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A Representação Iconográfica de Santa Teresa: mística e plástica na Península Ibérica na época barroca Dra. Célia Maia Borges Universidade Federal de Juíz de Fora Introdução Os séculos XVII e XVIII conheceram várias representações plásticas e literárias de Teresa de Ávila (55-58), retratada através de meios distintos: desenhos, pinturas, esculturas, dentre outros . Os conventos, nomeadamente dos (as) Carmelitas Descal- ços (as), bem como as igrejas das Ordens Terceiras do Carmo, contaram com iconogra- fias da santa de Castela. Até livros ilustrados se produziram a narrar as suas experiên- cias místicas. A fama de santidade de Teresa circulou e ajudou a fixar esta imagem em diversas partes do mundo católico: Espanha, Portugal, França, Itália e também em vá- rios lugares da América Latina. Contribuiu para esse processo a difusão dos escritos da fundadora das Carmelitas Descalças e o fato da sua santidade ser reconhecida pelos religiosos do final do XVI e séculos seguintes, que espalharam o nome desta, por meio de sermões e imagens, nos suportes os mais diversificados. Pode-se entender esta rápida divulgação em razão do interesse suscitado à época pela vida dos santos e a atração exercida pela espiritualidade mística, para uma ampla parcela das sociedades ibéricas e mesmo nas colônias. Como mostrou Professora adjunta do Departamento de História da Universidade Federal de Juiz de Fora [UFJF] e integrante dos programas de Pós-Graduação em História e em Ciência das Religi- ões desta mesma Universidade. A comunicação ora apresentada é resultado da pesquisa de pós-doutoramento desenvolvido na Universidade Nova de Lisboa [Portugal] para o projeto: Espiritualidade Mística e Solidão: o imaginário religioso das Carmelitas Descalças na Penín- sula Ibérica no séc. XVII. Teresa Sánchez de Cepeda y Ahumada nasceu em Ávila no dial 8 de março de 55. Tomou o hábito carmelita em 56 e em 56 fundou o primeiro convento das carmelitas descalças, em Ávila. Teresa de Ávila foi beatificada em 64 e canonizada em 6.

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A Representação Iconográfica de Santa Teresa: mística e plástica na

Península Ibérica na época barroca

Dra. Célia Maia Borges� Universidade Federal de Juíz de Fora

Introdução

Os séculos XVII e XVIII conheceram várias representações plásticas e literárias de Teresa de Ávila� (�5�5-�58�), retratada através de meios distintos: desenhos, pinturas, esculturas, dentre outros�. Os conventos, nomeadamente dos (as) Carmelitas Descal-ços (as), bem como as igrejas das Ordens Terceiras do Carmo, contaram com iconogra-fias da santa de Castela. Até livros ilustrados se produziram a narrar as suas experiên-cias místicas. A fama de santidade de Teresa circulou e ajudou a fixar esta imagem em diversas partes do mundo católico: Espanha, Portugal, França, Itália e também em vá-rios lugares da América Latina. Contribuiu para esse processo a difusão dos escritos da fundadora das Carmelitas Descalças e o fato da sua santidade ser reconhecida pelos religiosos do final do XVI e séculos seguintes, que espalharam o nome desta, por meio de sermões e imagens, nos suportes os mais diversificados.

Pode-se entender esta rápida divulgação em razão do interesse suscitado à época pela vida dos santos e a atração exercida pela espiritualidade mística, para uma ampla parcela das sociedades ibéricas e mesmo nas colônias. Como mostrou

� Professora adjunta do Departamento de História da Universidade Federal de Juiz de Fora [UFJF] e integrante dos programas de Pós-Graduação em História e em Ciência das Religi-ões desta mesma Universidade. A comunicação ora apresentada é resultado da pesquisa de pós-doutoramento desenvolvido na Universidade Nova de Lisboa [Portugal] para o projeto: Espiritualidade Mística e Solidão: o imaginário religioso das Carmelitas Descalças na Penín-sula Ibérica no séc. XVII. � Teresa Sánchez de Cepeda y Ahumada nasceu em Ávila no dial �8 de março de �5�5. Tomou o hábito carmelita em �5�6 e em �56� fundou o primeiro convento das carmelitas descalças, em Ávila. � Teresa de Ávila foi beatificada em �6�4 e canonizada em �6��.

