A relevância sócio-comunicativa da carta na Roma antiga · 2015-02-24 · da carta na Roma antiga...
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Revista Mundo Antigo – Ano III, V. 3, N° 06 – Dezembro – 2014 ISSN 2238-8788
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A relevância sócio-comunicativa
da carta na Roma antiga
Marco Antônio da Costa1
Submetido em Setembro/2014
Aceito em Novembro/2014 RESUMO: Este artigo propõe-se a tratar de importantes aspectos da carta no mundo antigo, especialmente em Roma. Nele são abordados alguns pontos básicos capazes de permitir a obtenção de um entendimento satisfatório da relevância da comunicação epistolar na Antiguidade. O texto apresenta informações referentes não apenas ao emprego, mas também à estrutura, aos diversos modos de escrita, aos tipos e à avaliação do caráter literário das cartas antigas. Através de um conteúdo apresentado de forma sucinta e objetiva, espera-se contribuir para uma boa compreensão do assunto abordado. Palavras-chave: Epistolografia – Mundo Antigo – Escrita. ABSTRACT: This article proposes to address important aspects of the letter in the ancient world, especially in Rome. In it are discussed some basic points which will permit obtaining a satisfactory understanding of the relevance of the epistolary communication in Antiquity. The paper presents information concerning not only the use but also the structure, the various modes of writing, the types and the evaluation of the literary character of old letters. Through a content presented in a concise and objective manner, it is hoped to contribute to a good comprehension of the subject dealt with. Keywords: Epistolography – Ancient World – Writing.
1 Mestre em Estudos Literários pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), professor de Língua Portuguesa do Centro Federal de Educação Tecnológica de Minas Gerais (CEFET-MG).
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Visto que, quando leio a sua carta, pareço ouvi-lo, e quando lhe escrevo, pareço falar com você, por isso me alegro imensamente em cada carta mais longa que você me escreve e muitas vezes eu mesmo sou mais prolixo quando escrevo.2 (Cícero).
Introdução
Há milhares de anos a carta foi inventada como um gênero textual capaz de
possibilitar o processo comunicativo entre duas ou mais pessoas que se encontrassem
distanciadas. No decorrer da história da humanidade, o uso da carta foi se ampliando
cada vez mais embora em tempos mais remotos as pessoas, motivadas por fatores como
o elevado preço do material de escrita e a alta taxa de analfabetismo, preferissem
utilizar os serviços de um mensageiro que transmitisse oralmente as notícias que
interessavam a parentes e amigos separados espacialmente. Contudo, essa preferência
foi paulatinamente cedendo espaço à prática da redação e do envio de cartas. Assim, a
carta passou a ser responsável pela transmissão de notícias alegres e tristes, pela geração
de intensas emoções, pela avalanche de revelações inesperadas e desconcertantes, pelo
atar, desatar e reatar de incontáveis relacionamentos. Nas páginas seguintes, são
oferecidas relevantes informações sobre a utilização, a estrutura, os modos de escrita, os
tipos e a literariedade das cartas escritas na Roma antiga. Seguramente, o estudo desses
aspectos relacionados à epistolografia romana oferecerá um quadro do importante papel
sócio-comunicativo da carta na Antiguidade.
Utilização
Ainda que não se possa indicar precisamente quando foi iniciada a utilização da
carta como meio de comunicação, pode-se afirmar que tal uso foi amplamente
favorecido por três importantes fatores: o surgimento da escrita alfabética, a expansão
do uso do papiro como material de escrita, e a prática da arte retórica na Grécia e em
Roma.
2 Todas as traduções contidas neste artigo foram feitas pelo próprio autor.
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A escrita alfabética, que começou a ser usada antes de 1500 a.C., representou um
enorme avanço tecnológico, pois com um conjunto de apenas vinte e poucos sinais o
homem passou a ser capaz de representar todas as diversas palavras que, no sistema de
escrita anterior (cuneiforme), eram expressas por mais de quinhentas marcas diferentes.
