A REVOLUÇÃO CULTURAL NA CHINA

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1 A REVOLUÇÃO CULTURAL NA CHINA Leandro Forner INTRODUÇÃO Este trabalho busca descrever e discutir a Revolução Cultural iniciada no ano de 1966 na China, explicitando o modo como esta ocorreu bem como os fatores de avanço e retrocesso daquela que foi, possivelmente, a mais singular experiência de uma sociedade de transição já vista. Outros pontos importantes a serem identificados serão as contribuições de Mao Tsé-tung às concepções marxistas e sua luta contra o economicismo vigente no pensamento de esquerda. Porém à de se destacar os reflexos da Revolução e das decisões e concepções do próprio Mao no selar do destino desta experiência chinesa. INÍCIO E CONSTRUÇÃO DA REVOLUÇÃO O marco inicial da Revolução Cultural pode ser considerado quando da crítica literária do jornalista e membro da seção de propaganda Yao Wenyan à peça teatral do vice-prefeito de Pequim Wu Han intitulada “A destituição de Hai Rui” alusiva a destituição feita por Mao ao Marechal Peng Dehuai anos antes em virtude de divergência em relação ao plano conhecido como Grande Salto para Frente 1 . Devido à crise que se instaura no interior do partido a Revolução começa a surgir não apenas como forma de lançar luz nas divergências que ocorriam no interior do partido, mas também para formar um movimento de massas que deveria se opor àqueles que abandonaram suas posições revolucionárias além de promover uma mudança ideológica na China. Inicia-se desse modo a luta contra o burocratismo do partido enfraquecendo as bases de apoio do auto-escalão partidário que pretensamente convergia-se a uma 1 O Grande Salto para Frente caracterizou o conjunto de medidas econômicas que visava a aceleração da produção no campo através da mobilização das massas. (Santana, 2009)

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A REVOLUÇÃO CULTURAL NA CHINA

Leandro Forner

INTRODUÇÃO

Este trabalho busca descrever e discutir a Revolução Cultural iniciada no ano de

1966 na China, explicitando o modo como esta ocorreu bem como os fatores de avanço

e retrocesso daquela que foi, possivelmente, a mais singular experiência de uma

sociedade de transição já vista. Outros pontos importantes a serem identificados serão as

contribuições de Mao Tsé-tung às concepções marxistas e sua luta contra o

economicismo vigente no pensamento de esquerda. Porém à de se destacar os reflexos

da Revolução e das decisões e concepções do próprio Mao no selar do destino desta

experiência chinesa.

INÍCIO E CONSTRUÇÃO DA REVOLUÇÃO

O marco inicial da Revolução Cultural pode ser considerado quando da crítica

literária do jornalista e membro da seção de propaganda Yao Wenyan à peça teatral do

vice-prefeito de Pequim Wu Han intitulada “A destituição de Hai Rui” alusiva a

destituição feita por Mao ao Marechal Peng Dehuai anos antes em virtude de

divergência em relação ao plano conhecido como Grande Salto para Frente1.

Devido à crise que se instaura no interior do partido a Revolução começa a

surgir não apenas como forma de lançar luz nas divergências que ocorriam no interior

do partido, mas também para formar um movimento de massas que deveria se opor

àqueles que abandonaram suas posições revolucionárias além de promover uma

mudança ideológica na China.

Inicia-se desse modo a luta contra o burocratismo do partido enfraquecendo as

bases de apoio do auto-escalão partidário que pretensamente convergia-se a uma

1 O Grande Salto para Frente caracterizou o conjunto de medidas econômicas que visava a aceleração da

produção no campo através da mobilização das massas. (Santana, 2009)

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posição mais direitista. Este combate, entretanto, não deveria se dar apenas na esfera do

Partido Comunista Chinês, mas também era necessário o combate e vigilância nos

meios acadêmicos e culturais da sociedade. Deste modo as massas estariam cientes do

que vinha ocorrendo na China naquele momento sendo necessária a formação do

movimento de massas. Torna-se então possível a expulsão do meio

político/acadêmico/cultural de elementos que procurassem difundir a linha capitalista.

