...] tpico tinha mais de mil cientistas e engenheiros para cada milho de habitantes na dcada de 1970, mas no Brasil tinha cerca de 250, a ndia 130, o Paquisto uns sessenta, o Qunia, cerca de trinta..

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    incorrendo em grave crise do grego krsis, tambm derivado de krnein. As noes de crtica, de critrio e de crise, logo, interagem e abrem perspectivas para a elaborao de respostas aos desafios da modernidade, movendo a tcnica ao servio dos valores e dos direitos humanos.

    Contudo, preciso efetuar uma crtica da crtica, perscrutando sua abrangncia e sua repercusso, uma vez que:

    [...] as regras, os princpios, os parmetros, o repertrio, a lgica, os paradigmas que regem nosso conhecimento podem tornar-se objetos de exame por um conhecimento de segundo grau (conhecimento relativo aos instrumentos de conhecimento), o qual dispe ento de conceitos referentes aos conceitos, de categorias sobre as categorias. (MORIN, 2012b, p. 24-25).

    Sob o enfoque da afirmao de uma postura reflexiva, avessa ao dogmatismo cientificista, cuja diretiva inclina-se ao fracionamento, racionalizao e reificao dos diferentes elementos da realidade, pode-se desvelar um efetivo dilogo entre a tcnica e a crtica. Nessa direo, Habermas (2013, p. 524) discute anlises que, na nsia de criticar a ideologia da tecnocracia, terminam por situarem-se no plano dessa mesma ideologia. H interpretaes que ressaltam ora o Estado tcnico, obediente [...] lgica das legalidades objetivas [...], dissolvendo [...] a dominao poltica na administrao orientada de maneira racional [...]. (SCHELSKY, [s.d.]), ora, inversamente, reduzindo no a dominao tcnica, mas a tcnica dominao. (MARCUSE, 1973). Em ambos os ngulos de investigao, prossegue Habermas, ocorre uma maximizao de [...] um tipo de entrelaamento de sistemas tecnicamente orientados e regulados com o sistema da sociedade industrial em seu todo, como se o progresso da tcnica no contexto de vida social colocasse apenas problemas que somente o progresso tcnico poderia solucionar.. (HABERMAS, 2013, p. 527-528).

    No entender de Habermas, a ao comunicativa do mundo da vida, embora condicionada, e permanece sendo condicionante do mundo do sistema e dos subsistemas tcnicos. Ao contrrio do que apregoa a tecnocracia, no bastam a competncia e as solues tcnicas para decidir sobre os fins, devendo-se [...] colocar em marcha uma discusso politicamente eficaz que relacione de modo racionalmente vinculante o potencial social do saber e do poder tcnicos com nosso saber e querer prticos.. (HABERMAS, 2013, p. 538).

    Como a crtica atuaria na atividade de coordenao da tcnica em face dos anseios da sociedade? Ao enderear estudos sobre a modernidade lquida, pontuada pelas ideias de fluidez, mobilidade, rapidez e inconstncia, que implicam em desintegrao social, Zygmunt Bauman reavalia a teoria crtica e as projees de emancipao. Conforme o autor (BAUMAN, 2001, p. 31), a [...] sociedade da modernidade fluida [...]. assinalada nem tanto pela ausncia de crtica, mas pelo carter cambiante da mesma.

    Somos talvez mais predispostos crtica, mais assertivos e intransigentes em nossas crticas que nossos ancestrais em sua vida cotidiana, mas nossa crtica , por assim dizer, desdentada, incapaz de afetar a agenda estabelecida para nossas escolhas na poltica-vida. A liberdade sem precedentes que nossa sociedade oferece a seus membros chegou e com ela tambm uma impotncia sem precedentes.