Na Grécia, sabe-se que a escrita alfabética foi introduzida por volta de ano 740 a.C.,
ensejando uma significativa transformação nas práticas sócio-comunicativas e uma
grande difusão do uso da carta. Embora seja indicado que as duas cartas gregas mais
antigas e de incontestável autenticidade que chegaram até a modernidade, as quais
foram escritas em placas de chumbo, datem do quarto século a.C. (CARDINALI, 1929,
p. 104), há indicação consistente de que já no século V a.C. a prática de enviar e receber
cartas encontrava-se bem difundida entre os gregos, como observa Wise (1998, p. 17),
referindo-se a peças teatrais desse século:
Tanto na encenação quanto na narração os personagens de dramas são representados lendo livros, enviando e recebendo cartas, escrevendo testamentos, interpretando oráculos escritos e leis, estudando textos escolares e escriturando registros e mais registros de testemunho no tribunal. (grifo nosso).
Outro fator que incrementou o emprego da carta como meio de comunicação na
Antiguidade foi o uso extensivo do papiro como material de escrita a partir do século III
a.C. Os egípcios foram o primeiro povo a usar o papiro como material de escrita, tendo
desenvolvido a técnica de fabricação de folhas dessa planta por volta de 2500 a.C. O
papiro, precursor do papel, fazia-se de canas que cresciam em brejo, de 5 a 7 cm de
diâmetro e de 3 a 4 m de altura. Tais canas eram abertas em fatias, que se punham
transversalmente, em camadas alternadas; depois, eram umedecidas, prensadas e
reduzidas a folhas, comumente de uns 30 cm de largura, por 30 cm a 3 m de extensão.
Ao contrário dos suportes anteriormente usados para a escrita como, por exemplo, os
tabletes de cera e as placas de chumbo, as folhas de papiro favoreciam a redação de
textos mais extensos pelo fato de poderem formar rolos ao serem coladas umas às
outras. (IRIGOIN, 2001, p. 13).
Além da escrita alfabética e do uso do papiro, a retórica também deu uma
importante contribuição para o aumento da escrita de cartas tanto na Grécia quanto em
Roma. Hermann (1901, p. 14) observa que a retórica "submeteu também a carta sob a
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sua influência". A relação entre retórica e epistolografia revela-se de forma bastante
clara no seguinte comentário feito por Thaís Martin (2010, p. 26):
Apesar de a exposição dos preceitos da epístola não constar, em regra, nas artes retóricas antigas, o ensino deles, todavia, incidia nos chamados progymnásmata, isto é, naquele conjunto de cerca de doze exercícios que preparavam para os estudos de retórica o aluno que tinha concluído seus estudos de gramática. Um desses exercícios, chamado ethopoiía ou prosopopoiía, consistia na caracterização de personagens, onde o aluno tinha de compor uma fala adequada a algum caráter.
Contudo, embora a retórica tenha impulsionado a escrita de cartas, não se
verifica o desenvolvimento de uma verdadeira teoria epistolar entre os antigos. Por isso,
a Enciclopédia Italiana aponta como melhor obra antiga sobre epistolografia a Ars
rhetorica, escrita por Caio Júlio Vítor somente no século IV d.C. Nos dois últimos
capítulos de sua obra, Vítor aborda dois temas que não eram contemplados nos manuais
de retórica anteriores: a conversação e a carta. Especificamente em relação à segunda,
ele a classifica em dois tipos: negocialis (negocial) e familiaris (familiar). Além disso,
ele explica a natureza desses dois tipos de carta e aponta alguns de seus elementos
constitutivos, a saber: a brevidade, a objetividade, a clareza e a adequação do discurso à
posição sócio-cultural do destinatário. Ao final, Vítor recomenda o uso de alguns
artifícios que objetivam aumentar a eficácia da comunicação epistolar no antigo mundo
romano:
É bom colocar algo em grego nas cartas, desde que você não o faça de forma inoportuna nem repetida; é muito conveniente usar um provérbio conhecido, um pequeno verso ou parte de um verso. De vez em quando, é elegante dirigir-se à pessoa como se ela estivesse presente, usando expressões como: “olá!”, “o que você está dizendo?” ou “estou vendo você sorrir”. Há muitas expressões desse tipo em Cícero. Mas isso, como já disse, pode ser feito nas cartas familiares, pois a seriedade das cartas que tratam de negócios é maior. Enfim, lembre-se de exprimir-se bem não só nas cartas, mas em todo escrito. (VICTOR, Ars rethorica, XXVII, 29-36).3
3 Graece aliquid addere litteris suave est, si id neque intempestive neque crebro facias: et proverbio uti
ignoto percommodum est, et versiculo aut parte versus. Lepidum est nonnunquam quasi praesentem
alloqui, uti ‘heus, tu’ et ‘quid ais’ et ‘video te deridere’: quod genus apud M. Tullium multa sunt. Sed
haec, ut dixi, in familiaribus litteris; nam illarum aliarum severitas maior est. In summa id memento et ad
epistolas et ad omnem scriptionem bene loqui.
