A Representação Do Homem Político No Principado Romano

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DANIEL APARECIDO DE SOUZA A REPRESENTAÇÃO DO HOMEM POLÍTICO NO PRINCIPADO ROMANO: UMA LEITURA DAS CARTAS DE PLÍNIO, O JOVEM (96 – 113 d.C.)” ASSIS 2010

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A Representação Do Homem Político No Principado Romano.

Transcript of A Representação Do Homem Político No Principado Romano

  • DANIEL APARECIDO DE SOUZA

    A REPRESENTAO DO HOMEM POLTICO NO PRINCIPADO ROMANO:

    UMA LEITURA DAS CARTAS DE PLNIO, O JOVEM (96 113 d.C.)

    ASSIS

    2010

  • DANIEL APARECIDO DE SOUZA

    A REPRESENTAO DO HOMEM POLTICO NO PRINCIPADO ROMANO:

    UMA LEITURA DAS CARTAS DE PLNIO, O JOVEM (96 113 d.C)

    Dissertao apresentada Faculdade de Cincias e Letras de Assis UNESP Universidade Estadual Paulista para a obteno do ttulo de Mestre em Histria (rea de Conhecimento: Histria e Sociedade).

    Orientadora: Dr. Andra Lcia Dorini de Oliveira Carvalho Rossi.

    ASSIS 2010

  • Dados Internacionais de Catalogao na Publicao (CIP) Biblioteca da F.C.L. Assis UNESP

    Souza, Daniel Aparecido de S729r A representao do homem poltico no principado roma-

    no: uma leitura das cartas de Plnio, o Jovem (96 a 113 d.C) / Daniel Aparecido de Souza. Assis, 2010

    165 f. : il.

    Dissertao de Mestrado Faculdade de Cincias e Letras de Assis Universidade Estadual Paulista.

    Orientador: Andra Lucia Dorini de Oliveira C. Rossi

    1. Roma Histria Imprio. 2. Plnio, o Jovem cartas. 3. Imperadores romanos. 4. Estoicismo. 5. Mos maiorum. 6. Historiografia. I. Ttulo.

    CDD 188 937.06

  • BANCA EXAMINADORA

    Orientador: Dr. Andra Lcia Dorini de Oliveira Carvalho Rossi

    ____________________________________________________

    Dr. Renata Lopes Biazotto Venturini

    ____________________________________________________

    Dr. Margarida Maria de Carvalho

    _____________________________________________________

  • Aos meus pais e minha noiva, com amor.

    Pela diligncia, incentivo e compreenso.

  • AGRADECIMENTOS

    Esta dissertao de Mestrado s pode ser realizada graas ao apoio e

    contribuio direta e indireta de uma quantidade enorme de pessoas. Agradeo a

    todas elas e fao meno especial:

    - Dr. Andra Lcia Dorini de Oliveira Carvalho Rossi, pela orientao e pela

    contribuio indispensvel dada a este trabalho de pesquisa, bem como pela

    infinita pacincia, compreenso e apoio dado nos momentos mais difceis.

    - ao Professor Dr. Carlos Roberto de Oliveira, pela grande contribuio

    intelectual, modelo de dedicao aos estudos plinianos, incentivo ao

    desenvolvimento, como tambm pelo emprstimo de materiais para a realizao

    desta.

    - aos Dr. Ivan Esperana Rocha, Dr. Margarida Maria de Carvalho e Dr. Cludia

    Penavel Binato pela participao e contribuio no Exame de Qualificao.

    - Dr. Renata Lopes Biazotto Venturini pelo incentivo pesquisa, logo em seu

    princpio, enquanto era aluno de graduao por ventura de uma mesa de

    comunicao.

    - ao NEAM - Assis, pelo acompanhamento desde o perodo de graduao, pelas

    discusses e pelo importante aporte em minha formao.

    - aos professores, Lngua e Literatura Latina da F.C.L. da Unesp Cmpus de

    Assis que me permitiram assistir suas aulas, e, desse modo, me ensinaram os

    primeiros passos nessa lngua vital para o desenvolvimento dessa pesquisa.

    - aos professores Dr. Eduardo Bastos de Albuquerque (in memoriam), professora

    Dr. Tnia de Lucca , professora Dr. Zlia Lopes da Silva e ao Dr. ureo Busetto

    pelo aporte intelectual nos ltimos semestres da graduao e durante a

    integralizao dos crditos do Mestrado.

    - Secretaria Municipal da Educao da cidade de Campinas, que no

    possibilitou meu afastamento, nem a reduo de minha jornada de trabalho para o

    desenvolvimento desse trabalho (mesmo com dispositivos previstos na legislao

    municipal), proporcionando mais um desafio a ser vencido.

    - aos professores e amigos Marco Aurlio de Oliveira Filho e Cleiton Alessandro

    Pereira pelo companheirismo, altrusmo e incentivo.

  • - aos meus colegas e alunos das FIMI Mogi-Guau, em especial ao meu amigo

    e Ms. Glauber Biazo, que alm de me proporcionar a possibilidade de ingressar

    na docncia do ensino superior, incentivou o desenvolvimento da prtica de

    ensino concomitante s atividades de pesquisa.

    - aos professores e funcionrios da Faculdade de Cincias e Letras, Cmpus de

    Assis, da Univesrsidade Estadual Paulista Jlio de Mesquita Filho, pela

    importante papel em minha formao enquanto pesquisador e professor.

    - minha noiva Sylzimara, que nos momentos difceis no me permitiu desistir e

    apoiou incondicionamelte essa pesquisa, pela dedicao, pacincia e amor.

    - aos meus familiares, em especial, minha me Rosana, meu pai Adauto, meu

    irmo Alberto e minha av Benedita (in memoriam). Estes que empenharam seus

    recursos mais vitais em minha formao, pelo suporte, apoio e exemplo de

    superao.

    - Aos meus amigos: Dr.Thiago Alves Valente, professora e psicopedagoga

    Maria Aparecida Piva, bem como professora e escritora Beatriz Meirelles, que

    me ensinaram a dar os primeiros passos na carreira docente e, pelo exemplo, onde

    me mostraram as virtudes necessrias a um educador.

  • RESUMO:

    Essa dissertao concebe uma breve reconstituio da situao dos estudos

    plinianos no Brasil e no mundo, apresentando os principais pesquisadores da

    referida rea. Aborda a problemtica da representao de homem poltico de

    acordo com o discurso apresentado por Plnio, o Jovem em seus livros de I IX.

    Por meio desse epistolrio faz uma anlise da contribuio da fides e da virtus,

    bem como da imagem que o autor consti de si e do princeps na constituio do

    modelo de homem poltico durante o perodo de 96 a 113 d.C. Para tanto, utiliza-

    se dos pressupostos advindo das contribuies metodolgicas elaboradas pela

    Histrica Cultural, em especial pelo conceito de representao adotado por Roger

    Chartier.

    Palavras-chave: Plnio, o Jovem, epistolografia latina, estoicismo, Mos maiorum,

    Trajano, Domiciano, Nerva, virtus, fides, homem poltico, Principado,

    historiografia pliniana, representao.

    SOUZA, Daniel A. de. A Representao do homem poltico no Principado Romano: uma leitura das Cartas de Plnio, o Jovem. Assis, 2010. 165 p. Dissertao (Mestrado em Histria) Faculdade de Cincias e Letras, Cmpus de Assis, Universidade Estadual Paulista Jlio de Mesquita Filho.

  • ABSTRACT:

    This dissertation conceives a brief reconstitution of studies about Pliny, the

    Younger in Brazil and in the World, showing the majors researchers of this area.

    Approach problematic of the civil mans representation according to the

    discourse presented by Pliny, the Younger in him books I to IX. Through this

    epistolary, we make a analysis of the contribution of the fides and the virtus, as

    well as the image created by the autor about himself and about the princeps in the

    constitution of the civic mans model while 96 to 113 a. D. For this, we used the

    assumptions coming of methodological contributions prepared by the Cultural

    History, in special the representations concept adopted by Roger Chartier.

    Keywords: Pliny, the Younger, latin epistolography, estoicism, Mos maiorum,

    Trajan, Domician, Nerva, virtus, fides, civil man, Principate, plinian

    historiography, representation.

    SOUZA, Daniel A. de. The civil mans representation in Roman Principate: a reading of Pliny, the Youngers Letters. Assis, 2010. 165 p. Dissertation (Master in History) College of Science and Arts, Assis Unity, So Paulo State University Jlio de Mesquita Filho.

  • ABREVIATURA E OUTROS NOMES

    AJP American Journal fo Philology

    ANPOLL Associao Nacional de Ps Graduao e Pesquisa em letras

    e Lingustica

    ANPUH Associao Nacional dos Professores Universitrios de

    Histria

    CA Classical AntiquityCB Classical BulletinCJ Classical Journal

    CPA Centro do Pensamento Antigo

    CQ Revista Classical Quarterly

    EUA Estados Unidos da Amrica

    FAPESP Fundao de Amparo Pesquisa do Estado de So Paulo

    FCL Faculdade de Cincias e Letras

    FIMI Faculdades Integradas Maria Imaculada

    IFCH Instituto de Filosofia e Cincias Humanas

    INTERNET Rede Mundial de Computadores

    JSTOR Banco de Dados de Peridicos Digitalizados

    NEAM Ncleo de Estudos Antigos e Medievais (da Universidade

    Estadual Paulista)