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Silva Dias, uma grande quantidade de livros de alta espiritualidade circulou na Península Ibérica durante esse período.4

O clima religioso gerado à época da Contra-Reforma acentuou as busca pelas experiências místicas5. Desde a Baixa Idade Média que se vinham consolidando as correntes de renovação religiosa baseadas numa busca mais intimista com Cristo. Uma boa parte delas, herdeira do movimento espiritual conhecido como Devotio Moderna, interagiu com correntes provenientes de outras partes da Europa, sobretudo da Itália.

O século XVI afirmou-se como o grande século dos místicos espanhóis: Fran-cisco de Osuna, Bernardo Laredo, o beato Juan de Ávila, São Pedro de Alcântara, Teresa de Ávila e outros mais, que deram origem a uma ampla literatura mística6. A busca pelos altos vôos espirituais andava a par com o interesse pela santidade�. As várias peças literárias, em especial as religiosas, que relatam como heróis aque-les que abandonavam tudo e abraçavam uma vida de privações, atestam a força deste movimento. O surgimento de eremitérios, edificados em locais de difícil acesso, onde se praticavam mortificações e a ascese como caminho da contempla-ção, faz parte de um mesmo fenômeno8.

4 SILVA DIAS, José Sebastião da. Correntes de Sentimento Religioso em Portugal. (séculos XVI a XVIII). Coimbra, Editora da Universidade, �960. 5 De uma maneira geral, pode-se dizer que o fenômeno místico se caracteriza por uma ati-tude do espírito humamo em procurar aceder às realidades ocultas, como Deus, o divino, a alma do mundo. Pode-se encontrar em numerosas religiões, sob as formas mais variadas, desde o chamanismo até as religiões monoteístas. As diferentes formas da mística estão em função dos indivíduos, de sua inserção social, cultural e religiosa. A passividade caracteriza o mais freqüentemente a experiência mística. O crente se sente conduzido, pressente o sinal, a presença de Deus. Alguns sintomas acompanham o fenômeno, tais como o êxtase, as visões, os estigmas e a levitação. Cf. GERHARDS, Àgnès. Dictionannaire Historique des Ordres Religieux. Paris, Fayard, �998 6 Desde o início da história da Igreja católica, e mesmo antes dela, encontram-se vestígios da vida contemplativa. Após os primeiros Padres da Igreja, São Clemente de Alexandria(m.���), Santo Agostinho(�54-4�0), que divulgaram o termo ao experimentarem a via unitiva, será somente a partir da primeira metade do século XII, que ocorrerá uma sistematização da dou-trina mística, com São Bernardo de Claraval (�09�-��5�), considerado o pai da mística oci-dental cristocêntrica. O misticismo desenvolveu-se no período medieval em duas corren-tes básicas: uma especulativa, principalmente com os dominicanos, baseadas nas obras do Psedo Dionísio, o Areopagita e Santo Alberto Magno (m.��80), procurando unir o intelecto a uma atitude de fé, e a mística afectiva, que buscará o caminho do sensitivo, para a união entre Deus e a alma . Mestre Eckhart (m.��66) seria responsável por criar uma corrente de herdeiros de suas doutrinas, sistematizadas por Juan Tauler (��00-��6�). Cf. RODRÍQUEZ- NÓBREGA, Janeth. La mística y el arte barroco. In: www.crítica.cl . ��/ 09/�006. � Ver a respeito TAVARES, Pedro Vilas Boas. «Caminhos e invenções de santidade feminina em Portugal nos séculos XVII e XVIII. (Alguns dados, problemas e sugestões)». In: Via Spiri-tus, � (�996) �6�-��5. 8 A este respeito, ver FLOR, Fernando R. De la. El Jardín de Yavhé: La Ideología Del Nuevo Espacio Eremítico En La Contrarreforma Española. In: De las Batuecas a las Hurdes. Frag-mentos para una historia mítica de Extremadura. Badajoz: �999.

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A Igreja católica, a partir da Contra-Reforma, via as experiências místicas com al-guma cautela. Acompanhou atentamente os diversos casos, averiguou cada um desses fenômenos e procurou separar os verdadeiros dos falsos místicos. Daí os vários proces-sos contra embusteiras, pseudo-místicos e outras pessoas, comuns nos séculos XVI a XVIII. Quem alcançasse o estatuto de santo ou santa gozava de prestígio no seu meio social e tornava-se credor de ser consultado pelos mais diferentes motivos.