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Baseando-se no conselho de Vítor para que se primasse pela boa elaboração de
textos escritos, percebe-se que, na verdade, os antigos consideravam a redação epistolar
um ato comunicativo de grande relevância social através do qual se evidenciava o nível
cultural do redator. Segundo Möller (2009, p. 19), mesmo as cartas particulares
eram escritas em linguagem elaborada e em forma estilizada. As próprias cartas que Cícero escreveu no exílio, bem como aquelas destinadas a sua esposa Terência, as quais foram redigidas em situações de profundo desespero, preocupação e frustração, mostram uma linguagem um tanto requintada e adornada com recursos estilísticos porque o seu próprio autor não podia negar-se completamente, nos textos escritos rapidamente, como escritor que possuía uma cultura retórica.
De acordo com Scarpat (1983, p. 493), um conjunto de aproximadamente 15.000
cartas greco-romanas conservou-se até nossos dias. Desse total, 1.544 cartas foram
escritas por Libânio (314-393 d.C.), retor de fala grega nascido em Antioquia, o qual,
considerando-se apenas o referido conjunto remanescente, é o recordista da escrita de
cartas na Antiguidade. Quanto aos romanos, o recorde pertence a Cícero, cujo
epistolário totaliza 931 cartas das quais pouco mais de 70 não foram escritas por ele,
mas por alguns de seus correspondentes.
Estrutura
A estrutura da carta antiga normalmente seguia uma fórmula bem rígida. O
primeiro elemento a aparecer era a saudação inicial na qual figuravam os nomes do
remetente, no caso nominativo, e do destinatário, no caso dativo. Especificamente nas
cartas romanas, os nomes do remetente e do destinatário eram acompanhados da
expressão salutem dare (cumprimentar), que normalmente vinha na forma abreviada
(s.d.) ou com a omissão da forma verbal (Tullius s. d. Terentiae = Túlio cumprimenta
Terência; Marcus Quinto fratri salutem = Marco cumprimenta o irmão Quinto). Depois,
vinha o texto da carta propriamente dito, o qual normalmente iniciava-se por uma
expressão fixa como si vales, bene est, ego valeo (se você está bem, isso é bom; eu estou
bem) escrita por extenso ou abreviadamente (s. v. b. e. e. v.). Por último, escrevia-se a
saudação final também utilizando expressões fixas como, por exemplo, vale/valete
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(adeus!) e cura ut valeas (cuide-se bem!). A fim de sinalizar a autenticidade de uma
carta, às vezes o remetente escrevia a saudação final de próprio punho, o que se verifica
não só nas cartas latinas, mas também nas gregas, como mostram algumas epístolas
paulinas que figuram no Novo Testamento.4
Modos de escrita
Os antigos usavam quatro diferentes formas de escrever cartas. A primeira
consistia na escrita de próprio punho, a qual normalmente era feita por remetentes
pobres, que não eram proprietários de um escriba ou não podiam contratar os serviços
de um desses especialistas na redação de documentos. Igualmente, escreviam de próprio
punho os ricos que desejavam evitar a exposição de assuntos estritamente reservados a
um escriba que lhe redigisse a correspondência. Outra forma de escrever uma carta era
ditando-a syllabatim, ou seja, palavra por palavra, a um escravo ou a um escriba. Cícero
escreve a respeito desse modo de escrita epistolar ao seu amigo Ático: “Portanto, não
ditei nem mesmo a Tirão, que costuma seguir passagens inteiras até o fim, mas a
Espíntaro palavra por palavra.”5 Uma vez que escrever sobre o papiro era um tarefa
lenta e fatigante, a ação de ditar cartas era bastante cansativa e, por isso, geralmente as
cartas ditadas tendiam a ser mais curtas do que as cartas escritas pelo próprio remetente.
