A relação entre perfis dos estudantes e trajetórias ...
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UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS
Caio Morais Sena
Stéfany Silva Dornelas
A relação entre perfis dos estudantes e trajetórias escolares: Uma análise
comparativa em duas escolas de Belo-Horizonte.
GT – Percepções, representações e situações de violências no ambiente escolar e seu entorno social
VI Encontro Nacional sobre o Ensino de Sociologia na Educação Básica
06 a 08 de julho de 2019
A REPROVAÇÃO ESCOLAR COMO UM “NÓ” DE
ACONTECERES: ANÁLISE DA REALIDADE DE UMA ESCOLA
PÚBLICA DE BELO HORIZONTE12
Caio Morais Sena
Stefany Silva Dornelas 3
RESUMO4: O contexto atual brasileiro é de fortalecimento de ideologias liberais nas discussõeseducacionais que adotam o ponto de vista dos talentos distribuídos naturalmente de forma desigual,defendendo a igualdade de acesso mas não de resultados. Alerta-se uma categorização e consequentehierarquização entre os alunos que adaptam-se ou não ao modelo normativo conteudista, avaliativo e omissoaos privilégios sociais, através da construção de trajetórias diferenciadas que legitimam a falácia dos“talentos desiguais”. O objetivo deste trabalho é traçar os perfis de alunos no ensino médio que apresentamtrajetórias irregulares (processos de recuperação e repetência) e regulares em uma escola pública e periféricade Belo Horizonte, buscando verificar as desigualdades entre os grupos em questão. Analisa-se, também, asconsequências que a repetência acarreta no cotidiano escolar. O acompanhamento em questão se dá por meiodo PIBID Programa Institucional de Bolsas de Iniciação à Docência. Conciliando docência e pesquisa,adotou-se duas metodologias: observação participante e Survey. Essa reflexão nos convida a repensar areprodução das desigualdades na escola e as posições político-pedagógicas em relação a esses fatores.Ademais, ressalta-se a necessidade de não culpabilizar os atores deste processo, mas sim rever asproblemáticas pertinentes a todos eles.
Palavras-chave: 1. Repetência; 2. Escola; 3. Perfil; 4. Relação; 5. Desigualdades.
ABSTRACT: The current Brazilian context is to strengthen liberal ideologies in educational discussions thatadopt the point of view of the talents distributed naturally unequally, defending equal access but not results.It is alerted to a categorization and consequent hierarchization among the students that adapt or not to thenormative normative content, evaluative and omission to the social privileges, through the construction ofdifferentiated trajectories that legitimize the fallacy of the "unequal talents". The objective of this work is tooutline the profiles of high school students with irregular trajectories (recovery and repetition) and regulartrajectories in a public and peripheral school in Belo Horizonte, seeking to verify the inequalities between thegroups in question. We also analyze the consequences of repetition in daily school life. The accompanimentin question is given through the PIBID Institutional Program of Scholarships for Teaching. Conciliatingteaching and research, two methodologies were adopted: participant observation and Survey. This reflectioninvites us to rethink the reproduction of inequalities in school and political-pedagogical positions in relationto these factors. In addition, it is emphasized the need not to blame the actors of this process, but to reviewthe issues pertinent to all of them.
Keywords: 1. Repeat; 2. School; 3. Profile; 4. Relation; 5. Inequality
1 O presente artigo é uma versão preliminar para ser apresentada no VI Encontro Nacional de Ensino de Sociologia na Educação Básica (6 a 8 de julho de 2019 – Florianópolis SC). Como tal se proíbe a sua reprodução ou citação sem autorização expressa dos autores.
2 Título após alteração posterior à submissão no GT do evento.3 Graduandos de Ciências Sociais e professores em formação na Universidade Federal de Minas Gerais. Bolsistas no
Programa Institucional de Bolsa para Iniciação à Docência PIBID.4 O presente trabalho foi possível graças ao financiamento realizado pela Coordenação de Aperfeiçoamento de
Pessoal de Nível Superior (CAPES), do PIBID.
Processos de reprovação nos rodeiam: Ao tratar da temática aqui analisada, foi fundamental
realizar uma reflexão sobre quem somos e dos espaços que ocupamos. Reflexão que traz inerente a
si a teoria de Imaginação Sociológica de Mills (1992). Ao escrever sobre esse conceito, o autor nos
diz como a capacidade reflexiva é o cerne para o entendimento dos indivíduos sobre si em seus
contextos, aquilo que os rodeiam socialmente. Faz sentido, então, começar a se pensar na trajetória
cursada por nós dois até a escolha da temática em questão: Processos de repetência escolar.
Estamos em uma Universidade Pública, local onde se concentra a produção e
protagonismo sobre um conhecimento científico. Vivenciamos um processo de formação em
licenciatura de Ciências Sociais. Atuamos como bolsistas do PIBID (Programa de Institucional de
Bolsas de Iniciação à Docência) e Ateliê de Ciências Sociais e Ensino (grupo de estudos sobre
educação de sociologia) que nos proporciona cotidianamente um contato com uma modalidade de
ensino que não é pensada como produtora de conhecimento: o ensino básico público.
Consequentemente, educação e reflexão sociológica se faz presente em nossos contextos de
diversas formas e sobre diversas modalidades.
A ação de tomar como campo de análise os processos de repetência se enquadra em um
enredo; em algo que faz sentido para quem somos e os lugares que ocupamos. Falamos de vivências
que nos formaram, proporcionaram contatos e criaram determinadas inquietações que nos levaram a
tratar sobre o tema. Dois casos, vivenciados separadamente por cada um nós, atentaram nosso olhar.