Teresa de Ávila e a espiritualidade mística

Teresa de Ávila viveu o clima de espiritualidade do seu tempo, impregnada pelo imaginário da época. A espiritualidade teresiana é uma mescla de influências antigas e recentes. Ela teve contatos com Frei Pedro de Alcântara (�499-�56�), por quem guardava uma grande admiração9; leu vários livros de autores quinhentistas, tais como O Terceiro Abecedário Espiritual, de Francisco de Osuna�0, obra que constituiu um marco na sua trajetória espiritual; Subida ao Monte Sión, de Bernar-do Laredo e Arte de Servir a Deus, de Alonso de Madrid��, entre outros. Fundamen-tal em sua formação foi Confissões�� de Santo Agostinho, que marcaria não só sua espiritualidade como também sua escrita.

O caminho da alta espiritualidade não a afastou do objetivo de promover a refor-ma da ordem carmelita, o que gerou, não sem conflitos, a criação das Carmelitas Des-calças com o propósito de resgatar a primitiva regra. Com o apoio de São João da Cruz, que investiu na reforma do Carmelo masculino, e de outros religiosos, cujo papel foi fundamental nesse processo, entre os quais Jerónimo Gracián, o movimento propagou-se e, após cem anos sobre a ereção do primeiro convento dos Descalços Carmelitas, a Espanha passou a ter cerca de uma centena de estabelecimentos de estrita observância. A renovação no interior do Carmelo ia de encontro ao clima religioso da época que resultou no aparecimento de novas ordens e congregações.

Teresa de Jesus, nome por que ficou conhecida no mundo religioso, redigiu a sua auto-biografia, as Constituições que guiaram as casas conventuais, registrou o seu percurso místico, as fundações de vários mosteiros do(a)s Carmelitas Descalço(a)s e deixou ainda uma vasta correspondência epistolar que serviu de referência a outros religiosos��. Sua escrita na Península Ibérica e nas colônias dos séculos XVII

9 Cf. Teresa de Jesus, «Livro da Vida», �0, �. Obras Completas. São Paulo: Edições Loyola, �995.�0 Em seu «Livro da Vida», 4, �, conta que recebera o livro do tio, o qual ensinava a oração de recolhimento. �� «Livro da Vida», ��, �, in Obras Completas. �� «Livro da Vida», 9, 8. �� Sobre Santa Teresa ver WEBER, Alison. «Teresa de Ávila. La mística feminina». In: MO-RAT, Isabel (dir.) & ORTEGA, Margarita, LAVRIN, Asunción, CANTO, P. Pérez (Coords.) Historia de las Mujeres en España y América Latina. El Mundo Moderno. Madrid, Cátedra, �006. Também do mesmo autor, Teresa of Ávila and the Rhetoric of Femininity. Princenton, Princeton University Press, �990.

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e XVIII atraiu acima de tudo mulheres – religiosas e beatas – no caminho da alta espiritualidade. A força da sua imagem, de resto, impôs-se de tal forma aos grupos católicos e ao imaginário religioso que não tardou a conquistar um lugar no pan-teão dos doutores da Igreja, embora para isso tivesse contado decisivamente a ação de membros da ordem dos Carmelitas Descalços no século XVII que se empenha-ram em difundir a imagem da santa�4.

A divulgação da sua imagem em várias partes da Europa católica, incluindo as colônias, ajudou a consolidar o seu ideal de santidade entre os fiéis. Esta tarefa foi facilitada pela linguagem do barroco, que forneceu os instrumentos necessários à propagação da mensagem religiosa ao representar uma boa parte das suas experi-ências místicas. Santiago Sebastián afirmou que a arte do século XVII era uma arte repleta de «febre interior», uma «paixão e um desejo de Deus até ao aniquilamen-to»�5. São numerosos os quadros de várias personagens religiosas, pertencentes à galeria das mais antigas da história da Igreja até ao período barroco, que aparecem retratadas em suas experiências místicas: São Jerônimo, São Francisco de Assis, Santo Ignácio de Loyola, São João da Cruz, entre outros.