    Estaria sugerido, aqui, novamente, o esmagamento e a digesto da crtica pelo universo da tecnicizao, fora do qual no haveria mudana possvel? Se a teoria crtica de Marx; Weber; Adorno e Horkheimer

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    visava libertao do indivduo, insurgindo-se contra tendncias totalitrias, uniformizantes e homogeneizadoras, como ficaria a crtica em uma sociedade em que a liberdade seria [...] legalmente vitoriosa.? (BAUMAN, 2001, p. 62). Na concepo de Bauman (2001), em uma poca em que a individualizao cresce de maneira inversamente proporcional cidadania, multiplicando-se a individualidade por fatalidade, em descompasso com a individualidade por capacidade concreta de autoafirmao, teoria crtica incumbe fortalecer a esfera pblica e o poder pblico. Invertendo a tica da teoria crtica clssica, Bauman (2001) avalia que [...] agora a esfera pblica que precisa desesperadamente de defesa contra o invasor privado ainda que, paradoxalmente, no para reduzir, mas para viabilizar a liberdade individual.. (BAUMAN, 2001, p. 62)18. Portanto, o problema da emancipao permanece como um dos epicentros da crtica, haja vista as vantagens trazidas pela modernidade lquida circunscreverem-se a um plano formal, que dissimula o controle a que se submete a sociedade19. Soma-se a essa ocorrncia a debilidade dos fundamentos ticos e epistemolgicos em curso.

    A tcnica-cincia v-se sob a ameaa de subordinar-se ao poderio financeiro-econmico. Universidades aquiescem a presses de patrocinadores e substituem pesquisas de longo prazo pelas de curto, cincia pura por aplicada, mirando o lucro. Afere-se que a [...] universidade americana de pesquisa se tornou francamente empresarial na estrutura institucional, na escala, nas rotinas financeiras e em muitas de suas formas de avaliao do mrito.. (GIBBONS et al., apud BURKE, 2012, p. 173). Ao preo do apoio empresarial, perde-se a autonomia acadmica e a dimenso da responsabilidade tecnocientfica. Caso

    [...] algum cientista isolado ou algum grupo independente revela que determinado produto ou procedimento nocivo para o ambiente ou os seres humanos, as grandes corporaes dispem logo dos recursos necessrios para financiar estudos na direo oposta, desmoralizando os cientistas autnomos e desqualificando os resultados de suas experincias. (SEVCENKO, 2001, p. 101)20.

    Acima dos valores humanos tm sido colocados os interesses mercadolgicos, na presuno de que a sociedade deva estar a servio da tcnica e, no, o contrrio. (POLANYI, 2012).

    No tocante epistemologia, a crise dos fundamentos reflete-se na evidenciao do hmus ideolgico do discurso sobre a verdade cientfica, afetando mesmo filsofos que mais obstinadamente defendem a reivindicao da cincia certeza, como Karl Popper, ao assumir que [...] toda cincia repousa sobre areia movedia.. (POPPER, apud GIDDENS, 1991, p. 50). Nesse enredo, inexistem comprovaes

    18 Bauman (2001, p. 46) assevera que O pblico colonizado pelo privado, o interesse pblico reduzido curiosidade sobre as vidas privadas de figuras pblicas e a arte da vida pblica reduzida exposio pblica das questes privadas e a confisses de sentimentos privados (quanto mais ntimos, melhor). As questes pblicas que resistem a essa reduo tornam-se quase incompreensveis. Nesse quadro, a individualizao torna-se uma fatalidade - e, no, uma escolha sendo censurada a opo de recusa em participar de tal jogo. O autor reconhece que a individualizao chegou para ficar; toda elaborao sobre os meios de enfrentar seu impacto sobre o modo como levamos nossas vidas deve partir desse fato. (Idem, p. 47). Tal inverso dialoga com parte da tese de Habermas (2012), publicada em 1981.

    19 Antes de Bauman, j em 1974, Richard Sennett preconizara o fim da cultura pblica e a ascenso das dimenses domstico-privada e ntima na estruturao do poder no capitalismo industrial. Na avaliao de Sennett (2014, p. 485): A sociedade em que vivemos hoje est sobrecarregada de consequncias dessa histria [de eroso do equilbrio entre a vida privada e a vida pblica]: o evanescimento da res publica pela crena de que as significaes sociais so geradas pelos sentimentos de seres humanos individuais. Essa transformao camuflou duas reas da vida social. Uma a do mbito do poder, a outra a do mbito das aglomeraes em que vivemos. [...]..