Convém destacar neste momento um problema que Mao corretamente

identificara no seio dos conflitos que se iniciaram: a posição que buscava combater o

economicismo tão em voga na esquerda, principalmente em virtude das posições

soviéticas em relação a sociedade de transição. Neste ponto as idéias de Mao são claras

em relação ao foco que deve ser dado à Revolução:

Na sociedade socialista continuam a existir as classes e a luta de

classes, a luta entre a via socialista e a via capitalista. Não é

suficiente a revolução socialista apenas na frente econômica,

relativamente à propriedade dos meios de produção, o que não

permite assegurar suas conquistas. É preciso também uma

Revolução Socialista conseqüente na frente política e ideológica

(Naves, 2005, p.77).

Mao de forma muito precisa consegue identificar já nos momentos iniciais da

Revolução o primado das relações sociais de produção como elemento dinâmico

determinante em relação às forças produtivas (Turchetto apud Naves, 2005). Assim a

revolução das relações de produção seria o mote principal para combater a nova

burguesia que se instalara no comando do poder chinês.

A primeira orientação formal advinda do partido em relação à Revolução

Cultural ficou conhecida como a Circular de 16 de maio2, que apresentava às grandes

massas as contradições existentes dentro do Partido Comunista Chinês (PCCh),

convocando deste modo as massas a lutarem contra posições revisionistas dentro do

Partido. Neste momento as lutas e críticas internas já citadas saem do âmbito apenas

cultural ou político e atingem as grandes massas que desta são convocadas oficialmente

a lutarem contra a ameaça burguesa instaurada no poder.

2 Documento apresentado em uma sessão do Bureau Político do Partido (Naves, 2005).

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Um ponto importante da Circular 16 de maio foi a condenação do primeiro

grupo oficial da Revolução Cultural, conhecido como “Grupo dos Cinco” que

contraditoriamente permanecia sobre o comando e a orientação do grupo conservador

de direita do Partido. Isso mostra as contradições e insuficiências da Revolução que até

então recebia críticas (se é que existiam) de forma muito velada não atingindo toda a

população, o que em certa medida a Circular de 16 de maio propunha superar.

Em seguida é constituído um novo grupo diretivo, o GERC (Grupo Encarregado

da Revolução Cultural), mas um fato que marcara o começo do grande levante de

adesão à Revolução foi a utilização dos Dazibaos3, especialmente o veiculado no dia 25

de maio de 1966 na Universidade de Pequim no qual se criticava o reitor da instituição

por promover o boicote e tentar transformar a Revolução em assunto meramente

acadêmico.

Nesta circular veiculada, Mao contribui não apenas para o avanço da Revolução

Cultural, mas identifica um ponto crucial para o pensamento marxista e para a

compreensão de uma sociedade de transição estipulando que a luta de classes prossegue

no período de transição e que a burguesia está presente nos órgãos de poder proletário.

Isso mostra uma das principais dificuldades enfrentadas ao longo da Revolução

Cultural que ainda não estavam sanadas: a dificuldade das massas em identificar o

inimigo ou a classe burguesa presente na direção e nos meios culturais proletários.

Um fato a ser destacado é a ausência de Mao em Pequim de certa forma

inexplicável durante os meses de junho-julho de 1966, momento em que a Revolução

ganhara corpo e se expandira. Porém neste período são formados os chamados Grupos

de Trabalho, composto por quadros do Partido notadamente revisionistas. Atuando de

forma repressiva contra grupos revolucionários e de ultra-esquerda os Grupos de

Trabalho atuavam de forma a acusar de anti-socialistas e reacionários os grupos mais

radicais da Revolução, sendo inclusive as organizações estudantis atacadas por estes

Grupos de Trabalho.

3 Declaração feita em grandes cartazes de papel, sendo um dos principais veículos de comunicação

durante Revolução Cultural (Santana, 2009).

