A república dos piratas

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Capitães como Barba Negra, “Black Sam” Bellamy e Charles Vane uniram-se para criar, juntamente com seus companheiros piratas, a chamada “Gangue Voadora”, consolidando assim a República Pirata – uma bruta, distinta e breve democracia estabelecida nas Bahamas. Por lá, servos foram libertos, negros e escravos fugitivos podiam ser reconhecidos como cidadãos, e os governantes eram escolhidos mediante voto. Interrompendo rotas de comércio, saqueando navios negreiros e mantendo a Europa sem comunicação com o Novo Mundo, a República Pirata sacudiu as fundações do imperialismo e inspirou sentimentos de democracia que conduziriam à Revolução Americana. Os piratas tornaram-se heróis aos olhos do povo e, nesta obra, que inspirou a série Crossbones – com John Malkovich no papel de Barba Negra –, emerge sua história desconhecida, trazendo a República Pirata de volta à vida.

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A

República

PiratasA verdadeira história dos Piratas do Caribe

e do homem que os derrotou

Colin Woodard

São Paulo, 2014

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2014IMPRESSO NO BRASILPRINTED IN BRAZIL

DIREITOS CEDIDOS PARA ESTA EDIÇÃO ÀNOVO SÉCULO EDITORA LTDA.

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The Republic of Pirates Copyright © 2007 by Colin Woodard

Copyright © 2014 by Novo Século Editora Ltda.

Editor Luiz Vasconcelos Editor-assistente Mateus Duque Erthal Assistente editorial Vitor Donofrio Tradução Deborah Guerra Preparação Sílvia Helena Cavicchio Diagramação Sergio Gzeschnik Revisão Jonathan Busato

Woodard, Colin, 1968-A república dos piratas: a verdadeira história dos Piratas do Caribe e do homem que os derrotou/ Colin Woodard; [tradução Deborah Guerra].Barueri, SP: Novo Século Editora, 2014.

Título original: The republic of piratesBibliografia.

1. Bucaneiros – História – Século 18 2. Piratas – Caribe – História – Século 18 3. Via-gens marítimas I. Título.

14-03181 CDD-910.45

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

Índices para catálogo sistemático:1. Piratas do Caribe: Viagens marítimas: Século 18: História 910.45

Texto de acordo com as normas do Novo Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa (Decreto Legislativo nº 54, de 1995)

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Para Sarah, minha esposa e meu amor verdadeiro

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Sumário

prólogo A Era de Ouro da Pirataria 13

capítulo um A lenda (1696) 21

capítulo dois Indo para o mar (1697-1702) 39

capítulo três Guerra (1702-1712) 64

capítulo quatro Paz (1713-1715) 97

capítulo cinco Reunião de piratas (Janeiro – Junho de 1716) 124

capítulo seis Irmãos dos mares (Junho de 1716 – Março de 1717) 152

capítulo sete Bellamy (Março – Maio de 1717) 176

capítulo oito Barba Negra (Maio – Dezembro de 1717) 200

capítulo nove Pedindo perdão (Dezembro de 1717 – Agosto de 1718) 231

capítulo dez Atitudes temerárias (Julho – Setembro de 1718) 266

capítulo onze Caçado (Setembro de 1718 – Março de 1720) 285

epílogo O fim da pirataria (1720-1732) 313

agradecimentos 330

notas finais 334

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flórida

jamaica

cuba

Kingston

Port Royal

Spanish Town

Mar do Caribe

Portobelo

Campeche

Turneffe

Baía de Honduras

Ilhas Bay

Isla de los Piños

HavanaMariel

Key Biscayne Nassau

Andros

Exuma

Rum Cay

Ilha do Gato

Eleuthera

Ábaco

Harbour Island

Naufrágios espanhóis

Nova Providência

Bahia Honda co

sta

do m

osqu

ito

ocupado

canal de yucatán

estreito da flórid

apelos baym

en

estreito de win

dward

ilhas das bahamas

•• •

• • •

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O Caribe do início do século xviiigrã-bretanha frança