    PPGLC/USP Programa de Ps Graduao em Letras Clssicas da USP

    SITES Stios Eletnicos ou Virtuais/ Pginas Virtuais

    UEM Universidade Estadual de Maring

    UFPR Universidade Federal do Paran

    UFRJ Universidade Federal do Rio de Janeiro

    UNESP Universidade Estadual Paulista Jlio de Mesquita Filho

    UNICAMP Universidade de Campinas

    USP Universidade de So Paulo

  • NDICE

    DEDICATRIA................................................................................................... 3

    AGRADECIMENTOS......................................................................................... 4

    RESUMO/ PALAVRAS-CHAVE....................................................................... 6

    ABSTRACT/ KEYWORDS................................................................................ 7

    ABREVIATURAS................................................................................................ 8

    INTRODUO.................................................................................................... 11

    CAPTULO I: A Poltica Romana no Principado e as Cartas de Plnio.......... 15

    1. Organizao do Principado e Relaes Sociais no Tempo de Plnio...... 16

    2. A Poltica Romana: provncias e homens novos..................................... 16

    3. Religio, Filosofia e Poltica: o estoicismo e a aristocracia romana....... 22

    4. O Ideal Poltico e a Aristocracia Romana............................................... 29

    5. Dos Assuntos Plinianos........................................................................... 34

    5.1. Caius Plinius Caecilius Secundus: cursus honorum............... 34

    5.2. As Cartas Plinianas: caractersticas gerais .............................. 36

    5.3. Historiografia Pliniana............................................................. 37

    5.3.1. Historiografia Pliniana Internacional ....................... 38

    5.3.2. Historiografia Pliniana Nacional .............................. 46

    CAPTULO II: Dos Pressupostos para a Representao de Homem Poltico 55

    1. Dos Pressupostos da Pesquisa............................................................... 56

    1.1. a Epistolografia enquanto Objeto de Estudo do Historiador.. 57

    1.2. Do Trato Metodolgico com Epstolas.................................. 58

    1.3. Dos Critrios de Seleo das Cartas....................................... 63

    1.4. Do Recorte Cronolgico......................................................... 66

    1.5. Das Bases Terico-Metodolgicas......................................... 71

    2. Das Configuraes do Homem Poltico................................................ 73

    2.1. Das Qualidades do Homem Poltico: virtus e fides................ 75

    2.2. Da Representao Excelente de Homem Poltico: o princeps 80

  • CAPTULO III: A Representao de Homem Poltico no Cotidiano de Plnio 100

    1- Das Qualidades dos Homens Polticos no Tempo de Plnio................. 101

    2. A Virtus Pliniana: um espelho para a representao de homem poltico 115

    3. Os Motivos da Representao de Homem Poltico por Plnio............... 126

    CONSIDERAES FINAIS.............................................................................. 131

    REFERNCIAS ................................................................................................. 136

    1. Fontes.................................................................................................... 137

    2. Obras de Referncia.............................................................................. 137

    3. Bibliografia Geral................................................................................. 138

    4. Bibliografia Pliniana............................................................................. 144

    5. Sites...................................................................................................... 154

    ANEXO............................................................................................................... 155

  • INTRODUO

  • 12

    A temtica da representao do homem poltico e do Mos Maiorum no

    Principado por meio das Cartas Plinianas a consequncia de alguns anos de dedicao

    sobre o gnero literrio intitulado epistolografia.

    No ano inicial de graduao, em virtude de um interesse genuno pelas

    configuraes do Imprio Romano, iniciamos1 um estudo introdutrio das epstolas

    paulinas. Nesse momento, tornou-se inevitvel trafegar pelas principais correntes

    filosficas que circulavam por Roma durante o primeiro sculo. Em O Estoicismo de

    Jean Brun (1986) percebemos a profundidade, as razes e possveis interesses paulinos

    com admoestaes acaloradas destinadas a Corinto e feso.

    Contudo, nas trilhas das representaes paulinas de cristo genuno,

    verificamos a construo de um panorama sociocultural romano que era conectado no

    estoicismo. Paulatinamente, aprimoramos as tcnicas e mtodos do estudo epistolar.

    Fundamentados nesses recursos nos deparamo-nos com Sneca e Plnio, o Jovem2.

    No segundo semestre do ano final de graduao, desenvolvemos, com muita

    labuta, um projeto de iniciao cientfica, projeto fomentado pela FAPESP, com o ttulo

    Prticas Polticas e o Mos Maiorum no Principado Romano: uma leitura de Plnio, o

    Jovem. Este fora mister para familiarizar-nos com uma nova bibliografia, novas fontes e

    novos questionamentos.

    Nesse perodo observamos a importncia de perceber os processos de

    representao do homem poltico3 no Principado, bem como entender os anseios e os

    1 Diferentemente do formalismo acadmico, utilizaremos a primeira pessoa do plural em seu sentido majesttico (ns majesttico) no intuito de aproximarmos de voc: leitor. Alm disso, no pretendemos divagar sobre questes de objetividade e subjetividade quanto pesquisa. Mas gostaramos de reforar que ideia de atividade de pesquisa coordenada, uma compilao de informaes e reflexes tomadas de referencias conhecido... sem compromisso com a inovao ou a criatividade individual. Aproveitamos essa primeira pausa para informar que resolvemos deixar todas as notas, textos originais e comentrios junto com o texto. Acreditamos que o leitor, no decorrer da leitura, julgar se ou no necessrio considerar a nota. Em caso afirmativo esta estar facilmente mo. No caso dos documentos originais, estes estaro no rodap afim de facilitar o contraste junto a traduo. 2 Para no tornar o texto enfadonho utilizaremos apenas o primeiro nome do autor das cartas: Plnio. Por sua vez, quando surgir a necessidade de distingui-lo de seu tio (Plnio, o Velho), assinalaremos segundo a necessidade e a convenincia esttica do pargrafo.3 Aproveitamos para esclarecer que existe uma confuso quanto aos termos utilizados nas tradues em lngua portuguesa, bem como na historiografia de forma geral. Costumeiramente, notamos o termo homem poltico trocado por homem pblico, cidado ou homem cvico. Neste trabalho, para no tornar pedante a leitura (por causa das repeties) faremos o uso dos termos com o mesmo sentido e, quando houver ressalvas, essas, sempre, aparecero nos respectivos pargrafos. Na discusso sobre esse homem justificaremos essa postura.

  • 13

    elementos utilizados na construo dessa representao no perodo de 96 a 113 d.C4.

    Salientemos que a escolha do perodo no est apenas relacionada com a obra pliniana.

    Antes, o recorte leva em considerao a relao das Cartas, isto , com o possvel ano

    de morte do autor (113 d.C.), em consonncia com a ascenso dos Antoninos (96 d.C.).

    Isto, pois, acreditamos que as representaes adotadas por Plnio tem como

    pressupostos os modelos de Nerva e Trajano, que por vezes, so contrapostos a Nero e

    especialmente Domiciano.

    Dessa forma, o objetivo deste trabalho identificar a representao ou as

    representaes de homem poltico a partir dos escritos plinianos. Para tanto,

    analisaremos alguns aspectos intrnsecos da representao desse homem, valendo-nos

    do epistolrio pliniano, e verificaremos as especificidades das representaes polticas e

    sociais na urbs romana como construo de um ideal imperial sob a perspectiva de

    Plnio. Assim, tentaremos observar as relaes entre o discurso pliniano e as vises de

    mundo da aristocracia romana, bem como suas articulaes com o ideal do mos

    maiorum5.

    Tendo em vista que, por cuidado didtico, o tema a ser tratado est

    multifacetado em outros tpicos, perfazendo paulatinamente a apresentao das

    questes. Conformemente, com a finalidade de lanar base compreenso da amplitude

    apresentada pela problemtica desse texto, dividimo-lo em trs captulos.

    No Captulo I apresentaremos Plnio e suas Cartas. Alm disso, faremos uma

    breve reconstituio da situao da bibliografia sobre a obra pliniana. Ainda nessa parte

    verificaremos a contextualizao do perodo, verificando as condies sociais e poltica

    no Principado.

    Por conseguinte, no Captulo II, onde aps elucidar e introduzir a temtica

    passamos a analisar de fato a documentao - apresentaremos informaes gerais sobre

    a caracterizao do homem poltico em Roma. Lanaremos os pressupostos em que est

    calcada esta pesquisa. Mostraremos os critrios de seleo e recortes, a escolha de temas

    4 O perodo leva em conta os governos de Nerva e Trajano, tendo como ponto final a data da morte pliniana. Sobre esta, reiteramos os dilemas que envolvem tal datao. Cada um dos comentadores adota uma data e, por sua vez, essas variam de 110 (pouco provvel) a 114. Preferimos nos valer das consideraes feitas por Guillermin (1938), que adota o ano 113 em seu livro Les lettres de Pline le Jeune. Essa obra, que por ser referncia, tornou-se padro adotado por outros estudiosos. 5 Literalmente, mos maoirum pode ser vertido como costumes tradicionais, dos mais velhos ou dos antepassados. Todavia, no contexto do Principado tal conceito ganhava outras facetas relacionadas vida pblica e tornava-se como que uma lapidao espiritual dos valores esticos como por exemplo pater familiae, a virtus, a fides e a amicitia. Para entender melhor a insero desse conceito enriquecido dos valores esticos no cotidiano romano, veja-se a obra O Estoicismo, de Jean Brun.

  • 14

    e a opo de abordagem. Logo aps, iniciaremos o processo de compreenso da

    representao desse homem poltico luz do estoicismo, verificando como o processo

    de representao desse homem, dado por Plnio, remetia-se ao princeps.

    O ltimo captulo complementar os demais, na medida em que continuar o

    processo de anlise representao de homem poltico para Plnio. Nesse verificaremos

    como os as caractersticas advindas do imperador podem ser utilizados nas

    representaes de homem poltico para os amigos plinianos6 e, finalmente, tentaremos

    elaborar algumas prospeces sobre a atuao pliniana no processo de formulao

    dessas representaes.

    6 Nesse contexto, citamos como amigos plinianos no so apenas seus correspondentes ou clientes (fidelizados pela amicitia instituda pelo patronato), mas o grupo social que direta ou indiretamente se relaciona com o autor por meio de um grande elemento comum: as caractersticas sociais (origem, participao poltica, etc). Nesse sentido, amigos plinianos, aqui, em sua maioria, tratam-se de importantes membros da aristocracia provinciana, senadores, escritores, etc.

  • CAPTULO I

    A Poltica Romana no Principado e as Cartas de Plnio

  • 16

    1. Organizao do Principado e Relaes Sociais no Tempo de Plnio

    De acordo com que dissemos a pouco, neste captulo contextualizaremos o

    perodo pliniano e mostraremos, detalhadamente, as caractersticas da epistolografia e

    historiografia pliniana1.

    Nesse nterim, apresentaremos uma rpida reconstituio sobre o processo de

    expanso territorial2 e suas consequncias imediatas Civilizao Romana. Nesse

    aspecto, trataremos da formao dos homens novos e o seu papel na vida poltica a

    partir da tica da valorizao das provncias.

    Em seguida apresentaremos, por meio de uma multifacetao didtica3, como

    religio, filosofia e poltica se unem por meio dos ideais esticos imbricados no mos

    maiorum.

    Compreendendo as correntes de pensamento vigente na poca, conjuntamente

    coma as formas de ver o mundo guiada pelo vis religioso, tentaremos reconstituir a

    relao entre o ideal poltico para o perodo e aristocracia romana.

    Nesse sentido tentaremos mostrar a relao dessas provncias com o aumento da

    visibilidade social dado aos homens novos. Ainda, poderemos considerar as relaes

    estabelecidas entre o pensamento estico e a vida poltica no Principado.

    Depois disso apresentado, trabalharemos os assuntos plinianos, isto , todos os

    assuntos que circundam Plnio. Para tanto retomaremos aspectos fundamentais da vida,

    carreira e obra do autor. Mostraremos ainda como as Cartas podem ajudar na

    compreenso do contexto e, por fim, faremos uma breve explanao sobre as condies

    atuais da historiografia pliniana.