O primeiro deles diz respeito a um dia qualquer5. Eu, Stéfany, assistia uma aula de
Sociologia em uma escola pública de Belo Horizonte. Era um dia qualquer: um dia daqueles que
não parece ser inédito, mas que reproduz uma certa repetitividade, absurdamente similar aos outros
dias quaisquer. A professora entrou na sala empolgada e certa de que a aula que havia preparado
amenizaria o qualquer desse dia específico. Após uns dez minutos de esforço, aquele dia se
recusava a abandonar a inércia. Os alunos continuavam apáticos. A professora considerou urgente
interromper a explicação da matéria e questionou: “O que está acontecendo?”
Essa turma em especial possuía um número muito grande de alunos repetentes. Muitos
deles atribuíram o desinteresse à recorrência da reprovação. Iniciou-se uma saga para descobrir o
motivo, ali e agora, desse insistente processo. Um aluno gritou: “Ah, a gente reprova porque a gente
5 Acontecimento vivenciado em uma escola pública de Belo Horizonte que não é a escola acompanhada pelo PIBID, à qual esse trabalho analisa mais enfaticamente. O contato se deu através do Ateliê de Ciências Sociais e Ensino (FaE/UFMG), coordenado pela professora Graziele Schweig.
é burro mesmo!”.Continuaram testarando outras hipóteses. “Acho que o problema é o celular”.
“Não! O problema é o amor…”, suspirou um menino cabisbaixo e com feições entristecidas.
Essa cena nos chamou atenção particular pelo caráter banal que apresentava. Entretanto,
ela não deixa escapar a percepção de uma violência simbólica vivenciada no ambiente escolar. É
notável uma responsabilização de si. A repetência parece não ter relação com nenhum outro fator
que não seja o empenho individual do jovem. Além do mais, esse processo modificou drasticamente
a configuração daquela aula, de forma que se mostrava impossível ignorar os seus efeitos.
O segundo caso foi vivenciado por mim, Caio6. Ocorria uma conversa no final da aula de
sociologia entre o professor e dois alunos. Nesse diálogo, o professor tratava com os alunos o
trabalho de dependência. Ambos não possuíam notas. O primeiro por ter vivenciado um processo de
repetência escolar por não ter atingido o desempenho que a escola demandava e a segunda a partir
de uma falha administrativa com a professora que ministrava as aulas na outra escola. O professor
se referiu aos alunos: “Estamos realizando um trabalho com vocês que tomaram bomba..”. Logo, a
aluna o interrompeu, dizendo que não tinha bombado não, defendendo que é uma menina muito
estudiosa. Ela argumenta que a culpa dessa repetência foi da professora que não transferiu as notas.
Eu e o professor refletimos sobre o quão violento tinha sido a situação.
Nos chamou atenção os significados intrínsecos à palavra “bomba”. Os processos de
repetência são marcados por estereótipos e estigmas que atingem diretamente a identidade desses
alunos. Destacamos também o caráter vertical da reprovação, ou seja, quase não se leva em conta a
argumentação dos alunos envolvidos e alertamos sobre como os profissionais da educação estão
suscetíveis à prática de ações violentas na medida em que integram uma configuração hierárquica.
A partir dessas vivências que nos afetam, nos propomos investigar a ocorrência da
repetência e as relações que a cerca. O campo se deu em uma escola pública periférica de Belo
Horizonte, acompanhada por nós através do PIBID. Traçamos os perfis dos alunos mais afetados
por este processo, como ele afeta a vida escolar e as relações de poder que se dão nesse contexto.
Abordagens sociológicas acerca das reproduções de desigualdades e processos de repetência:
No início da década de 90, Ribeiro (1991) já alertava um problema central na educação brasileira:
6 Acontecimento vivenciado em uma escola pública de Belo Horizonte que não é a escola acompanhada pelo PIBID, à qual esse trabalho analisa mais enfaticamente. O contato se deu através do Ateliê de Ciências Sociais e Ensino (FaE/UFMG), coordenado pela professora Graziele Schweig.
os altos índices de repetência. A partir de grandes surveys, utilizando a metodologia de profluxo, o
autor afirmou com veemência: “[...] não levam[os] em conta o principal problema de fluxo de
alunos nos sistemas, que é a excessiva taxa de repetência escolar.”
As altíssimas taxas de repetência, presentes em todos os estratos sociais e ignoradas pelas
teses e pesquisas, levaram Ribeiro a indagar a possibilidade da existência de uma pedagogia da
repetência, ou seja, uma naturalização com raízes históricas profundas da repetência. De fato, as
discussões sobre acesso à escola são essenciais. Entretanto, como aponta Oliveira & Araújo (2003),
com o crescimento considerável do acesso da população à escola, outras questões vieram à tona.
Isso significa dizer que os desafios para a democratização do ensino não mais localizam-se apenas
extraescola mas encontram-se, também, no interior dessas instituições.
A discussão sobre a repetência continua ativa pois este ainda é um recurso pedagógico
amplamente utilizado. Tal constatação é óbvia devido à sua grande recorrência. Assim como coloca
Ribeiro (1991), é necessário ressaltar o caráter generalizante da repetência: a repetência como um
recurso pedagógico que está presente em todos os estratos sociais. Entretanto, cabe evidenciar a
influência de fatores sociais e demográficos. Como evidenciado neste artigo e alertado por autores
como Bourdieu, a repetência não atinge a todos na mesma proporção. Não pretendemos negá-la
como cultura geral, nem mesmo excluir a influência de outros fatores. Pretendemos, simplesmente,
afirmar insistentemente que enquanto a nossa amostragem se tratar de cidadãos provenientes de um
país estruturalmente estratificado há de se levar em conta recortes sociodemográficos.
Bourdieu empenhou-se profundamente em desmistificar a escola como um ambiente
meritocrático. Segundo Nogueira & Nogueira (2002), Bourdieu concebe a escola não só como
reprodutora de desigualdades mas também como legitimadora destes processos. Ao atribuir valores
(notas) distintos aos alunos, a escola dissimularia desigualdades socioculturais em desigualdades
cognitivas, legitimando as classes dominantes como aquelas que detém o dom individual.