Percebe-se isso nas seguintes palavras de Cícero a Ático: “Se eu mesmo tivesse escrito,
a carta teria sido mais longa; mas a ditei por causa de uma infecção ocular.”6 A terceira
forma de escrever uma carta consistia em fornecer ao redator, de forma sucinta e por
escrito, as ideias e notícias a serem comunicadas, incumbindo-o da organização e do
desenvolvimento do texto. A última forma de se proceder à escrita de uma carta
consistia em confiar a sua redação a um secretário ou a um amigo, autorizando-o
previamente a escrever em nome do remetente. Cícero refere-se a esse modo de escrita
epistolar quando faz a seguinte recomendação a Ático: “Se há pessoas às quais você
4 1 Coríntios 16, 21: “Saudação da minha própria mão, de Paulo”; Colossenses 4, 18: “Saudação de minha mão, de Paulo”; 2 Tessalonicenses 3, 17: “Saudação da minha própria mão, de mim, Paulo, que é o sinal em todas as epístolas; assim escrevo.” 5 Ergo ne Tironi quidem dictaui, qui totas periochas persequi solet, sed Spintharo syllabatim. (ad Atticum, 13, 25, 3). 6 Si scriberem ipse, longior epistula fuisset, sed dictaui propter lippitudinem. (ad Atticum, 7, 13).
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acha que é preciso enviar cartas em meu nome, gostaria que você as redigisse e se
encarregasse de enviá-las.”7; “seja qual for o resultado daquilo que você observa, rogo-
lhe que me escreva o mais claro possível e que em meu nome, como você costuma
escrever, envie cartas a quem julgar necessário.”8
Tipos
Certamente, os antigos já faziam distinção entre carta particular e pública. A
primeira, de caráter reservado, era dirigida a um destinatário específico e caracterizava-
se pela brevidade e por uma linguagem próxima do falar cotidiano. Seu conteúdo podia
ser tão diversificado quanto as circunstâncias vivenciadas por seus remetentes, mas os
seus tipos básicos limitavam-se a três, como Cícero esclarece em carta escrita a seu
amigo Curião no ano 53 a.C.
Você não ignora que há muitos tipos de carta, mas o único mais certo é aquele por cuja causa a própria carta foi inventada: para que informássemos os ausentes se ocorresse algo que eles soubessem que interessaria a nós ou a eles mesmos. Sem dúvida, não espere cartas deste tipo de minha parte, pois a respeito de seus assuntos particulares você tem tanto copistas quanto mensageiros domésticos, porém nos meus assuntos não existe absolutamente nada de novo. Há outros dois gêneros de carta, que muito me agradam: o primeiro é familiar e jocoso; o segundo, sério e melancólico. Não sei qual dos dois me convém usar menos. Gracejaria com você através de cartas? Juro que não creio existir um cidadão que possa rir nestes tempos. Ou escreveria algo mais sério? O que poderia ser escrito seriamente por Cícero a Curião senão a respeito dos negócios públicos? Ora, dessa forma, a minha situação é a seguinte: nem ousaria escrever o que sinto nem desejaria escrever o que não sinto. (CICERO, ad Familiares, II, 4).9
7 Si qui erunt quibus putes opus esse meo nomine litteras dari, velim conscribas, curesque dandas. (ad Atticum, III, 15, 8). 8 Te oro ut, si quid erit quod perspicias quamcumque in partem, quam planissime ad me scribas et meo
nomine, ut scribis, litteras quibus putabis opus esse ut des. (ad Atticum, III, 21). 9 Epistolarum genera multa esse non ignoras, sed unum illud certissimum, cuius causa inventa res ipsa
est, ut certiores faceremus absentis, si quid esset quod eos scire aut nostra aut ipsorum interesset. Huius
generis litteras a me profecto non exspectas; domesticarum enim tuarum rerum domesticos habes et
scriptores et nuntios, in meis autem rebus nihil est sane novi. Reliqua sunt epistolarum genera duo, quae
me magnopere delectant, unum familiare et iocosum, alterum severum et grave. Vtro me minus deceat uti,
non intellego. Iocerne tecum per litteras? Civem mehercule non puto esse, qui temporibus his ridere
possit. An gravius aliquid scribam? Quid est quod possit graviter a Cicerone scribi ad Curionem nisi de
re publica? Atque in hoc genere haec mea causa est, ut neque ea quae sentio audeam neque ea quae non
sentio velim scribere.