    2- A Poltica Romana: provncias e homens novos

    Dada a importncia das provncias para a compreenso do Principado,

    Rostovtzeff (1973)4, em sua obra Histria de Roma, dedicou trs itens (captulos) para

    o tema. O captulo sete, que o autor d o nome de As Provncias Romanas apresenta o

    processo de organizao do Estado romano, relacionando com a importncia das

    1 Historiografia produzida sobre Plnio.2 Segue em anexo um mapa que apresenta as diferentes fases do processo de expanso territorial. 3 Informamos desde j que conforme nos afirma Veyne (1989), no possvel separar homem de sua atuao pblica e privada, como tambm so indissociveis na sociedade poltica, religio, economia, etc. Dessa forma, todas as separaes neste trabalho tem mero papel didtico de destacar determinado aspecto. Afinal, seria arbitrrio tratar de um dois aspectos da vida romana sem entend-la globalmente.4 Adiantamos que apesar do posicionamento historiogrfico deste autor (marxismo), a riqueza de detalhes, bem como a anlise de diversas fontes na confeco de seu texto faz com que essa postura fique num plano secundrio.

  • 17

    provncias. O autor mostra como o processo de expanso territorial fora o fator que

    gerou a necessidade do estabelecimento de relaes entre a Urb e as provncias.

    No captulo seguinte, embora no volte-se a essa problemtica, a obra referida

    no pargrafo anterior mostra as mudanas ocorridas em Roma e na Itlia por ventura das

    guerras pnicas e das guerras orientais, h citaes do processo de formao de um

    contingente de sditos longe de Roma. Estes, inicialmente, ligavam-se pelas relaes de

    trocas de gneros alimentcios e proporcionavam postos militares.

    Roma, Itlia e as Provncias no Sculo I a.C., captulo treze de Rostovtzeff,

    detalha o processo de valorizao das provncias. No entanto, segundo ele, no princpio,

    Roma estava cautelosa para com a efetiva romanizao5 das provncias. Ele afirma que Enquanto isso, crescia a necessidade de uma reforma constitucional medida que o Estado crescia. A cautelosa poltica externa do Senado, que evitava a anexao de novas provncias, foi substituda no sculo II a. C. pela poltica francamente imperialista, posta em prtica tanto pelo Senado como por seus inimigos, inclusive a classe de homens de negcios conhecida como cavaleiros (Idem, p. 149).

    Conforme notamos, com os benefcios advindos das conquistas, a anexao

    territorial passou a ser uma poltica de estado apoiada pelas principais camadas sociais.

    Entretanto, pelo que aponta o autor na obra, antes do advento do Principado as

    provncias no gozavam de privilgios ou destaque poltico no sistema poltico-

    administrativo romano; nem mesmo seus habitantes poderiam desfrutar de benefcios

    polticos em Roma por causa de seus volumosos negcios.

    O captulo dezoito, que intitulado As Provncias nos Sculos I e II da Era

    Crist, denota as mudanas ocorridas no processo de formao de um territrio que ora

    era secundrio e, por sua vez, passava a ganhar destaque e influncia. Esse captulo

    vale-se de uma fase cronolgica muito prxima daquela que nos valemos no presente

    trabalho e, por isso, merece um destaque especial.

    Um sistema poltico-administrativo organizado o resultado do processo de

    ligao das provncias. Algo to gigantesco (quantitativamente ou espacialmente, bem

    5 Desde j esclarecemos que o emprego do termo romanizao arbitrrio e no condiz com a realidade dinmica entre a Urb e as provncias. Nesse nterim, o contato entre as partes no se davam pela explicao marxista (simplista) de periferia e centro, antes as relaes polticas refinadas, a importncia econmica de algumas provncias, como os elementos de resistncia local contradizem esse elemento que passa a idia de coero. Assim, nosso emprego de romanizao estar ligado aos atos propagandsticos do Principado, as tentativas (no a efetivao de fato) de estabelecer valores da Urb, longe desta. Para verificar essa discusso veja: HINGLEY, R. Globalizing Roman Culture. Unity, diversity and empire. Londres/ Nova Yorque, 2005.

  • 18

    como qualitativamente), que Rostovtzeff maravilha-se das tcnicas de gesto do

    Imprio por afirmar que Augusto e seus sucessores realizaram aquilo que parecera ao mundo antigo, antes de sua poca, um objetivo inatingvel: a paz permanente, sem choques constantes de guerra externa ou revoluo interna, e uma vida regulada pelas condies ordenadas de um Estado civilizado (Idem, Ibidem, p. 216).

    Aquele processo de medo s provncias e aos provincianos que havia no

    princpio foi mudando. O estado recebia com agrado esse desejo e assegurava s

    cidades recm-formadas os direitos e privilgios que Roma concedera sempre a seus

    aliados italianos, que mais tarde se tornaram cidados (Idem, Ibidem, p. 218). Esse

    processo possibilita que as provncias romanas na Europa ocidental [transformem-se]

    numa rede de territrios urbanos e sua paulatina romanizao (Idem, Ibidem, p. 219).

    Romanizao que levaria a uma completa integrao do Imprio. Todavia, essa

    romanizao no se efetiva de fato. Observam-se distines quanto diferenciao

    social.

    Para no agravar as tenses, bem como acabar com as revoltas provncias que

    tiveram incio no final da Repblica, segundo Alfldy (1975)6 os senadores voltaram a

    ateno para As camadas superiores locais, que geralmente se mantinham leais a Roma, [para] poderem ser integradas no sistema de governo romano atravs da concesso do direito e da cidadania e de outros privilgios, servindo assim como sustentculo da organizao poltica e social do Estado Romano (p. 88).

    Destacamos que as diferenas entre as elites provincianas e as elites italianas

    diminuem com o passar do tempo. Os provincianos pouco a pouco eram agregados na

    sociedade. Como lembra Veyne (1989), na medida em que alguns cargos (geralmente de

    menor importncia) vagassem em Roma, membros de destaque das provncias poderiam

    ser nomeados.

    Assim, por exemplo, um provinciano tornava-se equestre. Dessa forma, daria um

    importante passo para avanar na carreira pblica (cursus honorum)7. Ressalta-se que

    esse era um cargo baixo na hierarquia, destinado, geralmente, ao exrcito (tribuno

    6 Lembramos que este, apesar de seus caracteres marxistas, engendra seu texto por meio de um dilogo com a Histria Social. Alm disso, torna-se indubitvel a visibilidade que ele d questes de cunho religioso, como por exemplo a importncia do mos maiorum.7 Para elucidar as etapas do cursus honorum, apresentaremos uma sntese dos principais cargos (etapas) em anexo.

  • 19

    angusticlavio, tribuno laticlvio, etc), e a ocupar postos na administrao imperial. Para

    os novi homnines tratava-se de uma oportunidade mpar, para a aristocracia romana era

    mais uma etapa de preparao do jovem para aprimorar suas virtudes e subir no cursus

    honorum.

    Explicando esse processo de entrada na vida pblica, Nicolet afirma A maioria da classe poltica continua a estar sujeita a tais modelos, na medida em que o servio militar, na qualidade de oficial, continua a ser obrigatrio para quem queria seguir o cursus honorum8 (1992, p. 310).

    Esses homens novos, conforme apontado nos ltimos pargrafos, davam provas

    de que a sociedade romana sofrera considerveis transformaes na transio

    Repblica-Imprio (ALFLDY, 1975, p. 101)

    Com a prosperidade econmica do incio do Imprio teremos o aumento da

    visibilidade das aristocracias provincianas. O enriquecimento gerado pelo trato

    comercial e agrrio propiciar a ascenso dos homens novos. Esses tero de demonstrar

    ou recuperar elementos tradicionais afim de serem aceitos na Urb.

    Nesse sentido, Alfldy afirma: podemos considerar que existe uma relao entre o carter essencialmente conservador da ordem social romana e a estrutura econmica: a natureza relativamente estvel da agricultura limitava as possibilidades de alterao radical na distribuio de riqueza, uma vez que a sua permeabilidade era limitada e as ideias que condicionavam a maneira de pensar e de agir dos crculos dominantes se encontravam estreitamente ligados tradio (Idem, Ibidem, p. 115).

    indubitvel que o aspecto econmico estava, ainda mais por se tratar da

    Antiguidade, ligado estruturao social. Mas a fala final de Alfldy que

    desenvolveremos no prximo item, pois, realmente, o elemento filosfico-religioso,

    mediado pelo conceito de mos maiorum, atua para a coeso das esferas poltica, social e

    econmica.

    O advento do Principado, para fortalecer a figura imperador, o tratamento com a

    provncia, bem como para com a aristocracia provinciana ganha mais visibilidade e

    respeito. Assim, nos sculos I e II d.C, as provncias latinas e helnicas (ocidentais e

    orientais) do Imprio Romano so tratadas com absoluta igualdade devido s relaes

    comerciais que mantinham com Roma (GRIMAL, 1984 p.56).

    Os provincianos que passavam a viver em Roma e adquiriam a cidadania

    romana se tornavam, efetivamente, novi homines. Em outras palavras, os provincianos,

    8 Sempre que a citao estiver sublinhada indicar um grifo dado pelo autor citado (negrito, itlico, etc). Qualquer outra forma de interveno ser dada por ns.

  • 20

    mesmo gozando de privilgios em sua terra natal (pertencendo aristocracia local), no

    so dos aristi, so intrusos, novos; no so includos no seio da aristocracia romana.

    Dessa forma, os dediticii ou sditos das provncias no so considerados cidados nem

    aliados, mas estrangeiros (ROSTOVTZEFF, 1973, p. 80-81).

    Para minimizar as tenses, segundo seu volume X, The Cambridge Ancient

    History nos informa: Em virtude dos poderes de censoriais possudos por Augusto, esse passou a re-organizar os equestres, sem introduzir grandes mudanas. Similarmente s suas aes com o Senado, ele simplesmente tentou garantir que os membros dessa camada, que ele pretendia subordinar, pudessem desfrutar de honra [na carreira pblica] (1971, p. 186).

    Mais do que aceitar enquanto cidados ou novos homens, Augusto passa a

    nomear a aristocracia local (provinciana) para os cargos da carreira pblica. Mas,

    lembremos que os novi homines no pertenciam, pois quelas camadas tradicionais da

    aristocracia romana cujo enfraquecimento crescente desde o final da Repblica

    (ROSSI, 1996, p. 89).

    Com a morte de Augusto o risco da descontinuidade da suposta era urea

    retorna. Assim, segundo apontam os escritores do perodo e, tambm reproduzido por

    Alfldy (1975, p. 123,124), os tumultos sociais retornariam. Especialmente nos

    governos de Calgula, Cludio, Nero e Domiciano (que so extremamente criticados nos

    documentos latinos) acentuariam as disputas sociais. Entre a ordem senatorial e a ordem

    equestre, entre a aristocracia romana e aristocracia provinciana, entre os homens livres e

    os descendentes de libertos.

    Tibrio e Vespasiano no so criticados ferozmente por suas medidas polticas e

    administrativas. Contudo, seus feitos, neste mbito, no chamaram a ateno dos

    cronistas da poca. Apenas depois de muito tempo sem uma imagem forte, que se

    consegue liderar o povo. Nerva e, especialmente, Trajano, que so tidos em seus

    respectivos perodos como o retorno s tradies republicanas preservadas por Augusto,

    valem-se dos mesmos princpios utilizados no incio do Principado. Porm com um

    agravante: a extenso territorial.