É preciso desmistificar a escola como um grande oásis descolado da sociedade, um local
meritocrático e mágico onde todas as desigualdades desaparecem e a resposta para todos os
problemas pode ser encontrada. Na realidade, a escola está incluída e é atuante nas tão conhecidas
dinâmicas de exclusão e segregação sociais. Adotado essa perspectiva, faz-se necessário enfrentar
os discursos liberais que, como aponta Freitas (2007), entoam a “igualdade de acesso” mas nada
dizem sobre a urgência da implementação da “igualdade de resultados.”
Ao pensar as teorias reprodutivistas precisamos estar atentos a pelo menos três aspectos. O
primeiro deles diz respeito às especificidades de contexto. De certo, a realidade brasileira do século
XXI é completamente distinta do contexto observado por Bourdieu. Um exemplo imediato é o
grande entrelaçamento no caso brasileiro entre infraestrutura material, classe e escola. Assim como
aponta Mari et al (2002), lidamos não só com uma distância cultural mas também com uma
distância de disponibilidade de recursos significativa entre o ensino ofertado às classes populares e
o ensino ofertado às classes dominantes.
O segundo ponto diz respeito à reafirmação indubitável da escola como um ambiente
indispensável. Atualmente, setores conservadores têm defendido que a escola é um local
dispensável por se tratar de um ambiente propenso à manipulações, más influências e doutrinações.
Uma armadilha discursiva que pode estar contida nas teorias reprodutivistas é o pessimismo e a
negativação da própria escola: se esta apenas serve às classes dominantes, então para quê a escola?
Torna-se imprescindível “colocar os pingos nos is”.
Apontar as dinâmicas de exclusão intraescolar é delimitar um problema que deve ser
incluído no nosso horizonte. É compreender tanto as características quanto a magnitude do caso. E
isso é essencial para tornar a escola ainda mais adequada. Esta não é um produto pronto e nunca
será. Ela exige ser repensada e moldada a todo o tempo.
Para Pereira & Lopes (2016), a escola é: “[...] um espaço de intensificação e abertura das
interações com o outro e, portanto, um caminho privilegiado para a ampliação da experiência de
vida dos jovens.” (Pereira & Lopes 2016, pg. 205). Portanto, a escola expõe os indivíduos a
controvérsias e isso não é algo negativo como tentam as ideologias conservadoras postular. Esta é
um local de aprendizagem, não no sentido de uma simples absorção de conteúdos mas é um local de
aprender a se afetar enquanto dono de um corpo. Possibilidade que se dá partir dos contrastes. E por
isso a necessidade de entender a diferença como essencial ao processo de aprendizagem e não como
um obstáculo. A escola se configura como um ambiente essencial para o rompimento das
desigualdades que a assola. Defendê-la como indispensável é uma pauta política urgente.
Por último, não podemos nos esquecer de evidenciar os sujeitos. Ao mostrar que as
relações sociais produzem efeitos na dinâmica de funcionamento escolar, não podemos ignorar que
os sujeitos não reagem passivamente, apenas assimilando e se conformando. Não deixemos escapar
os conflitos. A reprodução de relações desiguais é algo presente, uma relação determinada; mas não
determinante. Ela modifica as relações escolares de maneiras distintas e imprevisíveis. Essa
dinâmica não cabe em modelos contidos e previsíveis. Sendo assim, trazemos exemplos observados
dessas relações. Que se leve em conta as multiplicidades.
Assim Szpeleta & Rockwell (1986), citado por Dayrell (1996) alertam: "[Em] cada escola
interagem diversos processos sociais: a reprodução das relações sociais, a criação e a
transformação de conhecimentos, a conservação ou destruição da memória coletiva, o controle e a
apropriação da instituição, a resistência e a luta contra o poder estabelecido." (Dayrell, 1996, pg. 2)
A segunda parte deste trabalho enfoca a maneira como os processos de repetência
modificam a relação dos sujeitos com a escola. Esses tecem visões distintas sobre a realidade
escolar: nunca homogêneas. Os processos de repetência são constituídos, também, por relações
complexas entre sujeitos distintos.
Guiados por essas perspectivas, procuramos responder através deste estudo: Qual o perfil
sociodemográfico dos alunos que são submetidos aos processos de repetência escolar? Se é produto
de relações desiguais, como os sujeitos reagem a essas desigualdades? Como a repetência modifica
a relação do com a escola e como afeta esses sujeitos? A reprovação possui relação com práticas
punitivas? Quais seus reais efeitos no aprendizado? E por fim, qual o papel dos diferentes atores
envolvidos no processo?
Discussões metodológicas: Atentamos aqui para nossa escolha de produzir este artigo sempre em
primeira pessoa. Construir uma pesquisa científica pressupõe a escolha de um tema, de referenciais
bibliográficos e de métodos. Antes mesmo do início formal, as escolhas fazem-se presentes. Há uma
tradição acadêmica que preza pela neutralidade e pela impessoalidade. Consideramos uma ilusão.
As escolhas partem de sujeitos. Como falar de sujeitos neutros? Somos sujeitos produtos de
vivências, dotados de olhares, crenças e perspectivas. No decorrer da pesquisa, tecemos vínculos e
laços. Participamos ativamente, e isso significa, inevitavelmente, engajar-se discursivamente.
Poupamos o leitor de ilusões e valorizamos a honestidade: o trabalho aqui presente é
resultado de um processo de produção e compartilhamento de conhecimentos e experiências,
vivenciados por dois sujeitos distintos em trajetórias e interessados ao campo. Carrega,
inevitavelmente, intencionalidade, subjetividade e pessoalidade.
Os dados aqui apresentados são resultados tanto de ferramentas metodológicas quantitativas
quanto qualitativas. A obtenção dos dados se deu por meio de um questionário survey e cadernos de
campo provenientes da observação participante em uma escola da rede pública de Belo Horizonte.