hispaniolailhas

virgens

porto rico

Leogane

Ilha das AvesLa Blanquilla

Granada

Cartagena

Ilha das TartarugasCuraçao

Mona

St. Thomas

Névis

Montserrat Guadalupe

Martinica

Barbados

S. Vicente

Sta. Lúcia

Bridgetown

St. Croix

Virgem Gorda

Rum Cay

Ilha do Gato

Milhas

0 500

espanha

S. Cristóvão

d o m í n i o e s p a n h o l

ilhas leeward

granadinas

turks & ilhas caicos

ilha

s win

dwar

destreito de win

dward

ilhas das bahamas

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PRóLOGO

A Era de Ouro da Pirataria

P ara seus admiradores, os piratas são vilões românticos: homens temíveis dispostos a levar uma vida fora do alcance da lei e do

governo, que se libertaram de seus empregos e das restrições da sociedade para buscar riqueza, diversão e aventura. Três séculos se passaram desde que eles desapareceram dos mares, mas os piratas da Era de Ouro continuam sendo heróis populares para a legião de seus fãs. Eles serviram de inspiração para alguns dos maiores personagens de ficção – capitão Gancho e Long John Silver, capitão Blood e Jack Sparrow –, evocando imagens de lutas de espada, caminhadas na prancha, mapas do tesouro e baús de ouro e joias.

Atrativa como suas lendas – principalmente tão abrilhantadas por Robert Louis Stevenson e Walt Disney – a verdadeira história dos piratas do Caribe é ainda mais cativante: um conto de tirania e resistência perdido há muito tempo, uma revolta marítima que abalou os alicerces do recém-formado Império Britânico, levando o comércio transatlântico a uma paralisação e alimentando os sentimentos democráticos que mais tarde impulsionariam a Revolução Americana1. No seu centro havia uma república pirata, uma zona de liberdade no meio de uma era autoritária.

A Era de Ouro da Pirataria durou apenas dez anos, de 1715 a 1725, e foi conduzida por um grupo de vinte a trinta comodoros e alguns milhares de

1 Os piratas da Era de Ouro naturalmente não existiam há muito tempo quando 1776 chegou, mas o espírito de rebelião marítima persistiu ao longo do século. Marinheiros e afroamericanos descontentes lideraram manifestações e tumultos em massa contra os bandos de recrutamento forçado da Marinha Real em Boston em 1747 e 1768; em Newport, Rhode Island, e em Portland, Maine, em 1764; em Nova York em 1764 e 1765; e em Norfolk, Virgínia, em 1767. Nas manifestações de 1747 – que duraram três dias – escravos, servos e marinheiros invadiram a prefeitura de Boston, obrigaram o governador a fugir de sua casa, espancaram o xerife e detiveram um oficial naval. Os marinheiros também lideraram tanto a resistência ao Ato do Selo como a multidão enfurecida de Boston que foi reprimida a tiros pelos soldados britânicos, no que ficou conhecido como o Massacre de Boston.

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tripulantes. Praticamente todos os comodoros se conheciam, tendo servido lado a lado a bordo de navios mercantes ou piratas ou se cruzado na base que dividiam, a colônia britânica malsucedida das Bahamas. Os piratas eram, na maioria, ingleses ou irlandeses, mas havia um grande número de escoceses, franceses e africanos, assim como alguns de outras nacionalidades: holande-ses, dinamarqueses, suecos e índios americanos. Apesar das diferenças de nação, raça, religião e até mesmo de língua, eles desenvolveram uma cultura em comum. Ao se encontrarem no mar, os navios piratas frequentemente uniam forças e iam ao auxílio uns dos outros, até mesmo quando uma tripulação era em sua maioria francesa e na outra predominavam seus inimigos tradicionais, os ingleses. Eles operavam seus navios democraticamente, elegendo e depondo seus capitães por voto popular, dividindo igualmente os ganhos e tomando decisões importantes num conselho aberto – tudo em nítido contraste com os regimes ditatoriais encontrados a bordo de outros navios. Numa época em que marinheiros comuns não recebiam proteção social de qualquer espécie, os piratas das Baha-mas proporcionavam benefícios por incapacidade para suas tripulações.