Santa Teresa na iconografia barroca

O quadro de Teresa d´Avila executado em �5�6 pelo carmelita descalço Juan de la Miseria (Giovanni Narcucci) forneceu o modelo a inúmeras representações, por se tratar do único retrato realizado ainda em vida da Santa de Castela. Uma pomba inserida, depois do quadro estar finalizado, remete para as visões da reformadora do Carmelo�6. A edição de Los Libros de la Madre Teresa de Jesús, de �588, revelou o primeiro retrato gravado com base no mesmo modelo��. A circulação de retratos com a cópia da estampa de Salamanca favoreceu o trabalho de fixação da sua imagem, pelo menos dentro dos mosteiros carmelitas. O padre Gracián, primeiro provincial da ordem, em maio de �59� enviou vários retratos de Roma para Lisboa�8, que se

�4 Ainda que a sua imagem como doutora mística tenha sido veiculada no decorrer do século XVII, foi somente em �9�0, declarada Doutora da Igreja, tornando-se a primeira mulher a receber tal honra, em decorrência das reformas geradas pelo Concílio Vaticano II. Cf. WEBER, Alison. Teresa de Ávila. La mística femenina. MORANT, Isabel. (dir.); ORTEGA, M.; LAVRIN, A.; CANTÓ, P.(Coords.).. In: Historia de las Muyeres en España y América Latina. El Mundo Moderno. II. Madrid, Cátedra, �006.�5 Contrarreforma y Barroco. Lecturas iconográficas e iconológicas. Madrid: Alianza Edito-rial, �98�, p. 6�.�6 SOBRAL, Luís de Moura. Do Sentido das Imagens. Lisboa: Editorial Estampa. �996, p. �6.�� Idem, p. �5.�8 Padre Gracián em uma carta endereçada a uma carmelita dá ordens para que se «envie metade das imagens às Irmãs de Lisboa, em Portugal» [Carta citada em Jean de la Croix, L´Iconographie de Thérèse de Jésus, Docteur de l´Église, Ephemerides Carmiliticae, XXI, �9�0, �-�, pp. ��9-�60] Cf. Luís de Moura Sobral, op. cit, p. �6, após Almeida, História da Igreja em Portugal, vol.. II, p. �84.

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converteriam em referências para as demais reproduções. Jerônimo Vierix compôs a gravura de Santa Teresa, recriando o ambiente de uma sala, com uma mesa ao fundo, um livro aberto, um tinteiro e à esquerda, recuada, uma roca e um fuso, além de inscrições latinas e castelhanas�9. A pomba também figura na cena e a ela a santa dirige uma prece que o artista representou por caracteres em latim. Além disso, con-tornando a gravura, inseriu alguns dados da santa espanhola.

Um conjunto de vinte e cinco gravuras circulou no mundo católico. Foram produzidas por Adriaen Collaert (�560-�6�8) e Corneille Galle (�5�6-�650) para a obra Vita B. Virginis Teresiae a Iesu Ordinis Carmelitarum, publicada em Amberes, em �6��, por ocasião da beatificação de Santa Teresa. Contém ilustrações e legen-das em latim com referências a aspectos da vida da santa e suas visões�0. Estas imagens tornaram-se o grande modelo para as composições que vieram a seguir tanto na Europa Católica como nas antigas colônias ibéricas.

Em Portugal, uma artista do século XVII, Josefa de Óbidos, destacou-se por pintar várias obras com o tema de Santa Teresa��. É provável que esta artista, se-gundo Luís de Moura Sobral, se tenha inspirado nas gravuras de Adriaen Collaert (�560-�6�8) e Corneille Galle (�5�6-�650) para produzir as séries que se encon-tram hoje na Igreja Paroquial de N.ª S.ª da Assunção, em Cascais[arredores de Lisboa]��. A gravura intitulada Doutora Mística, Inspirada pelo Espírito Santo, de autoria daqueles artistas, mostra Santa Teresa sentada a escrever, pelo sopro do Espírito Santo, representado como de costume por uma pomba. [fig. �] Para com-por o ambiente os artistas inseriram uma janela, um banco e livros sobre a mesa��. A cena de Josefa de Óbidos é mais fechada, pois retrata Teresa de meio corpo, sentada a escrever, com a pomba ao alto, personificação do Espírito Santo, rodeado de quatro anjinhos. Compõem a cena alguns objetos, tais como um terço, livros e papéis dispostos sobre a mesa. Josefa acrescentou a roca atrás da santa, peça que a reformadora carmelita menciona nas Constituições, ao referir-se ao modo como haviam de viver as monjas. [fig. �]