Portanto, utilizamos duas metodologias distintas, porém complementares umas às outras. Diversas
questões observadas em campo nortearam a análise quantitativa (desde a escolha das variáveis
utilizadas até o cruzamento dessas), assim como, a medida que as constatações estatísticas iam
tomando corpo, diversas questões da dinâmica de funcionamento da escola tornaram-se mais
palpáveis durante as idas ao campo.
A construção do questionário integra um projeto maior que abrange toda a comunidade de
pibidianos de Ciências Sociais da UFMG7. Realizamos uma seleção daquelas variáveis que
consideramos adequadas para abordar a temática das trajetórias escolares e das desigualdades. O
questionário foi aplicado a um total de 617 alunos de uma escola estadual de uma área periférica de
Belo Horizonte. Dentre esse total, temos 134 alunos da Educação para Jovens e Adultos e 482 do
Ensino Regular. Optamos analisar os dados referentes ao Ensino Regular por entender que a
dinâmica de funcionamento e as variáveis que afetam esses indivíduos variam de acordo com a
estrutura do formato de ensino.
Para a análise do perfil dos alunos, dividimos os dados em dois grupos: de alunos que nunca
passaram pelo processo de repetência escolar e de alunos que reprovaram ao menos uma vez
durante a trajetória escolar. Medimos a porcentagem referente a turno, escolaridade dos pais e raça
nos dois grupos, de modo a comparar o perfil próprio de cada um.
Para a análise da influência da repetência na relação aluno/escola, dividimos os dados em
quatro grupos: alunos que nunca passaram pelo processo de reprovação, que vivenciaram ao menos
uma repetência, ao menos duas e mais de duas repetências. Para cada grupo analisamos em
porcentagem simples o nível de concordância com as regras da escola, a percepção dos alunos
7 Especialmente, a construção dos dados contou com o auxílio da coordenadora do PIBID Sociologia da UFMG: Elaine Vilela.
acerca do incentivo recebido para participar da escola e o quanto acha que os recursos pedagógicos
disponíveis auxiliam o aprendizado.
Estará disponível em anexo uma tabela detalhada acerca da construção de cada variável
utilizada. Todas as associações estatísticas aqui apresentadas foram submetidas ao teste de qui
quadrado, apresentando um nível de confiança entre 95 e 100%.
Além das análises estatísticas, utilizamos também o método de observação participante.
Acompanhamos semanalmente as aulas de Sociologia e a dinâmica de funcionamento da escola
todas as terças-feiras no período das 19 h às 22:30 h. Totaliza-se cinco meses de inserção presente
no campo. Acompanhamos quatro turmas nesse período, além do tempo em que passamos na sala
dos professores e outros espaços como a cantina e espaços de convivência tecendo percepções a
partir da participação das aulas e de conversas informais com alunos, professores e funcionários.
A construção dos diários de campo perpassa uma formação no Ateliê de Ciências Sociais e
Ensino da FaE, que durante esse tempo nos auxiliou na construção do olhar educado e sensível.
Para a construção deste artigo, selecionamos as informações percebidas a partir de alguns
eixos de análise. São eles: os processos de repetência, o combate das desigualdades na escola, a
construção do espaço escolar e da Sociologia pelos alunos e a relação escola/aluno.
Quem a repetência atinge? Através do compartilhamento de experiências entre os pibidianos que
atuam em diversos turnos na escola analisada, concluímos uma diferenciação marcante entre turnos.
Principalmente entre o turnos diurnos e o turno noturno. Diferenças que se dão desde a composição
do próprio corpo docente e as estratégicas didáticas adotadas pelos professores até o perfil dos
alunos. Essa diferenciação entre turnos perpassa também as taxas de reprovação escolar.
Podemos inferir que o número de repetência entre os alunos cresce de acordo com o turno.
No turno da manhã, 23,67% dos alunos declaram ter passado pelo processo de repetência. O
número sobe para 43,96% no turno da tarde e atinge 74,05% no turno noturno. No período da
manhã, estão 61,41% dos alunos, por isso a frequência de alunos repetentes é maior. Entretanto,
proporcionalmente a repetência atinge o turno noturno mais pesadamente.
A vice-diretora do turno noturno afirma que não existe uma política de ensalamento na
escola, ou seja, a direção não adota a prática de agrupar os alunos com “piores desempenhos”.
Segundo ela, a homogeneização entre os turnos é uma dinâmica que se dá muito mais pela ação dos
próprios alunos. Existe uma ideia corrente na escola de que o turno noturno é mais fácil por haver
menos cobrança por parte dos professores. Sendo assim, uma estratégia adotada pelos alunos que
começam a ter uma queda no desempenho escolar seria migrar para o turno noturno.
A escolaridade da família também mostra-se como uma variável fundamental para o
mapeamento das reproduções de desigualdades no interior da escola. Escolaridade e classe social
possuem uma relação diretamente proporcional. Sendo assim, na construção do questionário,
optamos pela variável de escolaridade como medida de classe.
NOGUEIRA (2002) aponta que, para Bourdieu, a bagagem familiar impacta
significativamente o destino escolar dos sujeitos. Cada família possui um habitus familiar que varia
com a posição social e o volume de capitais disponíveis. Esse habitus é adquirido a partir das
experiências dos indivíduos, construindo um conhecimento prático que influencia suas estratégias
de ação. Alunos provenientes das classes populares passam pelo processo de descontinuidade entre
o habitus familiar e escolar. Isso pode acarretar uma incompreensão dos códigos escolares, menor
desempenho nos processos avaliativos (ou julgamentos culturais), menor informação sobre o
funcionamento do sistema escolar, entre outros.
O gráfico abaixo demonstra a relação entre escolaridade dos responsáveis (1º e 2º
responsável) e ocorrência da repetência:
Figura 1: Gráfico escolaridade da família e repetência
Entre os alunos com escolaridade da família muito baixa, 50,91% já passaram pelo
processo de reprovação escolar. O número decresce chegando a 37,30% entre os alunos com
escolaridade da família baixa e 29,20% entre os alunos com escolaridade familiar alta. Entretanto, a
porcentagem de alunos reprovados cresce consideravelmente entre os alunos com escolaridade da
família muito alta, chegando a 42,62%. Consideramos este um fato interessantíssimo para
investigações futuras.