Os piratas existem há muito tempo. Havia piratas na Grécia antiga, durante o Império Romano, na Europa medieval e durante a Dinastia Qing na China. Ainda hoje os piratas infestam as rotas marítimas do mundo, se apossando de cargueiros, navios de contêineres e até mesmo de navios de passageiros, saqueando seus conteúdos e, não raramente, matando suas tripulações. Eles são diferentes dos corsários, indivíduos que, em tempos de guerra, saqueiam navios inimigos com a autorização de seu governo. Alguns confundem sir Francis Drake e sir Henry Morgan com piratas, mas eles eram, na verdade, corsários, e realizavam suas depredações com o total apoio de seus soberanos, rainha Elizabeth e rei Charles II. Longe de serem considerados criminosos, ambos foram condecorados por seus serviços, e Morgan foi nomeado vice--governador da Jamaica. William Dampier era um corsário, assim como a maioria dos bucaneiros2 ingleses no final dos anos 1600. Até mesmo o famoso capitão William Kidd era um corsário bem-nascido, que acabou se tornando

2 Bucaneiro é um termo impreciso, que se refere aos piratas e corsários que operavam fora das Índias Oci-dentais no século XVII, especialmente nas décadas de 1670 e 1680. A palavra originalmente se referia a grupos de homens sem lei, a maioria deles franceses, que vagavam pela Ilha de São Domingos, caçando gado selvagem e secando a carne em um boucan, um tipo de defumador indiano; ocasionalmente caça-vam também navios pequenos. Mais tarde, os ingleses adotaram o termo “bucaneiro” para se referir aos saqueadores marítimos do Caribe em geral, embora a palavra não fosse usada assim na época.

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pirata por acaso, quando entrou em conflito com os diretores da Companhia das Índias Orientais, a maior empresa da Inglaterra.

Os piratas da Era de Ouro não eram como os bucaneiros da geração de Morgan e nem como os piratas que os precederam. Diferentemente dos buca-neiros, eles eram bandidos notórios, considerados ladrões e criminosos por todas as nações, incluindo suas próprias. Ao contrário de seus antecessores piratas, eles estavam envolvidos em mais do que crimes simples e realizaram até mesmo uma revolta social e política. Eram marinheiros, trabalhadores for-çados e escravos fugitivos se rebelando contra seus opressores: capitães, donos de navios e os autocratas das grandes plantações de escravos da América e das Índias Ocidentais.

A insatisfação era tão grande a bordo dos navios mercantes que, quando os piratas capturavam um, era comum que uma parte da sua tripulação se jun-tasse entusiasticamente ao grupo. Até mesmo a Marinha Real Britânica estava vulnerável; quando o navio HMS Phoenix enfrentou os piratas em seu covil nas Bahamas, em 1718, alguns marinheiros da fragata desertaram, escapando à noite para servir sob a bandeira preta. Na verdade, a expansão dos piratas foi incentivada em grande parte pelas deserções de marinheiros, em proporção direta ao tratamento brutal a que eram submetidos tanto na marinha de guerra como na marinha mercante.

Nem todos os piratas eram marinheiros descontentes. Escravos fugitivos migraram para a república pirata em números significativos, à medida que se espalhou a notícia de piratas atacando navios negreiros e convocando muitos a bordo para participar como membros de suas tripulações em igualdade de condições. No auge da Era de Ouro, não era incomum que escravos fugitivos representassem um quarto ou mais da tripulação de um navio pirata, e vários mulatos progrediram até se tornarem capitães piratas de pleno direito. Essa zona de liberdade ameaçava as colônias da região das Bahamas, em cujas plan-tações predominava o trabalho escravo. Em 1718, o governador das Bermudas informou que os “homens negros se tornaram tão imprudentes e insultantes que nós temos razões para suspeitar de sua insurreição contra nós e […] ter medo de sua união com os piratas”.

Alguns piratas também tinham motivações políticas. A Era de Ouro irrompeu logo após a morte da rainha Anne, cujo meio-irmão e pretendente à sua sucessão, James Stuart, teve o trono negado porque era católico. O novo rei da Inglaterra e da Escócia, o protestante George I, era um primo distante

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da rainha falecida, um príncipe alemão que não ligava muito para a Inglaterra e não sabia falar sua língua. Muitos britânicos, incluindo alguns futuros pira-tas, acharam isso inaceitável e se mantiveram fiel a James e à Casa de Stuart. Vários dos primeiros piratas da Era de Ouro foram reunidos pelo governador da Jamaica, Archibald Hamilton, um simpatizante dos Stuarts que, aparente-mente, pretendia usá-los como marinha de guerra rebelde para apoiar uma futura revolta contra o rei George. Como diz Kenneth J. Kinkor, do Museu da Expedição do Whydah, em Provincetown, Massachusetts, “esses eram mais do que apenas alguns bandidos saqueando lojas de bebidas”.