    20 Sevcenko (2001, p. 102) descreve a caso do Dr. Arpad Pusztai, geneticista britnico, forado a se aposentar, em julho de 1998, [...] por ter encontrado evidncias de danos provocados em rgos vitais em ratos de laboratrio alimentados com batata geneticamente modificada. O episdio veio tona em fevereiro do ano seguinte, quando cientistas de treze pases pediram sua reabilitao, depois de estudarem e comprovarem os resultados da sua pesquisa. S ento o governo Tony Blair mudou a posio favorvel aos alimentos geneticamente modificados e suspendeu sua comercializao no Reino Unido..

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    empricas ou verificaes lgicas capazes de firmar um saber completo, definitivo e imutvel, seno, antes, aberto ao debate, dvida, refutao e/ou ao aperfeioamento. Na sociedade da informao, h muita desinformao, [...] seja porque lhe chega tendencialmente informao residual, ou porque se lhe impe informao oficial, ou porque se entope atabalhoadamente.. (DEMO, 2000, p. 40)21. Na sociedade do conhecimento, h tambm muita ignorncia, oriunda, em parte, da superespecializao, que elitiza, mutila e confina o saber. (MORIN, 2012a)22.

    vista dessa debilidade de axiomas universais epistemolgicos e de promoo das liberdades inalienveis e instrumentais (SEN, 2010), compete crtica arejar a conscincia. A teoria crtica, pois, empenha-se em tornar inteligvel um cenrio ainda turvo23. No se trata de atribuir tecnicizao a culpa de todos os males da modernidade, muito menos de todos os benefcios alcanados24. Intenta-se, antes, contribuir com a articulao entre tcnica e crtica, arcando-se com o princpio de que a [...] fora libertadora da reflexo no pode ser substituda pela propagao do saber tecnicamente utilizvel.. (HABERMAS, 2013, p. 539).

    21 De acordo com Pedro Demo (2000, p. 41), [...] a sociedade da informao informa bem menos do que se imagina, assim como a globalizao engloba as pessoas e povos bem menos do que se pretende. Na sociedade da mercadoria, mercadoria vem antes. Na perspectiva de Ladislaw Dowbor (2001, p. 11): [...] passamos a conviver com as novas tecnologias, mas no as assimilamos efetivamente, e no dominamos nem o seu potencial positivo nem os perigos que representam. De repente chegam s nossas casas as mensagens mais obscurantistas de igrejas ou de demagogos da violncia, pelos meios eletrnicos mais modernos e com os mais diversos efeitos especiais, e nos damos conta de que progresso tcnico e progresso cultural podem evoluir em ritmos completamente diferentes e inclusive em sentidos inversos. Podemos legitimamente nos perguntar sobre o que faria um Goebbels com as tecnologias modernas de comunicao..

    22 Edgar Morin (2012b) constata: Como vivemos, sem dvida, a poca mais elevada do progresso do conhecimento, da fecundidade das descobertas, da elucidao de problemas, percebemos dificilmente que os nossos ganhos inusitados de conhecimento so pagos com ganhos inusitados de ignorncia.. (Idem, p. 20). Para o autor, se, por um lado, a diviso do trabalho cientfico, em disciplinas vrias, trouxe vantagens, por outro, criaram-se especializaes, que, ao se fecharem ao dilogo com outras reas, ignoram a dimenso mltipla do saber e da vida. Analisando outro vis da modernidade radicalizada, indo ao encontro da ignorncia assinalada por Morin, Anthony Giddens (1991, p. 96) calcula que [...] a natureza das instituies modernas est profundamente ligada ao mecanismo da confiana em sistemas abstratos, especialmente confiana em sistemas peritos.. Essa confiana em sistemas [...] assume a forma de compromissos sem rosto, nos quais mantida a f no funcionamento do conhecimento em relao ao qual a pessoa leiga amplamente ignorante.. (Idem, p. 100. Grifo do autor). Tal processo, porm, tenso e dinmico, marcado por pontos de acesso, em que as pessoas ou coletividades leigas tomam contato com os representantes dos sistemas tcnico-abstratos, podendo refor-los e tambm contest-los. Max Weber, outrossim, j percebera como a racionalizao das aes sociais no capitalismo e no Estado modernos, no surtiu uma real expanso do conhecimento geral e, sim, uma aparncia de que possvel acessar o mesmo a qualquer instante. (Ver nota n 9). Como proposta para a modificao dessas zonas de obscuridade, Morin (2012b, p. 26-27) defende que [...] o conhecimento no pode fechar-se em fronteiras estritas. No pode tampouco dilatar-se em inmeros conhecimentos capazes de esclarecer a relao antropo-bio-cosmolgica. H, portanto, para o conhecimento do conhecimento, um duplo imperativo contrrio de abertura e de fechamento, sem soluo a priori, que nos obrigar a navegar, de modo permanente, entre o risco da asfixia e o da dissoluo nos problemas mais gerais e nos conhecimentos mais diversos..