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Ao retornar a Pequim Mao proclama que “os jovens constituem a força

principal da Revolução Cultural” (Naves, 2005), condenando assim os Grupos de

Trabalho. Deste modo na 11ª Sessão Plenária do Comitê Central do PCCh de 1966, fica

estipulada a condenação oficial e dissolução dos Grupos de Trabalho, bem como é

apresentado nesta sessão dois documentos que vieram a reforçar a Revolução Cultural,

que ficaram conhecidos como o Comunicado da 11ª sessão, e principalmente a

Resolução do Comitê Central do PCCh sobre a Revolução Proletária, mais conhecida

como a Resolução dos 16 pontos.

O primeiro documento acentuava a necessidade do apoio e da mobilização das

massas, a necessidade de que se aprendesse com elas e que se fossem alunos e não

mestres destas. Neste documento defendia-se também a ditadura do proletariado e o

socialismo, o evitar ao revisionismo e prevenir a restauração capitalista. Vale lembrar

neste momento o fato positivo do não recuo das posições de Mao sobre a concepção de

ditadura do proletariado, destacando que Mao 20 anos antes já defendera a ditadura do

proletariado:

A ditadura democrática popular necessita da direção da classe

operária porque esta é a classe que possui a visão mais ampla, é

a mais desinteressada e a mais conseqüentemente

revolucionária. Toda a história da revolução prova que, sem a

direção da classe operária, a revolução fracassa, enquanto, com

tal direção, ela triunfa (Tse-tung, 2010).

No entanto, a ditadura do proletariado formulada na concepção marxista-

leninista não teve seu êxito pleno na situação chinesa, voltaremos a este tema mais a

frente.

Já o documento que tomou mais relevância, a Resolução dos 16 pontos, trazia

em alguns dos seus principais pontos a necessidade das massas em “identificar e

destruir os elementos que seguiam a linha capitalista, e aqueles que difundissem a

ideologia burguesa na academia e na cultura” (Santana, 2009), vencer as resistências

contra a revolução. As massas devem libertar-se por si próprias, através dos seus

próprios meios; as organizações de massa devem ter um caráter permanente seguindo

principalmente os moldes da Comuna de Paris, principalmente no que diz respeito às

eleições dos grupos e comitês (este ponto será retomado em breve, visto a contradição

que ocorre referente a ele em relação a Comuna de Xangai); as massas tem o direito de

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crítica e caso seja necessário tem o poder de destituir os membros ou delegados dos

comitês; os elementos anti-socialistas são uma minoria, por isso é necessário uma

coesão entre as massas e o prezar pela luta revolucionária com o uso da não violência

utilizando-se métodos de persuasão e dando-se ainda ouvidos as críticas das minorias.

Outro fator muito importante e inovador da Revolução Cultural foi a criação de

organizações em escolas e fábricas visando o combate a propagação de idéias burguesas

nestas instituições. Mas sem sombra de dúvidas um dos elementos mais originais da

Revolução foi a criação da Guarda Vermelha4 que tinha, entre outras funções, a

propagação da Revolução nos grandes centros urbanos e também a identificação e

eliminação de elementos engajados com a via Burguesa. Vale ressaltar que nem mesmo

a Guarda Vermelha estava livre de infiltração de direita ou até mesmo boicote exercido

por outras instituições comprometidas com esta “via burguesa”.

As fábricas tornam-se não apenas uma unidade de produção, mas, sobretudo um

local onde se é praticada intensa atividade política e ideológica como bem identifica

Charles Bettelheim: “Na China a gestão das fábricas é antes de tudo uma gestão

política, que coloca em primeiro plano os objetivos políticos da edificação do

socialismo e não os objetivos estritamente econômicos” (Bettelhiem, 1979, p.102).

A construção do socialismo é baseada na educação política e moral, na

organização, na retificação ideológica e cultural dos quadros do partido através do

trabalho produtivo5. Os estudantes, por sua vez, deveriam intercalar seus estudos com o

trabalho produtivo no campo e na cidade, com assuntos militares e, quando fosse

necessário, promoveriam a crítica e a luta contra a burguesia.

4 A Guarda Vermelha era constituída na sua maioria por estudantes secundaristas ou universitários de

origem operária ou camponesa.

