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A representação da luz na pintura ocidental

Farlley Derze1 Brasília, DF, dezembro de 2011

Esse texto é sobre a história da arte no ocidente. Diferentes atividades humanas foram classificadas como arte na

cultura ocidental: música, arquitetura, pintura, escultura, desenho, literatura, teatro e, mais recentemente, o cinema, o

web design e novidades diárias do mundo digital. Das pinturas nas cavernas e vasos de cerâmica à pintura de Van Gogh

e Tarsila do Amaral aos filmes e jogos em 3D, a mente humana demonstrou sua plasticidade criativa para combinar os

materiais que estavam disponíveis em cada época e lugar. A história que vou contar se limita a uma fatia desse universo

artístico: a pintura. Seus produtos resultam, basicamente, de tinta aplicada sobre determinada superfície. A maneira de

manipular os materiais varia segundo as técnicas e as intenções de quem produz a pintura, bem como para quem é feita

ou por que é produzida. Por onde começar? Bem, vou começar por contar sobre como surgiu o meu interesse. Desde os

anos 80 faço sucessivas leituras sobre história da arte. Nos anos 90 casei-me com uma iluminadora. Explico: profissional

que ilumina shows de música, dança, teatro, TV, desfiles, cerimônias e, mais recentemente, edificações e espaços

urbanos. É uma iluminação que visa dar movimento, colorido, contrastes, narrativa, e até um significado, à cena ou

ambiente. Durante os anos 2000 reli os livros com uma pergunta em mente: como os pintores representavam a luz em

suas pinturas? Olhei as pinturas nas cavernas (os primeiros afrescos), as imagens em tapeçarias, as pinturas em vasos

egípcios, gregos, etruscos e romanos, os afrescos e iluminuras medievais, as telas dos renascentistas, dos barrocos, dos

neoclássicos, românticos e modernos, nas páginas ilustradas dos livros, e ao olhar como a luz estava representada foi

possível identificar o estilo de cada período histórico. A luz foi representada de maneira diferente na arte pictórica de

cada período histórico. Então me veio uma segunda pergunta: o que teria dado origem às diferentes formas de

representação da luz? Elaborei uma hipótese: cada época tinha algum tipo de limitação de materiais disponíveis que

condicionava, consequentemente, a maneira de se conseguir o resultado de uma cor para representar a luz. Mas

quando olho repetidamente para a pintura de Di Cavalcanti, de 1950, chamada “Aldeia de pescadores” e vejo um sol na

cor azul no horizonte, esse minha hipótese não sobrevive pois na época já estavam disponíveis diversas matizes da cor

amarela para se representar o sol, ou sua luz, durante o amanhecer. Percebi que ao me concentrar no elemento “cor”

eu teria mais chances de encontrar evidências sobre a representação da luz na pintura. Mas julguei pertinente admitir

que, a partir da hipótese inicial, talvez a representação da luz na pintura não fosse exclusivamente o resultado da

disponibilidade de elementos materiais em cada época, mas talvez uma consequência resultante dos diferentes

significados que se buscava atribuir à luz. Essa hipótese surgiu quando li o livro “Confissões” escrito por “Santo

Agostinho” no séc. IV. Portanto, já que eu dispunha de fontes textuais para combiná-las com fontes visuais em busca de

convergências e divergências para proceder a uma análise, decidi que essa história da representação da luz na pintura

seria contada a partir da Idade Média. Por quê? Porque anterior a esse período estavam cada vez mais escassas as

fontes textuais e visuais à minha disposição, que contivessem uma associação entre texto e pintura unidos pelo

elemento “luz”. Assim, meu ponto de partida é o mundo medieval (séc. IV ao séc. XIV).

