A Revisão Dos 2000.
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Transcript of A Revisão Dos 2000.
ISBN 972-46-057 1-X
Título original: Trad11çllo: t\dl'li no dos Santos Rodrigues
Pour soitir du vingtieme siecle I Copo: Jnrg · Mu ·h11d o l) ill s © Fernand Nathan Ediçc1o: 11 ." O I 11 11 007
Direitos reservados para Portugal por Depósito 11•!1"1: n," 77 ')411/'!4 Editorial Notícias l111pres,,. " I' om l 111/ll' lll n :
Rua da Cruz da Carre ira, 4-B - liOO USBOA I Gráfi o Mu nu •I lln r·IJosll & !'i lhos, Lda.
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EDGARMORIN
AS GRANDES QUESTÕES DO NOSSO TEMPO
4.3 Edição ...
E:t EDITORIAL NOTÍCIAS
1.
A REVISÃO DOS 2000
VER? VER ...
Há meses, quando me dirigia para a Casa das Ci&ncias do I (omem e me preparava para atravessar a rue d'Assas, no cruzamento I t pnil/Cherch-Midi/Assas, vi um «dois cavalos» passar o sinal encarlltd e derrubar um motociclista que atravessava tranquilamente no
r I . O automóvel parou, o condutor saiu e eu corri para testemunhar 1 tvor da vítima, que se levantava penosamente.
M s o automobilista disse-me que fora o motociclista quem pasm o sinal encarnado e fora chocar com ele. Como ? No tocante
d siiilal verifico que já não estou tão seguro, mas no que diz t J1 I choque bem vi o Citroiin embater no duas-rodas. O auto-' ' • I 1 m stra-me o seu guarda-lamas esquerdo ligeiramente amol
' 1, I' I ) choque. Não há dúvida que foi ele o atingido. O que o 1 1 •lu 11 ., desmentiu.
c •tlllfl ndi de súbito que a minha percepção se ordenara ime-1 j '''' 111 m função de uma aparente racionalidade: o pequeno
I ••ui d , fora o grande que derrubara o pequeno e portanto Hll Je. Estava certo de que vira bem, mas pouco depois
111 I 1 11 invalidara a minha visão. Verificava em mim mesmo I 111 hecida e de que já me ocupara lllum livro antigo:
llu inatória da percepção. T.rata-se de uma experiência tul erros de percepção nas testemunhas de acidentes
1 I r cpto em casos absolutamente flagrantes, em que tr p I um peão na passagem dos peões, as declara-
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ções variam de testemunha para testemunha, em função não só do ângulo de visão, da existência de um factor visível a um e invisível a outro, mas- também da emoção e do sMtimento. Estes exemplos aparentemente menores (mas que em caso de acidente são de importância vital para os p~Cotagonistas e sobretrudo para o acidentado) reconduzem-nos ao grande problema do testemunho. Li em adolescente o livro de Norton Cru, precisamente intitulado Do Testemunho, em que se fazia uma críítica implacável às cctestemunhas que juram a pés juntos», como se participassem dos dois lados da batalha nos mesmos combates da I Guerra Mundial. Jiá quase me não recordo do conteúdo do livro e os seus numerosos apontamentos foram dispersos pela Gestapo durante a Ocupação; mas ficou-me a forte impressão de que devemos desconfiar da única coisa fiável de que dispomos para contar a nossa história e escrever a história: o testemunho.
Como já disse, a percepção contém uma componente alucinatória. Assim, é bem conhecido que na leitura ráipida de um texto o nosso olhar abarca apenas determinados blocos de letras a partir dos quais reconstituímos espontaneamente a integralidade da frase. r!: por isso, aliás, que temos tanta dificuldade em distinguir uma galha tipográfica; a visão global a partir de elementos privilegiados permite economizar a leitura de todos os elementos. Assim, por exemplo, pergunto a mim mesmo quantos leitores notaram que fiz imprimir deliberadamente a palavra galha em vez da palavra gralha? Experiências sobre a percepção feitas com bebés mostraram que percebiam bem, até certa idade, a identidade de volume entre dois recipientes de bombons, um largo e baixo e o outro alto e estreito. Mas a partir de certo estádio de desenvolvimento a criança, que vive num ambiente em que estatisticamente as coisas altas são mais volumosas do que as baixas, distiJngue IÍ1I1ledi.<l!tame.tllte oomo 'lltaiÍS vol'lmlOOas as caixas altas em relação às caixas baixas. Isto porque adopta inconscientemente uana estmtégàa de peroepção eoonómim, mpida, que comporta poucas probabilidades de erro e é por esse facto «racional». Só depois de certa idade a criança, sensível às excepções desta regra, recoosiderará todas as dimensões da caixa e adoptará uma estratégia perceptiva ainda mais racional.
Nos exemplos que acabo de dar a componente alucinatória da percepção é determinada não por um factor ccirracionab (afectivo, mágico), mas sim por um princípio de racionalidade. No que me diz respeito, era racional que o grande esmagasse o pequeno, e essa racionalidade dava coerência à minha visão. Foi portanto uma racionalização imediata que «alucinou» a minha percepção do choque. Mas uma vez informado, nova visão racional expulsou a outra: que o pequeno, distraído, ignorou a mudança do sinal para vermelho e de repente chocou com o veículo que se pusera em andamento quando o seu sinal mudara para verde.
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Deste modo, não é apenas a intrusão de uma componente afectiva ou mágica que nos pode enganar nas nossas percepções, é também o funcionamento de uma componente aparentemente lógica e racional. Por outras palavras, devemos desconfiar, na nossa percepção, não só do que nos parece absurdo, mas também do que oos parece evidente, por ser lógico e :racional. À primeira vista é muito mais lógico e racional que o discozinho do Sol gire à volta da Terra; mas tudo muda desde que saibamos que o Sol não é um discozinho e sim um astro muito maior do que a Terra.
Onde a oomrponenre Wucinatória deixa de ser rncional (mas permanece racionalizadora -explicarei mais adiante a diferença entre os dois termos) verifica-se choque, traumatismo, emoção violenta. No caso do motociclista derrubado, havia certamente emoção da minha parte, e essa emoção desempenhou um papel associado, ligado à minha racionalidade representativa. Com efeito, à imagem do grande derrubando o pequeno associava-se a do fraco deitado ao chão pelo f rte, e o receio pela sorte do ferido, juntamente com a sensação de lnj,ustiça, fortalecia a justeza da minha percepção. No entanto, eu não
Lava pessoalmelllte implicado na oolisão e o choque llllaJteniaJ e moral n fooa muito gnamde. Pm Jsso, a oomponenite alu.aiootória da lll nha percepção podia ser eliminada a partir das primeiras mdica-. correctoras.
A componente alucinatória pode, em contrapartida, resistir à i 1 r o . e até, em certos casos, determinar uma aluc~ação pura e
1111 I . nlucinação pura e simples é um fenómeno bem conhecido,
111 ~ru d UtPa111Jte muííto tempo se considerou próprio da aloUOUJra». 111 , I lU\ a gente pode, em circunstâncias extremas, estar sujeita a 111 1111 , quer em condições de grande fadiga (em que especial
li • 111 o nosso próprio «duplo» nos pode aparecer), quer em condi-' •I 111 ústia, exaltação ou êxtase colectivos. Assim, milhares de
I 1 m visto em Esmima, na altura de uma prédica de 'I vi, o Messias do século XVII, uma coluna de fogo subir
• 1 I ual modo, parece que em Fátima milhares de pessoas ' 11 lu o S I rodopiar e manifestar diversos sintomas de agitação.
'' ''' • 1111 lt nlucinação é um problema-chave. Não só porque toda \1 t ntada, ajudada, por uma componente alucinatória;
1 (11 n componente pode deformar a visão, mas também h d rcrcnça intrínseca, no plano da representação, entre
\ 1 pç . A visão do alucinado tem os mesmos carac-
1 I• utl quo a percepção real para o não-alucinado. '' ••111111 nd r é necessário compreender que a percepção
11111 puro o simples reflexo do que é percebido. O nosso •t 11 rrado numa caixa preta: não «Vê» as coisas
111 I• a si mesmo no termo de um processo com-
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plexo de codificação e tradução; os estímulos luminosos que impressionam a nossa retina são traduzidos, codificados em impulsos que, via os nervos ópticos, vão determinar os processos cerebrais bioquímico-eléctricos que determinam a nossa representação. Mas essa representação é ela própria co-organizada em função de estruturas e estratégicas mentais que determinam a coerência e a inteligência da percepção (assim o nosso espírito restabelece automaticamente a «constância» dos objectos, os quais, conforme se encontram situados perto ou longe do nosso olhar, são enormes ou minúsculos na nossa retina). Por outras palavras, o espírito/cérebro estrutura e organiza representações, isto é, produz uma imagem do real. Essa produção é uma tradução e não uma «reprodução» ou um reflexo. Claro que há impressão na retina tal como há impressão na chapa fotográfica, mas é o nosso espírito/cérebro que, a partir das impressões na retina, produz as suas representações. Consequentemente, a percepção é um processo em cadeia que se oompleta na projecção, sob forma de visão, da representação mental sobre os fenómenos exteriores de que provém.
Quanto à alucinação, trata-se de uma representação desencadeada não por estímulos visuais exteriores, mas sim por estímulos cerebrais internos. A alucinação é, para o alucinado, intrinsecamente idêntica à visão perceptiva. É efectivamente, como se diz, uma «visão» dotada da sensação integral da realidade. Os Úlnicos meios de distinguir a percepção da alucinação são meios ;reflexivos pessoais («Mas não, não é possível, isso não existe») que recorrem à coerência lógica, à plarusibilidade, à memória, ou então o il"OOurso a referêmoias exteriores (uVê porventam a mesma IOOiLsa que eu vejo?»).
Quer faça parte do sonho, quer faça parte da alucinação, a distinção entre a visão real e a ilusão não é dada imediatamente. Com efeito, vivemos os nossos sonhos, a maior pavte das vezes, como se fossem a nossa realidade. Só em raros momem.tos, entre vigília e sono, adivinhamos que o sonho, que continua ou morre, não passa de um sonho. Só depois do sonho estabelecemos a diferença, recambiamos o sonho para o irreal, e podemos estabelecer a diferença porque reencontramos as mesmas estruturas, os mesmos dados, as mesmas constâncias todas as manhãs. No entanto, se fôssemos todas as noites vítimas do mesmo sonho, que decorresse num universo com as mesmas constâncias e inconstâncias do nosso, ficaríamos muito pei1turbados e deveríamos procurar os sinais que diferenciassem o sonho do real numa e através de uma estratégia de elucidação que comportasse espepecialmente as comunicações com outrem. Observemos aqui que só numa civilização que comporte uma concepção empírico-lógica do real opomos claramente realidade e sonho. Noutras civilizações, sobre· tudo arcaicas, o sonho é realmente vivido pelo nosso duplo que durante o sono se escapa do corpo e vive as suas aventuras.