Os bandos de piratas das Bahamas foram consideravelmente bem-suce-didos. Em seu apogeu, eles conseguiram separar a Grã-Bretanha, a França e a Espanha de seus impérios do Novo Mundo, cortando rotas de comércio, sufo-cando o fornecimento de escravos para as plantações de açúcar das Américas e das Índias Ocidentais e interrompendo o fluxo de informações entre os conti-nentes. A Marinha Real, além de ser incapaz de prender os piratas, passou a ter medo de encontrá-los. Embora a fragata de vinte e dois canhões HMS Seaford tivesse sido designada para proteger as Ilhas de Sotavento, seu capitão informou que estava “em perigo de ser dominado” se cruzasse com os piratas. Em 1717, os piratas tinham se tornado tão poderosos que eram capazes de ameaçar não apenas navios, mas colônias inteiras. Eles ocuparam postos fronteiriços britâ-nicos nas Ilhas de Sotavento, ameaçaram invadir as Bermudas e bloquearam a Carolina do Sul repetidas vezes. Enquanto isso, alguns acumularam fortunas surpreendentes, com as quais compraram a lealdade de comerciantes, de donos de plantações e até mesmo dos próprios governadores coloniais.

As autoridades faziam os piratas parecerem monstros, estupradores e assassinos cruéis e perigosos, que matavam homens por capricho e torturavam crianças por prazer; de fato, alguns eram assim. No entanto, muitas dessas histórias eram intencionalmente exageradas, para influenciar um público cético. Para o horror dos donos de navios e plantações das Américas, muitos colonos comuns consideravam os piratas heróis populares. Cotton Mather, líder puritano de Massachusetts, enfureceu-se com o nível de apoio aos piratas entre os plebeus “pecadores” de Boston. Em 1718, quando as autoridades da Carolina do Sul se preparavam para levar um bando de piratas a julgamento, seus simpatizantes resgataram o líder da prisão e quase tomaram o controle da capital, Charleston. “As pessoas são facilmente levadas a favorecer essas pragas da humanidade quando elas têm esperanças de ganhar parte de sua

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riqueza ilícita”, se queixou, no mesmo ano, o governador da Virgínia, Alexan-der Spotswood, acrescentando que havia “muitos apoiadores dos piratas” em sua colônia.

dEu comecei a pensar em escrever sobre esses piratas em especial quando

estava sentado embaixo de uma palmeira, ao lado da minha futura esposa, numa ilha na costa de Belize, uma nação da América Central fundada por pira-tas e bucaneiros ingleses, cujas palavras e frases do final do século XVII ainda fazem parte da fala cotidiana. Há trezentos anos, essa, assim como a minha terra nativa, o Maine, era uma terra de ninguém, um litoral selvagem repleto de ilhas com uma população indígena escassa e ainda não governada por euro-peus. Imaginei aparecendo no final da ilha um gurupés3, as velas remendadas e o casco colado com piche de um navio pequeno, suas laterais perfuradas com portinholas de canhões e uma bandeira de caveira tremulando em seu mastro principal. O navio parecia bastante real, desde o cheiro de lona até a penugem abrasiva de suas grossas cordas de cânhamo4. A tripulação era menos definida, uma mistura de referências da cultura pop – bandanas e brincos, um tapa-olho para esse, uma perna de pau para aquele, um papagaio no ombro do capitão, facas e garrafas de rum em todo lugar – decorando homens com sorrisos leve-mente sinistros, latindo clichês frequentemente pontuados com a assinatura “Arrrr!” Percebi que, apesar de toda a sua popularidade, cultivada por filmes e propagandas, eu ainda não tinha uma ideia real de quem os piratas realmente foram. De onde eles vieram, o que os levou a fazer o que fizeram, como eles usavam seus saques, e será que algum deles tinha conseguido escapar?