Em outras representações esta peça aparece tal como na gravura de Jerônimo Vierix. Josefa pinta Teresa d’Ávila com um rosto jovial, contrastando com a ima-gem de Vierix e mesmo com a primeira imagem do carmelita Juan de la Miséria, que a retratara numa idade mais madura. José de Ribera compôs a cena, em �6�0, também com Teresa de rosto ainda jovem, próxima a uma escrivaninha, com pa-péis e livros colocados sobre a mesa, caneta no tinteiro, olhar ao alto como que a

�9 SOBRAL, op. cit., p. �5 �0 MUELA, Juan Carmona. Iconografia de los Santos. Madrid: Istmo, �00�, p. 4�6. �� Josefa de Ayala e Cabrera, filha de pai português, nasceu em Sevilha em �6�0. Viveu em Coimbra e depois em Óbidos. Faleceu em �684. Assumiu destaque na pintura portuguesa seiscentista. Sobre Josefa de Óbidos consultar o livro coordenado por Vitor Serrão. Josefa de Òbidos e o Tempo Barroco. Lisboa: TLP, �99�. �� SOBRAL, Luís de Moura. Do Sentido das Imagens. Lisboa: Editorial Estampa �996. p. ���� Ídem.

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receber inspiração divina, rodeada por os anjos�4. Zurbarán também representou a cena que consagrou a santa de Castela como Doutora Mística no quadro que se encontra na sacristia da catedral de Sevilha e, como modelo, utilizou o retrato pin-tado por frei Juan de la Miseria. O tema explora a inspiração divina nas obras de Teresa d’Avila e orienta a composição de grande parte das imagens escultóricas que circularam na Península Ibérica e na América. Ou seja, Teresa a segurar um livro com a mão esquerda e uma pena de caneta na direita, de pé com o olhar di-rigido para o alto e uma pomba sobre o ombro direito, enquanto elementos repre-sentativos da sua inspiração divina�5.

As vinte e cinco gravuras produzidas por Collaert e Galle trazem a marca dos fenômenos místicos presenciados pela Santa. Talvez elas tenham sido orientadas pela Madre Ana de Jesus, carmelita descalça, pois foi a responsável pela publica-ção dos trabalhos�6. Uma cena famosa que imortalizou a figura da filha ilustre de Ávila no imaginário religioso é o quadro A Transverberação de Santa Teresa, repre-sentado por vários artistas, dentre eles os já mencionados Collaert e Galle, em �6��, e também por António Vierix, provavelmente na segunda década de Seiscen-tos. Bernini seria responsável, através da composição de sua escultura, por conferir um tom erótico ao fenômeno presenciado pela santa��. Josefa de Óbidos compôs um belo quadro sobre o tema, contudo abandonou a gravura de Collaert e Galle�8 [fig. �]. Isso suponho pelo fato de estes artistas terem invertido a posição do anjo que desfere o golpe, o que contrariava a descrição da santa sobre a visão:

Quis o Senhor que eu tivesse algumas vezes esta visão: eu via um anjo perto de mim, do lado esquerdo, em forma corporal [...]. O Senhor quis que eu o visse assim: não era grande, mas pequeno, e muito formoso, com um rosto tão resplandecente que parecia um dos anjos muito elevados que se abrasam. Deve ser dos que chamam querubins, já que não me dizem os nomes [...]. Vi que trazia nas mãos um comprido dardo de ouro, em cuja ponta de ferro julquei que havia um pouco de fogo [...]�9. (grifo meu)

O tema da transverberacão é um dos mais importantes da iconografia teresiana, eleito para o estandarte dedicado à santa nas festas celebradas em Roma na época da sua canonização decretada por Gregório XV, em �6���0. Para representar os dois vér-

�4 Museu de Belas Artes, Sevilha, Inv. n. 90., óleo sobre tela 131 x 106cm, 1630. �5 A Espanha produziu belas imagens, onde destacam-se as de Alonso Cano; de José de Mora e de Gregorio Fernández. �6 SOBRAL, op. cit., p. ��. �� BERNINI, Jean Lorenzo, Êxtase de Santa Teresa, �64�-�65�. Roma, Santa Maria de la Victoria. �8 SOBRAL, op.cit., p. �4. �9 Teresa de Jesús, «Livro da Vida», cap. �9, ��, Obras Completas. São Paulo: Edições Loyo-la, �995, p. �94. �0 CUADRO, Fernando Moreno. «San Juan y Santa Terea transverberados en el Carmelo». In: Iconografía Y Arte Carmelitanos, Granada: Junta de Andaluzia; Madrid, Edición Turner