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A estratégia de elucidação e alucinação pode ser muito fácil quando a alucinação é extravagante para quem a sofre, muito difícil quando o 100bvíduo «ooredi•ta» oo sua raluoimação, [il0111que aoredái!Ja previamente na ;realidade dos fantasmas, dos espectros e dos espíritos que lhe ~pa:re.oom. e ilgua.lmernte difícil se se 1mlialr de alruJCmção colectiva, pois a referência a outrem inverte o seu valor verificador.
Vemos portanto que não existe diferença intrínseca, ao nível da representação, entre alucinação e percepção, mas que a diferença é fiundamental quanrto ao sentido de uma e de outra, e sobretudo o seu sentido de realidade ou verdade. Vimos que toda a percepção comporta uma componente alucinatória que pode ser desencadeada ou orientada pela nossa afecrtividade, mas que também pode resultar, simultânea ou principalmente, de estratégias ou de estruturas de racionalização a que recorremos em qualquer percepção. Co!lJSequentemente, o risco da ilusão não resu1ta apenas das perturbações afectivas jou das estruturas mágicas/arcaicas do espírito humano, resulta tam
b6m da racionalidade própria de toda a operação de conhecimento. uer dizer que devemos desconfiar do testemunho dos «nossos olhos», rque não foram os nossos olhos que viram, foi sim o nosso espírito
1 or intermédio dos nossos olhos. Devemos ser prudentes, não só com o testemunho doutrem, mas
••un m com aquele que nos é mais indubitável: o nosso próprio. Voltemos ao testemunho. Até aqui só falei do testemunho ime
to. ra, o tempo deteriora a recordação. O que se passa em pritt lugar é um processo cerebral inconsciente que quotidianamente
11 uma parte seleccionada da «memória curta» do dia para a 111 111 1 I L de longa duração». Muitos elementos podem portanto cair
111 1110 caixote do lixo do esquecimento. Mas não conterão esses 1 t 1 111 c ouro do pormenor significativo que se prefere inconsciente-
! LI cor ? Além disso, com o tempo, um princípio de entropia ' 1 rdação, que fica como que roída pela traça, lacunar, se , In c tremis, quando a queremos reconstituir passados tantos
1 llll restam bocados incertos . . . No entanto, a recordação 1 1 novuda por meio de rememorações frequentes para nós ou
' 11111t 111 , mo a hisrtória do antigo combatente. Mas então lem-••" 1111 il lUO a representação podia estar/ser deformada/defor-
1 d o iníc io e que com cada relato não só os pequenos 1t 1 1 1 trdnção podem ser remendados por pormenores embe-
111 1 t 1 ml>ém que com o tempo se valoriza cada vez mais •H 111 1 • c autogratificante e se esconde o que se presta à
otlt Nlução. Assim, as recordações dos ilustres devem I •udus do ,que as dos indivíduos anónimos. A ques
, l rn ça a deformação consciente é secundária, porn )OScicnte chega para deformar um testemunho.
> da ocultação e os poderes fantasmas do ima-
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ginário são de tal ordem que bastam para oeteriorar a mais honesta das percepções.
Podemos lutar contra o logro através da recordação recorrendo às recordações doutrem, sem dúvida, mas também dedicando-nos a auto-analÍISar-111os, aut.ooornigir-111os e au'tooritimr-lllOS oontillnmamente. (Ora, essa higiene do espír1to tornou-se desconhecida e ignorada. Elogiam-se e vendem-se actualmente ioguismos de desangústia e resseneração, mas ignora-se a ginásücajioga do espírito que se auto-analisa a si mesmo. Aliás, os manuais de psicologia há muito tempo que condenaram a «introspecção», método subjectivo arcaico bom para antiquados como Montaigne ou Proust, que ainda não dispunham do Q. L, do psicanalista e do guru).
E eis-nos perante o problema daquele que quer saber o que se passou há um instante ou há um século. Tanto num como noUJtro caso não basta uma investigação para recolher testemunhos, é necessária uma investigação aos próprios testemunhos. Impõe-se uma estratégia de conhecimento. E em semelhante estratégia, como sabem historiadores e polícias, nada isoladamente possui vaJor absoluto, mesmo a mais sincera das percepções (ainda que possua valor de presunção muito forte, com a condição de se lhe ter reconhecido a sinceridade, o que necessita de ser também averiguado).
O testemunho ocular é um elemento capital, mas não passa de um elemento num trabalho de reconsütuição e verificação através de confrontações. A estratégia de conhecimento desenvolve-se estabelecendo concordâncias e coerências, mas a conçordância nem sempre possui valor probatório e a coerência pode ser destruída pelo aparecimento de llliil dado que a contradiga (não ex.iste coerência em si, existe a coerência a partir de dados).
A isso junta-se o problema do falso testemunho consciente, da mentira deliberada para ocultar um facto a<:abmnhante, e do fabrico do documento falso para provar a verdade da sua verdade.
Vemos portanto a dificuldade: um testemunho verdadeiro pode estar cheio de erros, um falso testemunho dispõe de elementos verosímeis para aqueles a quem se destina.
A estratégia da procura do verdadeiro deve esforçar-se então por determinar o verídico a partir do verosímil, sem necessariamente identificar o verídico com o verosímil (o qual verosímil depende de critérios que variam consoante os espíritos). É necessário proceder à crítica dos testemoohos. Mas uma orítioa q,ue desquali.ficasse ·Uliil re&temooho por oomporta.r alguns er.ros deveria ela própria ser cciticada por seu tUl1IlJO. Isto parece provooatr uma desill'llte§ração em cadocia que aoaba por reduzir a mi,galhas todos os dados. Na realidade não: a crítica que põe em dúvida qualquer testemllll1ho l!iransfurma-se em hii))erorítica e é a hlperoritica que deve ser critioada. Mas se a critica de hi,per· oríti,ca conduz a ;uma ron:fiJalllça s.ubcríti.ca, emltão deve ser oritkad
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por sua vez. De facto, temos tendência paa:a ser hi!peratiticos em relação a testemiU!llihos qrue nos desagmdam, porque OOI1Jtradizem a nossa própoo visão da :realidade, e temos tendência pare oor siUbor:íitiros com l!ludo o que Vlá. no nooso semido.
Vemos assim que os mesmos problemas fundamentais envolvem qualquer testemunho, incluindo o do próprio. Daí uma conclusão paradoxal: desconfiemos dos nossos olhos, embora seja só neles que possamos confiar. Como desconfiar e confiar simultaneamente? Este problema não nos abandonará (como veremos, devemos desconfiar da noosa confiança, mas também desconfiar da nossa desconfiança). O problema esclarece-se se pensarmos que os nossos olhos são apenas os nossos olhos, que a visão provém do encontro entre estímulos xroriores, da aotividade impresSIÍIVaj,tJmru<mlisoona do nosso aparelho >cuJar e da actividade representativa do nosso cérebro, e que tudo isso
ti uma percepção. Então, considerando que em toda a percepção são mobilizados processos cerebrais/psíquicos inconscientes, como sul rnbundantemente mostraram, cada uma à sua maneira, a teoria da t 11'.\'fnlt e a psicanálise, precisamos de processos cerebrais/psíquicos
111 i ntes para examinar, reflectir e autocriticar a nossa visão. Quer ti/ que seremos incapazes de ver bem se não formos capazes de nos
nós mesmos. Dev.emos mobilizar o espírito para controlar os lhos e devemos mobilizar os nossos olhos para oontrolar o pfrito.
O PERIGO INFORMACIONAL
/1/t'rlla constituem o melhor sistema de informação que se h r. Uma teia apertada cobre a superfície do globo, capta
111 diatamente os acontecimentos. Investigadores e jorna-l ulh 1111 nos problemas que surgem no seio das sociedades.
• 1111 instante a possibilidade de verjsaber o que se passa. I 1 I 11 lamente conhecimento da história que se faz. O pla-
11 1 11 1\IIO U-se a laranja azul que podemos contemplar em I I 11111111 lll(,l,
1 111blnformação, pseudo-informação
planeta surge-nos envolto em nuvens. Sofremos uhinfo rmação e de sobreinformação, de falta e
111 1 111 qu se possa deplorar uma superaboodâlllcia de 111111 dtt o xccsso abafa a informação quando somos
1 1 11111~! n11 uptas de :acontecimentos •sobre os quais é
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impossí~el meditar porque são imediatamente afastados por outros acontecimentos. Assim, em vez de vermos e distinguirmos os contorno~ e as arestas do que suscita os fenómenos, somos como cegos no mei? ~e um~ nuvem informacional. E se as imagens fortes de fomes, angustias, rumas e desastres se repetem diariamente, como aconteceu durante a guerra ~o Vietname e como acontece no momento em que escrevo _no CamboJa e no Afeganistão, então saturam-se, saturam-nos ~ banahz~m-se. Enquanto a informação dá forma ás coisas, a supermformaçao mergulha-nos no informe. . Sup~rtamos a supe~nformação; ora, es>ta não é de modo algum mcompativel com a submformação. Subinformação: continentes inteir?s voltaram a ser desconhecidos; às antigas manchas brancas geográficas ~ucederam as zonas imensas de silêncio sociológico e político, que sao ao mesmo tempo zonas de informação-ficção.
. Sabe-se vários meses ou anos mais tarde que se verificou um motim num~ gr~nde cidad~ da China ou da URSS. Os corresponden~es. dos. Jornais estrangeiros nesses países estão enclausurados nas capttais, Circula~ em itinerários seleccionados. Para permanecerem no s~u posto envtam tex,tos semi-diplomáticos, semi-informativos, que contnbuem tanto para a desinformação como para a informação.
O nmris mudilto: eXJiste ·uma guerra entre a Chlna e o Viet!llame a~erca da qual não sabemos nada sobre os combates, a estratégia, as c!dades ocupadas ou não, os feridos, os mortos, o vencedor e o veno:ldo. A respcito do C3J111:boja apenas dispomos, pana sond&- abismos medonhos, de testemunhos fugazes e de um número- real ? Mftico ? -de quatro milhões de mortos.
Entre nós mmbéan etistem zonas de rombrn mt'oomacional. Assim, quando rebentou Maio de 68 nenhum jornal dispunha de antenas onde se passava/forjava a acção, isto é, nos <<grupúsculos» marginais ~e estudantes revolucionários, e foi preciso este vosso criado para lmfo:nmrar, em Le Monde, ooeroa do qllle se passava (1). Nas fábricas, nas empresas, nos escritórios, nos subsolos da sociedade, a informação não possui rede nervosa (foi em parte nessa zona de sombra que se instalou o Libération) e é atraVIés de «mergulhos» esporádicos, aqui ou ali, qrue se sabe ou ju.l®a saber o que se lá passa.