    A ampliao dos territrios levava novas provncias, que ,por conseguinte,

    novos equestres buscando espao e visibilidade social. Trajano fora apresentado como

    portador da romanitas. The Cambridge Ancient History, em seu volume dedicado aos

    anos 70 a 192 de nossa era (vol. XI) relata: As comunicaes da Itlia, tanto externa como interna, foram uma das principais preocupaes de Trajano em sua tentativa para reforar sua

  • 21

    estrutura econmica e, tambm aqui, uma distino similar entre as partes anteriores e posteriores do seu reinado, reforando sua imagem ( 1969, p. 207).

    Sendo assim, Trajano, por ter origem provinciana, precisar de elementos de

    legitimao do seu poder. Nesse processo de afirmao, consequentemente abrir

    precedentes para outros provincianos. Plnio, por sua vez reforar a importncia do

    princeps e legitima sua posio. Com uma relao estreita com o imperador consegue

    galgar importantes cargos polticos, chegando a governador de provncia. Entretanto, a

    postura de Trajano no cessa a discusso. Pelo contrrio, refora na medida em que

    amplia a atuao e visibilidade dos homens novos.

    Vale adiantar algumas reflexes, pois, quando retomamos a origem e os signos

    apropriados de Augusto e Nerva por Trajano, notamos que ele assume a fora do

    imperator (de cunho militar, com forte ligao aos equestes, que remete ideia de

    conquistador). Este imperador retoma os valores da Repblica (os ideais, formas da

    administrao, bem como os valores do romano sobre a coisa pblica). Por ser

    provinciano, alinha-se s aristocracias locais, sem perder o lao com a tradio e

    ancestralidade (que fora herdada de Nerva).

    Sintetizando os pontos explanados, notamos que o alargamento das possesses

    romanas fazia com que as provncias deixassem de ser um posto avanado do exrcito

    (como era no incio do processo de expanso) para participar da vida romana. A

    influncia econmica, segundo Alfldy (1975) possibilitou o avano de negociantes e

    membros da aristocracia local (provinciana). Por sua vez, o aparato administrativo de

    Roma, conforme aponta Rostovtzeff, aproximava a Urb das provncias. Para evitar as

    revoltas provinciais (como as ocorridas no final da Repblica) e crticas ao poder

    imperial, Augusto cede espao aos novi homines. Seus sucessores, igualmente, buscam

    elementos que evitem radicalizaes ou disputas acirradas no mbito social, bem como

    garantam a paz para seus respectivos governos.

    Em outras palavrasDesde o final da Repblica, as instituies tradicionais, como o Senado, se desgastaram e o poder pessoal, na figura do Imperador, cresce com a ajuda dos novi homines. A ascenso dos novi homines e dos liberti amplia a mquina estatal, o que faz com que o Imperador se indisponha com grupos polticos tradicionais prejudicados pelo vazio do poder em que so colocados. A oposio ao poder, formada por esses grupos polticos e inspirada pelo estoicismo, procura um novo equilbrio atravs da recuperao do culto do mos maiorum ( ROSSI et CINTRA,2009, p. 115).

  • 22

    Portanto, para evitar as tenses em seu governo, Trajano adotara o retorno s

    tradies. A principal delas ser a rememorao filosfica-religiosa do mos maiorum,

    fator que consideraremos no prximo item.

    Depois disso dito, e, tambm antes cerrar essa parte, salientamos que h no

    perodo de Trajano uma temeridade nos discursos quanto ao que toca a estrutura dos

    grupos sociais. Alm das disputas existentes entre o grupo senatorial e equestre,

    verificamos em algumas Cartas traduzidas, a resistncia equestre9 quanto ascenso dos

    libertos10 e seus sucessores. No entanto, em virtude objeto de pesquisa no discutiremos

    essa questo.

    3- Religio, Filosofia e Poltica: o estoicismo e a aristocracia romana

    Ao retomarmos as informaes dadas a pouco, percebemos que o imperador

    precisava de algum elemento que pudesse garantir a paz em seu governo (minimizando

    as disputas sociais e garantindo seu prestgio). Esse elemento ser retirado da religio e

    da filosofia. O mos maiorum e o estoicismo11 atuaro conjuntamente no processo de

    legitimao das configuraes sociais romanas. Comecemos, ento, pela religio.

    Conforme dissemos anteriormente, embora no haja ciso entre o social,

    poltico, cultural, religioso e poltico, podemos inferir que uma forma mais didtica de

    partir no percurso para a compreenso do homem poltico saindo do ponto de visa

    religioso. A religiosidade era vivenciada a todo o momento pelo romano. Desde a

    gnese do mundo, s aes humanas, os fenmenos naturais que observavam, o porvir,

    em suma, todas as coisas estavam sob os desgnios dos deuses. O tempo era sacralizado

    pelos ritos, festividades e perpetuao dos mitos. Os cultos pblicos e privados serviam

    para aprofundar esse modus vivendi.

    Todos estavam imbudos nesse mundo. Rosa nos lembra que todas as relaes

    eram marcadas pelos desgnios dos deuses. Para ela at um escritor como Tito Lvio, 9 Embora possa parecer um tratamento dos equestres enquanto grupo coeso ou classe social (no conceito marxita), lembramos que tratava-se de uma ordem (Ordo) e, por sua vez, por estarem muma carreira mostravam disposies contrrias aqueles que no obedeciam os postulados sociais estabelecidos historicamente. 10 Conforme apresentado nos Anais (XIII: 27) de Tcito, que fora comentado por Joly (2005), os libertos faziam parte da pauta poltica do senado e da sociedade romana. Plnio tambm analisa a postura dos libertos, interpretando e emitindo seus valores para com suas respectivas atitudes. A retrica pliniana quanto a questo do liberto figura-se como importante objeto de estudo para futuros pesquisadores de Plnio. 11 Nossas notas parecero redundantes, porm vrios dos elementos que separamos (por motivo didtico) nesse trabalho no eram vistos de forma isolados pelos romanos. o caso do estoicismo e do mos maiorum, que so indissociveis no perodo pliniano.

  • 23

    que se voltava ao passado romano a partir do sculo de Augusto, acreditava que o

    sucesso dos romanos na conquista do mundo deveu-se a um escrupuloso cuidado nas

    relaes com os deuses ( 2006, p.137).

    Deus e homem interagiam a todo o momento por meio de rituais. Esses marcavam todos os eventos pblicos e celebraes; alguns deles podem ser classificados como ocasies religiosas propriamente ditas festivais anuais, a realizao e o cumprimento de juramentos, os aniversrios das fundaes de templos, etc. Outros, como seculares as eleies, as assembleias, o censo dos cidados romanos; outros, ainda, podem variar segundo critrios adotados: os jogos, as performaces dramticas, que tinham elementos rituais em seu programa, mesmo que tivessem tambm o entretenimento entre os seus propsitos (Idem, Ibidem, p.141).

    A religio estava presente ao levantar, ao comer, ao participar do Estado, ao

    cuidar da famlia, seja dentro ou fora de casa. O romano tinha a religio como elemento

    to importante, que guerras poderiam ser perdidas se um lder no caminhasse segundo

    o percurso dos deuses12. Nicolet nos informa que todas as prticas polticas dependiam

    dos deuses, da tradio e dos costumes (1992, p. 35). Assim, as pessoas passavam por

    uma imensa gama de rituais com a finalidade de pedir aprovao divina para as aes

    humanas.

    Sobre este aspecto dizemos que, De fato, a religio era uma das expresses, e das mais visveis, da ideologia da elite romana, de suas tcnicas de manuteno e/ou limitao de poder de indivduos e de grupos polticos. Ao mesmo tempo, eram os rituais que garantiam as relaes entre os dois grupos, homens e deuses. Garantir os ritos representava a certeza de manuteno da sociedade como a queriam: ordenada e segura. Ao respeitar as regras de comportamento, como o respeito aos deuses, sobretudo em seus espaos, ao curvar-se sob a autoridade dos rituais, o cidado garantia a ordem social, e a pax deorum e as prticas que acarretavam a transgresso ordem vigente podiam levar a sociedade ao caos e desagregao. A concrdia entre os homens e os deuses a garantia da ordem romana (ROSA, 2006, p.145).

    Dentre os diversos rituais descritos a pouco, um dos mais comuns e sbrios

    tratava-se dos cultos. Amanda Giacon Parra (2009) esclarece que

    Havia dois tipos de cultos ligados religiosidade oficial: os cultos privados e os cultos pblicos. Os cultos privados ou domsticos eram feitos pelo pater familia. Neles, cada famlia escolhia os deuses de deveriam cultuar. Esse tipo de culto estava ligado ancestralidade (p. 80).

    12 The Cambridge Ancient History nos lembra que a religio era to sria para o cidado, que no direito romano havia a seguinte categoria: laesa religio ou sacrilegium (1971, Vol. X, p. 470). Para obter mais detalhe veja as pginas 369, 370 e 390 da referncia citada.

  • 24

    Assim, o culto aos antepassados figurar como processo comum no cotidiano do

    romano. Nos locais pblicos havia esttuas, bustos e lpides erguidas aos grandes

    homens do passado. Aqueles que fizeram a ptria, que derrotaram inimigos, que foram

    piedosos para com os deuses. Todos os mais velhos, que so dignos de nota pela sua

    sapincia e seu exemplo.

    A religio romana, seja por sua funo antropolgica de buscar e retomar

    origens (gneses, que est presente em praticamente todas as religies que observamos

    at hoje) ou pela sua perpetuao de crenas ou mitos, era baseada, dentre outras coisas,

    no princpio da rememorao. Essa rememorao buscar algo que se foi perdido, que

    deve ser recuperado. Os valores, costumes, o vigor, a coragem ... a virtude.

    Nesse sentido, o velho ser uma busca do romano, segundo (Oliveira,

    s/d) O enquadramento dos veteres observa a tradio literria greco-romana, onde h trs tipos de heris: os heris consagrados na poesia pica, os heris destacados pelos seus feitos polticos e os heris que se mantm associados aos cultos domsticos e familiares. Os primeiros, os heris consagrados na poesia pica, no caso dos romanos, fazem parte de uma tradio que se perde no tempo, mas permanecem na memria e nos relatos das obras-primas produzidas em lngua latina, consumidas intensamente tanto na formao do cidado quanto como adorno literrio. Os segundos, heris polticos, esto mais prximos da realidade concretamente vivida pelo cidado, pois sua ao est ligada mais estreitamente aos assuntos da ptria. Os terceiros, os heris mantidos pelos cultos domsticos e familiares, constituem a representao da categoria embrio dos cultos de heris disseminados pelas gentes e pelas familiae (s/d, p. 1 Ad privatum)13.