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Na citação acima, Cícero refere-se aos três tipos de carta: o informativo, que
objetivava noticiar fatos e acontecimentos a pessoas ausentes; o familiar e jocoso, que
expressava a alegria pessoal do remetente aos parentes e amigos nos momentos
favoráveis; o sério e melancólico, que se propunha a consolar os ausentes e prometer-
lhes auxílio nas situações adversas.
As cartas públicas, por sua vez, eram aquelas que, embora dirigidas a um
destinatário específico, intencionavam alcançar um círculo consideravelmente amplo de
pessoas. Podiam ter finalidade política, doutrinária ou poética. Entre as de cunho
político incluem-se nove cartas de Isócrates, quatro de Cícero, duas de Platão e duas de
Salústio. Todas elas constituíam uma forma de propaganda política e visavam à
publicidade, pois nas mesmas
o escritor, dirigindo-se a um alto expoente da vida pública, especifica as próprias convicções políticas e sociais na esperança de poder contribuir para a pacificação da comunidade e para a melhoria da situação; trata-se de cartas abertas com as quais se deseja influenciar não apenas o destinatário, mas também a opinião pública. (SCARPAT, 1983, p. 403).
As cartas públicas de natureza doutrinária abordavam temas filosóficos e morais
e, semelhantemente às cartas políticas, eram destinadas a uma pessoa ou comunidade
específicas, procurando, todavia, alcançar um grupo bem mais amplo. Incluem-se neste
grupo as três cartas de Epicuro, as cartas do Novo Testamento, das quais apenas a que
foi escrita por Paulo a Filemom é considerada como estritamente privada, e as cartas de
Sêneca a Lucílio.
As cartas públicas de cunho poético eram redigidas em verso e possuíam um
conteúdo muito variado. Dentre elas destacam-se as Epístulae ex Ponto, distribuídas em
quatro livros e que foram escritas por Ovídio entre os anos 8-18 d.C. durante seu exílio;
as Heroides, conjunto de vinte cartas escritas provavelmente antes do ano I a.C. também
por Ovídio como se tivessem sido compostas por amantes historicamente célebres (a
maioria pertencente ao sexo feminino) a seus seres amados; e as 23 cartas de Horácio.
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Literariedade
Quanto ao reconhecimento da carta como gênero literário, Martin e Gaillard
(1990, p. 10) ressaltam que os antigos demoraram a tomar um posicionamento claro.
Para sustentar esse argumento, os autores observam que Quintiliano, um dos mais
importantes autores latinos, no livro X da sua Institutio oratoria, apresenta oito gêneros
comuns às literaturas grega e latina (a epopéia, a poesia elegíaca, a poesia jâmbica, a
poesia lírica, a poesia dramática, a história, a eloquência e a filosofia), aos quais se
acrescenta a sátira, gênero específico da literatura latina. Vê-se, portanto, que
Quintiliano não fez nenhuma menção ao gênero epistolar. Martin e Gaillard também
indicam que o responsável pela elevação da carta à posição de texto literário foi Plínio,
o Jovem, através da publicação do conjunto de sua correspondência. O epistolário
pliniano se distribui em dez livros dos quais o primeiro provavelmente foi escrito em
96-97 d.C. e publicado em 97 d.C.10 Na carta que inicia esse livro, Plínio já revela a um
amigo a intenção de publicar as suas cartas por conta própria.
Muitas vezes você me aconselhou a reunir e publicar as minhas cartas se eu as tivesse escrito com um pouco mais de esmero. Eu as reuni, embora não observando a ordem cronológica (pois não estava compondo uma história), mas conforme cada uma tinha vindo à minha mão. Basta que você não se arrependa dos conselhos nem eu me arrependa da obediência. Portanto, isso é o que acontecerá: procurarei as cartas que ainda estão abandonadas e, quando as tiver reunido, não as ocultarei. (PLINIO, Epistolae, I, 1).11
Na carta subsequente, motivado pelo sucesso de seus escritos junto à população,
Plínio revela a outro amigo o seu interesse em publicar uma coleção de cartas.