À subinformação junta-se a informação-ficção. Entre nós, esta encontro-se ci.roul!lJoorita a algurus sootores ou jornais polé.micos 0111 fantasistas. Em contrapartida, impera nos países em que se enclausura e anestesia o informador estrangeiro. Fiquei ex•tremamente impressionado com um acontecimento menor aquando da histórica visita de Nixou à China. Em dado momento o presidente americano, seguido dos jornalistas, atravessa o jardim de um pagode onde existe um lago.
(I) •La commune étudiante», Le Monde, de 17, 18, 20 e 21 de Maio de 1968, texto reproduzido em La Breche, por Edgar Morin, Claude Lefort e Cornélius Ca~toriadis, ed. Fayard, 1968 . .
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Neste cenário encantador vêem-se crianças que lançam barquinhos à água e parzinhos de adolescentes sentados, de mãos da_das, ~ escu.tar transistores. Raparigas .transportam flor~s. O ·~rupo presidencial detxa este espectáculo idílico depois de. os Jornalistas. ti~arem numerosas fotografias. Um fotógra!o vo!ta atras. pouco depo1~, a pr?cur~ de um acessório esquecido. Ve entao que mstrutores saidos n!nguem sabe donde reuniram as crianças e os adolescentes, que estao forma~os. Todos entregam o seu baroo, o seu •tmaalSistor e as suas ~ores ao mstrutor que, terminada a colheita, apita para dar a partida em passo cadenciado.
Na era estaliniana a encenação proporcionava por toda a pa~e 0 espeotáculo da unanimidade, da adesão entusiasta, da ~nstruçao do socialismo, da felicidade em marcha_. Toda a. gente sabia que ~ra vital para si nunca informar o estrangeiro, mentir-I?e sempre. Assim, a minha amiga O., que ia muitas vezes à Polórua an!es de 1956, regressava sempre eufórica com as palavras dos seu~ _amigos d: yarsóvia, elogiando os progressos, a liberdade e _a fel!~Idade socia~Ista. Quando se arriscava a fazer alguma observaç~o cnti~a. redargmam-lhe com azedume e demonstravam-lhe que a. tdeologta pequeno-burguesa lhe deformava a visão. Voltou lá depo~s do «Outubro polaco• de 1956 e os mesmos amigos, com a língua fmalmente so~ta, desabafaram a sua repugnância e o se~ horror pel?s tempos radiosos. ~Mas porque não me preveniram entao ?» Exphcaram-.~he q~ nao se podiam arriscar a ferir os seus sentimentos progressistas. Como n_os diz 0 imolvidáivel po0011a de Wajyck, e5Crito em. 1955, segundo ~o, ou em princípios de 1956, o socialismo cons·egum transformar a agua do mar em limonada. Nas praias, as multidões be?em·na e exclamam deslumbradas: «Limonada! Limonada!» E vomztam_. _ .
Lembro-me doutra anedota. Em 1957 ou 195~, Já. nao sei, um~ jovem comunista de Bordéus estudava Russo na Umversrdade de Lemnegrado e fora adoptada por um grupo de estudantes. russos. Emb_ora permanecesse entusiasta, notava às vezes constrangimentos, coisas absurdas e atitudes duras no admirável siste~a_- Todas as ,v~zes o grupo amigo protestava e atribuía as suas cnticas. a resqmcws de mentalidade capitalista. Passados nove m_eses, _um dia, dur~nt_e uma refeição nova observação crítica, nova discussao, mas ?e subito um dos amigos pergunta aos outros: <<Dizemos-lhe?» D~J?OlS d_a ~pr?v~-
- grupo declara à J·ovem militante que as suas cntJcas sao msJgnJ-çao, o .1 · d · •~~a fiJCootes e superficia.is, que el:es .pens·am rm ve~ . p1or o SISlM!u •
Assim os seus amigos íntimos tinham-lhe expn':udo durante _nov_e meses 'uma Viendade oili.cial que cQil!Si,demvaan mentu.ra. Uma vez ~tuLda a JlJOVa- e verd,adeina- amimde, most::anam~lhe ,teX/tos OOJllad à mão entre os quais um texto da revista Arguments que eu d~~gia então. De regresso a Bordéus, a estudante procurou-nos e informou-nos desta história.
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. O provincíanozinho do Ocident · 9umtadas artimanhas do Oriente, e ~· Ignorant~ das grandiosas e re-~paz de conceber a profundidade d peque~o mtel~c~ual de esquerda deiXar de se sentir logrados e estu a f mentira estalimana, não podem encenações que vou evocar. pe actos com as duas grandiosas
A primeira diz respeito ao mass d floresta do Leste da PoJónia d acre e Katyn, realizado numa os nazis ocuparam a região at !lr~I_lte a II Guerra Mundial. Quando de uma vala os corpos de 'mil~a~:s em ~~r. dos Russos, exumaram atribuíram o massacre à URSS O G de oficiais e soldados polacos e dres <:ol1tou então as relações d" I oy~rno polaco no exílio em Lono acontecimento chegou-nos muit:; ~::~Icas com .a URSS. Na 6poca para nós evidentemente secund, . ado, perdido no meio doutros hi I · ano no moment •
t ~nana ameaçava vitalmente o <:ora ão d Uo em que ~ Alemanha ~çao encarreguei-me de or anizar u ç a . ~- Depois da Libernanos)) e a embaixada sog. 't" fma exposiçao sobre ·<<crimes hitJe-
b . v1e Ica orneceu-me ~o, re a ongem nazi do massacre de ?m enorme processo mumeros camponeses da ·- C Katy_n, mil vezes atestada por
regmo. ompreend~a se • 0 em causa não era a realidade d · porque. que estava afirrma.do e oonfinmado :pelas duas
0 ~!!acre de :Katyn, amplamente dade do massacre, que cada uma . atri ,an.~golllJStas, era a paremia~bas as teses (quero dizer . se nos ati~eUia a ~:mtra. ~bj~ctivamente, mmadorajliquidadora nazi ou t r . nnos a potencialidade exter~omeciam informações e testem:h~~n~:a) era~ plausíveis. Ambas e que uma era falsa: se a Polónia fo d q:uantidade. ~as a verdade duas potências, era impossível ue ~a ommada sucessiv~mente pelas massacrados duas vezes. Pelo u~ me ~_mesmo~ polaco~ tivessem sido estabelecida em 1945 . q . IZ respeito, a mmha convicção F
, manteve-se ma1terra.<La di . • oram precisos os anos de 1955-195 manJte_ mUJoo tempo.
d_? próp_rio Pamido Operário Unificad~ ~ara que par~Isse ~as esferas sao nazi: Katyn era obra dos R o aco a confirmaçao da verestada em Varsóvia, nas derrad u_ssos. ~laro que aquando da minha em princípios de 1957 me dei eira~ c amas do «Outubro polaco>> autenticação da versão, estalinianaa~ ;ab~Iho (dado o meu papel n~ absolutamente convencida) de ti"ra mmhal_estupefacção ainda não
E l o r o caso a Impo So b 1' d" que sta me metera no Gulag toda a d. - . ~ e a em Isso ~olaco, vítima mais do estalinismo do Ire~~a~ do P~rtido Comunista fmal~ente a espantosa e incrível verrl a . o fascismo, e descobri exercia o poder o estalinismo mat a e .. por t~d~ a parte onde nazismo. ara mais estalmistas do que 0
O segundo exemplo é a gu b . . da Coreia os Chineses anoociar:~a actenológic~. Durante a guerra território norte-coreano bombas che _que dos ~m~r~canos :ança vam em rações de testemunhas oculares e das 't~ mic~obiOs. Inumeras declaprensa, à rádio e à televisão e VI Imas oram fornecidas à im-
, e numerosas bombas foram recolhidas
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c exibidas. Sábios estrangeiros de grande renome e alta probidade foram convidados para os laboratórios, onde puderam ver ao microscópio o fervilhar imundo. O correspondente de guerra do Népszabadsàg, jornal do Partido Comooista Húngaro, decidiu dedicar-se à difusão da verdade, procedeu a unia investigação aprofundada e publicou um livro sobre a guerra bacteriológica americana, que foi traduzido em todas as democracias populares e em diversos países capitalistas.
Passados alguns anos esse jornalista voltou a Pequim. A guerra da Coreia terminara. Pairava no ar uma Primavera de «Cem Flores» abriam-se bocas, os gigantescos saltos em frente ainda se não perfi: lavam no horizonte. O jornalista, ainda empolgado pela justa causa, falou da guerra bacter:iruógioa. Mosm-ocarrn-oo ev:asivos, sorriram-lhe amigavelmente e depois, dada a sua insistência, revelaram-lhe que nunca houvera guerra bacteriológica. Houvera decerto testemunhos, bombas, micróbios, mas os testemunhos eram forçados, as bombas não eram bacteriológicas e os micróbios provinham de cadáveres em decomposição. Depois da «Revolução húngara», esse jornalista saiu da Hungria e do partido. Encontrei-o muitas vezes. Contou-me esta história . . . e creio que a escreveu.
Depois, entre outros, houve o caso admirável do Governo Provisório do Vietname do Sul, governo de união nacional que conduzia a luta oontna a ocupação amerwall1Ja e os seUJS oolaborradores saigoneses. A existência e a acção desse governo eram indpbitáveis e os nossos mais eminentes jornalistas, de Olivier Todd a Jean Lacoutlire, sentiam-se impressionados com a sua autonomia em relação ao Vietname do Norte. Ora, logo após a derrota americana e a tomada de Saigão, esse governo desapareceu. Tal como em Os Contos da Lua Vaga o espectro de uma mulher aparentemente carnal vive ·vários a:nos com o seu ingénuo esposo, também o Governo Provisório, se era efectivamente provisório, não era um governo: era um fantasma !
Estas anedotas ilustram a dificuldade da informação em primeira mão junto dos próprios actores da realidade que queremos conhecer. Julgamos ser testemunhas e somos joguete de uma máquina inaudita destinada aos media. E são os progressos no sistema de informação -precisamente nos media- que permitem e suscitam um formidável progresso na encenação da vida social e política, o que ilustra o episódio NuXIOill que citei. A ;pall1iLr daí já se não tpade ver o que se passa, porque o sistema camufla a verdadeira informação, e o medo que inspira obriga cada um a dizer o que deve dizer. Aterrorizados e aterrorizantes cooperam assim, de forma vital para cada um, na comédia que se pode ver por toda a parte, quer mediaticamente, que directamente. Visitar um país ? Viajar ? Pior: todos os visitantes da China nos anos sessenta, da direita à esquerda, todos os autores de artigos e de livros, com excepção de Simon Leys, viram e descre-
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ve_r~m a fé Ulllânim~ em Mao, as comunas-modelo, o entusiasmo indescntt~e~. a sabedona profunda. a audácia admirável, os resultados prodtgtOSOS.