    O velho, num dos planos, ser como o heri do domnio domstico, o lder da

    famlia, o pater familias. Este guardar, no apenas o saber, mas, sobretudo, as virtudes

    to esmeradas por qualquer cidado. Nesse sentido, os exemplos dados pelo pai, av e

    demais homens (velhos) da famlia deveriam se seguidos de perto.

    Sobre a funo do exemplo Corassin (2006) afirma que A figura de parentes masculinos de idade madura tambm importante, seja o pai ou, na falta dele, de um tio ou outra figura que substitua a figura paterna. Os rapazes acompanham o pai, iniciando-se nos aspectos da vida pblica da qual iro fazer parte; aprendem pela observao e, sobretudo, pelo exemplo. Os exempla foram muito valorizados, inclusive pelos historiadores, pois aprende-se com o comportamento deixados pelos vares ilustres: essa a razo de se ensinar a histria da cidade (p. 274).

    Esse culto aos ancestrais, de carter religioso, onde na esfera domstica retomar 13 Artigo A fbrica de heris, confeccionado no processo de confeco da Tese de Livre Docncia do Prof. Carlos Roberto de Oliveira. Este sofrera pequenas modificaes at a data da defesa e se encontra no mbito privado.

  • 25

    a figura dos veteres, ser dado pelo mos maiorum. Assim esses exemplos, apresentados

    no seio familiar ou na esfera pblica sero mostrados aos jovens a forma de proceder

    com a Urb e com os outros cidados. Lembremos que o mos maiorum detm em si

    essas ideias. Afinal, mos pode ser vertido como costumes, valores, morais ou

    ensinamentos. Em sequncia, maiorum significa dos mais velhos, dos antigos, dos

    antepassados. Sendo assim, mos maiorum era o respeito, a venerao e o cumprimentos

    dos costumes deixados ou ensinados pelos antepassados.

    No culto domstico dos antepassados, reavivavam-se os costumes e resgatava-se

    a origem da famlia. Altares, imagens, textos e pensamentos dos mais velhos, dos pais

    da famlia sero retomados dentro de casa. Seja na esfera domstica, quanto no

    exerccio poltico, o romano ter o mos maiorum, no perodo referido, enquanto

    elemento presente. Ao sair de casa, nos bustos, nas esttuas, nos monumentos

    morturios, sem contar dos templos e locais sacralizados por natureza, tinham

    elementos que retomavam a tradio e os valores construdos pelos romanos. Enias,

    Rmulo, Csar e outros homens ilustres eram lembrados nas conversas e nos

    monumentos pblicos. Enfim, o mos maiorum era constantemente instado a todos os

    romanos.

    Pelo que nos lembra Corassin, a educao romana voltava-se ao ensino das

    origens, dos exemplos dados pelos antigos, isto , para a essncia do mos maiorum.

    Assim, A educao romana constitua a iniciao progressiva a um modo de vida tradicional; a criana aprendia a imitar os mais velhos. Ela convivia com eles, e medida que crescia, ia se introduzindo, silenciosa e reservada, no crculo dos adultos. Os valores bsicos nessa sociedade so transmitidos entre as geraes; fundamental o respeito aos costumes dos antepassados ou dos ancestrais: o mos maiorum. Ensinar aos jovens esses costumes e o respeito a eles como um valor indiscutvel a principal funo de quem educa. Educao entendida aqui no sentido mais amplo, da formao e no apenas da transmisso de conhecimentos por mestres escolares ( Idem, Ibidem, p. 273).

    Os velhos tinham papel importantssimo no seio social. Vivo ou morto, seus

    conhecimentos eram perpetuados, agiam como se fossem guardies das memrias e dos

    saberes (HALBWACHS, 1990), exemplos de postura e virtude para os demais.

    Realmente, esse processo calcado no mos maiorum fortalecia os elementos tradicionais

    da sociedade. Pois, conforme notamos, desde pequenino, o romano era inserido num

    mundo de retorno s bases ancestrais. O velho, suas virtudes e exemplos eram

    rememorados cotidianamente nos elementos religiosos domsticos e pblicos, bem

  • 26

    como na educao formal.

    Isso posto, como j alertamos no incio dessa parte, o mos maiorum durante o

    Principado no era constitudo apenas pelo aspecto religioso. A influncia filosfica

    contribua para encorpar esse valor. No caso, o estoicismo juntar-se- aos preceitos

    religiosos, reforando a ideia de retorno s origens.

    Antes de prosseguir mister lembrar que o estoicismo era na uma das vertentes

    filosficas mais pujante em Roma e por todo imprio durante o primeiro sculo.

    Realamos, mais uma vez, nesse perodo o pensamento estico fornecera, por sua vez, o

    respaldo terico para a legitimao do mos maiorum no campo filosfico-religioso.

    Neste nterim, vale a pena relembrar que em seu conjunto, o estoicismo diz

    Brun (1986) - pode-se dividir em trs perodos: um perodo antigo ou tico, um perodo

    mdio ou ecltico, um perodo recente ou religioso. Os dois ltimos, bastante

    divergentes do estoicismo clssico. O fundador da antiga escola estica fora Zeno de

    Citium (334-262 a.C., mais ou menos). Em seus escritos j se encontravam a clssica

    diviso estica da filosofia em lgica, fsica e tica, a primazia da tica e a unio de

    filosofia e vida. Essa tica era proveniente da noo elaborada anteriormente de ethos.

    Os valores observados no perodo pliniano, que eram relacionados com o elogio

    ao mais velho e origem estavam latentes no estoicismo mdio - que era tributrio de

    vrias linhagens do pensamento antigo, sobretudo do estoicismo antigo. Este, durante o

    final da Repblica e incio do Principado, retomou o conceito de virtus, baseado na

    disciplina e subordinao do cidado - dentro do seio familiar - ao pater familias e - na

    esfera pblica - cidade. A partir de ento, ser virtuoso torna-se oferecer demonstraes

    de louvor aos antepassados e origem da Urb14. Razo (filosofia) e religio somavam-

    se com a finalidade de contribuir na formao de um cidado, este que por expressar

    suas virtudes, seria digno de prestar a vida pblica diante dos deuses e dos

    antepassados.

    O estoicismo entranhava de tal forma na sociedade por causa das suas

    caractersticas iniciais. Zeno, mais do que um conjunto de reflexes, desejava que seus

    pensamentos fossem colocados em prtica para o benefcio do homem e da cidade. A

    base tica do estoicismo seria dada pela unio de filosofia e vida. Dessa forma, desde a

    construo das leis at os aspectos mais banais da vida em Roma, para Grimal (1993,

    p.98), havia influncia da filosofia. Esse ltimo defende que a razo (o pensamento

    14 Por isso temos o (re)florescimento do culto aos antepassados, bem como Augusto e os demais imperadores retomando a imagem de Rmulo.

  • 27

    estico no caso explicitao nossa) era empregada no cotidiano afim de facilitar as

    tomadas de deciso do cidado. Consequentemente, o homem poltico15 deveria, por

    meio da vertente estica, capturar a essncia do povo romano, isto , o conjunto de

    valores e exemplos ensinados pelos deuses, heris, homens ilustres, do mais velho da

    casa (da figura patriarcal: pater familias). Por meio do exemplo lembrado

    diuturnamente, segundo o estoicismo, seria possvel alcanar a virtude.

    Alm do velho, o estoicismo retoma outros fatores ligados origem romana. A

    importncia do campo, enquanto local de descanso e reflexo, onde o homem busca a

    paz e a lapidao do esprito ser trazida ordem do dia. Assim, mais que a vida

    campestre, que narrada e elogiada nos diversos autores latinos, a origem agrria de

    Roma. Eis que as vilas romanas sero buscadas pelos seus donos com o objetivo de

    busca moderatio (um dos preceitos tico do estoicismo).

    Numa das leituras esticas, retomar o passado enquanto era urea ser recuperar

    os mitos fundadores. Tendo em vista de que os fundadores de Roma tinham suas

    atividades ligadas terra, retornar s origens significa retomar as questes agrrias.

    Virglio em suas obras, por exemplo, alm de reconstituir os valores e a histria

    (tradio) romana, trata da questo campestre. No entanto, cabe salientar que as

    atividades agrrias eram, no principio, fundamentadas em torno do Tibre. Essa

    recuperao do passado tambm utilizar-se- do locus. Assim, a tradio estar ligada

    Roma e, em segunda instncia Itlia.

    A retomada do passado, da origem, do velho, do mito, dos deuses, seja qual

    elemento fosse buscado, para o estoicismo, tinha como funo a lapidao ou aumento

    das virtudes do indivduo. Assim, por meio da retomada de suas origens histricas e/ou

    mitolgicas, como do culto aos antepassados pela rememorao de seus valores, o

    homem ficava repleto de virtus, e denotava sua preocupao com a Urb, desenvolvendo

    caractersticas desejveis para um homem apto ao cargo poltico. Dito isso, podemos

    dizer que no havia (ou no que se refere a moral romana, no deveria haver) homem

    poltico sem a virtus.

    Mesmo tendo muita fora na sociedade romana, Barrow afirma que nenhum

    15 Podemos considerar por homem poltico o cidado, que latifundirio, pertence s famlias tradicionais (NICOLET, 1992, 28), participa da vida pblica e, por isso, est ligado aos valores romanos e ao poder imperial. Esse, tambm, comunga das prticas sociais vigentes no perodo. Informamos que h um emprego concomitante e similar dos termos de homem poltico e homem pblico na historiografia, afinal o exerccio da politiks (exerccio da vida na plis/cidade) dava-se, em sua grande maioria, fora do domnio domstico. Por isso, s vezes, efetuares a troca de um termo por outro por motivo esttico. E, caso em alguma circunstncia seja necessria alguma complementao, ns a faremos.

  • 28

    romano adotava o estoicismo em sua totalidade ( 1986, p. 156). Afinal, o estoicismo

    exigia inmeros valores do homem romano e, por isso, sua aplicao era sempre

    almejada, mas nunca efetuada em plenitude. O cidado deveria, portanto, ser virtuoso

    (deter a virtus) e por isso comungar da pietas ( ser dovoto e respeitar as vontades

    divinas), do mores ( costumes e tradies), da auctoritas (respeitar as autoridades

    estabelecidas), da disciplina ( respeito e obedincia a todo e qualquer postulado social),

    da constantia ( adotar e manter um proceder nico ou padro) e da fides ( dar f seus

    atos por respeitar qualquer palavra firmada).