Boas respostas não estavam disponíveis de imediato. A maioria dos livros, filmes e programas de televisão sobre o assunto continua a tirar proveito dos mitos dos piratas, não fazendo distinção entre os eventos documentados e os comprovadamente fabricados, muitos dos quais são originários de um livro de 1724 denominado História geral dos roubos e assassínios dos mais notáveis

3 Gurupés é um mastro colocado obliquamente na proa de um navio (N.T.).

4 Cânhamo é a fibra que se obtém da planta Cannabis, utilizada para fins têxteis (N.T.).

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piratas, escrito sob o pseudônimo de capitão Charles Johnson5. Aqueles que o fazem tendem a se concentrar não nos verdadeiros piratas, mas nos bucaneiros e corsários de uma era anterior – homens mais respeitáveis , cujas atividades eram em grande parte legalmente sancionadas. As vidas dessas pessoas – Henry Morgan, William Kidd ou William Dampier – estão documentadas por uma papelada muito mais volumosa. Algumas excelentes visões gerais permane-cem, mas elas se concentram na pirataria como uma instituição, não na vida de piratas específicos. Como eu descobriria ao escrever este livro, a abordagem biográfica apresenta um conjunto de perguntas totalmente diferente, revelando conexões, motivações e eventos que, caso contrário, deixariam de ser notados.

O que se segue está fundamentado em materiais encontrados nos arquivos da Grã-Bretanha e das Américas. Nenhum diálogo foi inventado e as descrições de tudo, cidades, eventos, roupas, navios e clima estão baseadas em documen-tos originais. Aspectos da história dos piratas anteriormente perdidos foram recuperados mediante a inclusão de depoimentos legais e dos documentos de julgamentos, cartas dos governadores, autoridades coloniais e capitães navais ingleses e espanhóis, relatos em panfletos, jornais e livros da época, rabiscos em livros de registro de casas de alfândega, registros paroquiais e os diários de bordo dos navios de guerra da Sua Majestade.

Ao citar fontes dos séculos XVII e XVIII, apliquei a pontuação e a ortogra-fia moderna, para garantir que ficassem compreensíveis aos leitores do século XXI. Todas as datas no texto correspondem ao calendário juliano, que na época estava em uso na parte do mundo que falava inglês; isso exigiu que fossem subtraídos dez ou onze dias nas datas das fontes francesas e espanholas, que já usavam o calendário gregoriano de hoje6. As fontes originais serão encontra-das nas notas no final deste livro.

Minha pesquisa me levou a muitos dos cenários listados a seguir: Lon-dres, Bristol, Boston, Charleston e Bahamas. Visitei refúgios de piratas no leste da Carolina do Norte, onde mergulhadores do Departamento de Recursos Culturais do Estado estão explorando o que se acredita ser o naufrágio da

5 Como visto posteriormente, esse autor não foi Daniel Defoe, como afirmaram gerações de estudiosos e bibliotecários bem-intencionados.

6 A maioria das nações católicas adotava o calendário gregoriano em 1582, quando os dois sistemas tinham dez dias de diferença. Em 1700, a diferença aumentou para onze dias, a qual permaneceu até 1752, quando a Grã-Bretanha finalmente adotou o novo calendário.

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capitânia de Barba Negra. Artefatos de outro navio pirata da Era de Ouro, o Whydah, ainda estão sendo descobertos nas praias de Cape Cod. Aproveitei muito as conversas e trocas de correspondências com arqueólogos e historia-dores nesses e em outros lugares, que continuam a analisar cuidadosamente evidências para mais pistas a respeito do passado dos piratas.

dEste livro conta a história da Era de Ouro da Pirataria através das vidas

de quatro das suas principais figuras. Três eram piratas: Samuel “Black Sam” Bellamy, Edward “Barba Negra” Thatch e Charles Vane – todos se conheciam. Bellamy e Barba Negra eram amigos, tendo servido juntos sob seu preceptor, Benjamin Hornigold, que fundou a república pirata em Nassau, na Ilha Nova Providência. Ambos também eram bem familiarizados com Vane, o protegido do rival de Hornigold, Henry Jennings, um corsário turbulento, declarado fora da lei pelo rei George. Vane compartilhava muitas das características de seu mestre: uma propensão para a crueldade, violência desnecessária e uma veia sádica que eventualmente prejudicava sua própria autoridade. Bellamy e Barba Negra, seguindo a liderança de Hornigold, eram mais prudentes no emprego da força, geralmente usando o terror apenas para obrigar suas vítimas a se renderem, evitando, assim, a necessidade da violên-cia. Nas descrições volumosas dos ataques de Bellamy e Barba Negra a navios – cerca de trezentos navios ao todo – não existe um exemplo registrado sequer deles matando um prisioneiro. Era mais frequente suas vítimas relatarem, mais tarde, que haviam sido tratadas de forma justa por esses piratas, que normal-mente devolviam navios e cargas que não serviam aos seus propósitos.