Não se vê o que_ ~· ~ê-s~ ? que não é, e assim o que é não é (trata-se de uma «caluma IgtiObil») e o que não é é: os pseudofactos proclamam a sua verdade (pela boca dos porta-vozes, dos actores forçados); confessam (pela boca dos acusados).
Assim, o sistema estaliniano publicava e radiodifundia in extenso o_ relato dos proccessos de Moscovo, e sem dúvida os transmitiria em dtrecto se a t~levisão já existisse. Como saber, do exterior, candidamente, o que e ver<!ade? Como não acreditar que a verdade es,tá do lado das proclamaçoes e das confissões unânimes ?
Reflictam?s um pouco, retrospectivamente, sobre os processos de M~o: os ~·-membros da velha goorda bolohevruqcwe, an.tigos compa~eiros de Lénm~, 5onfessar_am publicamente a sua traição perante o tnbunal. As conftssoes constituem uma prova empírica e lógica evidente: _um acusado q~e confessa o seu crime é autor dele, a menos que ~eJa louco. A htpótes~ da loucura está excluída quando todos os reus confessam e confumam as perversidades uns dos outros. Ao mesmo _tempo, ? luxo e a precisão dos pormenores concretos com _os quais os traidores descrevem as suas missões de sabotagem e espionagem conferem aos seus depoimentos altíssima verosimilhança.
, _Claro que é perturbante que a maioria dos companheiros de Lerune se lt.enham ~_?miado em S<~Jbotadores e espiões. Mas tendo em ~onta qu~ as conftssoes o provam, uma racionalização a posteríori explicará logtcamente a sua degradação (àqueles a quem não satisfaça a s~rpreendente explicação da traição original dos dirigentes da Revolu~ao de Outu~ro)_: _é a lógica do desvio e a lógica da lUJta que em p_enodo rev?luc1onano arrastam qualquer oposição para a sua próJ?na corru~a<? e, a torna~ permeável _à corrupção estrangeira. Bnfim, o próp~to mcnv_el contnbm para o cnvel: não se pode inventar se~~~hant~ C?Isa ! Ass~m. os processos são verídicos, não só para a o~m~ao publica comumsta, como também para boa parte da opinião publica uburg_uesa~ (que vê ~eles, sem dúvida, alguns excessos, mas eslavos, dostOievskianos, vychmskianos).
E no ent_anto ~udo isso é falso, como o demonstraram oportunamente T~otsk1 e VIctor Serge (tal como a falsidade das confissões de Rark foi dem.onstrada em 1948 ou 1949 por François Fejto, num artigo de E~pnt que me marcou definitivamente). Para proceder à sua dem?nstraç~<? :teve de pôr em evidência pequenas contradições, pequenas ~mposstb!ltdades de facto nas confissões. Esses pormenores pouco c_onststent~s t?r~avam-,se_ decisivos assim que se insistia na impossibilidade ps1cologrca e. logtca de quase todos os velhos bolcheviques se poderem ter convertrdo em ,traidores e espiões.
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Mas se os processos estão viciados, se as confissões são extorquidas (por meio de tortura ? De ameaças ? De promessas ?), então a sua racionalidade parece desmoronar-se. São obra não da lógica judiciária moderna, mas sim da lá®ica !iatqu.isiJtoria.I, q'llle arrancava por meio da tortura a confissão de possessão demoníaca. Ora é isso mesmo que parece abSiurdo e inverosímil por parte de um partido que diz perfilhar uma doutrina científica, racional, materiali&ta, e de um Estado que pretende ser socialista. Isso só poderia ter sentido se o socialismo sovi&iro oouJrtru;re 'liiiil podetr baseado no Tle:l1rof e na Sacralidade, se o marxismo-leninismo escondesse de facto uma lógica teol~-rnágiJOa. Desde logo, as oopwmções pmmicadas no partido e no eXJéroüto, se enfraqueciam efeotivwnenrt:e as oompetências políitioas de um e as competências militares do outro, reforçavam ao mesmo tempo o Terror e a Sacralidade do poder.
Devia-se portanto considerar que o sistema soviético era o contrário do que pretendia ser. Ora, nem os fiéis nem os espíritos cartesianos do Ocidente podiam coiiCeber uma inversão tão grande da sua visão do mundo. Em matéria processual, a sua referência era ou o tribunal da Europa liberal ou o tribunal revolucionário de saJvação pública, e não o tribunal medieval que julgava os templários. A sua visão da URSS era a de uma sociedade sem classes, decerto espartana e disciplinada, mas não de um novo despotismo. Finalmente, se parecia absurdo que os réus fossem culpados, parecia não menos absurdo · que o não fossem, e neste double bínd de irracionalidade a única;;:oisa tangível continuava a ser as confissões.
E como~ nesse período tenso, qualquer crítica contra a URSS poderia parecer, na lógica antifascista maniqueísta, um apoio uob~ectivo» a Hirtler, esse antifaooismo leViaVJa, senão a aoreditaJr oo IIIleiDJI:ira, pelo menos a duvidar da verdade.
De qualquer modo, para compreender o que se passara seria necessário dispor sobre a URSS dos anos de 1935-1937, sobre a vida real do Kremlin, sobre a verdadeira natureza de Estáline (cuja bondade espantosa só era igualada pela modéstia) e sobre as condições em que eram extorquidas as confissões, informações verídicas encerradas nas masmorras e nos gulags. Em contrapartida imperava a lenda, através das informações oficiais e dos relatos de viajantes. Claro que a verdade era sugerida indirectamente pela linguagem ritual, irnjuriosa, delirante da denúncia estaliniana, e era possível, a partir daJS fulhas e das tÍ!l1JCOOrêooiras das oond'issões, a partir de wonnações autênticas, tecer uma rede empírico-lógica susceptível de permitir compreender o que se passava psicológica, sociológica e historic~mente. Os informadores autênticos, que conheciam por dentro o umverso estalmiano porque tinham participado na aventura bolchevico-comintemiana, falavam de experiência. Mas essa experiência era precisamente o que lhes valia serem identificados com os traidores dos
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p~ocessos. D~sconfiava-se exaotamente das testemunhas dignas de crédito, denu~ciadas . como _hitler~:Hrotskistas ou na melhor das hipóteses como uantlcomumstas VIsceraiS».
~pois, com as reabilitações e as revelações do relatório K. (especia~mente sobre o emprego da tortura na URSS), a verdade veio ao de Cima. E desde ~1111:ão é a amplitude da mentira que causa problemas: ~o~ que motivo o comunismo estaliniano necessitou de produzir mmterruptamente falsa informação ?
Para tentar compreendê-lo originariamente é necessário compr~nder que toda a fé_ vir?lenta suscita o fabrico de falsidades para a. J/lillpülf 'aOS olhos d~s m<?Tédulos. Neste sentido, menJte-se por «~S~incend~e», mas essa smcendade não passa da parte emersa de algo ma~s comple~o que inclui o recalcamento das próprias dúvidas. Toda a fe (voltarei ~~ assunto no capÍitulo ((Que crer? Que fazer?») comporta a sua duvida recalcada, a sua potencialidade de hipocrisia que ~uz a ~ em !toda a boa-llllá :tié. Mas são ãm,dis,pensá.veis ~çoes especiais palfa q:ue a, :tié ,produza falsidades. iE,s;g,as oondições são os ~OII11~ em que a ifie passa por ruma ex.periência mteniOif critica. Assim, e no. m?mento em q.ue se desmorona a promessa messiânica do regresso 1mmente de Cnsto que se multiplicam as falsidades de todas as. ordens_ que atestam a dilivillndade de Jesus. Diviniza-se Cristo 9u~do_ Já ~e nao espera o seu regresso. A isso juntam-se as falsidades ~stl!uciOnals, como a falsa doação de Constantino que estabelece os drre1tos soberanos dos papas sobre Roma.
Não é menos notável que haja ainda maior necessidade de falsidades pa.ra OOil/Vencer do satanismo do mim.iJgo. Bm meados do século passado uma repartição vat~cru;ta exibiu uma mensagem assinada por Satanás encontrada nas algibeiras de um franco-mação. Trata-se do mesmo processo mental que produziu os Protocolos dos Sábios do Sião em que_ uma ass~mb~eia judaica suprema promulga o seu plano d~ corrupçao e dommaçao do mundo.
Estou .ii'l~namente convencido de que a grandiosa fábrica de falsidades estalm~ana tem na origem o mesmo tipo de causas. Foi no mom_<:_nt? em que se tom'?u. evi~ente, que se não cumprira a mensagem mes_s1a:mca de Mar~ e Lénme, Isto e, o advento do comunismo internaci?n~l e da sociedade sem classes, que se edificou a teoria do «S0~1~.hsmo num só J?.aís». ~ que se difundiu a imagem do uparaíso SOCialista». Desde entao, m~nterruptamente, a informação é dedicada a descrever o~ progressos mcessantes desse socialismo ideal, e tudo o que_ contradiga ou negue esse progresso é levado à conta de neo-satm~o, que 111a época de Estáline adquire o aspeoto de ·«ihitle:ro:tr~ts.~I~mo>>. A p~rtir daí, co~o na Idade Média, grandes encenações JUdicmr~as produzuam as confissões dos agentes diabólicos infiltrados no partido, por vezes nas suas cúpulas, o que é de fraca lógica racional, mas de alta lógica mágico-religiosa. O inimigo satânico, como na
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v cristã, está sempre prestes a sair vitorioso, mas as suas horrí':eis 111nquinações também estão sempre votadas ao malo_gro . Assim, quanto mais o imperialismo recua e se afunda, t~~t~ ~ais ameaçador
t ma e tanlto mais importa não afrouxar a v1grlancm. Actualmente, o Leste, russo e chinês, continua a alimentar o seu
rn lto e a produzir a sua lenda. Mas aqui, do exterior, já quase lhe n sofremos a fascinação. Não porque nos tenhamos tomado por nós próprios mais lúcidos, mas sim porque os aco~tecime.nt?s interno~, M URSS desde 1956 e na China desde 1973, tiveram virtude desi-
ncbriante. No entanto ainda não vemos claro. A noiJte informaciona1 con-
tinua a cobrir ~s dois Espaços gigantescos, tal como cobre o Vietn me, o Camboja e outros. E nós permanecemos aqui expostos ao perigo informacional. Sofremos ainda de subinformação e de pseudo-·in,formação. _
Por toda a parte onde os media fornecem uma representaçao teatral da realidade, a informação esconde-se e cala-se. Pode, por acaso, murmurar-se ao ouvido, em conversa intima. Tem de se ir procurá-la nas catacumbas, entre boatos e fantasmas. Não há teste p.r6vio ;paro ,reconhecer 1a boa e a má inforJ?l~~ão, a v~ e a falsa. Saber ler, ver e discernir equivale a um dificll e aleattóno esforço de decifração e não a possuir-se uma capacidade verificadora como a dos aparelhos que detectam as notas de banco falsas.