    Mesmo no sendo aplicado em sua plenitude, a lapidao do esprito, pelo

    fortalecimento da virtus era um consenso entre os romanos. Assim os valores morais

    eram imprescindveis. Para entend-los melhor, a obra de Carcopino16 (1990) mostra

    essas relaes em Roma no apogeu do Imprio. Sua obra dividida em duas partes. Na

    primeira trabalha o meio fsico, questes inerentes arquitetura, e o contingente

    populacional. Nessa o autor discute e apresenta a grandeza de Roma, tomando,

    essencialmente, o perodo de Trajano. Numa leitura interessante faz inmeras analogias

    das construes grandiosas com o poder do princeps. Na segunda, Carcopino discute o

    meio moral, no qual se trabalham os sentimentos e as ideias que explicam os mritos e

    as fraquezas do romano dentro das prticas e representaes17 cotidianas, isto , dos

    costumes passados de gerao em gerao. Costumes esses, os quais segundo ele -

    iam se perdendo pouco a pouco (Idem, p. 73). Assim, segundo o autor, a partir do

    segundo sculo os valores tradicionais comeam a entrar em desuso, facilitando o

    enfraquecimento e a coeso no imprio, prova disso que inclusive a figura do pater

    familias perde o poder e respeito que detinha outrora (Idem, Ibidem, p. 100).

    Os valores morais eram to importantes que deixar de demonstr-los era motivo

    para repdio pblico, e, por sua vez, para alguns historiadores motivo para crise ou

    decadncia18. Exatamente isso abordado por Veyne (1990) na sua apresentao do

    16 Em sua obra, ele faz uma leitura diferenciada do Principado onde nos possibilita compreender/ interpretar o perodo de Trajano, apresentando indcios (de cunho moral) de que este no seria to harmonioso conforme apresentado pela historiografia clssica. 17 Emprestamos aqui o conceito elaborado por Chartier. 18 Alm de Carcopino, podemos citar os textos de Montesquieu e Gibbon sobre a fraqueza e declnio de Roma. Montesquieu, em sua obra Considrations sul lhes causes da grandeur ds Romains et de leur dcadence (1734) retoma a quebra de tradio nas relaes administrativas e, especialmente, no exrcito. Para ele, na medida em que se aceitam soldados no legtimos, os romanos esqueciam a importncia da ptria e dos valores relacionados fidelidade ao imperador e aos (soldados) mais velhos. Gibbon, em Histria da decadncia e queda do Imprio Romano que est impregnado por geraes e gerao de livros didticos em nosso pas, apresenta o que chamamos de fatores clssicos: a quebra dos costumes gerados pelo cristianismo e a grande extenso territorial, somada dificuldade de defender suas

  • 29

    Imprio Romano. Esse autor, nos diversos temas trabalhados no livro, incluindo-se as

    relaes polticas e as categorias sociais, nota-se o destaque que dado a uma influncia

    marcante da vida social e poltica romana: o estoicismo. Essas relaes de respeito,

    reciprocidade, fidelidade, piedade, fundamentais na constituio da virtus estavam

    calcadas no mos maiorum. E, por isso o estoicismo fornecia o cabedal terico para seu

    sustentculo e, ainda, a religio, via seus cultos, mitos e ritos cotidianos reforavam,

    perpetuavam e garantiam a manuteno dos valores tradicionais19.

    Depois dessas consideraes faz-se necessrio entender as relaes desses

    postulados religioso-filosficos dentro da vida pblica romana. Por isso, nos prximos

    poucos pargrafos, tentaremos estabelecer as relaes do mos maiorum com a poltica e

    a aristocracia romana.

    4- O Ideal Poltico e a Aristocracia Romana

    Levando em considerao que o mos maiorum fazia-se onipresente do primeiro

    sculo em Roma, no seria demais dizer que o cursus honorum e os ideais aristocrticos

    valiam-se dele para se legitimarem. Assim sendo, nos pargrafos seguintes tentaremos

    resumir como o ideal poltico e a aristocracia romana pode ser visto a partir do mos

    maiorum. E, por sua vez, como a aristocracia usava esse elemento a seu favor na

    constituio de um ideal poltico.

    Por ventura da expanso territorial e aumento das provncias, que notamos no

    princpio do captulo, o perodo de Augusto e depois com Trajano tiveram que criar

    mecanismos para se precaver das revoltas provincianas, como tambm manter a coeso

    dessa infindvel poro territorial repleta de moradores diversos.

    Por isso, no mbito poltico, as aes pblicas e/ou imperiais, cuja finalidade era

    perpetuar, difundir ou manter determinados valores, eram tidas como poltica de

    governo. A ttulo de exemplo, podemos afirmar que no final da Repblica romana e nos

    dois primeiros sculos de nossa era, a cultura romana passou a ser difundida junto com

    fronteiras. Mas, de fato, o que nos interessa que no h como pensar o Principado sem pensar a influncia estica e a retomada do mos maiorum. 19 Em virtude da repetio incondicional desse fenmeno (professar ou comungar nas praticas cotidianas no mos maiorum) durante o primeiro sculo, que num exerccio sociolgico, poderamos o caracterizar como fato social. Afinal, numa leitura durkheimiana simplista, a generalidade apresentada pela amplitude do fenmeno e sua aplicao cotidiana conforme comentado a pouco. Alm disso, esse fenmeno era independente das vontades especficas, j introjetado na cultura familiar e pblica, tornava-se praticamente impossvel cess-lo. Mesmo com ordem superiores (improvvel, pois a aristocracia e o imperador se beneficiavam deste) no seria removido do seio social. Por fim, sua coercitividade era descarada. O homem que no comungasse desses valores era rechaado, criticado ou seria (embora no temos relatos) expulsos de seus grupos.

  • 30

    a sua dominao poltica e militar. Cria-se, segundo Franco Cambi, uma unidade

    espiritual do Imprio, ligada lngua e s tradues literrias, romanizando regies que

    eram diferentes e at discordantes entre si - pela etnia, pela crena religiosa, pelos

    costumes, pela lngua. (1999, p. 117).

    A ao poltica dos imperadores, principalmente em relao formao dos

    cidados, consistia em implantar escolas nas vrias regies provincianas para que a

    ideia de romanitas fosse incorporada pelas classes aristocrticas provincianas ento

    receptoras da cidadania romana. A romanitas, mais do passar contedos utilitrios para

    o trato poltico na Urb, tinha seu cunho filosfico-moral com a finalidade de passar

    valores romanos. Dentre esses costumes e valores figurava o mos maiorum, que se

    perpetuava por meio da religio fazia parte tanto dessa formao do romano, como

    mecanismo de preservar a tradio (BARROW, 1992, p. 25). Por meio desse

    mecanismo, a religio, a rgida moral e a mitologia serviam para manter a coeso do

    Imprio (Idem, p.19, 27).

    A romanitas recebia uma embalagem atrativa, onde o recebedor podia lapidar

    suas caractersticas, tornando-se mais cosmopolita, mais valoroso. Isso se dava por meio

    da humanitas20, que segundo Ccero, seria um trao de erudio, sapincia, distino. A

    humanitas, que era fundamentada na virtus, na pietas e na fides, que significam

    respectivamente, hombridade, respeito aos deuses e aos homens e cumprimento dos

    seus deveres polticos (Ibdem, p. 25) , difundia-se com facilidade pelas provncias

    romanas. Ela criava um modelo de cdigo padro para a conduta de qualquer cidado.

    Este cdigo era to forte que no precisava de fiscalizao para funcionar, o trato

    cotidiano fazia isso. Era praticamente uma teoria filosfica, que era muito difundida nas

    camadas abastadas ( ROSTOVTZEFF, 1961, p. 185).

    Com a humanitas e seus valores subsequentes, que foram citados no ltimo

    pargrafo, era usada pelas camadas abastadas para promover a manuteno social.

    20 Humanitas termo correspondente a Paidia (termo grego) (VEYNE, 1992 p. 283). Este termo ou seus radicais, segundo ndex elaborado por Rossi (1994, p. 98 Ad privatum), encontram se nas seguintes cartas plinianas: I 12; V 3; V 19; VI 29; VI 31; VII 31; VIII 8; VIII 16; VIII 22; VIII 24 e IX 5. Aproveitamos o momento para explicar a forma de citao das cartas nesse trabalho. Inicialmente dizemos que no obedeceremos s normas tcnicas quanto ao nmero de linhas mnimas para que haja recuo do pargrafo e diminuio da letra segundo padro. Pois, mesmo em fragmentos pequenos, colocaremos em evidncia a Carta. Conforme apresentado acima, primeiro ser apresentado o livro com nmeros romanos, II, por exemplo. Na sequncia apresentaremos o nmero da carta em arbico sem qualquer forma de sinal ou pontuao. Exemplificando: 12. Finalmente, colocaremos aps dois pontos os respectivos pargrafos das cartas com nmeros arbicos segundo o modelo: a) : 1,2 (pargrafos 1 e 2); b) : 3- 6 (pargrafos de 3 at 6). Nesse caso hipottico teremos: II 12: 3 6.

  • 31

    Assim, a organizao poltica da cidade, durante o Imprio, refletia a influncia

    determinante e eficaz que certos indivduos exerciam sobre o conjunto dos outros

    (VENTURINI, 1993, p. 31). Aqueles mais abastados e instrudos se valiam de outra

    instituio romana para se distinguirem: o patronato.

    Esse contexto, que favorecia a cristalizao de grupos polticos, possibilita-nos

    entender que as relaes polticas, bem como prticas passam pelo conceito romano de

    fides (HELLEGOUARCH, 1963, p. 161). A fides era uma das virtudes mais cobradas a

    todo homem pblico.

    O homem poltico - por sua vez - nesse perodo, ao menos no plano terico,

    deveria prezar os valores defendidos pela retrica imperial. Assim, as formas de agir

    deveriam ser guiadas pelo caminho estico, que ensina viver segundo a fides, a amicitia

    e o mos maiorum. Tais prticos eram comuns nas relaes clientelistas romanas. Sobre

    as relaes clientelistas, Venturini diz a oposio do patriciado e da clientela sobreviveu na literatura, sob a forma do discurso, quanto mais se avana para o poder individual e tudo o mais que ele simboliza. que, a extenso da cidadania trouxe consigo o advento das aristocracias provinciais- os novi homines- que representavam novas formas nas relaes sociais tradicionais (VENTURINI, 1993, p.26).

    Realmente o patronato mudara da Repblica para o Imprio. O advento dos novi

    homines trazia consigo novas formas de gerir sua carteira de clientes, bem como a

    necessidade de retomar e reforar valores tradicionais como a fides e amicitia. O velho,

    o herico o mtico, segundo o mos maiorum virtuoso. Assim, ao retomarmos valores

    tradicionais, calcados no mos maiorum, retomamos a humanitas e, por consequncia a

    virtus21.