Ao longo do tempo, esses bucaneiros conseguiram seguidores podero-sos, navegando ou se divertindo com praticamente todos os líderes piratas da época: John “Jack Calicô” Rackham, que se vestia extravagantemente; o excên-trico Stede Bonnet; o famoso Olivier La Buse; Paulsgrave Williams, que usava peruca; e a mulher pirata Anne Bonny. No auge de suas carreiras, cada um comandou uma pequena frota de navios piratas, uma comitiva constituída de centenas de homens e, no caso de Bellamy e Barba Negra, uma capitânia capaz de desafiar qualquer navio de guerra nas Américas. Suas campanhas foram tão bem-sucedidas que logo os governadores, comerciantes de escravos, donos de

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plantações e magnatas do transporte – a estrutura do poder completa da Amé-rica britânica – estava clamando para que algo fosse feito.

Isso nos leva ao nosso quarto e último personagem, Woodes Rogers, o homem que a Coroa enviou para enfrentar os piratas e pacificar as Bahamas. Mais do que ninguém, Rogers deu fim à Era de Ouro da Pirataria. Ele não era um pirata, é claro, mas tinha servido como um corsário durante a guerra mais recente da Inglaterra contra França e Espanha e sabia como os piratas pensa-vam e operavam. Um herói de guerra e autor famoso, Rogers tinha liderado um ataque bem-sucedido a uma cidade espanhola, tinha sido desfigurado durante uma batalha de piche contra um enorme galeão7 de tesouro no Pacífico e era um dos poucos homens que haviam dado a volta ao mundo navegando. Apesar do seu passado fanfarrão, Rogers não tinha nenhuma empatia com os piratas. Ele representava tudo aquilo contra o que os piratas estavam se rebelando. Ao contrário de muitos dos seus colegas, Rogers era corajoso, altruísta e sur-preendentemente patriótico, dedicando-se de forma abnegada ao rei e ao país. Enquanto muitos outros governadores, oficiais navais e ministros do governo rotineiramente enchiam seus bolsos à custa da Coroa, Rogers esvaziava os seus em apoio a projetos que, como ele acreditava, iriam promover o bem comum e a ordem estabelecida do jovem Império Britânico. Apesar do seu serviço heroico, Rogers sofreu nas mãos de seus superiores e colegas.

Bellamy, Barba Negra e Vane não começaram sua sociedade pirata do zero. Eles tinham um modelo a seguir em Henry Avery8, um “rei pirata” conhecido por liderar seus colegas tripulantes a saírem da opressão entre os conveses para uma vida de luxo inimaginável em um reino pirata próprio. As proezas de Avery foram realizadas enquanto Bellamy, Barba Negra e Vane ainda eram crianças e já eram lendárias quando eles se tornaram jovens. Suas aventuras inspiraram autores de peças de teatro e romances, historiadores e escritores de jornais e, finalmente, os próprios piratas da Era de Ouro. O mito romântico da pira-taria não seguiu a Era de Ouro, ele ajudou a criá-la. O conto dos piratas, portanto, começa com Henry Avery e a chegada de um misterioso navio a Nassau três séculos atrás.

7 Galeões são navios de quatro mastros, frequentemente utilizados no transporte de cargas que possuíam alto valor na navegação oceânica entre os séculos XVI e XVIII (N.T.).

8 Também escrito como “Every” ou “Evarie” em documentos do período.

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CAPÍTULO UM

A lenda1696

O veleiro chegou na parte da tarde do Dia da Mentira de 1696, balançando na extensão baixa e arenosa da Ilha Hog e adentrando o largo

porto de Nassau, deslumbrantemente azul. No início, os aldeões na praia e os marinheiros no porto deram pouca atenção. Pequeno e de aparência comum, esse veleiro era uma visão familiar, um navio mercante da vizinha Ilha Eleutéria, a oitenta quilômetros ao leste. Ele vinha frequentemente a Nassau, capital das Bahamas, para trocar sal e alimentos frescos por tecido e açúcar, e para saber as notícias trazidas da Inglaterra, da Jamaica e das Carolinas. Os espectadores esperavam ver a tripulação jogar a âncora, colocar as mercadorias no escaler1 e remar em direção à praia, já que a capital não tinha cais ou píer. Mais tarde, tendo se livrado da carga, a tripulação iria beber numa das casas públicas de Nassau, trocando novidades sobre a guerra em curso e os movimentos dos franceses infernais, e amaldiçoando a ausência da Marinha Real.