, O poder da informação
Que é a informação ? Um acontecimento que se reproduz regularmente e que pode ser previs!l:o com certa 7erteza, <:_orno o nascer quotidiano do Sol, não nos fomece qualquer mforn:taçao. O que depende do já sabido, do já conhecido, ?o já garant:do; é, segundo o termo da teoria da inf01f1Il1ação sharunOIIlíLMla, redundancza. Um aoorutecimento portador da informação é_ um 3:oont~cimento que, ?u P~ termo a uma incerteza, OIU traz novidade, Isto e, surpresa. Assim,_ sao portadores de informação, por um la~o. os resuLtados das corr~s, as competições desportivas e os sorteiOS, e por ~utro lado a t~aiçao e morte de Lin Piao a tomada como reféns de diplomatas amencanos e o rapto do juiz U;so. A informaç~? que re~olve um~ incerteza JX?d~ eliminar uma inquietação e tranquihzar. A mformaçao que _constltw uma surpresa pode pelo contrário inquict.~r e provocar a mrerteza sobre a nossa aptidão para conceber a .reah?ade. Compreende-s~ que o controlo total:iJtário da infull'Jilação se dediq•ue a ceilJS•UraT as. ~formações que inquietam e a fornecer as informações que tr~nqml1za~ .
Tudo o que não é redundância não é forçosamente mformaça_o. Inúmeros acontecimenttos não têm interesse para nós e porta111to nao
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lhe concedemos nenhuma aten ão A . . . seuntes caminham sem que o ~eu. ol~stm, n; rua a maiOna dos tran-e nos automóveis com que se cruza;r ;e txe nas pesso~s. nos cães surgem em desordem, sem signific d . odo~ os a~tec!JIIlentos que oaJão da teoria sha!OO()tni~aoo 'd a Aso para nos: constituem, ainda no
ulh- ..1-- , ruz os. ll1JOISSaS VÚJdJaJS . •~ . 8 ~ .nu:m u:rruído de fundo furvtilh de ~Dw.aiiD·se melf-
oatlltes que não ooedem à ~· _ · lêllf i3JOOI1JI:eoJrntos in&ignifi-~tJudo, o que .é o:ruído» . ~çao e aJté ~Uifba·~ a lfe>eepção. e VJCe-versa. AJSisi!ID,
0 ,res~ das =~r .1nfoll1IIlaç_ao . pa~a outro,
o !lipostador, não passa de «f!llí.do» . . _. inf0111l1Jaçao oopttal para do BalllJglrulesh, do malira e do c=· o r:ao-31postado:r. Os desastlfes fundo para aqueles que se mtJeressam : = a pena5 va~ ruídos de ou pelo resultado das ·---=..1 P pelas rotaçoes da bolsa
UM~auas.
- Todas as manhãs a rádio e os ·om . - . çoes. Previamente eliminaram t' . J ats nos dao as suas mforma-cesto dos papéis, nele se dissolv~~tcms m~ores ~~· atiradas para o confirmações que lhes areceram r em rm os. Elu~maram igualmente tempo deixa-se de co~irm!l!f . ~oodantes. Asstm, passado algum sorte dos reféns de Teerão dtana~ente o estado estacionário da belece a informação. ' mas qua quer nova eveDJtualidade resta-
Há informações «fracas» que forn . _
Evel e do provável, como a vitÓria eleitor:f~~ ::J~:t~ç~o do prl evdisí
m contrapartida a informa - . em co oca o. o lugar. ' çao torna-se forte se o outsider obtém
A informação pode ser não só forte , . mação rica contém novidade o . ' mas t~mbém nca. A infor-Assim, as informações fortes ~ ri~ s~~a, algo ~esperado, surpresa. tecimentos extraordinários, que no ao pro~rCtOIIl~d~s pelos acondarem, como o pacto german s. p~rec~m tmposstvets antes de se ao Porto das Pérolas, o relató~~o~t·et~co. _e ~39, o ataqu~ japonês de 68, a prisão do o:band d ., ctsao OSC<?Vo-Peqmm, Maio Verão de 1980. o os quatro» e o movtmento polaco do
A informação dispõe de um . . imensa tanto para a acção como a energta potencial que pode ser para o pensamento Qualquer ooção illloertajaleart:ór.ia nooessilta d ' . , .
esta deve necessariamente alimentar-se de . f e _u:ma estr~eg!Ja ,. ~ tar procum informar-se dos re arati m o~açoes. A acçao mihdo inimigo e precisa de oc~l~ . vos, dos ,m~IOs e dos movimentos meio de um cód' ~ as suas propnas comunicações por
Igo secreto. Assim a mensa . ád ' ~on~os dos violinos do Outono»,' de 5 de g~m Vta r IO «OS, solu~os indica aos resistentes franceses u unho ?e 1944 a nOite, para o dia seguinte e permite-l~e~ â desem:arqu~ al~a~o está previsto própria luta armada. esenca ear sincromcamente a sua
O valor da informação acerca d ofensiva miHtar é de tal ord 0 mo~ento e do local de uma em que os serviços secretos do a tacante
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esforçam por intoxicar, por meio de falsas informações secretas. serviços secretos inimigos, os quais se esforçam por descobrir a
.nr rmação ·«verdadeira» entre as falsas. No fim de con:tas, muitas vezes a informação verídica é totalmente submersa pelas informações fulsas. Assim, a informação fornecida por Sorge a Estaline, do ataque nl mão de Junho de 1941, foi incapaz de pôr termo à incerteza ou de bcliscM a falsa certeza do destinatário, obtuso ou iludido.
A guerra informacional tornou-se parte integrante e essencial da guerra propriamente dita, no século XX. Os beligerantes estendem a zona do segredo militar ao conjunto das informações civis. P roduzem lll1formações de guerra que suscitam e mantêm a fé na vitória e o ódio ao inimigo (sempre apresentado como agressor, sempre culpado de~ e a.trooidades).
Informação e ideologia
A nossa relação com o mundo exterior passa não só pelos media informacionais, mas também pelos nossos sistemas de ideias, que recebem, filtram e triam o que nos fornecem os media. Quando não temos opinião formada ou preconceito prévio, somos extremamente abertos às informações. Quando não possuímos estrutura mental ou ideológica capaz de a assimilar ou ~nscrever, a mformação transfor-
ma-se em ruído. ; Em contrapartida, quando dispomos de ideias firmes e definitivas.
somos IDJUito acolhedores para todas as informações que as confirmem, mas muitíssimo desconfiados para com as que as contrariem.
Mais ainda, somo capazes de resistir às informações não conformes com a nossa ideologia, recebendo essas informações niío como informações, mas sim como logros ou mentiras.
Como oo sabe há muito ·tempo. maiS se está Slei!11Jpre a esquecer, os espíritos individuais (e por seu intermédio as !ideologias ooleotiiVas) são rmuri!to C!lipaze>S de resistilf aos media quando estes difun.de!ID não só ideias, mas também informações contrárias às suas convicções e crenças profundas. Assim, os filmes de actualidades e as emissões de rádio da ocupação alemã tiveram influência quase nula sobre as opiniões e as esperanças dos Franceses. Estes viam apenas mistificação nas enormes massas de prisioneiros e nas destruições de tanques russos apresentadas nos écrans. Ainda mais: a partir do Outolllo de 1940 imperou entre a opinião pública francesa uma informação-mito, embora nunca tenha sido confirmada pela rádio inglesa: o malogro do desembarque alemão em Inglaterra. No momento em que a esquadra alemã se preparava para o desembarque, os Ingleses tinham largado fogo ao mazute que haviam espalhado no mar e provocado o
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Os nossos si~temas men~is filtram a informação: ignoramos, censuramos, repudiamos e desmtegramos o que não queremos saber. Os Alemães que quiserom ignorarr- a existência dos campos nazüs ignoraram-na, e em 1945 as populações alemãs receberam como mentiras de propaganda as imagens e os relatos dos campos da morte· os F:nmceses que qll!iJsemm ÍBJlliOrar a ·toi1tlum oo hgélia ignor~-«J.a. Durante um ~no _implorei à minha amiga C. que lesse O Arquipélago do Gulag. Nao tmha tempo, mas encontrava vagar para ler Guattari e Lacan.
Deste modo, consegue-se não ver o que toda a gente vê, deixa-se de_ ver _o que se continua a ver (saturação) ou olha-se para outra coisa (diversao), mesmo quando temos todas as informações à nossa disposiçã?. Quase P?rle~a formular esta lei psicosocial: uma convicção bem firme destrói a mformação que a desmente.
Seria preciso todo um livro para mostrar como se consegue não ver nem saber. Com · efeito, o que actua em nós, ao mesmo tempo o?scuram~nt~ e :xtra-lu~idamente, é a vontade de impedir a informaçao de atmgir a tdeologm. Então, afasta a informação, isto é, afasta-se dela. A ideologia faz explodir a informação ~«Atoarda ! Mentira ! Calúnia ! ») para que a informação não a faça explodir.