Por fim, uma outra variável significativamente relacionada à repetência é a raça. A história
brasileira é impregnada por uma percepção de país sem raça. Durante as décadas de 1910 a 1940 a
ideia do Brasil como um “paraíso racial” foi fortemente estimulada por se tratar de um país onde
não havia leis propriamente ditas que impediam a mobilidade social para pessoas pretas e pardas.
Em meados da década de 60, a militância negra e intelectuais como Florestan Fernandes
concentram seus esforços em escancarar o mito racial. Entretanto, esse continua vivo enquanto falsa
ideologia. (GUIMARÃES, 2002)
Sendo assim, tomamos como escolha imprescindível a adoção da variável raça como
critério comparativo para os índices de repetência entre os alunos da escola analisada. Vale ressaltar
que 65,98% dos alunos entrevistados se auto declaram negros (pretos ou pardos). Por motivos de
baixíssima frequência optou-se por não analisar aqui a trajetória de alunos autodeclarados amarelos
ou indígenas, merecendo uma possível análise posterior com enfoque metodológico mais adequado.
Entre os alunos brancos, 27,95% declaram que já passaram pelo processo de reprovação
escolar, enquanto entre os alunos negros o número cresce para 40,66%. A diferença entre os grupos
raciais é de 12,71%. Isso torna a raça uma variável importante nesse processo de repetência escolar,
confirmando a questão proposta anteriormente em que a escola não é uma instituição apartada da
sociedade mas que corrobora a reprodução de desigualdades sociodemográficas, dentre estas a
desigualdade racial.
A repetência escolar possui um caráter não equitativo. Utilizamos a palavra equitativo em
contraposição à ideia de igualitário para enfatizar que, não se trata necessariamente de uma falta de
disposição dos mesmos recursos a todos os alunos. Trata-se de uma incapacidade de lidar com as
desigualdades sociais que atingem os alunos de maneiras diferenciadas, tanto em número quanto em
grau. Sendo assim, a repetência atinge o alunado de maneira desigual. Suas vítimas possuem classe
e cor. Nessa segunda parte, traçaremos algumas considerações acerca do real motivo da utilização
da reprovação e suas consequências.
Um emaranhado de “aconteceres”: É incompleta uma análise das relações desiguais no
contexto escolar que leve em conta apenas a exclusão sistemática de alunos específicos no decorrer
de suas trajetórias. Consideramos importante destacar tal processo, assim como estar atento ao seu
caráter parcial, ou seja, ele “não dá conta sozinho”. Assim como todos os fios isolados que insistem
em produzir a ilusão do “objeto” consumado e congelado. Estamos interessados na “coisa” que
nunca está contida mas, pelo contrário, sempre transborda. Ela está viva. (INGOLD, 2012).
A escola é, indubitavelmente, um emaranhado de “aconteceres”. Foi essa a reflexão que
tecemos quando três alunas do primeiro ano EJA nos procuraram para contar sobre a construção do
“Projeto Diversificar”. As alunas perceberam a demanda deste a partir de um caso de racismo e
gordofobia vivenciado em sala por uma aluna. Quando chegamos à sala, o clima ainda estava tenso.
A aluna que havia sofrido o ataque retirou-se da sala. Duas colegas de turma a acompanharam.
Colocaram-se em um certo canto isolado da escola, as três de mãos dadas dizendo palavras que
tinham a intenção de confortar a amiga, tecendo gestos de afeto e carinho.
Foi assim que nasceu o “Projeto Diversificar” que está em processo de constante
construção. O objetivo é criar uma escola que não se omita às desigualdades, conscientizando o
alunado através de rodas de conversa, exibição de filmes, distribuição de cartazes e palestras
educativas. Objetiva também cobrar com mais ênfase a abordagem destes temas em sala de aula.
As desigualdades, incluindo as escolares, não são estruturas que operam sobre os sujeitos
sem que estes tenham consciência sobre sua existência. Muito pelo contrário, são configurações
constantemente questionadas. Configurações que se reconfiguram dia após dia incansavelmente.
Também destacamos os vínculos que se criam durante a trajetória escolar. O mundo não receptivo é
compartilhado e repensado na reunião dos iguais (portadores do mesmo estigma) e dos informados,
que tendem a se englobar. (GOFFMAN, 1988)
A procura dos estagiários de Sociologia para o auxílio do projeto é uma pista essencial para
entender onde está a importância da Sociologia no ambiente escolar. A associação do combate ao
preconceito com a matéria pareceu instantânea aos alunos envolvidos no projeto. Evidencia uma
percepção dos próprios alunos da potencialidade de uma atuação sociológica além da sala de aula.
Schweig (2015) aborda a coprodução da Sociologia no espaço escolar a partir de uma
perspectiva ingoldiana. Nessa abordagem, a Sociologia não está contida nem em atores, nem em
espaços-tempo definidos, muito menos em formas. Ela vaza a figura do professor ou dos estagiários
na medida em que os alunos também se tornam produtores desta. Ela vaza os cinquenta minutos
semanais em sala de aula na medida em que vai sendo mobilizada em outros espaços-tempo, ou
“ocupando espaços que estão no vácuo” (Schweig, 2015). Podemos pensar até mesmo em um
vazamento para além dos muros da escola. Por fim, a sociologia vaza à forma do currículo ou dos
conceitos. Estes não necessariamente são pré-condições para o fazer sociológico cotidiano. Estamos
falando de um acontecer além da fronteira, da forma e do agente. Uma ciência processual produzida
por pessoas que habitam a reunião do espaço escolar.
A repetência e a relação entre o aluno e a escola: a produção de um corpo apático:
Uma das primeiras percepções ao adentrar no terreno escolar é a maneira como os processos de
reprovação vão modificando, ao longo do tempo, a relação entre o aluno e a escola. Essa mudança é
claramente perceptível, também, a partir da análise dos dados quantitativos.
