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1 Seminário Internacional Fazendo Gênero 11 & 13 th Women’s Worlds Congress (Anais Eletrônicos), Florianópolis, 2017, ISSN 2179-510X A REVOLUÇÃO DAS MULHERES NO CURDISTÃO: FEMINISMO PARA ALÉM DA GUERRILHA Maria Florencia Guarche Ribeiro 1 Resumo: Em meio à guerra existe uma revolução política, social e econômica que tem como centro a luta antipatriarcal. O Curdistão é o palco deste processo que traz à luz um novo modelo político chamado Confederalismo Democrático que está embasado em uma epistemologia feminista: a jineologî (“ciência das mulheres 2 ”). Divididos entre os territórios da Turquia, Síria, Irã e Iraque, aproximadamente 35 milhões de curdos vivem sob um forte regime repressivo de assimilação cultural, sendo a maior nação sem Estado do mundo. Após passarem grande parte do século sendo perseguidos pelos governos destes países foi em território Turco que um grupo de estudantes curdos fundou, em 1978, o PKK (Partido dos trabalhadores do Curdistão) e, mais adiante, a guerrilha, principal foco de resistência contra os governos da região. Tendo em vista esta situação, o objetivo do trabalho é o de expor a participação das mulheres no processo revolucionário curdo, sobretudo após a década de 1980 culminando com a criação de três cantões autônomos ao norte da Síria, Rojava 3 , e que configuram um laboratório a céu aberto da primeira revolução estruturalmente feminista da história. Para tanto este trabalho parte do questionamento: este modelo social será uma alternativa adequada para estabelecer uma sociedade capaz de quebrar com as estruturas estadocêntricas e patriarcais da região? A hipótese, por sua vez, é a de que este processo constitui um marco na história do Oriente Médio, especialmente no que diz respeito à organização política e social da região, principalmente no que tange à jineologî. Portanto, de modo a realizar esta análise, o trabalho faz uso dos pressupostos teóricos do pensamento do Öcalan e utiliza o método de pesquisa bibliográfica trazendo também dados primários oriundos de entrevistas realizadas pela autora em visita às representantes do movimento de mulheres curdas em centros de estudos em jineologî e no Congresso Nacional do Curdistão (KNK). 1 Estudante de mestrado no Programa de pós-graduação em Ciência Política da UFRGS/IFCH, Porto Alegre, Rio Grande do Sul, Brasil. Pesquisadora vinculada ao NIEM (Núcleo Interdisciplinar de Estudos da Mulher e Gênero). Contato: [email protected] 2 Em idioma curdo: Jin significa mulher e, ao mesmo tempo, vinculado à palavra jiyan que significa vida. 3 O território que abrange o Curdistão é dividido em quatro partes: Rojava, em idioma curdo significa oeste, faz referência à região que fica em território ao norte da Síria. Consequentemente as demais partes são: Bakur (norte) na Turquia; Başûr (sur), Iraque e Rojhilat (leste) no Irã. Rojava é dividido em três cantões autodeclarados autônomos (desde 2012) chamados: Efrin, Kobanê, Cizre.

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1 Seminário Internacional Fazendo Gênero 11 & 13thWomen’s Worlds Congress (Anais Eletrônicos),

Florianópolis, 2017, ISSN 2179-510X

A REVOLUÇÃO DAS MULHERES NO CURDISTÃO: FEMINISMO PARA

ALÉM DA GUERRILHA

Maria Florencia Guarche Ribeiro1

Resumo: Em meio à guerra existe uma revolução política, social e econômica que tem como centro

a luta antipatriarcal. O Curdistão é o palco deste processo que traz à luz um novo modelo político

chamado Confederalismo Democrático que está embasado em uma epistemologia feminista: a

jineologî (“ciência das mulheres2”). Divididos entre os territórios da Turquia, Síria, Irã e Iraque,

aproximadamente 35 milhões de curdos vivem sob um forte regime repressivo de assimilação

cultural, sendo a maior nação sem Estado do mundo. Após passarem grande parte do século sendo

perseguidos pelos governos destes países foi em território Turco que um grupo de estudantes curdos

fundou, em 1978, o PKK (Partido dos trabalhadores do Curdistão) e, mais adiante, a guerrilha,

principal foco de resistência contra os governos da região. Tendo em vista esta situação, o objetivo

do trabalho é o de expor a participação das mulheres no processo revolucionário curdo, sobretudo

após a década de 1980 culminando com a criação de três cantões autônomos ao norte da Síria,

Rojava3, e que configuram um laboratório a céu aberto da primeira revolução estruturalmente

feminista da história. Para tanto este trabalho parte do questionamento: este modelo social será uma

alternativa adequada para estabelecer uma sociedade capaz de quebrar com as estruturas

estadocêntricas e patriarcais da região? A hipótese, por sua vez, é a de que este processo constitui

um marco na história do Oriente Médio, especialmente no que diz respeito à organização política e

social da região, principalmente no que tange à jineologî. Portanto, de modo a realizar esta análise,

o trabalho faz uso dos pressupostos teóricos do pensamento do Öcalan e utiliza o método de

pesquisa bibliográfica trazendo também dados primários oriundos de entrevistas realizadas pela

autora em visita às representantes do movimento de mulheres curdas em centros de estudos em

jineologî e no Congresso Nacional do Curdistão (KNK).