    23 Encara-se, desse modo, o diagnstico de Ladislaw Dowbor (2014, p. 21): Andamos todos um tanto fracos na compreenso dessas novas dinmicas, oscilando entre vises ttricas do Grande Irmo, ou uma idlica viso da multiplicao das fontes e meios que levariam a uma democratizao geral do conhecimento. A realidade, como em tantas questes, que as simplificaes no bastam, e que devemos fazer a lio de casa, estudar o que est acontecendo..

    24 Segundo Castoriadis (1987, p. 295), ao mesmo tempo em que amaldioamos os tecnocratas, [...] estaramos prontos a confiar [a eles] a soluo de todos os nossos problemas.. Tal observao prima pela reflexividade, ou seja, a crtica da crtica, chamando a ateno para o fato de que o crtico da tcnica deve se reconhecer tambm situado, historicamente. A aceitao da ao de tecnocratas, evidentemente, contestvel e fica condicionada ao crivo de diversos fatores, tais como, por exemplo, os direitos de questionamento, de manifestao e de participao na construo e na conduo dos fins.

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    GUISA DE CONCLUSO: DA DOMINAO EMANCIPAONa modernidade ou ps-modernidade, o problema da tcnica ocupa especial interesse, extrapolando as preocupaes do campo filosfico ou cientfico. Essa situao

    [...] resultado evidente do enorme impacto da tecnologia contempornea sobre o homem concreto (ao mesmo tempo como produtor e como consumidor), sobre a natureza (efeitos ecolgicos alarmantes), sobre a sociedade e sua organizao (ideologia tecnocrtica, pesadelo ou sonho paradisaco de uma sociedade cibernetizada). (CASTORIADIS, 1987, p. 294).

    Reconhecer a centralidade desse aspecto no implica em se sujeitar a uma espcie de determinismo tecnicista, pelo contrrio, trata-se de inflamar o exerccio da crtica e investigar os diferentes nuances do fenmeno. Uma questo terica medular a ser encarada concerne possibilidade da crtica compreender a tcnica como componente potencial da emancipao. Ficou demonstrado, acima, que a radical rejeio tcnica moderna, vista como m aglutinador da dominao, avizinha-se do discurso tecnocrtico, que ambiciona restringir a sociedade racionalidade tecnocientfica. Partimos de uma perspectiva distinta, sem aderir negao intrnseca nem aceitao sub-reptcia da tecnocincia, entendendo-se que a tcnica uma das dimenses da realidade, multidimensional por definio, e que a ao da crtica pode interferir na orientao da tcnica.

    A ambivalncia dessa remonta Grcia Antiga, instigando pensadores do quilate de Plato e Aristteles25. No tempo presente, a criatividade, sucedida em tal fenmeno, pode ser combatida por detentores do poder, que visam a alienar seus subordinados. Todavia, o aspecto criativo integra o cerne da tcnica moderna, que vai alm do mero automatismo repetitivo e mecanizado, voltado a determinados fins, e exige a mobilizao do pensamento, da interao e da inovao26. Sob esse prisma, compreende-se que