    Nesse processo, a sustentao do mos maiorum, no tempo de Plnio era dada por

    meio das prticas22 cotidianas desenvolvidas pelo cidado. Assim, o cidado romano,

    como homem ligado s suas tradies, seria um homem virtuoso carregado de

    humanitas. Desse modo, a humanitas pode ser entendida como ideal de homem, no

    apenas do ponto de vista intelectual, mas em relao formao moral e tico, em busca

    de um tipo elevado, um cidado perfeito a servio do Estado e de suas necessidades. 21 Conforme dissemos em parte a humanitas compreendia um conjunto de virtudes (virtus). A virtus, por sua vez, pode ser entendida como o conjunto de virtudes fundamentais para o romano. Essas so frutos do exemplo dado por homens ilustres, pelo princeps e pelos velhos, isto , pela tradio e pelo mos maiorum. Dentre as virtudes mais comuns esto a fides, pietas, moderatio, disciplina, prudentia e honor. 22 Reiteramos desde j que as representaes so oriundas ou conseqncias de prticas sociais (CHARTIER, 1900). Assim, a representao no pode ser deslocada de seu contexto (por isso enfatizamos tanto nesse ponto no primeiro e segundo captulo), Afinal, esse trabalho foca apenas nas representaes.

  • 32

    Assim conclumos que a filosofia fundamentava o ideal romano, garantido, por

    sua vez, pela religio. Valores esticos refletidos no mos maiorum romano

    fundamentava a religio e a poltica do perodo, principalmente a prtica poltica

    aristocrtica, em detrimento da insero de novos personagens sociais do perodo

    imperial. Por isso, so nos valores, costumes ou representao de mundo da aristocracia

    romana, em que o homem poltico se apodera das riquezas morais de seus

    antepassados, resumidos pelo mos maiorum - diz Barrow (1992, p. 26)- com a

    finalidade de fortalecer, permanecer ou evitar disputas de poder.

    O culto aos ancestrais faz surgir o culto divino dos imperadores23, igualando aos

    deuses o princeps, por ele apresentar qualidades que o elevavam acima dos outros

    homens. H, portanto, a preocupao moral direcionava-se a formar o cidado virtuoso.

    Nesse sentido, a humanitas romana, de forte influncia estica, o resgate e ao mesmo

    tempo a vivncia dos ideais romanos de virtus e fides. Dentro deste contexto, a

    preocupao moral da aristocracia vigente se justifica, pois, visando formao do

    cidado poltico romano, que comunga da revitalizao de um passado que outros

    grupos sociais no tiveram acesso, esse grupo social se contrape s camadas em

    ascendncia como- por exemplo- os novi homines.

    Assim, quando citamos as relaes sociais em Roma temos de lembrar que os

    valores sociais e morais esto intrinsecamente ligados. E, por sua vez, h a vinculao

    moral junto prtica poltica (REVILLA, 2001, p. 259). Dessa maneira, somente os

    indivduos dotados destas qualidades [sociais e morais], resultado do nascimento, da

    educao e da posio social, podem desempenhar corretamente funes no governo

    (Idem, Ibidem).

    Alm desse empecilho, para a investidura de cargos (principalmente dos mais

    importantes) ser exigido o princpio do mos maiorum. Assim, mais do que ter as

    qualidades morais e sociais, deter virtus ou erudio, buscar-se- as origens histricas

    da Urb, revalidando a base agrria e campestre. Acrescentando o que desenvolvemos

    pginas anteriores sobre isso, essa (re)valorizao do campo ser interessante

    aristocracia romana, que esto ligadas historicamente ao desenvolvimento agrrio ao

    redor do Tibre. Concomitantemente, facilitar a recusa de novos membros estrutura

    social, principalmente se esses no tenham forte ligao com a terra (homens de

    negcios, vendedores de escravos, homens livres em geral que se beneficiavam das

    23 Para verificar detalhes do culto ao imperador veja: LE GLAY, Marcel. La Religion Romaine. Paris: Armand Colin Editur, 1991, p. 50 54.

  • 33

    relaes patronais).

    No entanto, muitos dos provincianos, pra no dizer a maioria, estavam ligados

    direta ou indiretamente terra. Assim, o retorno origem romana, da Urb, ou- no

    mnimo itlica - assentada por Rmulo, ser outro fator para rechaar a aristocracia

    provinciana. Ter nascido na terra onde pisaram os fundadores de Roma ser um fator de

    distino. Cabe destacar que esse processo vai diminuindo paulatinamente com o

    aumento territorial e a romanizao de novos espaos. Assim, essa repulsa diminuir

    significativamente no perodo de Trajano.

    Sintetizando esses poucos pargrafos, vimos que o ideal poltico em Roma era

    constitudo pelo respeito ao mos maiorum, que podia ser considerado uma moral

    poltica e social. Alm disso, notamos a importncia da humanitas, enquanto elemento

    de erudio e conhecimento de sua tradio, bem como o exerccio das virtudes

    necessrias a um bom cidado.

    Notamos que a virtus era a essncia das qualidades ou virtudes a serem

    demonstradas pelo homem poltico. Essa compreendia ou subdividia-se em outras

    virtudes como a fides (fidelidade s tradies, aos cidados, ao patrono, ptria), a

    pietas (piedade, reverncia, respeito pelos deuses, heris, homens ilustres, imperadores

    e antepassados) e outras. Alm disso, verificamos que deter terras era uma condio

    fundamental para o exerccio da vida pblica, assim como ter nascido na Urb24, pois

    isto estava condicionado aos fundadores de Roma, que tinha suas vidas ligadas cidade

    e ao desenvolvimento agrrio.

    A aristocracia romana, conforme notamos, aproveita-se desses postulados

    sociais (que so enfronhados no estoicismo) para legitimar, manter e perpetuar sua

    participao poltica. No que refere-se a entrada de novos membros no cenrio poltico,

    esta usa do nascimento, do mos maiorum e da humanitas para inibir a entrada de

    estranhos.

    Depois disso apresentado, falta-nos dizer como isso se relaciona com Plnio.

    Tambm, qual destes inmeros pontos detalharemos nos captulos seguintes. Em suma,

    quais os pressupostos dessa pesquisa e as caractersticas das fontes analisadas. Pois

    24 No h nos apontamentos bibliogrficos um detalhamento de como foi o processo de aceitao e legitimao do ideal poltico a partir do local de nascimento. Por isso, acreditamos que a retrica da aceitao dos provincianos e dos no nascidos na Urb deu-se a partir das necessidades observadas pela aristocracia. Assim, no final da Repblica esta ainda podia reduzir-se regio da Urb porque no havia grandes presses ou disputas. Por sua vez, com o aumento das presses houve um afrouxamento, possivelmente de alguns setores aristocrticos, que estenderam aos nascimentos de toda a Itlia. E, por fim, com Trajano h uma generalizao por causa do processo de romanizao.

  • 34

    bem, vejamos um pouco sobre o que chamamos corriqueiramente de assuntos

    plinianos25.

    5 Dos Assuntos Plinianos

    Seria comum, por se tratar de uma simples dissertao de mestrado, apresentar

    rapidamente as fontes, os recortes, os objetos e, em seguida passarmos ao captulo

    seguinte. No faremos isso! Logicamente abordaremos esses pontos em breve, mas

    acrescentaremos outro ponto relevante.

    Afirmamos que um de nossos principais objetivos trazer os assuntos plinianos

    tona, facilitando o surgimento de novas pesquisas na rea26. Por isso, essa parte

    apresentar o que chamamos de historiografia pliniana27.

    Assim, apresentaremos nas linhas seguintes uma sntese do autor e sua obra,

    buscando caracterizar suas peculiaridades, posteriormente trataremos da historiografia

    pliniana e, nesse percurso mostraremos como esse contingente gigantesco de

    informaes se funde no processo da pesquisa que originou este texto.

    J informamos que as apresentaes da vida e obra pliniana seguiro os

    protocolos deixados pela produo sobre Plnio28, comearemos por sua vida (com

    destaque para sua carreira pblica), posteriormente, apresentaremos as caractersticas

    essenciais de seu epistolrio.

    5.1. Caius Plinius Caecilius Secundus: cursus honorum

    Caius Plinius Caecilius Secundus, comumente chamado de Plnio, o Jovem;

    Plnio, o Menor ou Plnio, o Moo era sobrinho do naturalista Plnio, o Velho. Nasceu

    em Novum Comum, regio Transpadana, norte da Itlia e pertenceu a uma famlia

    provincial de equestres. Quintiliano contribuiu decisivamente, ao lado de Plnio, o

    Velho para a educao de Plnio. Este ltimo ocupou diversas funes na administrao

    imperial, desde a de tribuno militar (condio obrigatria aos jovens de carreira) at a

    25 Chamamos de assuntos plinianos tudo o que diz respeito ao autor: sua vida, obra, produes sobre ele, etc. 26 Talvez seja por isso que dedicamos grande labuta ao desenvolvimento de pesquisas para preencher essas linhas e, tambm, seja o nico item dos captulos que fora to meticulosamente subdividido. 27 Retomamos a nota de nmero sete, onde afirmamos que essa expresso, para ns, trata-se da historiografia produzida sobre temticas plinianas.28 Nossa apresentao seguir o modelo deixado pela produo nacional (OLIVEIRA, 1978, p. 16; VENTURINI, 1993, p. 42,55; ROSSI,1996, p.30- 33; BASLIO, 1997, p. 15, 16; STADLER,2007, p. 01)). Trataremos por sua vida e obra antes de comear qualquer anlise. Nessa apresentao utilizaremos o modelo deixado por Rossi (Idem p. 30-33) e nos valeremos de informaes retiradas de MOUCHARD (1924, P. 516- 525).

  • 35

    de governador do Ponto-Bitnia, passando pela de augure (augurado) e pela

    procuradoria do Tibre, entre outras. Plnio foi senador e ocupou o consulado em

    setembro do ano 100. Por volta dos 18 anos Plnio desempenhava ainda a funo de

    advogado no Forum romano, apresentando suas hbeis caractersticas de orador. Nessa

    trajetria jurdica veio a conquistar prestgio em virtude de seus julgamentos. Seus atos

    jurdicos eram considerados imparciais (por seus pares), pois, supostamente, no tomar

    partido de funcionrios, nem militares desertores, nem de contraventores do poder

    poltico estabelecido. Plnio foi tambm um grande proprietrio de terras espalhadas por

    trs regies da Itlia: a Transpadana, a mbria e o Laurentino. Seu patrimnio familiar

    era constitudo de propriedades rurais localizadas no norte e no centro da Itlia (Carta

    IV 6). Na Itlia do Norte, estavam as terras da Transpadanas, situadas precisamente no

    territrio do municipium de Novum Comum. Na Itlia Central, esto as terras dos Tusci,

    situadas nas proximidades do municipium de Tifernum Tiberinum, na regio da mbria;

    perto de Roma, no litoral do Tirreno, prximo do porto de stia, est a villa laurentina.

    Segundo sua correspondncia, possivelmente a personagem em questo contraiu dois

    casamentos, havendo possibilidade de um terceiro, cujas indicaes so apenas

    indues. Suas Cartas atestam formas de acumulao de patrimnio pessoal e familiar,

    pela via da compra, da herana (da famlia e de terceiros) e dos casamentos, graas ao

    recurso do matrimonium cum manu. Para Rossi, a carreira pblica de Plnio pode

    sustentar a anlise, desde que compreendida no contexto de fortuna familiar como

    critrio tradicional entre os romanos na classificao da cidadania e na fixao de sua

    hierarquia (1996, p. 32).