1 Estudante de mestrado no Programa de pós-graduação em Ciência Política da UFRGS/IFCH, Porto Alegre, Rio

Grande do Sul, Brasil. Pesquisadora vinculada ao NIEM (Núcleo Interdisciplinar de Estudos da Mulher e Gênero).

Contato: [email protected]

2 Em idioma curdo: Jin significa mulher e, ao mesmo tempo, vinculado à palavra jiyan que significa vida. 3 O território que abrange o Curdistão é dividido em quatro partes: Rojava, em idioma curdo significa oeste, faz

referência à região que fica em território ao norte da Síria. Consequentemente as demais partes são: Bakur (norte) na

Turquia; Başûr (sur), Iraque e Rojhilat (leste) no Irã. Rojava é dividido em três cantões autodeclarados autônomos

(desde 2012) chamados: Efrin, Kobanê, Cizre.

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Palavras-chave: Movimento de Mulheres Curdas, Curdistão, Jineologî, Partido dos Trabalhadores

do Curdistão

Introdução:

Com a emergência do Estado Islâmico (EI)4, o agravamento da crise humanitária e a maior

onda de refugiados da história o mundo começou a olhar mais para o Oriente Médio5 e, assim,

estampando as capas dos grandes tabloides e mídias ocidentais6 surgem imagens do exército de

mulheres curdas que, na linha de frente contra o EI, avançam não só na guerra contra os jihadistas

mas, também, contra o fundamentalismo, o patriarcado e a violência contra as mulheres, trazendo

uma nova proposta política e social para a região. Contudo, o que não se fala é que a criação desta

nova sociedade, que hoje tem como principal palco Rojava, é fruto de um longo processo de luta,

construção e debate dentro e fora do movimento de libertação curdo desenvolvido majoritariamente

pelo Partido dos Trabalhadores do Curdistão (PKK), tema primeiro ponto deste artigo.

O engajamento político do movimento de mulheres no Curdistão torna-se o principal

elemento deste processo revolucionário que traz importantes desdobramentos políticos e sociais.

Para elas só poderá haver mudanças sociais reais quando a questão de gênero seja colocada como

prioridade considerando, conjuntamente, a dupla opressão sofrida pelas mulheres curdas: um

primeiro aspecto, quanto mulheres que encontram-se subjugadas ao sistema patriarcalista e, por

outro lado, quanto curdas, havendo passado por intensos processos assimilacionistas e genocidas

implementados pelos Estados que ocupam o território do Curdistão. Deste modo, a organização do

movimento de mulheres centra-se na ideia de que não pode haver socialismo enquanto a sociedade

não for livre da hierarquia de gênero (a primeira de todas as demais hierarquias sociais).

No primeiro ponto, trataremos dos principais acontecimentos da década ade 1990 quando,

especialmente, Abdullah Öcalan (2013), ao fazer uma análise sobre a história da escravização das

mulheres, considera que é necessária uma nova “ruptura sexual7” que deverá romper com o “macho

dominante8” e assim, poder-se-á construir uma nova lógica social. Esta mudança radical no

4 Estado Islâmico do Iraque e do Levante. Grupo terrorista jihadista de orientação wahhabita que cresceu como

uma ramificação radicalizada de outros grupos islamistas da região. 5 Para fins deste trabalho faz-se referência ao conceito tradicional que engloba os países localizados no oeste da

Ásia e do nordeste da África. A maioria destes países são banhados pelo Mar Vermelho, Mar Mediterrâneo, Golfo

Pérsico, Mar Negro e Mar Cáspio. 6 Por exemplo, as matérias das grandes revistas femininas: Elle e Marie Claire. 7 Öcalan salienta que, na história, houve duas rupturas sexuais, responsáveis pela escravização das mulheres. A

terceira é emancipatória e busca incentivar as mulheres à empoderar-se e revolucionar as estruturas sexistas. 8 O líder curdo afirma que matar ao macho dominante significa acabar com a “dominação unilateral, a

desigualdade e a intolerância, e, por conseguinte, o fascismo, a ditadura e o despotismo” (Öcalan, 2013, p. 51).

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3 Seminário Internacional Fazendo Gênero 11 & 13thWomen’s Worlds Congress (Anais Eletrônicos),

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pensamento do líder curdo abre as portas para que as mulheres ocupem a liderança do movimento e

que, por meio de suas organizações e reivindicações dentro da luta armada, sejam as principais

responsáveis pela construção desse sistema político e social que se opõem a modernidade

capitalista. Sua organização é a base da consolidação de um importante movimento político que tem

como resultado a criação da jineologî, um pressuposto ideológico que se manifesta como uma nova

proposta epistemológica e que, hoje, é o centro do Confederalismo Democrático9.

O PKK e o movimento de libertação nacional.