A primeira mudança observada a partir dos dados foi a relação dos alunos com os modelos
de aulas propostos. As tabelas abaixo referem-se à opinião dos alunos sobre alguns recursos
pedagógicos. Foi perguntado se, na opinião deles, os recursos pedagógicos poderiam contribuir para
a aprendizagem dos conteúdos.
Sem repetência Uma repetência Mais de uma Duas ou mais
Aula expositiva 78,23 73,53 65,22 58,33
Debates 58,84 46,67 57,14 52,38
Excursão 82,25 75 72,22 60
Vídeos 72,01 66,67 52,63 52,38
Observamos que quanto mais afetados pelo processo de repetência, menos os alunos
acreditam na potencialidade dos recursos pedagógicos para seu aprendizado. Destacamos que não
se trata apenas de uma recusa aos recursos tradicionais, em especial a aula expositiva. Trata-se de
uma recusa a diversos recursos disponíveis, como a excursão, os debates e a utilização de vídeos.
Portanto, a repetência está diretamente relacionada a um processo de atenuação do desinteresse por
parte dos alunos às diversas abordagens de aulas propostas.
Os processos de repetência modificam também a maneira como o aluno se conforma às
regras impostas pela escola. Foi perguntado se, na opinião deles, as regras contribuem para o bom
funcionamento da escola. As regras analisadas foram: obrigatoriedade do uso de uniforme,
proibição do uso de celular, fechamento da portaria durante o período de aula, fechamento de
espaços específicos durante o recreio, proibição da entrada com atraso, solicitação de autorização
do professor para sair da sala de aula, proibição de acessórios como bonés e proibição de roupas
como bermuda e short. A tabela abaixo mostra quem são os alunos, a partir da perspectiva da
ocorrência da repetência, que concordam pouco ou nada com as regras.
Sem repetência Uma repetência Mais de uma Duas ou mais
Concorda muito pouco ou nada com as regras escolares respectivamente
6,04 15,79 15,79 17,65
Constatamos que quanto mais os alunos são atingidos pela reprovação mais a discordância
com as regras escolares se acentuam de maneira bastante significativa.
Além do mais, os processos de repetência modificam o quanto os alunos consideram a
escola um local participativo. Foi perguntado se eles acham que a escola incentiva a participar dos
eventos propostos por ela, da construção de normas, da construção de atividades e da tomada de
decisões. A tabela abaixo exibe a relação entre a repetência e a percepção de um ambiente escolar
pouco participativo.
Sem repetência Uma repetência Mais de uma Duas ou mais
Escola incentiva muito pouco a participação dos alunos
37,97 53,33 69,23 66,67
Também em caráter crescente, o gráfico acima nos diz que os alunos afetados pela
repetência tendem a conceber a escola como menos participativa. Entre os alunos que tomaram
mais de uma repetência, a opinião que a escola incentiva pouco a participação é muito mais
recorrente que entre os alunos que nunca repetiram de ano.
Portanto, a reprovação escolar tem como consequência direta a produção de um corpo
apático, desinteressado e discordante com o universo escolar. Os alunos afetados por este processo
tecem visões significativamente mais negativas acerca da escola. A relação aluno/escola se torna
cada vez mais conflituosa e conturbada.
Recurso pedagógico ou punitivo? Por recurso pedagógico entendemos tudo aquilo que é
utilizado pelo corpo docente para mediar e estimular o aluno a aprender. A partir dessa perspectiva,
a repetência oportuniza ao aluno a aprendizagem dos conteúdos do ano letivo a partir de um novo
contato. Por recurso punitivo compreendemos todas as ações contra um sujeito que se sucedem de
um comportamento desviante.
O grupo de alunos que passaram pelo processo de repetência é, também, o grupo mais
afetado por práticas punitivas. Aqui, destacamos como práticas punitivas a expulsão de sala e a
expulsão da escola. As tabelas abaixo demonstram a incidência de punição entre alunos repetentes
e alunos não repetentes.
Sem repetência Uma repetência Mais de uma Duas ou mais
Expulsão de sala 34,31 91,3 95,94 86,36
Expulsão de escola 2,03 9,03 13,73 25
Quando medimos a ocorrência da expulsão de sala, constatamos que ela ocorre 2,8 vezes
mais entre os alunos que passaram por ao menos dois processos de reprovação que entre aqueles
que nunca repetiram de ano. Os alunos que já passaram por mais de duas repetências são expulsos
de escolas 12,3 vezes mais que aqueles que nunca reprovaram. Sendo assim, no contexto analisado,
constatamos uma relação significativa entre reprovação escolar e punição.
As práticas de castigo escolar possuem um repertório histórico. Entretanto, vivenciamos
uma reinvenção das maneiras de punir. Segundo Aragão e Freitas (2012) os castigos escolares de
hoje possuem um caráter mais psicológico que físico em comparação aos castigos de ontem, mas
continuam carregados de violência.
Punição e o poder (in)disciplinador: Foucault (1987) analisa o processo de mudança do
caráter da punição nas sociedades europeias. Segundo o autor, as punições passam por um processo
de “suavização”, atentando-se não mais para o corpo mas para a alma. A finalidade da punição é
produzir um corpo submisso e produtivo. No contexto capitalista, isso significa, também, um corpo
apto ao mercado de trabalho.
Entretanto, esse processo de disciplinarização do corpo não é observado com a aplicação
da punição na forma da repetência escolar. Muito pelo contrário. Tratamos da produção do corpo
apático. Isto é, quanto mais punimos o aluno empurrando-o ao processo de reprovação escolar, mais
desinteressado e indisciplinado esse corpo se torna. Cabe, então, repensarmos estas práticas.