Mas não nesse dia.A tripulação do veleiro remou até a terra. Seu capitão, um homem local

familiar para todos, pulou para a praia, seguido por várias estranhos. Esses últimos usavam roupas incomuns: sedas, da Índia talvez, um lenço com ale-gres estampas da África, diversos tipos de chapéus da Arábia, tudo tão fétido e sujo quanto as roupas de lã barata usadas por qualquer marinheiro comum. Aqueles que chegaram perto o suficiente para ouvir sua conversa ou olhar para seus rostos bronzeados podiam dizer que eles eram marinheiros ingle-ses e irlandeses, não muito diferentes daqueles de outros navios grandes que vinham do outro lado do Atlântico.

O grupo seguiu seu caminho através da pequena aldeia, algumas dezenas de casas agrupadas ao longo da costa, à sombra de uma modesta fortaleza

1 Escaler é uma pequena embarcação movida a remo, a vela ou a motor (N.T.).

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de pedras. Eles atravessaram a praça recém-limpa da cidade, passando pela humilde igreja de madeira da ilha, finalmente chegando à casa nova do gover-nador Nicholas Trott. E lá eles ficaram, descalços, na areia suja e queimada pelo sol, o cheiro fértil dos trópicos enchendo suas narinas. Os habitantes da cidade pararam para observar os homens de aparência selvagem esperando na porta do governador. Um empregado abriu a porta e, após trocar algumas palavras com o mestre do veleiro, correu para informar à Sua Excelência que uma mensagem urgente havia chegado.

dNicholas Trott já estava com as mãos cheias naquela manhã. Sua colônia

passava apuros. A Inglaterra se encontrava em guerra com a França há oito anos, interrompendo as vias de comércio e abastecimento das Bahamas. Trott recebeu um relatório de que os franceses tinham capturado a Ilha Exuma, a duzentos e vinte e cinco quilômetros de distância, e estavam a caminho com três navios de guerra e trezentos e vinte homens. Nassau não tinha nenhum navio de guerra à disposição; na verdade, nenhum navio da Marinha Real passava por ali há vários anos, pois não existia um número suficiente de navios para proteger o império da Inglaterra em expansão. Havia o Forte Nassau, recém-construído com pedras locais, com vinte e oito canhões encai-xados em suas muralhas, mas, com muitos colonos fugindo para a melhor proteção da Jamaica, Carolina do Sul e Bermudas, Trott estava achando quase impossível manter a estrutura guarnecida. Não havia mais do que setenta homens sobrando na cidade, incluindo os idosos e deficientes. Metade da população masculina, além das suas ocupações habituais, realizava também o serviço de guarda em outros horários, o que deixava muitos nas palavras de Trott, “terrivelmente cansados”. Ele sabia que, se os franceses atacassem com força, existia pouca esperança de manter Nassau e o resto de Nova Pro-vidência, a ilha na qual sua pequena capital estava empoleirada. Essas eram as preocupações de Trott quando ele recebeu o capitão mercante de Eleutéria e seus companheiros misteriosos.

O líder dos estranhos, Henry Adams, explicou que ele e seus colegas tinham chegado recentemente às Bahamas a bordo do Fancy, um navio de guerra privado com quarenta e seis canhões e cento e treze homens, e pediu

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a permissão de Trott para entrar no porto de Nassau. Adams entregou uma carta do seu capitão, Henry Bridgeman, contendo uma proposta muito estra-nha. O Fancy, Bridgeman alegava, tinha acabado de chegar a Eleutéria vindo da costa da África, onde ele tinha feito tráfico de escravos sem a permissão da Companhia Real da África, que detinha um monopólio sobre tais atividades. A carta do capitão Bridgeman explicava que o Fancy estava com um nível baixo de mantimentos e que sua tripulação precisava de um tempo em terra. Se o governador tivesse a amabilidade de permitir que o navio entrasse no porto, ele seria amplamente recompensado. Cada membro da tripulação daria a Trott um presente pessoal de vinte peças de oito e duas de ouro, e Bridgeman, sendo o comandante, daria o dobro. Os estranhos estavam oferecendo-lhe uma propina no valor de cerca de novecentas libras2 numa época em que o salário anual do governador era de apenas trezentas libras3. Para completar, a tripulação também lhe daria o próprio Fancy, uma vez que eles tivessem des-carregado e se livrado da (ainda) não especificada carga. Ele poderia embolsar quase três anos de salário e tornar-se o proprietário de um navio de guerra considerável simplesmente permitindo que os estranhos ficassem em terra e não fazendo nenhuma pergunta.