Com o fim da I Guerra Mundial, em 1919, e o desmantelamento do Império Otomano o

povo curdo10 ficou às margens das unidades políticas recém-formadas. Atualmente, os curdos,

encontram-se divididos entre os territórios da Turquia, Síria, Irã e Iraque, totalizando

aproximadamente 36,4 milhões11 de indivíduos que ainda vivem sob um forte regime repressivo de

assimilação cultural (o maior grupo étnico sem um Estado próprio). Recentemente com o governo

de Recep Tayyip Erdoğan12 é retomada com grande força a luta contra os grupos pró-curdos e,

principalmente contra o PKK13 e seus apoiadores, sobretudo no período pós-201514.

Nesse contexto de violência sistêmica, agravado no século XIX em função da emergência do

nacionalismo turco15 e implementado ostensivamente durante o século XX, com a independência da

República da Turquia (e a execução de um processo de assimilação e negação cultural estatal que

perdura até hoje) começa a ser organizado, na década de 1960, o movimento de libertação nacional

curdo. Com a popularização do movimento e a adesão de mais pessoas interessadas na organização,

em 1978, um grupo formado por 22 jovens estudantes da Universidade de Ankara, fundam o PKK

9 Paradigma político desenvolvido por Abdullah Öcalan que se estrutura sobre três pilares principais:

democracia radical de base, ecologismo e jineologî (ruptura com o sistema patriarcal). Em face das limitações deste

trabalho falar-se-á sobre o último ponto apenas. 10 O povo curdo é um dos mais antigos da região, são mencionados na história como um grupo étnico ligado aos

hurritas em 3000 – 2000 a.C.). A etimologia da palavra “curdo” tem sua origem na palavra suméria kur que pode ser

traduzida como “montanha”. Kur + ti (usado como filiação) poderia ser traduzido como “povo da montanha”. Durante o

século XX a existência do povo curdo foi negada e, como tal, assimilada pela cultura turca (Öcalan, 2008, p. 09, 11). 11 Informações retiradas da página do Instituto Curdo de Paris. Disponíveis em:

<http://www.institutkurde.org/en/info/the-kurdish-population-1232551004> Acesso em 02 de julho de 2017. 12 Sucessor de Abdullah Gül à presidência da Turquia desde agosto de 2014. Islamista e conservador foi fundador

do Partido para a Justiça e o Dsenvolvimento (AKP), partido do qual é representante. 13 Ver: “Por que o Presidente Erdogan retomou a guerra com o PKK curdo? A resposta está no conto do golpe

fracassado" (tradução nossa). Disponível em: <http://www.independent.co.uk/voices/turkey-president-erdogan-battle-

with-kurdish-pkk-failed-coup-attempt-robert-fisk-syrian-border-a7355546.html> Acesso em 02 de julho de 2017. 14 Vide o relatório da Corte Européia de Direitos Humanos (ECHR) que, desde 2010, destacam o número

alarmante de violações cometidas por este país. Disponível em:

<http://echr.coe.int/Documents/Annual_Report_2016_ENG.pdf> Acesso em 02 de julho de 2017. 15 Nesse sentido, lembra Öcalan que “A República dos Jovens Turcos foi marcada por um nacionalismo

agressivo e uma concepção estreita do Estado-nação” (Öcalan, 2008, p. 22) o que levou à proibição de qualquer

manifestação cultural curda.

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4 Seminário Internacional Fazendo Gênero 11 & 13thWomen’s Worlds Congress (Anais Eletrônicos),

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em um pequeno vilarejo perto da cidade deDiyarbakır16, que se tornará a estrutura propulsora do

movimento revolucionário, sobretudo pelo trabalho desenvolvido pelo líder do movimento

Abdullah Öcalan e por Sakine Cansiz, ambos os membros fundadores do partido. É o PKK o grande

responsável pelo desenvolvimento e promoção de uma identidade curda que almeja o rompimento

com a percepção chauvinista turca (de assimilação das minorias étnicas) e, ao mesmo tempo,

tomasse distância da percepção nacional feudal promovida pela aristocracia curda.

De acordo com Öcalan,

O PKK pode ser descrito como um movimento político prático. Ele define seus objetivos

analisando as características do capitalismo (moldadas no século XX) assim como a atual

situação do Curdistão e, em seguida, age de acordo com os parâmetros (...). O PKK é a

mistura de uma estrutura socialista incompleta e uma incompleta identidade clássica do

Oriente Médio (tradução nossa) (ÖCALAN, 2011, srp.)17.

De orientação marxista-leninista, inspirados em diversos grupos revolucionários

contemporâneos os membros do PKK foram duramente reprimidos pelas autoridades turcas

enquanto agiam sobretudo nas áreas rurais do país, ganhando apoio popular e consolidando-se

quanto movimento de guerrilha. A mesma política repressiva e violenta usada contra os militantes

curdos pelo Estado turco também era usada contra a população civil18. Foi essa repressão a

população que contribuiu, ainda mais, para que a resistência armada do PKK ganhasse apoio

popular. Durante as décadas de 1980 e 1990 o apoio dado pelos curdos que moravam na Europa em

exílio foi importante para o financiamento das ações do partido (Halliday, 2005, p. 254).