[...] confessarei tanto a mim mesmo quanto aos meus companheiros que não sou contra uma edição [,,,] Portanto, algo deve ser publicado integralmente e permitam os deuses que, de preferência, seja aquilo que está preparado [...] Ora, deve-se publicar por muitos motivos, sobretudo porque dizem que os livrinhos que publiquei andam por
10 GUILLEMIN, 1961, p. XXVII. 11
Frequenter hortatus es ut epistulas, si quas paulo curatius scripsissem, colligerem publicaremque.
Collegi non servato temporis ordine (neque enim historiam componebam), sed ut quaeque in manus
venerat. Superest ut nec te consilii nec me paeniteat obsequii. Ita enim fiet ut eas quae adhuc neglectae
iacent requiram et, si quas addidero, non supprimam.
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todas as mãos, embora já tenham perdido a graça da novidade. (PLINIO, Epistolae, I, 2, 5-6).12
No trecho acima, é digno de notaIo uso de libellus, termo que ali aparece no
nominativo plural libelli. Como se verifica no seguinte verbete apresentado no
Dicionário latino-português, de Ernesto Faria, trata-se de uma palavra que era usada em
diversas acepções:
libellus, -i, subs. m. I – Sent. Próprio: 1) Opúsculo, escrito (de pouca extensão nas páginas ou no conteúdo); daí, vários sentidos: 2) Pequeno tratado (Cic. De Or. 1, 94). Com ideia pejorativa: 3) Livreco (T. Liv. 29, 12, 19). 4) Diário, agenda, jornal (Cic. Phil. 1, 16). 5) Petição, requerimento (Cíc. At. 16, 16, 4). 6) Memorial, notas , apontamentos (Cíc. Arch. 25). 7) Programa (Cic. Phil. 2, 97). 8) Cartaz, edital (Cic. Quinct. 50). 9) Carta, bilhete (Cic. At. 6, 1, 5). 10) Libelo, panfleto (Suet. Aug. 55).
Visto que a obra literária de Plínio limita-se aos dez livros de cartas e ao
Panegyricus Traiani (Panegírico de Trajano), publicado por volta de 101 d.C.,13 pode-
se entender que, no contexto da carta I, 2, a palavra libelli refira-se a opúsculos que
reuniam cartas escritas por ele e que então passavam a ser tratadas como textos literários
pertencentes a um gênero distinto dos outros até então reconhecidos. Sendo assim,
Martin e Gaillard têm bastante razão ao considerarem Plínio “o epistológrafo por
excelência”.
Importantes estudiosos já expressaram seus pontos de vista em relação à questão
do literariedade das cartas antigas. Um deles é o francês Gustave Lanson, ao qual
pertence a seguinte afirmação:
Não existe arte epistolar. Não existe gênero epistolar, pelo menos no sentido literário da palavra gênero. Poder-se-ia dizer gênero oral, para nele englobar simultaneamente, além do gênero oratório, as conversas privadas, as entrevistas diplomáticas e todas as comunicações de pensamentos feitas de viva voz. Nas cartas reais, a forma epistolar não é uma forma estética, escolhida de propósito para provocar certa categoria de sentimentos e exprimir um tipo de beleza determinado. O que faz alguém preferi-la não é uma intenção artística, a ideia preconcebida de um efeito a se produzir, mas a necessidade material e impiedosa que a impôs. (LANSON, [1900?], p. VI).
12 [...] confitebor et ipsum me et contubernales ab editione non abhorrere [...] Est enim plane aliquid
edendum, atque utinam hoc potissimum quod paratum est! [...] edendum autem ex pluribus causis,
maxime quod libelli quos emisimus dicuntur in manibus esse, quamvis iam gratiam novitatis exverint. 13 DURRY, 1964, p. 87.
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A partir dessa ideia, Lanson propôs a distinção entre cartas reais, cuja escrita seria
motivada pela imposição de uma necessidade relacionada ao cotidiano dos
correspondentes e não por uma intenção artística, e cartas não reais (fictícias),
unicamente preocupadas com a forma estética das expressões. Somente estas podem,
segundo Lanson, constituir um gênero literário, enquanto aquelas se encontram
destituídas de literariedade.