Trott guardou a carta e convocou o conselho de administração da colônia para uma reunião de emergência. A ata dessa reunião está perdida, mas, a partir do testemunho de outros presentes em Nassau na época, fica claro que o governador Trott “esqueceu” de mencionar o suborno aos conselheiros. Em vez disso, ele apelou para o interesse comum na segurança da colônia. O Fancy, ele ressaltou, era tão grande quanto uma fragata de quinta classe da Marinha Real, e sua presença poderia impedir um ataque francês. O acréscimo de sua tripulação quase dobraria o número de homens capazes em Nova Providência, garantindo que os canhões do Forte Nassau seriam utilizados no caso de uma invasão. E, além disso, como eles ficariam se Bridgeman escolhesse reequipar seu navio no porto francês da Martinica, ou pior, decidisse atacar a própria

2 Na época, uma “peça de oito” (moeda de prata) valia cinco xelins ou um quarto de libra; presume-se que cada “peça de ouro” era equivalente a uma pistole (moeda espanhola), a qual valia trinta e dois ryals (reais espanhóis).

3 Em 1713, esse era o salário do governador da Carolina do Norte, uma colônia pequena de propriedade dos mesmos aristocratas que possuíam as Bahamas.

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Nassau? Violar o monopólio da Companhia Real da África era um crime muito menor, uma razão insuficiente para negar-lhe entrada.

Os membros do conselho concordaram. O governador mandou a Henry Adams uma “carta muito educada” acolhendo o Fancy em Nassau, onde ele e sua tripulação “eram bem-vindos para ir e vir como quisessem”.

Não muito tempo depois, um grande navio contornou a Ilha Hog4, seus conveses cheios de marinheiros, suas laterais perfuradas com portinholas de canhões e seu casco submerso profundamente na água sob o peso de sua carga. Adams e seu grupo foram os primeiros a pisar em terra, seu escaler cheio de sacolas e baús. A recompensa prometida estava lá: uma fortuna em moedas de prata e de ouro cunhadas na Arábia e além. Escaleres transportaram os tri-pulantes para a terra ao longo do dia. O resto da tripulação se assemelhava ao primeiro grupo: marinheiros de aparência comum vestidos com ornamentos orientais, cada um portando grandes parcelas de ouro, prata e joias. O homem que se identificava como capitão Bridgeman também veio a terra e, depois de uma reunião a portas fechadas com Trott, entregou o grande navio de guerra para ele. Quando o governador chegou a bordo do Fancy, descobriu que eles tinham lhe deixado uma gorjeta: o porão continha mais de cinquenta tonela-das de presas de elefante, cem barris de pólvora, vários baús cheios de armas e mosquetes e uma notável coleção de âncoras de navio.

Mais tarde, Trott afirmaria não ter tido nenhuma razão para suspeitar que a tripulação do Fancy estivesse envolvida com pirataria. “Como eu poderia saber?”, ele testemunhou sob juramento. “Suposição não é prova.” O capitão Bridgeman e seus homens afirmaram ser comerciantes não licenciados, ele acrescentou, e as pessoas de Nova Providência “não viram nenhuma razão para não acreditar neles”. Mas Trott não era nenhum tolo. Ele próprio havia sido um capitão mercante e sabia muito bem que tesouros do tipo dos que o Fancy carregava não eram produtos de alguma negociação não sancionada com o povo da Costa de Escravos da África. Em pé, a bordo do Fancy, seu porão cheio de marfim e armas, suas velas remendadas dos danos feitos por canhões, balas de mosquete incrustadas em seu convés, Trott foi forçado a fazer uma escolha: fazer cumprir a lei ou ficar com o dinheiro. Ele não pensou por muito tempo.

4 Em 1962, o governo das Bahamas a renomeou Ilha Paraíso, a pedido do magnata americano dos super-mercados Huntington Hartford. Ela agora está ocupada por resorts e hotéis de luxo.

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