Nesse sentido, vale lembrar, como bem aponta Akkaya (2011) que os militantes fundadores

do PKK tiveram suas origens políticas nos partidos de esquerda turcos que, por não considerarem as

demandas curdas em função de suas visões chauvinistas, levaram à formação de uma organização

que considerasse à questão curda como um elemento relevante e essencial à ser debatido. De igual

modo, em face dessa tradição ideológica marxista-leninista e por serem oriundos das classes mais

baixas iam de encontro à posição política dos partidos tradicionais curdos que tinham como base de

sua organização líderes tribais de famílias tradicionais curdas e promoviam o pensamento

patrimonialista e conservador.

Yanarocak, por sua vez, nos mostra que,

16 Diyarbakır em idioma turco ou Amed em idioma curdo é considerada a capital do Curdistão turco (Bakur). 17 The PKK can be described as a political, paractical movement. It views its tasks as analyzing the characteristic

qualities of capitalism (which shaped the twentieth century) as well as the actual situation in Kurdistan and then to act

according to the dictates of these analyzes. […]. The PKK is a mixture of an incomplete modern socialist structure and

an incomplete classic Middle Eastern identity. 18 Nesse momento, o as forças militares e paramilitares turcas costumavam saquear vilas, queimar plantações e

assassinar populações que habitavam as regiões curdas do sul do país.

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5 Seminário Internacional Fazendo Gênero 11 & 13thWomen’s Worlds Congress (Anais Eletrônicos),

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[...] O PKK define seu objetivo de promover a unidade da nação curda, sua auto-

administração democrática, fornecendo uma solução democrática para a questão curda,

influenciando os Estados soberanos no Curdistão por meio da democratização e

providenciando liberdade para as mulheres por meio do fim da estrutura feudal da

sociedade. [...] No início os objetivos mais importantes do PKK foi mostrar à população

local turca à sua incapacidade de mudar à sí mesmos, a destruição do sistema tribal a

escravidão feminina e, por último estabelecer um Curdistão independente na

Turquia19(YANAROCAK, 2009, p. 44, tradução nossa).

O fim da década de 1970 e o início dos anos 1980 foram repletos de tensões e acirramento do

conflito. A tensão política levou ao golpe de estado declarado no dia 12 de setembro de 1980 e, com

ele, o início de um longo e profundo enfrentamento entre o governo turco e a recém-criada

guerrilha, lançada em 1984, alterou substancialmente as relações políticas e sociais dentro da

região, até os dias atuais (Halliday, 2005). Neste momento o partido teve que decidir entre ficar no

país (apesar da grande repressão e o crescente número de prisões de seus militantes) ou exilar-se e

reorganizar-se desde o exterior.

Deste modo, a partir de então, o PKK instalou-se no Líbano e na Síria, com anuência do

regime Baath20 (quem tinha uma relação bastante hostil com a Turquia, seu tradicional desafeto

diplomático na região), onde desenvolveu-se militar e politicamente, reorganizando sua atuação e

criando uma forte rede de apoio popular. O PKK permaneceu de forma mais intensa na Síria até o

fim da década de 1990, quando acordos diplomáticos entre os governos turco e sírio fizeram com

que este último proibisse a atuação curda em seu território. Os acordos assinados em Ceyhan entre

estes governos em 1998 fizeram que com Abdullah Öcalan buscasse refugio fora do território sírio

sendo perseguido e preso, em 1999, por uma coalizão internacional liderada pelo governo da

Turquia.

1990: O pensamento de Abdullah Öcalan e a década das mulheres.

No que tange à revolução das mulheres e às transformações ideológicas do partido, percebe-se

que desde seu início o PKK conseguiu interagir com as mudanças regionais e mundiais que muitas

vezes ditavam as regras de sua atuação, a queda da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas

(URSS) foi um fator decisivo que causou um grande impacto no sistema internacional como um

19 [...] the PKK defines its purpose as promoting the Kurdish nation’s unity, promoting Kurdish nation’s self-

democratic administration, providing a democratic solution to the Kurdish Question, influencing the sovereign states in

Kurdistan by causing democratization, and providing freedom to women by removal of the feudal society structure. [...]

In the beginning, the most important objectives of the PKK were showing the local population Turkey’s inability to

challenge with itself, destruction of tribal system, abolishing female slavery, and lastly, to establish an independent

Kurdistan from Turkey. 20 Partido Socialista Árabe Ba'ath, defende o pan-arabismo, socialismo árabe e anti-imperialismo.

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6 Seminário Internacional Fazendo Gênero 11 & 13thWomen’s Worlds Congress (Anais Eletrônicos),

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todo, principalmente nos movimentos que, como o PKK, tinham, também, como inspiração o

processo revolucionário soviético. Por mais que a igualdade entre homens e mulheres estivesse

estabelecida como um princípio desde os primeiros programas do partido e, em muitos casos já

houvessem sido registradas participações femininas na luta curda, sua participação até então era

exceção. Foi somente me 1987 que o partido organizou o primeiro encontro denominado Yekitiya

Jinen Welaparezen Kurdistan (YJWK21)(Jong, 2015) e somente após a década de 1990 é que o

movimento de mulheres ganha força real dada a organização das militantes e guerrilheiras que

começaram a se demandar o debate quanto aos papéis sociais que lhes eram atribuídos.