Que é uma ideologia do pooto de vista informacional ? É um sistema de ideias feito para controla:r, acolher e recusar a informação. Se a ideologia é teoria, está em princípio aberta à informação não conforme, que a pode pôr em causa. Se é doutrina, está em princípio fechada a qualquer informação não conforme. A ideologia política é muito mais doutrina do que teoria. Aqui chegamos a este problema capi,tJa~: a relação repulsiva e potencialmente desintegradora entre inf~rmação e ideo_logia ~olítica. ·É por a :imfoi11llação ser llliiil explosivo virtual para a Ideologia que esta necessita de manter uma relação opressiva e repressiva no tocante à informação. . U~a informação forte pode abrir brecha num ponto fraco da Ideologia e provocar eventualmente a desintegração parcial ou total de todo o sistema de ideias. Assim, o pacto germano-soviético de 1939, isto é, a súbita aliança entre os dois inimigos mortais, comunismo e nazismo, contradiz o carácter absolutamente antifascista atribuído à URSS, quando os países capitalistas ocidentais, acusados de complacência para com o nazismo, entravam em guerra contra a Alemanha. Daí a perturbação verificada entre numerosos comunistas e simpatizantes, e para alguns a desagregação da sua crença. Mas entre a grande maioria a ideologia encontrou uma posição de retracção ~torno do 'Ilúcloo duro, que .não é o •a:nJI:.ifascismo, mas sim o anJticapitahsmo e a natureza intrinsecamente proletária de tudo o que faz a URSS. Assim, a URSS tem o dimeito de oonoLuiã todoo oo pactos sem nuoca alterar a sua oot,ureza emandpadora, e não tem liliOOhfll!lll privi-
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·1 gio a conceder aos países o"n . .v ... lats, visto não existir diferença ubstancial entre fascismo e capitalismo. Aliás, os países ocidentais slavam prestes a entender-se com Hitler e Estáline frustou-lhe~ a
manobra. O paoto germano-soviético suxge então como uma medida de defesa vital ou uma manobra genial. Recorre-se portanto a um di positivo imunológico para neutralizar a informação, atenuá-la, ne-
á-la, invertê-la. E a maioria dos fiéis manteve-se fiel. Dezassete anos mais tarde a URSS interviillha na Hungria para
esmagar uma insurreição nacional~ A classe operária revoltara-se c ntra o «partido da classe operária» e o Exército «soviético» esmagava os sovietes de Budapeste. Esta collltradiçã? trazida pelo. ac?nte-imento à ideologia era potencialmente explosiva e podia atmgir no
seu cerne o princípio justificador da URSS. Efectivamente, houve defecções, mas pouco numerosas. A ideologia conseg.uiu proteger o seu núcleo: a revolta dos operários húngaros fora desvirtuada, perve~tida e subvertida peJa acção do imperialismo; ~ ~surreição. tend~a inevitavelmente para o restabelecimento do capitalismo,. pms fa~Ia perder ao partido da classe operária o seu JZoder, monopolista. Asstm. a informação transmudou-se e a «revoluçao hungar~» con':erteu:se em contra--revolução. Mas em dada altura- aoontecimento maudito - a ideologia estaliniana viu-se obrigada. ~ admitir a inf?rmação respeitante aos crimes e aos massacres estahm~nos, porq~e. a mformação emanava da autoridade suprema do partido. E assisin!'-se a ~ste fenómeno espantoso: o próprio part.ido a travar, retardar, destilar gota a gota, e em certos ca:sos (o ~:3Jl'ltido ~UJD.ista Flf~ncês) censurar pura e simplesmente a mformaçao provemente da sua cupu~a. Era uma maneira de a máquina ideológica amortecer e por fim sufooM' a reddaot:ividade desilllltegmme da linful1Jl1Jação. Esta, finalmente asseptiada, mscrevia-se num lugar secund~rio, qua~e epifenomenal, aoompanhada do seu alllltídotto: tOOSes onmes devtam-se ~s desvios pessoais de Estáline e não afectavam em ~ada a substâ~~la do socialismo a excelência do regime. e, melhor amda, a autocntica efectuada pr;vava de forma inoontestável a superiorida~e . do ~n~C? partido capaz de reconhecer os seus erros e de os corngir dehmtt-vamente.
Além disso, outra defesa é posta rapidamente em prática, silen-ciosa, irremediável: o recalcamento. As pessoas pensam no c~so o menos .possível e irr~tam-se quando o «inimigo» lho recorda: tal mformação faz demasiado bem o jogo .das forças mal~ficas e torna-s_e portanto suja. Deve-se atirá-la o mais depressa posstvel para os cai-xotes do lixo da História.
Deste modo, por mais impressionante que seja, o efeito da infor-mação desintegrante pode ser apenas local e t~mporário. ~elhor:. o sistema, de futuro aguerrido, poderá enfrentar amda com maiOr resistência o vírus pela primeira vez vencido.
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A abertura à informação
Não podemos abrir-nos completamente à informação. Um espírito sem ideias preconcebidas sofre, via os media, uma chuva incoerente de informações que se dissipam em ruídos. É indispeooável uma teoria que possa acolher a informação, isto é, que também a possa contestar. Mas essa ideologia, como acabamos de verificar, não se deve fleohar oobre si mesma, pois de contrário seríamos incapazes de receber a mais pequena lição do real e de acolher o novo.
Ora a virtude insubstituível da informação é a irrupção do real na idealidade, que há tendência para tomar pela realidade. É a irrupção do novo no sistema que tende a encerrar o mundo na sua própria regra e só pode ser contrariada pela novidade. Consequentemente, é de ter em coll!ta que o real e o novo irrompem sempre na teoria e na crença sob a forma de desregramento e ruptura. Lrrompem sempre numa racionadidade feohada sob a focma de irraciiOil.aHdade. E a vi.rtudre da áalfurmação é~= a sua ;aptidão para die&tnlti!r a racionalização (sistema de idcias coereTiite que rpoot.ende encenra.r em si o J.1e·aJ) e oriru:' uma racionalidade nova (novo sistema coerente que integra a informação). A informação constitui o antídoto da tendência natural da ideologia pall"a se dloohar em Sli tneS111a, isto é, da illelndêmcia da teoria para se fechar em doutrina e da doutrina se couraçar em dogma.
O acontecimento - a informação - deve ser capaz de nos enriquecer, de nos ·transformar. de nos converter, simplesmente por nos permitir ver o que nos era invisível, saber o que ignorávamos e admitir o que nos parecia incrível.
Os factos só falam por si mesmos quando lhes é permitido fala.T. Os sistemas de ideias são necessários para que os factos nos possam transmitir a sua mensagem. Mas são eles que, tornados ideologias fechadas, os fazem calar. Devemos portanto tentar o controlo duplo; devemos aceitar que o núcleo duro da nossa ideologia seja submetido ao controlo da informação, mas é necessário, reciprocamente, que a informação seja controlada pela racionalidade, isto é, pelo reourso conjunto à verificação empírica e à verificação lógica.
Claro que o recurso directo à verificação empírica não é muito possível na maioria dos casos. Mas a diversidade/concorrência das fontes de informação efectua por si mesma uma primeira verificação que permite a emissão de informações uveroadeiras» que cada fonte teria isoladamente interesse em abafar e autoriza a nossa verificação pessoal por meio de confrontação e concordância (é por isso que necessitamos de excesso de informações). O recurso à verificação lógica corre o risco de degenerar em racionalização, que é, como se verá cada vez melhor neste livro, a inimiga íntima da racionalidade. Devemos portanto realizar um circuito difícil, aleatório, mas vital,
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ti logia ---- - informação, em que estes dois termos se_ tor-1 t
n i rn complementares sem deixarem de permanecer antinómicos e antaonistas.
11 condições de prodnção da informação
Só há o médium e a mensagem; há, como já vimos, o receptor: I lá também os centros que produzem, escolhem, controlam e ~mandam a informação. O controlo desses centr?s de contr~lo susct~a u~ nr blema obsidiante: pode-se deixá-lo aos mteresses pnvados, tsto e, 1 co1111:rolo do dinheiro, ou deve-se submetê-lo ao controlo do Estado ?
Daí o dilema: imprensa do dinheiro ? Imprensa do Estado ? Examinemos a noção de u imprensa do dinheiro». À primeira vista
ignifica «imprensa para ganhar dinheiro» . Por:tanto im~rensa que 1 rata a informação como um produto comercial, seleccmnando a nformação rendível e eliminando a il11formação não rendível. Segundo
esse onütério, o ex1ira01'diJn.áJrio. o ,~uropreendoote, o _novo por ~ ~o, mas também o obsidiante, o apauwnante, o ador!lvel _e o odioso sao lltamente valorizados. Daí uma imprensa -«sensacionahsta», que escolhe e produz o que cria sensações. Por um lad?, a grande l.IDprensa llc informação que põe em relevo tudo o que ex~ste de surpreendente, tue deita mão in extre"!is_ ~ informaç_ã? da ú1ttma hor~;. pór outro~
u imprensa que conta histonas arquetipicas- amores . divmos, sagra dos-profanos entre olímpicos modernos (vedetas . de crne~a, cabeças coroadas, :etc.)- e que rpor :isso produz pserudo-wornnaçoes, submetendo-se às necessidades mitológicas.
A imprensa do dinheiro está porta.nto submeti~a a_ esta dupla t.ondênoia, e é a esta dluipla ltoodência que prooura .fiugtr a ~a _de opinião, que Vlende não mnto inful'mação como o en~e ideológtco da womna-ção, o que IJlOS reoondruz aos problemas al!l.Jte:noomenJt.e exam.i:nados da relação ideologi.ajÍ1lllfiOOIIlação.
À segunda vista a noção de «imprensa do dinheiro» significa não só «imprensa para ganhar dinheiro»,_ ':llas também imprensa que sele_cciona a informação consoante a utiltdade qu~ c?mporta ~ll_l relaç~o ao poder do dinheiro, ou _seja: ao sistem~ capitali_:-ta. Aqm Já se n_ao trata apenas de ganhar dmheiro com a ID:forll_laçao, trata-se tambem de submeter a informação ao poder do dinheuo.
Esta tendência desenvolve-se naturalmente na imprensa d: d_inheiro. Mas deve-se notar que se pode entl.'echocar com a ten~encta para «ganhar dinheiro». Com efeito, uma informação «sensa~ona~», que dá dinheiro, pode ser contrária ao interesse do p~er do d~het;o (escândalo financeiro), mas não pode ser morta, se existe concorrencta.
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Há porta~t~ ~a contradi~ão interna na imprensa de dinheiro, e essa OOO!tlradãçao, VJ:tal pam a :infunmação, só pode ser manrtida na e pela concorrência.
A concorrê~ia entre jornais, rádios e televisões, a concorrência ~e . fontes de mformação, dá oportunidades à informação que o dmheiro ou o Es~do querem abafar. Um jornal marginal começa a lançar a ~revelaçao»; torna-se então possível, e mais tarde ou mais cedo provaJVed, .que onde OOUlVe!t COiOCOII'.rência a ãmfurmação saü.a e se espalhe n~ COnJu~to dos medi~. Assim, foi no sistema mais capitalista, ~a! tambe~ mais concorrenciaJ em matéria de imprensa, rádio e teleVIsao- o Sistema amer~cano--:-, que os «escândalos» de My Lay e do ~atergate consegmram fmalmente invadir a vida política e ter os efeitos que. sabemo~. (O .massacre de My Lay deu-se em Março de 19~. ~ mformaçao fOI abafada no/pelo Ex·ército dos EUA. A obstmaçao de um jornalista acabou por a desvendar marginalmente. ~ Novembro- Dezembro de 1969 enoheu todos os jornais aanencanos).
. ~~ poc a . i~o.rmação valer dãnheiro qrue :fiJnaJmoote o próprio dinheiro contnbm para a difusão da informação cujo sentido contesta o poder do d.inheiro. Em contrap.artida, onde a informação não possui valor co~ercial, onde pode .funciOnar a censura, ou seja, onde existe mooopóho de Estado, a :mformação contestatária é expulsa dos media.