A luz divina: Para construir uma compreensão sobre como a luz foi representada na Idade Média, passo a palavra para

Santo Agostinho: “amo o meu Deus, luz, voz, perfume e abraço do homem interior, onde brilha para a minha alma uma

luz que nenhum espaço contém”. (AGOSTINHO, 1973, p. 195). Agostinho nasceu em 354 e faleceu em 430, autor da

obra “Confissões”, considerada por seus editores como o texto que serviu de base para a normatização e consolidação

do cristianismo durante o Império Romano. No meu entender, a obra de Santo Agostinho somada ao Édito de Milão do

imperador romano Constantino, publicado em 313, criaram o ambiente conceitual ideal para fortalecer o advento do

cristianismo que se fez representar pelos seus ritos, que incluiu a pintura (mosaicos, têmperas, afrescos, luz das velas)

para alfabetizar as pessoas pelo método visual a respeito do projeto da nova religião, projeto esse que também

contribuiu para fazer emergir uma nova elite medieval – o clero. Nas 436 páginas de “Confissões”, traduzida para a

1 Farlley Derze é Prof.do Instituto de Pós-Graduação [www.ipog.edu.br], Diretor de Gestão e Pesquisa da Empresa Jamile Tormann

Iluminação Cênica e Arquitetural [www.jamiletormann.com], Doutorando em Arquitetura pela UnB-DF [www.unb.br], membro do

Núcleo de Estética e Semiótica da FAU/UnB [www.esteticaesemiotica.com]. Artigo publicado na Revista Estilo ND (Núcleo de

Decoração do Vale). Ano 2. N. 6. pp 82-85. Dezembro 2011. Camburiú – SC. (http://www.ndvale.com.br/php/revista.php?id=436).

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língua portuguesa, contabilizei 136 palavras específicas das quais “luz” ou “iluminação” somam juntas 114 ocorrências

(vide citação acima e tabela abaixo).

Referência à palavra Número de vezes que é citada

Luz 86

Iluminação 28

Sombra 12

Treva (espaço não-iluminado) 37 Dados quantitativos de palavras específicas no vocabulário de Santo Agostinho na obra “Confissões”.

Ao combinar as ideias que Santo Agostinho propõe em seu texto com as imagens pictóricas produzidas em toda a Idade

Média, a auréola ao redor da cabeça das divindades cristãs são as evidências visuais de uma representação da “luz

interior” que Agostinho defendia como uma característica daquelas divindades. Procurei por auréolas em pinturas

anteriores à Idade Média e não as localizei nos mais de 100 livros e milhares de imagens que tomei como fontes de

referência textual e visual. Podemos concluir que na Idade Média a luz estava associada ao mundo divino, à

espiritualidade ou “vida iluminada” para quem vivesse a vida eterna no paraíso. A cor usada para representar a luz é

predominantemente composta de tonalidades da cor amarela ou dourada. Tendo em vista a valorização da luz como

uma “dádiva divina”, uma herança conceitual deixada por Santo Agostinho, (valorizada muito antes no Velho

Testamento, Gênesis 1:3, “Fiat luz”) somada à ideia de que o mundo divino é diferente do mundo natural porque é

eterno e, ainda, o significado de eterno ser a qualidade daquilo que é duradouro (vejamos a aparência duradoura da cor

do metal ouro em oposição à deterioração da aparência visual do bronze ou do ferro ou da prata) e, ainda, dia após dia

nascer a luz do sol em oposição às trevas noturnas, concluo que usou-se simbolicamente a tonalidade mais ou menos

amarela ou dourada para representar o ambiente sempre iluminado, onde se encontrasse a divindade – um

representante do mundo eterno e duradouro. Um halo de luz é representado por um semicírculo ao redor da cabeça

daqueles que são, no entender de Santo Agostinho, seres iluminados.

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A luz natural: Embora o grego Eratóstenes já tivesse concluído que a Terra era redonda, e mediu com sucesso sua

circunferência, antes de haver Império Romano ou Idade Média, a elite medieval europeia – o clero - defendia

ideologicamente (por falta de contato com os escritos gregos ou por intenções não reveladas) que a Terra era plana.

Mas nos séculos XV e XVI as navegações marítimas mais intensas feitas por outros europeus deram ao homem daquela