    25 Seria a tcnica apenas um meio de confeco material, almejando eficcia, fundado no hbito apropriado e na repetio? Ou comportaria tambm um elemento criativo, capaz no s de atingir resultados esperados como tambm de inovar e transformar, passando do no-ser ao ser? O carpinteiro e o arteso teriam na tcnica um trao comum ao poeta? Para Plato, [...] os trabalhos que dependem de uma techn, qualquer que seja, so poisis, e seus produtores so todos poetas (criadores).. (CASTORIADIS, 1987, p. 297). Aristteles retoma a questo, percebendo o produtor como origem do princpio do ser e do advir e a techn poitik, como ato conclusivo do que a natureza no foi capaz de completar e/ou imitao de um ato importante e perfeito. (Idem, p. 298-299). Frisando a inerncia entre pensar e agir, Edgard Morin (2012a, p. 225) estima que [...] como qualquer conhecimento cerebral, o conhecimento humano , na origem e nos desenvolvimentos, inseparvel da ao; como todo conhecimento cerebral, elabora e utiliza estratgias para resolver os problemas postos pela incerteza e pela falta de completude do saber. Por sua vez, Milton Santos (2014, p. 177) assevera que o processo criativo de novos objetos, novas engrenagens, novos materiais, novas apropriaes das virtualidades da natureza poderosamente multiplicado, graas, tambm, s associaes cada vez mais ntimas entre cincia e tcnica. Mesmo Marx (1996, p. 298), que, como vimos, um dos principais expoentes da crtica ao que se pode chamar de tecnicismo, relativo ao processo de dominao e alienao, permite perceber certa manifestao da racionalidade da tcnica, imbricada ao trabalho. Segundo a clebre observao: Uma aranha executa operaes semelhantes s do tecelo, e a abelha envergonha mais de um arquiteto humano com a construo dos favos de suas colmeias. Mas o que distingue, de antemo, o pior arquiteto da melhor abelha que ele construiu o favo em sua cabea, antes de constru-lo em cera. No fim do processo de trabalho obtm-se um resultado que j no incio deste existiu na imaginao do trabalhador, e, portanto, idealmente..

    26 Reconhecendo ser bvio o carter finalstico da tcnica, Brseke (2002, p. 139) ressalta que [...] A tcnica moderna transcende a racionalidade de fins, que no deixa de existir, para fazer surgir meios que buscam posteriormente os seus fins. O autor cita como exemplo o engenheiro moderno, que descobre ou desoculta alguma coisa para perguntar depois: o que posso fazer com isso. O que posso fazer com o raios-X, a energia nuclear, o DNA ou o genoma humano?. Nessa direo, aponta tambm a polivalncia do computador, flexvel ao atendimento a diferentes fins, ainda que no, inicialmente, previstos pelo usurio. Permite-se, desse modo, que se elabore um fim atravs do meio e, no apenas, que se crie um meio visando determinado fim. A prevalncia da tcnica como um meio aberto, segundo o autor, seria uma das marcas da modernidade. Tal explanao endossada por Milton Santos (2014, p. 177), conforme o qual [...]. Com a tecnocincia, tornou-se possvel o mtodo de estudo e antecipao, significado pela ciberntica, partindo-se, frequentemente, do efeito desejado para estabelecer a cadeia causal necessria.. Tal perspectiva endossa a tese da interconexo entre tcnica e crtica, pois reitera a possibilidade da atividade criativa da tcnica, elaborada em um sistema de regras, que orientam, ao mesmo tempo, as escolhas racionais-estratgicas e instrumentais-tecnolgicas. (HABERMAS, 2011).

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    [...] homo religiosus, homo oeconomicus, homo politicus, toda essa ladainha de homens em us, cuja lista poderamos estender vontade, evitemos tom-los por outra coisa do que na verdade so: fantasmas cmodos, com a condio de no se tornarem um estorvo. O nico ser de carne e osso o homem, sem mais, que rene ao mesmo tempo tudo isso. (BLOCH, 2001, p. 132).