Se o produto da repetência é um corpo apático à escola, estamos lidando não só com um
simples prolongamento do tempo do aluno na instituição escolar. Trata-se de uma acentuação do
desligamento corporal entre o aluno e a escola. Um ocaso por parte das instituições escolares
àqueles alunos que não se adaptam e que não atingem o esperado. Alunos esses que, cabe relembrar,
são provenientes de camadas específicas, assolados pela exclusão social de diversificados tipos.
Destacamos que as práticas de punição/castigo não estão contidas no contexto escolar.
Podemos transpor Garland (1999) para falar de recursos punitivos empregados na escola. Para o
autor, falar de punição é falar de categorias e distinções às quais atribuímos significados em nosso
mundo. Significa, portanto, adentrar o terreno de características basilares da sociedade. No caso
brasileiro, o autoritarismo e a retribuição. Para o autor, o castigo é uma solução autoritária e
imediata para um problema que incomoda: “Nenhuma necessidade de cooperação, de negociação
ou mesmo de saber se isto funciona ou não. O castigo é um ato de demonstração do poder
soberano, uma ação eficaz que ilustra o que é realmente o poder absoluto.” (GARLAND 1999, pg. 74)
O castigo, portanto, não necessariamente possui uma preocupação com o após, isto é, não
está vinculado a uma noção de resolução do problema encontrado. Não estamos apenas falando de
uma punição que produz a apatia mas também de uma punição que reduz a possibilidade de
reinserção deste aluno nos processos de aprendizagem. Configura-se um processo cíclico, pouco
preocupado com a ressocialização e mais atento à retribuição ao comportamento desviante com o
objetivo de reafirmar o poder e manter a ordem.
Algumas considerações devem ser realizadas. Falar de castigo é, sem dúvidas, falar de uma
cultura autoritária arraigada à sociedade e, consequentemente, ao contexto escolar. Traçaremos,
então, uma reflexão acerca do suposto caráter totalitário e absoluto desse poder institucional.
A escola como um “nó frouxo”: Quem não se lembra do clássico videoclipe do Pink Floyd
“Another Brick in the Wall”? A banda de rock retrata uma visão clássica de uma escola disciplinada
com a figura do professor imponente à frente exercendo um poder absoluto. Algumas cenas
mostram uma sala de aula com as mesas dispostas impecavelmente em fileiras, os alunos em
silêncio, com a cabeça erguida e a postura corporal absolutamente conformada às expectativas
impositivas da instituição escolar.
Tal ideia aproxima-se da visão foulcautiana de sociedade disciplinar. Foucault (1987)
defende que as nossas instituições, incluindo a escola, atuam de maneira estratégica para a
consolidação de um poder disciplinar. Para o autor, trata-se de um poder que: “[...] em vez de se
apropriar e de retirar, tem como função maior “adestrar”; ou sem dúvida, adestrar para retirar e
se apropriar ainda mais e melhor” (FOUCAULT 1987, pg. 195)
Ao adentrarmos à escola, o contexto encontrado em nada se assemelhava ao descrito por
Foucault. No lugar de professores impositivos e autoritários, encontramos indivíduos
constantemente induzidos pela configuração a (re)negociar sua autoridade. Não constatamos
também uma arquitetura panóptica eficaz como a descrita pelo autor. Uma arquitetura que permita
um jogo de olhar poderoso e coercitivo que torne tudo visível. Ao contrário de mesas
impecavelmente dispostas em fileiras, encontramos uma disposição bastante diversificada de acordo
com o gosto dos alunos. Alguns chamariam de “salas bagunçadas”, nós chamamos de “sala
avivamente autêntica”. Enfim, o que encontramos, na realidade, foi uma configuração bastante
distinta de uma instituição disciplinar no sentido foucaltiano, como relatada no trecho do diário de
campo a seguir:
“Após o recreio, adentramos em uma sala do 3º ano EJA. A sala encontrava-se bastante
agitada. As carteiras estavam dispostas aleatoriamente pela sala sem nenhuma lógica
aparente. Entretanto, um olhar mais atento seria capaz de captar seu sentido. Os alunos
que mantinham relações mais próximas, juntavam suas carteiras uma do lado da outra
com o objetivo de facilitar as interações durante as aulas. Ainda era possível notar uma
antiga configuração das carteiras dispostas em fileiras paralelas. A arquitetura daquela
sala indubitavelmente fora projetada pelos próprios alunos. Enquanto as conversas
aconteciam, o professor anotava o conteúdo no quadro. Ironicamente, tratava-se da nova
visão de poder de Michel Foucault. No quadro, lia-se: ‘As relações de poder, seja nas
relações pelas instituições, escolas, prisões, foram marcadas pela disciplina e por ela se
tornam facilmente observáveis.’ Após escrever o conteúdo, o professor passa para a fase
de explicar a matéria. Entretanto, as conversas paralelas dificultam o prosseguimento de
seu raciocínio. Ele pede educadamente ‘Ô galera vamos colaborar, por favor’. O pedido
de silêncio repetiu-se por mais algumas vezes. Em um exercício colaborativo a turma foi
cedendo ao silêncio. Mas não sem o esforço do professor. Alguns alunos focavam sua
atenção em outros aconteceres.”
Não pretendemos dizer que não há, de fato, um empreendimento por parte da equipe
dirigente em implantar um poder disciplinador na escola analisada. Destacamos, por exemplo, a
presença de câmeras de “segurança”, ou, por melhor dizer, “máquinas de vigiar” no interior de
todas as salas de aulas. Trata-se, sem dúvidas de uma tentativa de controle dos alunos, como
descrito no mapeamento da escola realizado pela equipe de pibidianos:“O uso da câmera como
ferramenta pedagógica faz ainda mais sentido se pensarmos em quais locais estas estão
localizadas. [...] A câmera presente nos espaços comuns da escola e, principalmente, no interior da
sala de aula possui um objetivo diferente. Pressupõe muito mais um controle do aluno em si e de
sua rotina dentro da escola.”