Nesse sentido,

Após a queda do Império Otomano e a divisão do Curdistão em quatro partes, as curdas

participaram ativamente do movimento. A primeira associação de mulheres curdas,

chamada Sociedade para o Progresso das Mulheres Curdas, foi fundada em 1919 em

Istambul. Algumas mulheres, poucas, participaram, desde à política ao campo de batalha as

revoltas curdas da primeira metade do século XX. No plano político, encontramos mulheres

curdas que durante os anos de 1960 e 1970, participaram dos movimento de esquerda tanto

na Turquia como no Irã e Iraque. Após a revolução iraniana de 1979, a participação das

mulheres nas organizações como Komala (uma organização de inspiração maoísta) era

muito significativa (tradução nossa)22. (DRYAZ, 2015).

As mulheres sempre estiveram presentes nas organizações dentro e fora do partido. Contudo,

foi em 1993 que se criou o primeiro batalhão independente de mulheres chamado YAJK (União das

Mulheres Livres do Curdistão). O ano de 1995 foi bastante significativo para a consolidação e

crescimento destas organizações. Lançou-se um manifesto que dizia:

“Todas as formas de opressão contra a mulher serão interrompidas e o estado de igualdade

entre mulheres e homens na sociedade será alcançado em todas as áreas da vida social e

política. As mulheres, que possuem uma enorme dinâmica social revolucionária, serão à

mobilização para este objetivo (tradução nossa)23” (PKK, 1995).

No Dia Internacional da Mulher desse mesmo ano, em Metina, fronteira entre a Turquia e o

Iraque, foi realizado o Primeiro Congresso oficial das Mulheres do PKK realizado nas montanhas

de Qandil. Neste congresso, lembra White (2015), foram eleitas 23 mulheres que fundaram o

21 União das Mulheres Patrióticas do Curdistão. 22 Tras la caída del Imperio Otomano y la división del Kurdistán en cuatro países, las kurdas participaron

activamente en el movimiento kurdo. La primera asociación de mujeres kurdas, llamada Sociedad para el Progreso de

las Mujeres Kurdas, se fundó en 1919 en Estambul. Algunas mujeres, aunque pocas, participaron, desde la política o el

campo de batalla, en las revueltas kurdas de la primera mitad del siglo XX. En el plano político, encontramos mujeres

kurdas que durante los años 1960 y 1970 se implicaron en movimientos de izquierda tanto en Turquía como en Irán e

Irak. Tras la revolución iraní de 1979, la participación de las mujeres en organizaciones como Komala (una

organización de inspiración maoísta) era muy significativa. 23 All forms of oppression against woman will be stopped, and the equal status of women and men in the society

will be realizes in all areas of social and political life. Women, who possess an enormous social revolutionary dynamic,

will be mobilizes towards this aim.

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TJAK24. Pouco tempo depois esta organização passa a se chamar YJAK25. De igual modo, nesse

mesmo ano, uma comitiva de mulheres curdas participou da Quarta Conferência Mundial sobre as

Mulheres em Pequim organizado pela ONU Mulheres. Dá-se início, assim, à formação de

conselhos, academias e centros de estudo em diversas cidades no território do Curdistão no Iraque e

Turquia. Até o ano de 2003, quando é firmado o Contrato Social do movimento, o movimento de

mulheres já contava com uma ampla estrutura organizacional que permitiu, em 2005, a criação da

Comunidade de mulheres curdas (KJK26) em Rojava, uma organização guarda-chuva que congrega

todas as demais organizações de mulheres nas quatro partes do Curdistão.

A ativa e rápida organização das mulheres corresponde à abertura do partido às suas

demandas. Cabe lembrar que, durante a guerra civil na Turquia na década de 1980, inúmeras

mulheres foram torturadas e levadas à prisão de Diyarbakır constituindo o gérmen das futuras

organizações. Nesse sentido, Sakine Cansiz foi uma das maiores ativistas que incentivou não só a

resistência mas, ao mesmo tempo, a organização dessa rede de apoio que se expandiu para além dos

muros das prisões.

Os debates teóricos que tem como elemento central a luta antipatriarcal são inspirados,

sobretudo, nos escritos de Abdullah Öcalan quem toma como ponto de partida para seu pensamento

a análise o período neolítico onde havia sido estabelecida uma ordem social comunal, conhecida

como socialismo primitivo27. Nesse sentido, escreve o líder curdo: “A história dos 5000 anos de

civilização é a história da escravização das mulheres. Por conseguinte, a liberdade da mulher só se

atingirá lutando contra os pilares do sistema atual de dominação”28 (Öcalan, 2013, p. 09, tradução

nossa).