    Plnio um homo novus, um dos novi homines; descende de um ramo

    provincial aculturado com a colonizao romana. Educado em Roma por Quintiliano,

    assessorado pelo tio, Plnio, o Velho (como no era filho de senadores), vestiu a toga

    virilis com o latus clavus aos dezesseis anos de idade. Entre os dezoito e vinte anos

    ingressou na Corte dos Centnviros, exercendo a a funo de decemvir stlitibus

    iudicandis. Nessa mesma ocasio, indicado para cumprir o tribunato militar na legio

    da Sria (Carta I.12.), onde desempenhou uma funo administrativa e financeira. O

    efetivo ingresso na carreira senatorial deu-se com a ascenso Questura, graas

    proteo e recomendao imperial, provavelmente no ano 86. Por volta do ano 91,

    Plnio j ingressara na Pretura, depois de uma rpida passagem pelo Tribunato da Plebe

    ou pela Edilidade da Plebe, provavelmente em 88, dada a sua condio de origem no-

    patrcia. Com esse ingresso, habilita-se como cidado qualificado para os principais

  • 36

    servios do imperador. Assim que, aps a Pretura, nomeado para a praefectura

    aerari militaris, ocupada entre 94 e 96, e para a praefectura aerari Saturni,

    possivelmente entre 98 e 100. Em setembro desse ano, assume o consulado,

    oportunidade em que fez um pronunciamento no Senado, o Panegrico de Trajano, em

    agradecimento ao imperador. Logo em seguida ao consulado, veio o augurado, o posto

    de curator alvei Tiberis et riparum et cloacarum urbis, entre 104 e 105 ou entre 106 e

    107. A sua carreira pblica encerra-se na funo de legatus Augusti na provncia do

    Ponto-Bitnia, provavelmente entre 111 e 113. Em 113, provavelmente29, morre Plnio.

    5.2. As Cartas Plinianas: caractersticas gerais

    Plnio, o Jovem (62-113) deixou-nos 10 livros de cartas que representam um

    quadro vivo da sociedade no fim do sculo I (GRIMAL, 1993, p. 317). So 10 livros

    de cartas privadas e protocolares, e do Panegrico de Trajano30. Os livros, contendo as

    368 Epistolas, esto divididos da seguinte maneira: 9 livros contm a correspondncia

    privada (com 247 cartas) e 1 livro contm a correspondncia oficial com Trajano (com

    121 cartas), elaborado quando Plnio ocupava o governo do Ponto-Bitnia. O Panegrico

    de Trajano foi lido quando Plnio assumiu o consulado, em setembro do ano 100, em

    agradecimento ao imperador. A documentao pliniana reveladora do cotidiano

    romano, tanto no que diz respeito vida urbana como vida rural.

    A produo das Cartas obedece a um princpio pragmtico. O produtor deste

    contedo, Plnio e seus correspondentes apresentam a viso de mundo de uma camada

    social romana filtrada pela experincia histrica das trocas de benefcios que se

    confirma pela amicitia e clientelismo.

    A linguagem utilizada para retratar a situao econmica comum ao segmento

    envolvido nas Cartas e reproduz experincias individuais comuns. As situaes

    mencionadas fazem parte das relaes entre os interlocutores e representam o

    pensamento socioeconmico e a ao de um grupo social que desempenha papel

    significativo na ordem imperial romana.

    O historiador dispe, portanto, de uma correspondncia organizada

    literariamente, a ser compreendida mais amplamente do que a prpria organizao

    29 Conforme dissemos na nota de nmero quatro, no h consenso sobre a morte de Plnio. A data varia entre 110 e 113. Nos parece mais provvel 113 ou 114. Assim como Guillermin (1938), adotaremos essa ltima. 30 Disponibilizaremos no Apndice duas tbuas com a taxonomia de assuntos inerentes s cartas plinianas.

  • 37

    verbal. A identidade de interesse detectvel na linguagem utilizada configura a uma

    relao concreta no mbito da convivncia poltica, um dos suportes da prtica literria

    e das formas de elaborao do conjunto da correspondncia e do panegrico.

    Pelos fatores supracitados que Radice em The Letters of Younguer Pliny afirmou

    que as Cartas so as melhores fontes que temos sobre a histria social e poltica do

    primeiro sculo (1962, p. 26).

    5.3. Historiografia Pliniana

    Depois de apresentarmos Plnio e suas Cartas, cabe-nos fazer uma apresentao,

    conforme prometido anteriormente, do que fora produzido sobre Plnio: o que

    chamamos de historiografia pliniana.

    Entendemos historiografia como reflexo sobre a produo e a escrita da

    Histria ( SILVA et SILVA, 2006, p. 189). Cada vez mais a reflexo historiogrfica

    ganha destaque. Sobre o processo de reviso e anlise historiogrfica do mundo antigo,

    Funari afirmou que os estudos sobre a prpria historiografia do mundo antigo, a

    mostrar como a construo de um mundo antigo em que todos viviam enredados insere-

    se em contextos sociais e acadmicos contemporneos (2001, p, 20).

    Como apontado por Funari (1987; 1988; 1996; 1997; 1998; 2000), o Brasil est

    atrs na questo do estudo clssico quando comparado com outros centros de estudos.

    Para ele, so vrios os fatores desse atraso: os currculos apresentados pelas

    universidades, as relaes de compadrio estabelecidas no meio acadmico e um

    desinteresse e as dificuldades de pesquisas devido aos tmidos investimentos nas

    pesquisas em Antiguidade.

    Sendo assim, as pginas seguintes ho de tratar da produo pliniana no Brasil e

    no mundo31. Para tanto, dividiremos tal anlise em duas facetas: historiografia nacional

    e internacional32. Comearemos por esta ltima, pois nossa produo - enquanto

    perifrica - quase sempre33 - esteve condicionada s tendncias provenientes de outros

    31 No intuito de facilitar pesquisas posteriores, bem como averiguar as condies historiogrficas faremos uma subdiviso na bibliografia dedicada bibliografia pliniana. 32 Consideramos para fins de anlise a periodicidade, consistncia e interesse pela pesquisa pliniana. Afinal de contas, a citao de alguma das cartas plinianas fato usual entre os pesquisadores da Antiguidade (mera citao). Todavia, tais utilizaes no passam de ilustraes e argumentaes com a finalidade de alicerar outras temticas. Reiteramos que um dos objetivos do presente trabalho facilitar a entrada de novos pesquisadores ao mundo pliniano. Dessa forma, destacamos no tivemos acesso direto a boa parte da bibliografia citada (que fora retirada de citaes, bibliografias e comentrios). 33 Parece-nos que a partir de meados dessa dcada, graas a maior agilidade da produo intelectual em terras brasileiras (a troca paulatina da publicao de grandes livros, escritos a duas ou quatro mos, por

  • 38

    lugares.

    5.3.1. A Produo Pliniana Internacional

    A produo pliniana fora do Brasil pode ser observada com grande vigor em trs

    centros distintos: Alemanha, Frana e EUA. As pesquisas modernas sobre Plnio

    surgem com fora na Alemanha. Em meados do sculo XIX34, pesquisadores

    germnicos comearam uma srie de tradues que abriram caminhos para as pesquisas

    clssicas e, vrias dessas, ainda so referncias at nossos dias. Esses pesquisadores

    vislumbraram, por meio desses documentos, a possibilidade de aprofundar o

    conhecimento no mundo romano. E, por isso, iniciaram uma srie de sistematizaes e

    anlises35.

    Theodor Mommsen, em 1869, publica Zur Lebensgeschichte des jngeren

    Plinius. Este artigo lanava as bases das pesquisas modernas sobre Plnio no sculo

    XIX. Seu texto serviria de referncia por sistematizar e apontar a riqueza desta fonte.

    Mommsen aproveitou seus escritos para direcionar os estudos sobre Plnio e tecer

    apreciaes sobre sua figura. Em virtude da qualidade das informaes, o mesmo texto

    fora publicado em Gesammelte Schriften 436.

    A mesma revista Hermes, que publicara originalmente o texto de Theodor

    Mommsen, publicou Die Ueberlieferung der Brief des jngeren Plinius escrito por

    Otto. Tanto Otto quanto Theodor Mommsen encabeariam um conjunto de esforos

    intelectuais com a finalidade de reavivar a obra pliniana. Salientamos ainda que o final

    do sculo XIX e incio do sculo XX fora marcado, concomitantemente ao estudo de

    publicao edies organizadas que contam com artigos de vrios autores) contribuiu para acelerar a produo nacional. Nesse nterim, diferentemente de dcadas anteriores, praticamente todo ano, desde 2005, temos algo diferente sobre os assuntos plinianos vindo ao mercado editorial brasileiro. 34 No podemos olvidar a importncia da Arqueologia neste contexto. Com a multiplicao do nmero de escavaes no perodo, novos documentos foram apresentados, possibilitando novas pesquisas na rea clssica. 35 Neste captulo no nos deteremos produo bibliogrfica moderna. Em primeiro plano porque houve a partir da dcada de 1990, tivemos um boom de pesquisas (que podem ser verificadas por meio de buscadores como o JSTOR). Vale, ainda, dizer que por vezes esquece-se de todo o percurso que a obra pliniana levou at os nossos dias: os manuscritos originais, sua preservao e as formas de traduo durante o tempo. Para saber mais sobre esses aspectos veja a introduo e o prefcio da traduo efetuada pela The Loeb Classical Library: SECUNDUS, C. Plinius Caecilius. Letters. trad. W. Melmoth. London: Harvard University, 1958. (Loeb Classical Library). 2 vol. Esta edio foi revisada, comentada e prefaciada por Hutchinson e aborda questes especficas da histria dos manuscritos plinianos. Pode-se ainda recorrer GUILLEMIN, A.-M: 1953, onde encontra-se a meno aos codices eeditiones dos quais foram extradas as edies modernas. Com a finalidade de no recamos no mesmo esquecimento, apresentaremos tal reconstituio histrica em nosso anexo. 36 Mommsen, Th.. Zur Lebensgeschichte des jngeren Plinius, In: Gesammelte Schriften 4. Berlin. 1906. p. 366-468.

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    Plnio pelos autores supracitados, um perodo praticamente hegemnico dos estudos na

    Alemanha.

    A Alemanha do perodo resgatou, traduziu e estudou inmeros autores clssicos.

    Esses estudos eram publicados em vrios meios de veiculao. Contudo, pela qualidade

    e periodicidade, a revista Hermes destacou-se no perodo. Esse legado alemo notado

    ainda em nossos dias, pois comumente, ao buscarmos artigos, documentos e anlise de

    textos clssicos na Internet nos deparamos com sites e textos alemes.

    No incio do sculo XX, por sua vez, qui por denotar