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tices do Carmelo, o primitivo e o dos Descalços, Gregório Fosman compôs uma gravu-ra dividida em dois níveis��. A parte inferior ilustrou com cenas da vida de Elias, apoiando-se na narrativa bíblica do I.º Livro dos Reis, ��, �8 que, segundo a tradição carmelitana, seria o responsável pela ereção da ordem. Na superior inseriu os dois reformadores, Teresa de Ávila e São João da Cruz, cada qual em um lado da cena, atingidos pelos dardos dos anjos.

Um outro quadro, de autoria de Josefa de Óbidos, tem como tema uma visão de Santa Teresa quando esta é possuída pela sensação de ser vestida com uma roupa branca e receber um colar da Virgem e de S. José�� [fig. 4]. Parece que a ar-tista se inspirou também na gravura de Collaert e Galle para elaborar o seu quadro, ainda que tenha mantido as características de seus trabalhos restantes, nos quais foca a cena principal, sem nenhuma ambientação, somente com os anjos a cir-cunscreverem o motivo central. Poder-se-ia supor que a artista tenha visto um outro quadro, com este mesmo motivo, de autor desconhecido, pintado para a Capela do Convento das Albertas. Neste último, como no de Josefa, José tem uma aparência bem mais jovem do que a dos artistas dos Países Baixos.

Outro tema relativo ao fenômeno místico é o de Santa Teresa diante da Trin-dade, concebido por Collaert e Galle, em �6��, a partir de outra visão da santa de Castela. Josefa de Óbidos iria refazer esta cena mundando a composição de Colla-ert e Galle, obedecendo ao critério adotado em seus outros quadros sobre Teresa de Ávila. Em outras palavras, além de centralizar a cena nos elementos principais, ela altera o lugar das personagens, com Jesus à esquerda, ao contrário da monta-gem estabelecida pelos artistas flamengos.

Importante também são as ilustrações, em livros, das suas vivências espirituais, no caminho da contemplação. A mística barroca, na segunda metade do século XVII, como afirmou Santiago Sebastián, expressar-se-á por meio de emblemas e alegorías��. Neste sentido o livro de Frei Juan de Roxas y Auxa, publicado em Ma-drid no ano de �6��, é um exemplo. Com as representações alegóricas do castelo, distribuídas em sete faixas, ele retrata suas experiências descritas nas Moradas, com Santa Teresa à porta explicando o conteúdo do livro que tem nas mãos�4. Cada faixa encerra inscrições elucidativas sobre o caminho da alma, simbolizada numa pomba, nos vários graus de oração.

Outras tantas publicações saíram acompanhadas de imagens remetendo para o caminho espiritual da santa de Castela. Os seus livros foram muitas vezes ilustra-dos com a cena que a imortalizou como Doutora mística. Veja por exemplo a

Libros, s/d, p. 56. �� Ìdem, p. 56. �� Teresa de Jesús, «Livro da Vida», ��, �4. �� Contrarreforma y barroco, op. cit., p. ��.�4 ROXAS Y AUXA, Frei Juan. Representaciones de la verdad vestida, místicas, morales y alegóricas sobre las Siete Moradas de Santa Teresa, Madrid, �6�� (apud SEBASTIÁN, S. Contrarreforma Y barroco, op. cit. p. �8).

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edição de �6�6, de Los Libros de la B. Madre Santa Teresa de Jesus, Lisboa, �6�6, realizada por iniciativa de Antonio Alvarez�5. Vale ressaltar que a influência de Tere-sa de Ávila em Portugal foi de tal envergadura que sua imagem foi projetada também em poemas, obras religiosas, biografias, todas a exaltar a escritora mística�6.

Conclusão

As representações plásticas dos santos e eremitas iam de encontro a um ima-ginário coletivo. A Igreja Católica procurou controlar as produções no sentido de que somente os santos reconhecidos pela alta hierarquia eclesial fossem represen-tados e merecedores de cultos��. Os demais eram banidos dos templos e demais locais de devoção. Em decorrência do grande número de santos e santas surgidos à época, o papa Urbano III (�6��-�644) decretou que quem fosse objeto de culto não poderia ser canonizado. A Igreja procurava, desta maneira, exercer controle sobre o processo de reconhecimento da santidade e assegurar esse privilégio atra-vés da canonização, preferencialmente a religiosos e doutores, após ser confirmada a ortodoxia de suas doutrinas.