5 Um exemplo é a Escola 07 de maio para onde eram enviados ex-funcionários do governo, intelectuais,

professores, etc. que possuíam vertente capitalista para que através dos trabalhos forçados (que ocorriam

geralmente em aldeias pobres e isoladas) tomassem novamente contato com o trabalho produtivo para que

pudessem ser reeducados. No entanto o trabalho de reeducação não ocorria apenas nos campos, mas

também nas fábricas, fazendo deste modo a união campo-cidade. Desta acreditava-se conseguir a

edificação de um “Homem Novo”.

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A Comuna de Xangai e a Mudança de postura na Revolução

A Comuna de Xangai construída entre Janeiro e Fevereiro de 1967 foi sem

dúvida um passo adiante na tentativa da transformação da sociedade Chinesa rumo ao

comunismo, porém as medidas tomadas pelo Partido Comunista Chinês e por Mao Tsé-

tung mostram os erros de concepção do PCCh e de Mao frente aos dilemas de uma

sociedade de transição.

A Comuna de Xangai inspirada na Comuna de Paris buscava remodelar a forma

de gestão e organização da sociedade, desde a forma de eleição da sua direção bem

como a participação efetiva das massas nas tomadas de decisões, reduzindo, entre outras

coisas, a burocracia e proporcionando a liberdade política e de organização.

Porém Mao não compreende a Comuna nesses termos e decreta o fim da

Comuna de Xangai 50 dias após seu inicio. A justificativa de Mao para tal retrocesso é a

de que se as Comunas se propagassem o partido e seu núcleo dirigente se desfacelaria.

O medo de mudança política leva Mao a decretar o fim da Comuna e instituir em seu

lugar um Comitê Revolucionário dirigido por quadros do PCCh.

Eis desta forma o grave erro não identificado por Mao, de que a preservação do

sistema político significa a preservação da forma de Estado, impedindo que as Comunas

(organizadas pelas massas) levassem a cabo mais uma etapa da extinção do Estado de

seu aparelho (Naves, 2005), e da burguesia estatal como alertava Lenin em O Estado e a

Revolução:

Em lugar de instituições especiais de uma minoria privilegiada

(funcionários civis, chefes do exercito permanente), a própria

maioria pode desempenhar diretamente as funções do poder

político; e, quanto mais o povo assumir essas funções, tanto

menos se fará sentir a necessidade desse poder (Lenin, 2007,

p.61).

A Comuna representa tal “ameaça”, pois promoveria a transferência do poder

do partido para as massas, levando à extinção do partido e do Estado. A decisão de Mao

acaba por privilegiar uma minoria detentora do poder, mostrando que apesar de

possibilitar grandes avanços Mao promove muitas falhas na compreensão e aplicação do

marxismo.

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Neste contexto Eugenio Del Rio faz uma observação muito precisa ao identificar

que o partido assumindo o poder tende a perder sua força revolucionária e assumir

aspectos de gestor estatal, não cumprindo seu objetivo inicial que é o de transferência

do poder às massas. O mesmo autor salienta que a Revolução Cultural esbarrou no

mesmo erro de outras revoluções socialistas, que ao invés de extinguirem o Estado e as

suas classes sociais, acabaram formando uma nova minoria no poder e um novo tipo de

estratificação social.

Neste momento não só a extinção da Comuna de Xangai representou um

retrocesso, mas também é visto desta forma o fato que ocorre a partir de Janeiro de

1967: o Exército6 ganha mais poder de intervenção, assumindo a gestão de fábricas e o

papel de administrador em algumas províncias, controlando as atividades dos estudantes

e reconduzindo ao poder antigos quadros do partido. Desta forma as decisões acabam

cada vez mais se afastando das massas. Isso pode ser observado ao nos depararmos com

a formação da Tríplice União encarregada na tomada de decisões, e que era composta

por membros do Exército dos quadros partidários e por representantes das massas,

sendo que a participação dos membros das massas tornasse apenas formal.

A repressão também se acentua contra elementos mais radicais da Revolução

Cultural. Grupos como o GERC identificam que o Partido acaba abrigando antigos

quadros da burguesia, bem como os retrocessos da Revolução. Estes grupos são

perseguidos, reprimidos ou eliminados.