época a experiência de cruzar os mares e se ver diante do litoral da África e das Américas. O italiano Marco Polo já havia

cruzado os mares até a China, dois séculos antes, mas como diz o velho ditado “uma andorinha só não faz verão”, foi

preciso um conjunto de idas, vindas e voltas marítimas no período conhecido como Renascimento (e mercantilismo, sob

o ponto de vista econômico), para o homem europeu considerar o valor da natureza, suas ameaças e surpresas, sem

necessariamente descartar a ideia da existência de um “mundo divino”. Assim, os renascentistas além de pintar animais,

frutas, pessoas da sociedade, sombras e objetos, também pintaram temas ligados à religião. Quando procuramos como

a luz foi representada nessa época, aquela predominância de luz amarelada-dourada-medieval-divina desaparece do

ambiente. Entretanto, conservou-se a auréola na cabeça para se representar um ser iluminado. Contudo, o ambiente ao

redor das divindades representadas no Renascimento tem a luz translúcida, branca, transparente, difusa, que

caracteriza a luz natural do sol, tal qual ocorre na natureza, no mundo natural. O historiador alemão Arnold Hauser, ao

escrever “A história social da arte e da literatura”, defende que na Idade Média a representação das sombras não existe

porque era proibido pela igreja. Essa informação me ajudou a olhar também as sombras e áreas não iluminadas nas

diversas pinturas ao longo da história. Como na Idade Média todo o investimento conceitual era para se crer no mundo

eterno, divino, com uma iluminação eterna, ao contrário do mundo perigoso das trevas, consequentemente para aquele

mundo divino não era desejável a representação da sombra, mesmo diante do fato de que a luz vinda de todas as

direções não produz sombras (numa visão mais científica do fenômeno físico), mas especialmente porque a sombra

faria com que um fiel se lembrasse da existência do mundo material, devidamente desvalorizado pelo projeto

espiritualista-conceitual medieval (visão religiosa). Pude concluir que no Renascimento a sombra e a luz natural

proveniente do sol foram representadas porque aquela sociedade teve acesso a uma nova realidade de mundo (mundo

natural), tanto porque se espalharam as histórias dos navegadores de oceanos, como pela recuperação e valorização de

textos filosóficos produzidos no mundo grego que antecedeu a Idade Média (a idade do meio: que ficou entre a

sociedade da Grécia Antiga e a sociedade renascentista).

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A luz artificial: Nos séculos seguintes, XVII e XVIII, chega-se à pintura classificada como barroca, onde a representação

da luz adotou como referência a fonte de luz artificial. Consequentemente, as áreas e superfícies distantes da fonte de

luz ficavam menos iluminadas. O resultado visual dessa representação é a predominância de contrastes entre áreas

iluminadas e áreas não iluminadas. As zonas amareladas representavam o foco de luz oriundo das chamas de velas,

tochas ou lâmpadas a óleo. Ao redor do foco usaram-se tonalidades de cor escura-enegrecida para representar as zonas

não iluminadas, e sombras.

Os profissionais da iluminação cênica de nossos tempos souberam explorar recursos da luz artificial para valorizar

objetos, superfícies, espaços, palavras e gestos corporais de um artista em cena através de um jogo de contrastes

proporcionados por um repertório de equipamentos elétricos (refletores, projetores, etc.) para gerar focos de luz,

controle de intensidade do brilho, movimentos de acende-apaga, dentre outros recursos de linguagem de iluminação

cênica. Na segunda metade do século XX, ambientes residenciais e comerciais, assim como os espaços urbanos

herdaram essa linguagem cênica. Cada vez mais se assistiu a diferentes maneiras de se reler o espaço por meio da luz:

salas-de-jantar, quartos de dormir, praças públicas, monumentos arquitetônicos e esculturas da cultura ocidental

urbana, receberam também diferentes matizes de cores. O advento da fotografia na primeira metade do século XIX e da

eletricidade na segunda metade mudaram significativamente a maneira artística de se representar a luz na pintura

ocidental. A consequência foi a eclosão de uma avalanche de “ismos” (impressionismo, pontilhismo, expressionismo,

futurismo, cubismo, raionismo, surrealismo, modernismo brasileiro) que fez surgir o que se classificou de “arte

moderna”. Cada movimento em seu “ismo” encontrou sua maneira de representar a luz. Mas isso é assunto para outra

edição.

Conclusão:

Idade Média (séc. IV-XIV): representação da luz divina, com tonalidades de amarelo ao dourado que traduz a

espiritualidade da alma e do ambiente divino.

Renascimento (séc. XV-XVI): representação da luz natural, com tonalidades da cor branca translúcida que traduz a luz

do sol difusa no ambiente.

Barroco (séc. XVII-XVIII): representação da luz artificial, com tonalidades amareladas que traduz uma chama acesa e um

foco de luz numa porção escura do ambiente.