    Poderamos acrescentar interminvel classificao de homens, o homo faber e o homo mechanicus, comumente associados esfera tcnica, mas que, na realidade, comportam a complexidade do ser humano e a necessidade do conhecimento, que , simultaneamente, [...] cerebral, espiritual, lgico, lingustico, cultural, social, histrico [...]., e, portanto, indissocivel [...] da vida humana e da relao social.. (MORIN, 2012a, p. 26)27. Segundo Cornelius Castoriadis, [...] o prprio conjunto tcnico privado de sentido, tcnico ou qualquer que seja, se o separarmos do conjunto econmico e scial.. (CASTODIADIS, 1987, p. 314). Em face desse dado, fica explicitada a falcia do argumento tecnocrtico e da racionalidade positivista, pois as [...] relaes de fora e os monoplios, suas lutas e estratgias, seus interesses e lucros. (BOURDIEU, 1983, p. 122) revestem quaisquer campos da atividade humana, inclusive, da tcnica e da cincia28. crtica cabe, ento, responder necessidade de identificar, situar, pensar e problematizar a tcnica, a partir de sua prpria problematizao autocrtica, reavaliando seus limites e possibilidades29. Abrir mo dessa condio, alm do mais, implicaria, conforme anlise de Hannah Arendt (2013, p. 626), em um movimento de desumanizao, ou seja, na troca da [...] liberdade inerente da capacidade humana de pensar pela camisa de fora da lgica, que pode subjugar o homem quase to violentamente quanto uma fora externa..

    Sob esse prisma, chega-se ilao de que a tcnica moderna tem servido dominao poltico-econmica e sociocultural e, pari passu, no se fecha em si nem controla, autonomamente, a totalidade da experincia histrica, podendo, tambm, abrir precedentes para a emancipao e para a promoo dos valores humanos. O empreendimento da crtica, em dilogo e debate com a tcnica, fator decisivo para que tal possibilidade seja expandida. No fito de que a crtica no resulte incua, urge institucionaliz-la nas diferentes esferas da sociedade, a exemplo dos campos educacional e acadmico30. A presente pesquisa, assim, tenciona desdobrar-se em um estudo relativo tcnica e crtica nos setores escolar e universitrio.

    27 Ante o notrio fato de que as duas maiores ameaas vida a catstrofe nuclear e a catstrofe ecolgica seriam impossveis sem a tecnocincia, Morin (2011, p. 71) afirma, de forma categrica: O vnculo cincia/tcnica/sociedade/poltica evidente. A poca em que os juzos de valor no podiam interferir na atividade cientfica est encerrada.. frisada, aqui, a urgncia de se avigorar, seriamente, as reflexes sobre a dimenso tica da modernidade, pensando-se em valores como, dentre outros, responsabilidade, tolerncia, liberdade, empatia, colaborao, autonomia, respeito, punio, perdo e sabedoria.

    28 A abordagem de Thomas S. Kuhn (2011) outrossim revela as altercaes acerca da formao dos paradigmas cientficos, das regras definidoras da Cincia Normal, bem como da emergncia das crises desse meio, a partir de revolues mudanas e rupturas que vo instituindo novas vises de mundo.

    29 A autocrtica endossa uma atitude diante da crise dos fundamentos e diante do desafio da complexidade do real, levando-se em conta que [...] todo conhecimento hoje necessita refletir sobre si mesmo, reconhecer-se, situar-se, problematizar-se. A necessidade legtima de todo cognoscente, doravante, seja quem for e onde estiver, deveria ser: no h conhecimento sem conhecimento do conhecimento.. (MORIN, 2012a, p. 34). Com tais colocaes, em vez de insinuar uma assimilao da tcnica pela crtica ou pelo conhecimento cientfico, pretende-se demonstrar que, permanecendo diferentes entre si, tais instncias encontram-se interligadas, por meio de uma ligao dinmico-dialtica. Ademais, busca-se, igualmente, apreender a interao entre ideias e prticas, superando uma perspectiva terica dicotmica. Castoriadis (1987, p. 316) percebe tal tenso e comenta: [...] dizer que no mundo moderno o desenvolvimento social depende do desenvolvimento tcnico fazer explodir de forma violenta o paradoxo contido na concepo materialista da histria; pois isso seria o mesmo que dizer que o desenvolvimento do mundo moderno depende do desenvolvimento de seu saber, portanto que so as ideias que fazem progredir a histria, a nica restrio sendo que essas ideias pertencem a uma categoria particular (ideias cientfico-tcnica).. Ver tambm nota n 9.

    30 Sobre a institucionalizao da crtica, ver: GIDDENS, 1991; MORIN, 2012a. Mais especificamente, sobre a rea escolar-acadmica, ver: ADORNO, 1995; CIAVATTA, 2006.

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