Assim, debaixo do problema imprensa do dinheiro/imprensa do Estado oculta-se outro que não o tapa inteiramente: concorrência/ /monopólio.
Para qrue haja concorrência tem de haver verdadeira pluralidade das fontes de informação. E é na e pela pluralidade das fontes que pode surgir a informação no que tem de perturbante.
Na realidade, pode haver concorrência no seio dos sistemas sob controlo do Estado quando institucional e socialmente existe relativa autonomia das fontes . Em França, os media do Estado estão inscritos num_ s.istema. ~e. concorrência que compreende a imprensa nacional, as rádiOs penfencas e as grandes agências internacionais. É necessário supercontrolar os media e fechar hermeticamente a sociedade para ocultar os grandes acontecimentos nacionais e internacionais. Mas mesmo nos países fechados informações estranhas infiltram-se através da propaga~ão das ondas de rádio. O planeta sofre mil coacções, mil censuras, ~rnl deformações locais e nacionais na informação, mas melhor. ou piOr, lentamente, dificilmente, a informação circula. A hegemoma das grandes agências anglo-saxónicas sobre par.te do globo contém em si mesma o an,tídoto contra o monopólio: a concorrência. Hoj~ a pluralidade,. a concorrência, é isso: o balão de oxigénio infor~ac~onal da humamdade - a concorrência das informações, a concorrencia das mensagens, a concorrência das ideias.
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luformação totalitária
Num sistema totalitário a informação não é apenas uma infor-11111 o de Estado, é oobretu.do uma DOii11lação de Estado totalÍ!tário.
seu caráoter próprio não reside somente em estar submetida à 1 nsura desse Estado - donde resuita a subinformação - reside tam
h 111 na conjunção entre a subinformação e a produção de pseudo-nformações que dão uma imagem ideal/lendária da sociedade.
Censura, camuflagem e encenação contribuem para criar um univ r ·o em que mil pseudo-informações louvam a excelência do sistema. , ' o as greves ou os motins que se silenciam e os conflitos internos quo se ocultam; os próprios acidentes ferroviários e de avião fo:r:am h tnidos da realidade soviética. Já não há histórias, e em última tná.lise já não há His.tória: o futuro é conhecido, está previsto e criado:
> progresso incessante no sentido da edificação do com~smo. Cria-se assim um universo mítico, amputado, embelecido, onde
j não existem informações no sentido em que o termo suscita surpresa, imprevisto, perturbação. Esse universo «irreal» faz par.te, no ntanto, da realidade que o produz e que sem ele, corno vamos ver, • desmoronaria.
Os ingénuos imaginam que a imagem e a propaganda são dotadas do omnipotência e julgam que o formidável dispositivo da informação totalitária convence aqueles que o suportam. Mas lá dentro a classe operária sabe que não .tem direito à greve, o direito de escolher os , us delegados, nem o seu sindicato. Pior, o efeito dt boomerang runcioo.a muit:as 'Vezes: assim, para os oobjugados do !ÍlllJterior a palavra
cialismo designa a má sociedade, e a palavra capitalism<;» a boa. I uvida-se aJté das informações autênticas quando são fornecidas pela r nte oficial. Duvida-se de êxitos econômicos reais, depois de tantas proclamações mentirosas. O sistema impõe o inverso da sua .visão d mundo, excepto quando esta coincide com o sentimento naciOnal. Assim, no tocante aos êxitos astronáuticos e desportivos, e mesmo no caso da ocupação da Checoslováquia e do Afeganistão, há readerência c readesão à informação oficial.
É caso para nos perguntarmos então onde está a verdadeira eficácia de um sistema tão pouco convincente, que comporta tantas falhas e efeitos de boornerang e que incita às escutas clandestinas, dando por si mesmo um prémio de veracidad~ às rádios estrangeiras. Na realidade a sua eficácia é enorme e pohvalente.
Em pri~eiro lugar convence o mundo exterior. É no exterior que dispõe de um poder de persuasão sobre amplíssimas esfer~s. A sua imagem lendária tem tido força de verdade d~ Holl~ood ~s minas de cobre chilenas, dos prémios Nobel- Langevm, Johot-Cune, Pau.Ling - raos ca:Ill!pon.eses gregos, do filósofo !l1a.Oionalista ~o J>!Ldre guerrilheiro. A URSS continua a assegurar a sua J.enda nao so na
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parte do mundo mais afastada d ' , . mas também entre grande parte âo~a~peais~ ~Amenca La-tina e África), e italianos. ranos e camponeses franceses
0 sistema informacional totalitár· d. -e!icácia interna. A primeira diz respeit;<: Is_po~ sobretudo de dupla -mformação. Para o compreender d a propna natureza da pseudowormação ,.,.., . • . d , . ' e vemos recordar-nos de que a
, ~ CiellOira as maqill'lnas se idemltii.f que lhe determina as acções No . 't IC~ oom o «programa» a informação mediática ide .ff SIS ema co~cebido pelo estalinismo programa; dita o que se de~; I~:;se c~m ~ · mforma_s:ão-J?rograma: é mais não seja para se não ter ab, sa . r, Izer e . nao dizer (quanto põe-se no conjunto das orrecimentos); dita a norma e imconhecimentos que control~~rmas, das regras, das proibições, dos indivíduos entre si e na socied:de~omandam os comportamentos dos
Assim, a lenda soviética ou ma , t d O socialismo real dá . OIS a esempenha papel-chave. que ela deve ser e obrfgan~r~a aos. ~omens reais. Ditta à realidade o A lenda serve assim para cor:::n~xis a m~scarar-se do que deve ser. de uma poderosíssima realidade. ar a realidade, e a ttal título dispõe
A segunda eficácia interna d t r · . respeito à subinformação. Esta temo ota ~ttnsr:;o mformacional diz explosiva da informação Com tod como unçao ~espoletar a força maneiras, o sistema, ape~ar de a os ~~seus ~ews_ e de diversas consegue inibindo, reprimindo inta;u.~ ·t or;açao nao ser ~redível, e asfixiando as informações , qu gi I Izan o, colma·tando, Isolando inibir vitoriosamente essa potenci:lida;suem I u~ potencial explosivo entre outras coisas, evi,tar qualquer co et ~xp osiva, ~ que Jhe permite, protesto ou revolta. n agJO a partir de um foco de
Inversamente logo qu ·r· . . . , e se ven Ica afrouxamento da ce mtcia-se um processo que se t d . nsura o sistema. No Verão de 1980o~aG~e: adeJramente subversivo para tempo possível o bloqueio telefónico de erno Polaco mant:ve o mais policial à volta da cidade O d. . . Gdansk. e o cordao sanitário
~~~~~~~~. ae:~~~~~~d~e â~e~~:as o~fr~~~t:;~iõ~~ni~â~~t~ia~~ ~~:i~~a~: mação circulava, e ; comunic~ç1~e,a~~~~o rarefeita e lenta, a ~nfor: entre operários mas ta b, , por se estabelecer, nao so
, m em entre os operanos e o resto da população.
da «~:it~a:~~~~~·P;ag~rincipa~mente os da «r~volução húngara» e ção pode provocar uma ~'es%~~ r:ami~os que a .libertação da informaessência do sistema. Paradoxal~enie ;~. cad~~~ q~ afecte a própria constante da informação aumenta Ih IsposJtiv? ~ despoletamento O potencial explosivo da inf -;-e a pote ·ncial!da~e explosiva. diminui quando é superabundo:::::.çao aumenta quando e rarefei·ta e
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A intJatngihiJimção de ltJudo o que diz respeüoo ao sistema e às 111 I n ias SUJpremas do poder fornece o poder explosivo do sacrilégio 1 qualquer ataque ao intangível. Em contrapartida, nos sistemas 1l11r t,li ~tas em que o poder é minimamente sacralizado, sistemas que 11 1 6 toleram a crítica, mas também vivem da critica, a virtude
1 I siva da informação política atenua-se por saturação e pode ir 11 extinção. Tem tão pouca importância estrelar um ovo na chama
du Arco do Triunfo como atirar maçãs podres a Giscard. Mas seria 11111 aoto de lesa-Revolução fazer uma omeleta no mausuléu de Lénine ou atirar frutos variados às condecorações de Brejnev.
Assim, o ponto mais forte do sistema, isto é , o seu dispositivo 1111' rmacional, é ao mesmo tempo o seu ponto mais fraco. A perda ti > poder informacional provoca a desintegração em cadeia do totalit tlismo. Claro que existem censuras mais ou menos apertadas, zonas I tolerância que são finalmente toleráveis ao sistema. Foi assim que
d pois de Estáline afrouxou a pressão sobre as artes- com a condi~ • evidentemente, de as obras não afectarem nem a ideologia nem 1 política. Mas o sistema encontra-se de tal modo assente na sua UUJto-OOIOI1a1ização, :v.iMe de tal modo do terror e do tabu qllle teme
obsessivamente que o mais leve esboço de dessacralização, de «destabuàzação», de deSitenrorização rprovoqllle ·Ulffi processo qllle lhe reja fatal.
u então, quando a dessacralização se torna inevitável, como a de l~stáline, ocasiona uma sacra1ização compensatória d'a direcção ' legial.
A apropriação mO!IlJOpoJista da informação não é UJma camoteristica secundária, constitui a pedra angular do poder totalitário. Este necessita da subinformação, da pseudo-informação e da contra-informação, não só para mascarar a sua verdadeira natureza, mas também patra 0\.lillliPfÜ a sua verdadeiro IJlJa•tureza. Sem a produção/reprodução pwmanente da lenda, 1Sieílll a filtragem, a repressão e a destruição da informação, o sistema não poderia penpetuar-se e reproduzir-se.
O sistema justifica o seu controlo da informação com o estado de guerra. Está em guerra contra a mentira, a calúnia, a ideologia capitalista. Sofre o cerco e a provocação imperialistas. Conduz até à sua concretização final a luta de classes, que nas últimas fases , nos derradeiros estremeções do inimigo, só se agravará. Efectivamente, a URSS sofirem durante decénios o «cerco capi.talista» , no qual porém oonsegu:i.u abr.ir brechas e mocodtuz.ir .oU!!1has. De facto, a ideologia da IUJta de classes é uma ideologia de combate que visa a vitória total do socialismo sobre um inimigo implacável. Mas hoje, que o tempo do cerco cessou há vários deoénios, isto é, desde que a era do Império começou, é singular que o si~tema informacional se mantenha em pé de guerra, interna e externamente, em plena paz.