Assim, o declínio da sociedade começa quando a mulher passa a ser subjugada pela força do

macho dominante e, consequentemente, com a consolidação do sistema patriarcal. Para o líder

curdo o processo de dominação das mulheres deu-se por meio de duas grandes “rupturas sexuais”

(ou contrarrevolução). A primeira ocorreu com o rompimento da estrutura familiar clânica

(centralizada na mãe) quando o trabalho feminino passa a ser desvalorizado e colocado em segundo

plano em face da supervalorização do trabalho do chamado “homem forte”, responsável pela caça e

24 Movimento de libertação das Mulheres do Curdistão. 25 Associação das mulheres livres do Curdistão. 26 Komalen Jinen Kurdistan. 27 Também poder-se encontrar referências a este modelo no conceito de comunismo primitivo. 28 The 5000-year-old history of civilization is essentially the history of the enslavement of woman. Consequently,

woman’s freedom will only be achieved by waging a struggle against the foundations of this ruling system.

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proteção do grupo. Nesta ruptura é visível a mudança na representação de Deuses e Deusas e na

criação da autoridade entorno da figura masculina, estrutura-se assim o patriarcado. Diz Öcalan:

O desenvolvimento desta autoridade e hierarquia, antes do início da sociedade de classes

[…] é qualitativamente diferente da cultura da mãe-mulher. A colheita e, mais tarde, o

cultivo, que eram atividades predominantemente da cultura da mãe-mulher, são atividades

pacíficas que não requerem ações de guerra. A caça, a qual principalmente o homem se

dedica, se apoia na cultura da guerra e na autoridade violenta 29 (ÖCALAN, 2013, tradução

nossa).

De modo semelhante, ocorre a segunda “ruptura sexual” com o aprofundamento das estruturas

do sistema patriarcal (criado na primeira grande ruptura) que se deu por meio das religiões

monoteístas e da autoridade religiosa. Neste momento as mulheres são consideradas inferiores aos

homens por um “mandado de Deus” e fica traçado seu destino como pertencente ao âmbito

doméstico. Ao mesmo tempo em que a família é vista, neste contexto, como “o pequeno Estado do

homem” (Öcalan, 2013). Sendo assim, é o homem quem detêm o monopólio da vida, da prole e da

esposa explorando-os conforme sua vontade. Nesse sentido, Öcalan afirma que “pode-se considerar

a exploração das mulheres como o fenômeno colonial mais antigo” (Öcalan, 2013).

Para romper com este sistema é necessário que se crie uma nova sociedade. Esta sociedade

democrática deve ser governada desde a base por meio de conselhos, comunas e organizações

democráticas que congreguem a totalidade da população. Este é o terceiro ponto de análise das

“rupturas sexuais”. Öcalan acredita que estamos passando pela terceira grande ruptura. Desta vez

contra o “macho dominante” e, esta ruptura, é liderada pelas mulheres. Estas mudanças sociais

serão instrumentalizadas por meio da autonomia democrática e predispõem uma estrutura social

descentralizada. Deste modo, o pensamento do líder curdo encontra-se em oposição à organização

política centralizada na autoridade estatal, acreditando ser o modelo de Estado-nação a maior

estrutura reprodutora do sexismo, nacionalismo e militarismo, ideologias de poder e autoridade.

OConfederalismo Democrático pressupõem diversidade, participação direta, engajamento político

de todos os cidadãos e cidadãs. Por esta razão afirma-se que a Modernidade Democrática é uma

alternativa à Modernidade Capitalista, centralizadora, homogenizadora que está na base da

sociedade de consumo (KNAPP, FLACH, AYBGA, 2016).

Öcalan encoraja as mulheres a liderar o processo de transformação ao mesmo tempo que

desafia os homens a questionarem a naturalização das relações de poder reproduzidas por eles

29 El desarrollo de esta autoridad y jerarquia antes del comienzo de la sociedad de clases […] es cualitativamente

diferente de la cultura de la madre-mujer. La recolección y más tarde el cultivo, que eran actividades predominantes de

la cultura de la madre-mujer, son actividades pacíficas que no requieren acciones de guerra. La caza, a la que

principalmente se dedica el hombre, se apoya en la cultura de la guerra y en la autoridad violenta.

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dentro e fora da organização. Diferentemente do que estabelece o pensamento marxista, Öcalan não

acredita que seja necessário um processo etapista para a construção de uma democracia radical.

Para o líder curdo é possível que seja criada uma sociedade radicalmente democrática independente

da etapa produtiva que esteja a sociedade. Sua influência e participação na transformação radical do

movimento é inegável. Pode-se dizer que sem seu engajamento as mudanças que deram a

centralidade ao movimento de mulheres não haveria sido possível. As mudanças estruturais da

década de 1990 causaram transformações profundas no movimento curdo e, sobretudo, na

organização política do partido. A importância da educação, formação e instâncias de debate teórico

e ideológicos foram essenciais para este período, principalmente como sendo espaços de

participação das mulheres e inserção das mesmas no âmbito público da sociedade.