Outro estudioso que deu uma relevante contribuição para o debate em torno do
gênero epistolar foi o alemão Adolf Deissmann, o qual apresentou a seguinte distinção
entre carta e epístola: carta é uma comunicação escrita sem objetivos artísticos e
estéticos que estabelece uma relação pessoal entre duas partes; a epístola caracteriza-se
por se destinar a uma comunidade diretamente ou por meio de um destinatário
individual e geralmente fictício. Logo, somente as epístolas possuiriam um caráter
literário uma vez que as cartas, preocupando-se apenas com o caráter utilitário da
comunicação para a resolução de um problema determinado, são destituídas de qualquer
pretensão artística. Nas palavras do próprio Deissmann (1910, p. 220-221),
a epístola difere de uma carta como o diálogo de uma conversa, como o filme histórico da história, como o discurso fúnebre cuidadosamente elaborado das hesitantes palavras de consolação ditas por um pai a seu filho que perdeu a mãe – como a arte difere da natureza. A carta é uma parte da vida, a epístola é um produto do letrado.
Discordando tanto de Lanson quanto de Deissmann, Martin e Gaillard
apresentam outra posição relativa à literariedade dos escritos epistolares, especialmente
aplicável às cartas da Roma antiga. Eles classificam as cartas, juntamente com os
discursos oratórios, dentro do “gênero circunstancial”, explicando que
a atividade oratória e a atividade epistolar pertencem por sua natureza não ao domínio da literatura, mas àquele da vida: elas fazem parte de ações cotidianas, e não basta escrever dez cartas por dia para se tornar um 'homem de letras'. Trata-se, portanto, de atividades que, sem dúvida, não estão desvinculadas da vida literária, uma vez que o 'discurso' escrito ou oral é a manifestação dela, mas que são, de certo modo, para-literários [...] ligados à ação, discursos e cartas têm igualmente em comum o fato de serem textos fundamentalmente 'circunstanciais' ou 'ocasionais', cuja redação não se concebe fora de ocasiões determinadas e, nesse caso, determinantes. (MARTIN e GAILLARD, 1990, p. 14-15).
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Esses autores posicionam-se definitivamente em relação ao assunto, declarando
que julgam pertencer ao gênero epistolar qualquer texto (independentemente de seu
conteúdo, extensão ou estilo), iniciado e terminado segundo a fórmula habitualmente
utilizada na redação das cartas antigas. Assim, eles reconhecem o caráter literário tanto
das cartas que foram escritas com vistas à uma publicação quanto daquelas cujo autor
não tinha em mente publicá-las, tanto das que objetivavam tratar de questões
relacionadas à vida cotidiana de pessoas reais quanto daquelas que abordavam temas e
personagens ficcionais.
De fato, a posição defendida por Martin e Gaillard é amplamente aceita pelos
estudiosos atuais, contribuindo para a revitalização dos estudos das antigas cartas
romanas.
Considerações finais
Nas páginas precedentes, foram trazidas informações que nos levam a perceber o
quão valioso foi o papel sócio-comunicativo da carta no antigo mundo romano.
Aprender sobre a utilização, a estrutura, os modos de escrita, os tipos e a literariedade
das cartas romanas é importante, mas os estudos epistolográficos não podem se limitar a
estudar sobre essas cartas. É necessário proceder à leitura atenta desses preciosos textos,
reconhecendo que eles não veicularam informações e emoções apenas para pessoas que
viviam na ocasião em que foram escritos e lidos. Sem dúvida, eles ainda têm muito a
comunicar às pessoas do século XXI. Insistindo em manter um ar de atualidade, essas
cartas nos falam sobre a vida de indivíduos e comunidades que, preocupados ou não
com qualidades estéticas, expressaram em forma escrita suas alegrias, necessidades,
angústias e expectativas. Revelam aspectos de uma condição humana que, tanto quanto
hoje, é marcada pela contradição, pelo desespero e pela fragilidade, mas também pela
esperança e pelo poder de criar e recriar possibilidades. Independentemente de ser
Cícero, Ovídio, Horácio, Sêneca ou qualquer outro remetente dentre os antigos
romanos, deve-se agradecê-lo por tão grande serviço prestado à humanidade.
Revista Mundo Antigo – Ano III, V. 3, N° 06 – Dezembro – 2014 ISSN 2238-8788
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Referências
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