Depois da canonização, a Igreja procedia a divulgação da vida do santo junto do mundo cristão, com textos e representações visuais a fim de alcançar o maior número de fiéis. Neste sentido, as artes assumiram um papel fundamental de for-talecimento da fé e demonstrou a capacidade dos santos enquanto intercessores entre os homens e o divino. As representações plásticas enfatizavam, sobretudo, as cenas dos milagres, os dons sobrenaturais, as experiências visionárias. Emile Male, em uma obra clássica da primeira metade do século XX, chamara a atenção para a figuração das experiências visionárias como uma novidade da época�8.

As representações plásticas, voltadas para as temáticas místicas, alcançaram o seu ápice no século XVII. Parte dessas representações foi encomendada pela alta hie-rarquia da Igreja, ou por membros das ordens religiosas, ou por leigos associados a ordens terceiras, e ainda por irmandades, com o objetivo de divulgar as imagens dos santos e incentivar a sua devoção. As representações dos novos santos no momento do

�5 GOMES, Pinharanda. Caminhos Portugueses de Teresa de Ávila. Braga, Ed. Pax, �98�, p. ��.�6 Ídem. �� A obra publicada de São Carlos Borromeo, «Instructiones fabricae et supellectilis eccle-siasticae» (�5��) é a este respeito um exemplo. Este livro aborda aspectos fundamentais para a concepção das imagens, o espaço sagrado, o uso de alfaias litúrgicas e paramentos. O capítulo XVII dá orientações aos bispos fornecendo prescrições rigorosas sobre o trato a ser dado às imagens e pinturas sacras. Ainda informa que caso os artistas contrariassem as re-gras estabelecidas seriam punidos bem como os religiosos responsáveis pela exposição nas igrejas. Ferreira-Alves, Natália. «Iconografia e Simbólica cristãs. Pedagogia da Mensagem». Theologica, Braga, �.a série, �0,�, �995, pp. 59 . �8 MÂLE, Emile. El Arte Religioso de los siglos XII al XVIII, México, Fondo de Cultura Econó-mica, �966, p. �9�.

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êxtase conferiam legitimidade à Igreja e reforçavam o seu poder sobre os fiéis, exata-mente quando o embate com os reformadores protestantes se tornou crucial.

No processo de construção da imagem religiosa, os escritos dos místicos reve-laram-se fundamentais. Santa de Ávila é, nesse sentido, um caso exemplar. Ao traduzir formalmente as suas experiências, ela forneceu as chaves interpretativas de que os artistas precisavam para idear as suas representações plásticas. Ao descrever as visões e retratar imagens de santos, Teresa de Ávila exprimia o que havia de mais subjacente no imaginário coletivo e projetava assim, através destas construções imaginárias, os fatos sobrenaturais vivenciados. Desta forma, ela forneceu um con-teúdo simbólico que os artistas traduziam, reafirmando um imaginário coletivo presente naquela sociedade.

Imagens39

�9 Em concordância com as regras estabelecidas para a publicação do trabalho, foram inse-ridas somente quatro imagens.

Fig. 1: Adriaen Collaert e Corneille Galle, Santa Teresa, Doutora Mística Inspirada pelo Espírito Santo, gravura a buril, �6��.

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Fig. 2: Josefa de Óbidos, Santa Teresa Doutora Mística, Inspirada pelo Espírito Santo, óleo sobre tela, �,�05 m x �,465 m, �6��, Igreja Paroquial de N.ª S.ª da Assunção, Cascais, Portugal.

Fig. 3: Josefa de Óbidos, A Transverberação de Santa Teresa, óleo sobre tela, �,585 m x �,���0 m, �6��, Igreja Paroquial de N.ª S.ª da Assunção, Cascais, Portugal.

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Fig. 4- Josefa de Óbidos, Santa Teresa recebendo o colar, óleo sobre tela, �,66 m x �,4�5 m, �6��, Igreja Paroquial de N.ª S.ª da Assunção, Cascais, Portugal.