Em outras palavras, assim como salienta Yasar (2015)

Estamos falando de uma luta interna muito densa durante 15 anos entre homens e mulheres

do nosso Partido. Tínhamos academias ideológicas em várias partes do Líbano e da Síria e

conseguimos colocar no coração da formação a questão da separação entre homens e

mulheres (...). Conseguimos tudo isto por meio de uma luta interna no PKK. Também, ao

mesmo tempo que tínhamos uma vantagem no movimento do PKK, tínhamos uma relação

direta com a sociedade. (...) essa relação direta nos ajudou muito. Antes, nossa prioridade

como Partido era a independência nacional da nação curda mas, depois, conseguimos

transformar para a libertação da sociedade. Então é a libertação da sociedade mais

prioritária que a independência nacional. Chegamos à conclusão de que a única dinâmica

que é capaz de libertar a sociedade não é a classe trabalhadora mas as mulheres (tradução

nossa)30(YASAR, 2015, tradução nossa).

Em linhas gerais, fica perceptível que, de acordo com a ideologia do PKK, o sistema

patriarcal justifica a exploração em suas mais diversas formas, por exemplo, desde a exploração dos

recursos naturais até a exploração das mulheres. Para que isto seja superado é necessária a criação

de uma nova sociedade que esteja ancorada em princípios de uma economia ecológica, valores

antipatriarcais e democracia radical de base (KNAPP, FLACH, AYBGA, 2016).

Rojava: o farol do Oriente Médio

Em 2005, conjuntamente aos debates da jineologî é instituída a KJK (União de Mulheres do

Curdistão), uma estrutura administrativa confederada que age como uma organização guarda-chuva

30 Estamos hablando de una lucha interna muy densa durante 15 años entre hombres y mujeres de nuestro

Partido. Teníamos academias ideológicas en varias partes de Líbano y Siria, y en el corazón de la formación logramos

someter esta cuestión de la separación de la organización entre hombres y mujeres (…). Logramos todo esto en una

lucha interna a través del PKK. También, al mismo tiempo que teníamos una ventaja en el movimiento del PKK,

teníamos una relación directa con la sociedad. (…) esa relación directa nos ayudó mucho. Antes, nuestra prioridad

como partido era independencia nacional de la nación kurda, pero después logramos transformar para la libertad de la

sociedad. Entonces la libertad de la sociedad era más prioritaria que la independencia nacional. Y llegamos a lo

conclusión que la única dinámica que puede lograr liberar a la sociedad no es una clase trabajadora, son las mujeres.

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10 Seminário Internacional Fazendo Gênero 11 & 13thWomen’s Worlds Congress (Anais Eletrônicos),

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coordenando movimentos de mulheres que atuam nas quatro partes do Curdistão. A KJK é

estruturada em duas esferas: uma que gestiona questões de justiça, unificada pelo KJB (Alto

Conselho das Mulheres) e, outra, que tem como escopo a autodefesa, coordenada pela YJA (União

de Mulheres Livres). Esta organização interage com as demais organizações políticas e sociais da

região garantindo que os debates de gênero sejam implementados em todos os setores da sociedade.

O movimento de mulheres Yekîtiya Star é organizado autonomamente em todas as esferas

da vida, desde à defesa, à economia, à educação e à saúde. Os Conselhos autônomos de

mulheres existem em paralelo aos conselhos do povo e podem vetar decisões deste último.

A discriminação de gênero, os casamentos forçados, violência doméstica, crimes de honra,

poligamia, casamento infantil, e o dote são criminalizados. Em todas as esferas, incluindo

as forças internas de segurança, Unidades de Defesa do Povo (YPG) e Unidades de Defesa

das Mulhers (YPJ), a igualdade de gênero é uma parte central tanto na educação quanto na

formação (DIRIK, 2015)31 (tradução nossa).

Nota-se que existe um engajamento profundo do movimento de mulheres na gestão das

instituições (sejam elas mistas ou exclusivas) e no desenvolvimento de plataformas políticas (tanto

do PKK quanto dos demais partidos e organizações vinculadas ao projeto do movimento curdo).

Estas mudanças são guiadas pelo processo epistemológico da jineologî, processo este, que tem por

objetivo romper com a ciência positivista, criar uma ciência social feminina (feminista) e

emancipatória em todas as esferas do conhecimento.

Depois da guerra civil na Síria (iniciada em 2011) os curdos em Rojava optaram por uma

chamada “terceira via32” que busca se manter distante do conflito entre a oposição e o governo de

Al-Assad e, ao mesmo tempo, implementar a política ideológica criada pelo líder do PKK,

Abdullah Öcalan. A população local, apoiada pelo PYD33 e PKK, decidiram formar o TEV-Dem34.