Assim pode-se dizer que a Revolução Cultural um ano após seu inicio sofre um

duro golpe com a reconstituição do poder político pelo partido, com a redução da

participação das massas nas tomadas de decisões e a destruição das organizações

revolucionárias.

Mao neste momento não foi capaz de identificar que as lutas dentro do partido e

do aparelho estatal não diziam respeito apenas das lutas políticas, mas eram decorrência

da não transformação das relações de produção, e ainda que a luta existente era nada

mais do que uma luta entre classes sociais antagônicas.

6 Exército Popular de Libertação na Revolução Cultural

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Deve-se estar atento ao próprio conteúdo combatido no inicio da Revolução

Cultural, ou seja, a transformação da ideologia e dos meios culturais e acadêmicos da

sociedade. Ora, essa transformação deve atingir com a mesma intensidade todas as

esferas da sociedade, visto que a classe operária deve participar ativamente dessa

transformação cultural.

Ao analisar essas várias etapas da Revolução Cultural fica claro que houve uma

transformação muito restrita do aparelho estatal e partidário bem como no processo de

produção. Os órgãos centrais do PCCh não sofreram grandes interferências do

movimento de massas. A classe social que estava presente no poder antes de 1966

continuou no poder, ela não foi substituída, tampouco houve transformação no sistema

de dominação, estando a cúpula do Partido identificada com o seu papel de gestor

mantendo as condições de sobrevivência do Estado.

A permanência desta classe no poder, também identificada como uma nova

classe burguesa e a permanência do Partido conservando o aparelho estatal, se

assemelha muito ao que ocorrera na URSS quando o Partido e seus gestores tornam-se

um obstáculo à real tomada do poder pelas massas e a conseqüente revolucionarização

das relações de produção.

A dificuldade na compreensão do processo e seus respectivos objetivos leva a

serem consideradas as lutas políticas e não a transformação das relações de produção

como a primazia das disputas, o que acarretou sérios danos à Revolução.

Apesar da liberdade de atuação e organização do inicio da Revolução Cultural, o

que se observa posteriormente é a permanência de decisões tomadas de forma secretas

ou de forma arbitrária. Os sindicatos voltam a se tornar instituições comprometidas com

as decisões estatais. A liberdade de imprensa e de expressão fundamentais no inicio da

Revolução, principalmente no âmbito local através da divulgação dos Dazibaos, não

encontra a mesma abrangência quando se trata da imprensa a nível nacional, pois está

vinculada ao Partido e apenas transmite a posição oficial7. Certamente, o mais espantoso

é o fato de que a restrição à liberdade não se restringe apenas a questões políticas, há

momentos no decorrer da Revolução Cultural que a falta de liberdade atinge restrições

7 A justificativa do PCCh para a limitação da liberdade de imprensa era que se esta não fosse controlada

poderia dar margem a vinculação de idéias da burguesia (Rio, 1981).

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inclusive no que diz respeito a esfera pessoal (Rio, 1981). A falta de liberdade se

estende em relação a elaboração do pensamento crítico-teorico, pois a idéias formuladas

deveriam transitar apenas dentro do pensamento marxista-leninistas e das concepções de

Mao Tsé-tung. Era proibida a crítica ao “socialismo existente” na China, o que

inviabilizava o aprendizado das massas através de suas próprias experiências,

engessando os conceitos teóricos em um mecanicismo tão criticado por Mao em outros

momentos.

Após os primeiros anos da Revolução Cultural é observado um aumento em

relação ao culto à personalidade, a mistificação da figura de Mao Tsé-tung. Tal atitude

perdura ao longo da própria Revolução “atingindo” inclusive outros membros do

partido e Lin Piao (suposto sucessor de Mao) também tem sua imagem deificada neste

período.

O culto à personalidade trouxe o empobrecimento na reflexão e discussão

política, o maoísmo se tornou expressão do marxismo e a única leitura essencial e

necessária passa a ser a leitura dos textos de Mao. A realidade era “adaptada” visando

abranger as discussões formuladas por Mao, ou seja, quem se opunha às idéias de Mao,

era considerado como opositor do próprio Partido.