Porém, essas tentativas de controle simplesmente não são bem-sucedidas. Primeiro porque
não podemos afirmar uma homogeneidade do corpo docente e da direção. Ali também coabitam
visões controvérsias em constante conflito. Ainda não podemos sequer falar em uma coerência
absoluta acerca da conduta dos indivíduos separadamente. Um exemplo é a figura enigmática do
diretor. O professor de Sociologia descreveu que por mais que o diretor possuísse algumas posturas
mais incisivas em relação aos alunos, sempre mostrava-se aberto às ideias de projetos participativos
e interessado em construir um ambiente escolar agradável aos alunos. Além disso, as tentativas de
controle total não são bem-sucedidas pois os alunos estão constantemente se reajustando. No caso
das câmeras, encontram “pontos cegos” ou simplesmente a incorporam no cotidiano passando a não
levá-las tanto em consideração.
Estamos aqui descrevendo um contexto parecido com um “nó frouxo”. Primeiro porque
estamos falando de diversas linhas coexistentes, contraditórias e heterogêneas. Segundo porque,
esse nó não está atado de maneira firme e irreversível. Ele se desfaz e refaz em um movimento
fluido de mudança constante.
Algumas conclusões traçadas…
A escola como reprodutora de desigualdades não é um conceito novo nas Ciências Sociais.
Tendo como base a sociologia de Bourdieu, essa discussão faz-se significativamente presente nos
cursos de Educação e Sociologia. Entretanto, essas dinâmicas continuam compondo a escola,
definindo trajetórias e significando espaços. O processo de reprovação escolar possui um caráter
excludente e desigual a medida em que afeta os alunos de maneira desigual. Como demonstrado
nesse trabalho, o aluno que reprova possui um perfil específico, marcado pela classe e pela cor.
Apontar a reprodução da desigualdade na escola significa reafirmar a necessidade de repensar a
configuração escolar: os métodos avaliativos, as dinâmicas de aula e a relação entre corpo discente,
aluno, família e comunidade.
Os alunos não são atores passivos e conformados com os processos de exclusão. A escola
se apresenta como um emaranhado de aconteceres a medida em que contempla inevitavelmente
processos sociais de diversos tipos. Dentre eles os processos e exclusão, discriminação e
preconceitos, mas também dinâmicas de enfrentamento, luta, conflito, fortalecimento de vínculos,
mudanças de paradigmas e renegociações constantes. A Sociologia possui um papel fundamental
nesse emaranhado complexo. Não como disciplina auxiliadora necessariamente. Não como fonte de
conceitos e explicações. Mas como a coisa que “vaza”. Ela é constantemente acionada pelos alunos
durante a construção desses processos e coproduzida para além das fronteiras de espaço-tempo e
agentes específicos.
Por fim, concluímos que o processo de reprovação escolar compõe um cenário não só de
prolongamento do tempo das classes populares no sistema de ensino mas também de atenuação do
conflito entre estes e a escola. Tal processo não atua como recurso pedagógico capaz de auxiliar o
processo de aprendizagem mas possui uma relação muito mais próxima do castigo e da punição,
principalmente por não estar relacionada a uma eficiência ou à produção de uma solução. A
repetência gera um corpo apático, indisciplinado e desinteressado ao universo escolar. Sendo assim,
possui implicações graves na dinâmica da escola, no cotidiano do professor, na configuração das
aulas e na trajetória de vida dos jovens.
Referências Bibliográficas
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SILVA, D., Marcos “AS CAUSAS DA EVASÃO ESCOLAR: estudo de caso de uma escola pública
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SCHWEIG, Graziele R. Aprendizagem e ciência no ensino de Sociologia na escola: um olhar desde
a Antropologia. Porto Alegre, 2015.
Anexos
Variável Descrição da construção
Uma repetência Geramos uma nova variável que concebe como 1 aqueles alunos que declararam ter passado por ao menos uma repetência escolar e como 0 aqueles que declararam não ter passado por nenhuma repetência, uma ou mais repetência ou duas ou mais repetências.
Duas ou mais repetências
Geramos uma nova variável que concebe como 1 aqueles alunos que declararam ter passado por mais de uma repetência escolar e como 0 aqueles que declararam não ter passado por nenhuma repetência, apenas uma ou duas ou mais repetências.
Raça Geramos uma variável que concebe como 1 os alunos que declaram sua
cor como parda ou preta e como 0 aqueles que declaram sua cor como branca.
Escolaridade dos responsáveis
Transformamos a variável nominal da escolaridade dos responsáveis em numéricas. Quanto maior a escolaridade maior o valor numérico. Somamos o valor do primeiro e segundo responsável. Separamos os valores em quatro faixas aproximando-se de quartis. São elas: “muito baixa”, “baixa”, “alta” e “muito alta”
Nível de concordância com as regras
Criamos uma variável referente à opinião do aluno acerca de cada regra da escola, sendo um total de 8 regras. Concebemos como 1 aqueles casos em que se considera que a regra contribui para o funcionamento da escola e 0 para os casos em que não se considera, excluindo-se os casos de indiferença. Somamos os valores. Separamos os valores em quatro faixas aproximando-se de quartis. São elas: “concorda muito pouco ou nada”, “concorda pouco”, “concorda médio” e “concorda muito”.
Nível de incentivo à participação
Transformamos as quatro variáveis acerca da participação escolar em numéricas. Concebemos 1 para os casos em que se considera que a escola incentiva bastante ou totalmente e 0 para pouco ou nada. Somamos os valores. Separamos em quatro faixas aproximando-se do corte dos quartis.São elas: “incentiva muito pouco ou nada”, “incentiva pouco”, “incentiva médio”, “incentiva muito”.
Preferências pedagógicas
Transformamos cada variável referente a um recurso pedagógico em numéricas. Concebemos 0 para aqueles casos em que se considera que o recurso em questão contribui nada ou pouco e 1 para os casos aqueles casos em que se considera que se contribui bastante ou muito. Analisamoscada recurso pedagógico separadamente.