É que o partido trava a sua guerra contra a sociedade que dirige. Trava efectivamente uma luta de classes contra as diversas classes
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sociais que constituem a nação, a fim de as impedir de comunicarem entre si, de se entenderem, e até de se coligarem. Trava uma guerra sem quavtel contra uma realidade social que de facto vive fora da lenda, sob a lenda. Mantém a aLta histeria da guerra, que intimida todos e esmaga no ovo, com a ajuda do NKVD, qualquer embrião de crítica ou de oposição.
Surge aqui a unidade profunda de combate e intimidação, em que o aparelho informacional, o aparelho policial e o aparelho militar desempenham conjuntamente o seu papel. Esses três aparelhos dependem do mesmo centro, o Partido/Estado, e têm por função conjunta manter a sua apropriação sobre toda a sociedade.
Assim, simultaneamente, o partido exprime a voz daqueles que oprime, oculta a realidade que escraviza, bem como a sua própria realidade, programa e produz um novo tipo de sociedade que, como veremos, ainda desafia os nossos meios de conhecimento e os nossos instrumentos de análise e faz tudo para impedir que se conheça e compreenda o que se passa nas sociedades chamadas socialistas, isto é, que se conheça e compreenda a sua verdadeira natureza.
Conclusão: Da necessária e insuficiente informação
1. O aparecimento e o desenvolvimento dos media estendeu sobre o planeta uma rede de informações que aumentou extraordinariamente as possibilidades de conhecimento do mundo e do seu futuro. É estranho que tenha sido o progresso da informação e do conhecimento que tenha provocado o progresso da deturpação e da ignorância. As potências ameaçadas ,pelo poder inoor.macional veiculado pelos media não tiveram outro remédio senão subjugá-los para os transformar em instrumentos de cegueira. Desde que apareceu, a fotografia suscitou as truoagens da «fotografia espi:rtilta», onde apatreeiiMil eSipeiCt!ros e fantasmas. A história estaliniana da URSS foi autenticada por fotografias trucadas donde desapareceram para sempre os rostos de Trotski, de Bucarine e doutros velhos bolcheviques condenados por Estáline. Não há nada mais enganador do que os inúmeros documentários rodados sobre a China, a Sibéria e Cuba, sob os auspícios da câmara-testemunha. Finalmente e sobretudo, os poderes que conltrolam a informação têm praticado sistematicamente a subinformação e produzido a pseudo-informação. Como se vê, o progresso da mentira no campo da informação é a resposta ao progresso potencial da verdade proporcionado pelo desenvolvimento dos media. A mentira progrediu porque os media permitem o progresso real.
2. A 11boa» informação dificilmente pode ser autenticada pelo receptor dos media. Nem a imagem nem o testemunho são em si mes-
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uw garantias absolutas. A •« boa» informação n~~ pode ser d~finida 11
flriori. o que pode ser definido ~ã~ as condtçoes~ d~ aparecm1:ento
11
1 boa ~informação, isto é, as comdiçoes de CO\llJOOl'II'OOCJ.a/mtagoon.smo
!111 órgãos de informação.
3. A concorrência e o antagonismo são, ~ece~sár~os à vida inf?t. ai ao mesmo tempo que são necessanos a vtda democrática
lllll ton ' - d 't d no seu umo. sociedade. O problema da informaçao eve ser st ua o nntexto sociopolítico.
4. A informação-bem de Estado e a informação-mercadoria t~nd m uma e outra, por motivos difen::ntes e s:gundo proc~s~os dtf~-1 :ntes, a degradar a sua qualidade ~e _mformaçao, que e o umco mezo de que dispomos para receber as ltçoes do real.
5. Temos absoluta necessidade de ser bem informado~, mas isso não é de modo algum suficiente para conhecer bem. .o rmP?rtan~e nüo é apenas a informação, é o s!stema .mental <:u o stsltema tde?logico que acolhe, recolhe, recusa, sttua a informaçao e lhe dá se~tldo.
Com efeito, 0 acordo sobre os da~o~ não~ basta. A humamdade pré-copérnica e a humanidade pós-coperntca veem o mesmo Sol, mas para a primeira trata-se de um disco que gira à voLta .da Terra e para a segunda de um astro à roda c;Io q~ml a Terra gt.ra. Para_ se constituir a nova teoria foram necess~as, e cevto .• nova~ mformaço~s que trouxeram a perturbação aos antigos, mas f01 t~mbem necessáno que um novo sistema de hipóteses cooroote .~gw5Se colooar o Sol no centro do mundo e a Terra na sua penfena. . . _
Tudo se move portanto não só no plano exclustvo da mformaçao, mas também no plano do ciclo
informação __ _.., -- teoria ---+-- visão do mundo 1_...,. _____ 1 I_<- I
que permite destruir a ordem e a Otrganização do unive~so : suscitar a edificação de uma nova ordem e de uma nova, orgamzaçao ..
Um exemplo doutro gênero mostrar-nos-a que o senti?o da ma informação é susceptível de ser invertido consoante o ststema
~:spensamento que 0 integre. Georges Friedmann esc:eveu nos an~s trilnita A Crise do Progresso. A análn:se dos textos de ~ósofoo e esc.rttores do princípio do século mostrava-lhe que, coot~oote ao f1m do reculo anrtea'iOir, a ideia de progresso era ca?a vez .maiiS COIIllt~da peila intelligentsia ocidental. A sua visão ma:rxt~ do :ffiundo exrphoou
0 fenómeno: filósofos e escritores exprim~a~ a t~eolog1a da sua classe,
a burguesia, e esta, desde então em decbmo, deiXava escapar o f~cho do progresso, que apanhava a nova classe ascendente, o proletanado.
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Vinte e cinco anos mais 'tarde o filósofo lia doutro modo os mes~os _textos so?re os quais edificara a sua análise, os quais desde então Ja nao r~fl~ct1am. a seus _olhos as angústias da burguesia decadente, mas expn~uam, stm, a cnse profunda da civilização moderna perante a ambigmdade dos progressos da técnica. O próprio Georges Friedmann ~unh~ o progresso em causa, o qual já não estava necessariamente mscnto n~ futuro histórico e se tornava uma possibilidade frágil e ameaçad~. Asslll, o que mudara fora a estrutura da visão do mundo. Georges Fnedmann não modificara os dados te~tuais de que dispunha· eram exactamente os mesmos textos. Mas a mudança da visão d~ mu~d? encontrava-se ligada à irrupção de novas informações político-soctaiS, ,a novas _formas de_ aquisição(selecção dessa informação, a ~~vos me~odos de mterpretaça~. Quer dizer, o problema da informação e ~separavel_do proble~:;t da mterpretação pelo sistema de ideias que a mtegra, a Siil:ua e a reJeita, e que ela pode reformar ou revolucionar.
6. Vemos portanto que o problema da informação, necessário para sabermos o que se passa no mundo, nos obriga a remontar muito para cá e para lá da verificação das informações. Mergulha-nos em prob_lemas comple~os de estrutura mental, de crença, de ideologia, de confia~ça/desconfiança, de organização dos media, de organização da soc1e?ade. C?m~çamos a ~mpreender o que quer dizer . a palavra complexidade: , e nao pode_r . Isolar totat;nente um fenómeno para o comp~eender, e,_ pelo <X?ntra,no, a necess~dade de o ligar às suas artiouJ.a~o~s ~aturms. E ~~ e~ta a complexidade do problema da informaçao. nao ~e pod~ !Sola-lo completamente do problema social, do :PP<?b~e:ma da 1deologta, do problema do espírito humano. Há a distingUlbzlzdade e a não-separabilidade dos problemas. Isso aJSsusta. É de faoto assustador. Mas é a única via para tentar compreender.
OS DEFEITOS DAS PALAVRAS
As palavras mestras
Direita I Esquerda, Capitalismo I Socialismo, Fascismo f Antifascismo, Democracia I Totalitarismo são palavras que, entre todas as ~alavras de ~u~ ,n?s servimos para designar as coisas políticas, adquirlll'31IIl 1.1IIl pnvi.1ég10 e IWil.a p~e.pondernncia que as toma palavras mestras.
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As palavras mestras são simultaneamente:
- palavras gigantescas que estendem o seu domínio a todo o campo político. Assim, conforme a óptica, democracia f ditadura, socialismo I capitalismo, esquerda I direita disputam e par· tilham o mundo entre si;
- palavras hiperdensas, que concentram em si o máximo de significação e verdade, o que toma as outras palavras ocas e falsas;
- palavras nucleares, que são a~i~ os centros à roda dos quais gravitam as nossas crenças e tdetas;
- palavras cardinais, que nos indicam o baixo e o atto, o norte e o sul, o bom e o mau, a esquerda e a direita (daí justamente as ;palawas 'u:esqroorda» e ((direita»);
- palavras estratégicas, fortalezas das nos~as. ~nças polític~, ou, pelo contrário, palavras panzers que mtlmidam e aterron-zam o inimigo.
Assim, as palavras mestras são mais ?o que ~deias-chave que operam as distinções f oposições fundamentais que d_ao forma e sen-1 (I ao nosso uciverso. Tomam-se detentúlfas ~ ~ea1idalde. Torna~-se h per-reais. Acabamos mesmo por ver no cap1tahsm~, no comumsmo
no fasoismo não só a Sl.llbstância do .real, roas il:a!mbém ser.es dotados d existência e inteligência.
Temos sem dúvida necessidade de palavras-chave. de palavras • rdeais, de palavras nucleares, mas hoje enfrenta~os est~ problem~: n o serão as palavras mestras dos nossos vocabulános pohttcos d~minantes cada vez menos palavras que ref~ectem fenó:n~os efecttvos
cada vez mais palavras-mistério (que se julgam exphcattvas, _qua~do elas é que deveriam ser explicadas), palav:r~s espec~ros que se Impoem
mo realidades e mascaram então as coisas reais, palavras podres (que perderam a sua virtude e a sua fecundidade) ?
No tocante aos nossos inimigos, verificamos que as palavras q~e para eles exprimem a realidade e _o valor supremos sa~ para . n<_>s palavras-ficção. Assim, a palav:ra uanano», que para os nazis expnm:u cientificamente a sua verdade e a sua superior~dade, ~ra nos nao corresponde a nenhuma realidade biológica, étmca, raci<_>nal. _Vemos perfeitamente que as palavras mesil:ras dos nossos adversános s~o oc~s, ilusórias, estão mortas e são mortais, ao passo que para eles sao reais, estão vivas e são vivificantes.
E as nossas? Quero falar aqui das palavras de «esquerda», a começar pelas palavras mestras «direita-esquerda».
Direita/Esquerda
As palavras direita/esquerda são palavras ~deais que, permitem situar politicamente qualquer ideia, frase ou de~tsao. Mas tem sempre
0 mesmo valor ? A sua oposição é sempre pertmente ? Um argum~n!o
imediato intimida e anula a questão: perguntarmo-nos se a opostçao
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