Isso mostra que as idéias sobre a ditadura do proletariado defendidas por Marx,

Lenin e pelo próprio Mao não puderam ser observadas na prática após os momentos

iniciais da Revolução, pois como foi apresentado acima, a tomada das decisões que já se

distanciara das massas concentrava-se cada vez mais em um indivíduo com o aumento

do culto ao líder. Observando estes fatos é possível identificar que a Revolução está

constituída de forma hierárquica, com uma cúpula especializada de homens cultos, onde

não se encontram nem mulheres, nem o proletariado nem elementos do campesinato

(Rio, 1981).

Apesar de já muito comprometida a Revolução Cultural e a tentativa de

revolucionarização das relações de produção perdura até 1976, quando ocorre a morte

de Mao, ficando o caminho livre para a ala mais “burocratizada” do partido (que

buscava organizar o partido com uma participação cada vez menor das massas) assumir

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poder e conseqüentemente aumentar a repressão contra grupos revolucionários radicais

como o “Bando dos Quatro8”

É evidente que a Revolução Cultural teve seu futuro comprometido devido a

esses desvios em sua concepção, porém não devemos nos furtar a reconhecer e

identificar os diversos pontos de avanço, como alguns já apresentados até aqui, que

colaboraram muito para a compreensão de uma sociedade de transição.

Através da Revolução pudemos compreender a natureza da transição e o fato de

que não é suficiente a superação do capitalismo por uma simples transferência dos

meios de produção da burguesia para o Estado, pois o capital não é uma relação de

propriedade, mas uma relação social de produção (Naves, 2005). Os trabalhadores

devem ter o controle do processo de produção, colocando um fim à separação do

trabalho manual e intelectual, entre direção e produção nas indústrias. Somente desta

maneira será possível aos trabalhadores se reapropriar as condições objetivas e

subjetivas da produção.

Mao consegue identificar a subordinação das forças produtivas às relações de

produção, mostrando que a transição para o socialismo não se trata apenas do

desenvolvimento das forças produtivas, mas da transformação das forças produtivas e

das relações sociais de produção, e que esta luta deve prosseguir após a Revolução.

Outro ponto essencial que pode ser extraído da experiência revolucionária diz

respeito ao processo de valorização do capital, que mesmo após a Revolução continua a

existir sob a égide de uma nova burguesia. Portanto a Revolução Cultural seria a

tentativa da superação do domínio do capital, mas essa transformação só é viável

através do movimento de massas (Naves, 2005).

Estes são alguns fatores que marcaram a construção da Revolução Cultural, que

mesmo padecendo de alguns retrocessos e desvios durante seu percurso, deve ser

encarada e estudada como um marco no auxílio à compreensão da teoria marxista e da

sociedade de transição. Os apontamentos de Mao Tsé-tung são de grande valia para o

8 O Bando dos Quatro era uma das últimas alas radicais remanescentes dentro do partido, constituída por

Zhang Chunqiao, Yao Wenyuan, Wang Hongwen e Chiang Ching, esta última esposa de Mao. Após a

morte de Mao o bando é destituído, condenado e eliminado.

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rompimento do economicismo e mecanicismo que ainda hoje imperam sobre o

pensamento marxista, bem como a sua compreensão sobre a e primazia das relações

sociais de produção para uma sociedade de transição. Brevemente, estes são alguns dos

pontos vitoriosos que a Revolução Cultural alcançou.

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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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Rio de Janeiro: Graal, 1979.

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SANTANA, Cristiane Soares de. Notas sobre a história da Revolução Cultural.

Revista História Social. Campinas, SP: Universidade Estadual de Campinas, n. 17,

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comunismo. In: Naves. Marcio Bilharinho. Análise crítica e sociedade de transição.

Campinas, SP: Unicamp, Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, 2005. p.7-56.

TSE-TUNG, Mao. O livro vermelho. São Paulo: Folha de S. Paulo, 2010.