Rapidamente o movimento ganhou apoio popular principalmente porque, em decorrência da

retirada das tropas governistas da região, a situação política ficou extremamente caótica. Deste

modo o TEV-Dem decide organizar um programa desenvolvido para ser inclusivo e convocou à

participação de populações não curdas. Deste modo, yazidis, assírios, curdos, muçulmanos, cristãos

e chechenos foram acolhidos nesta estrutura político-social. O primeiro passo foi a criação de

comitês e comunas nos mais variados espaços em níveis (bairros e cidades). A função organizativa

31 The women’s movement Yekîtiya Star is autonomously organized in all walks of life, from defense to

economy to education to health. Autonomous women’s councils exist parallel to the people’s councils and can veto the

latter’s decisions. Gender-based discrimination, forced marriages, domestic violence, honor killings, polygamy, child

marriage, and bride price are criminalized. In all spheres, including the internal security forces and the People’s Defense

Units YPG and Women’s Defense Units YPJ, gender equality is a central part of education and training (DIRIK, 2015). 32 Vale destacar que a chamada “terceira via” curda não tem relação com a proposta social-democrata mas,

apenas, um terceiro caminho, alternativo, às propostas políticas apresentadas na guerra da Síria. 33 Partido Democracia dos Povos. 34 Movimento de uma Sociedade Democrática.

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11 Seminário Internacional Fazendo Gênero 11 & 13thWomen’s Worlds Congress (Anais Eletrônicos),

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e coordenadora destas organizações permite que se crie uma estrutura mais participativa sendo

capaz de gerenciar as necessidades locais de maneira mais eficaz que a do antigo regime sírio.

Enquanto a população, o TEV-Dem e PYD superam grandes desafios na implementação deste

sistema altamente democrático, a guerra e o embrago econômico continuam. Por esta razão busca-

se manter o paragmatismo nas relações com os demais atores do conflito na região. O diálogo com

as grandes potências ocidentais que participam ativamente na guerra da Síria é frequente no

cotidiano em Rojava. A guerra contra o EI consome boa parte dos recursos deste povo e o embargo

econômico e humanitário causa onerosas perdas para estas populações. Contudo, não são suficientes

para diminuir a organização política e institucional destas comunidades.

Conclusões:

Pode-se acreditar que esta seja a primeira vez na história em que as mulheres, por meio de

um movimento político auto-organizado e radicalmente democrático estão levando adiante uma

revolução social e política real, confirmando, assim, a nossa hipótese inicial. Este processo é o

resultado de mais de 30 anos de luta por independência agora ressignificada na busca pela

autonomia. Com estruturas políticas orientadas pelo Confederalismo Democrático Rojava se mostra

como um grande laboratório a céu aberto das mudanças ocorridas no pensamento do movimento

curdo. A presença destas mulheres vai além dos campos de batalha, toma escolas e instituições

locais. Estão em todos as esferas de organização popular sendo ativamente responsáveis pelo debate

ideológico e teórico que se desenvolve.

Em face de uma história de opressão e negação cultural o PKK surge como um elemento

aglutinador deste povo e, em pouco tempo, adquire uma proporção transnacional de apoio e

abrangência. Não se pode analisar o processo de organização das mulheres sem considerar a história

do PKK, nem vice-versa. De igual modo, não se pode ignorar a relevância do pensamento do líder

Abdullah Öcalan e de como seu reposicionamento, na década de 1990, foi decisivo para a abertura

de portas ao debate organizado pelas mulheres.

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Curdistao.pdf> Acesso: 08 outubro de 2016.

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<http://members.tripod.com/~zaza_kirmanc/research/paul.htm>. Acesso: 12 de setembro de 2015.

YASAR, Melike. Entrevista realizada pela autora deste trabalho no dia 17 de setembro de 2015.

DILAR DIRIK. Entrevista para a Radio Topo. Zaragoza. Postado em 19 de abril de 2015.

disponivel em: <http://rojavanoestasola.noblogs.org/post/2015/04/19/radio-entrevista-a-dilar-dirik-

en-radio-topo/>. Acesso em 10 de junho de 2015.

The Kurdish Woman's Revolution: feminism beyond the guerrilla

Astract: In the midst of war there is a political, social and economic revolution centered on

antipatriarchal struggle. Kurdistan is the scene of this process that brings to light a new political

model called Democratic Confederalism, based on a feminist epistemology: jineologî (women's

science). Divided between the territories of Turkey, Syria, Iran and Iraq, approximately 35 million

people live under a strong repressive regime of cultural assimilation, being the largest stateless

nation in the world. After having spent much of the century being persecuted by the governments of

these countries, it was in Turkish territory that a group of Kurdish students founded in 1978 the

PKK (Kurdistan Workers' Party) and, later, the guerrilla, the main focus of resistance against

Governments of the region. The objective of this work is to expose the participation of women in

the Kurdish revolutionary process, especially after the 1980s, culminating in the creation of three

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13 Seminário Internacional Fazendo Gênero 11 & 13thWomen’s Worlds Congress (Anais Eletrônicos),

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autonomous cantons in northern Syria, Rojava, which constitute an open laboratory of the first

structurally feminist revolution of the history. Starting from the questioning of whether this social

model will be an adequate alternative to establish a society capable of breaking with the state-

centric and patriarchal structures of the region, we consider that this process constitutes a milestone

in the history of the Middle East, especially with regard to political organization and Of the region,

especially with regard to jineologî.

Keywords: Kurdish woman's movement, Kurdistan, jineologî, Kurdistan Workers' Party.