a revolução -...

9
CARLOS RYDLEWSKI GUILHERME ZAUITH a revolução possível Como um grupo de professores do interior do Piauí está reescrevendo o destino de seus alunos a partir das salas de aula. Se alguém procura uma solução para as mazelas do país, pode ter certeza – ela começa por aqui A PALHA DA CARNAÚBA já foi colhida. Agora, os troncos dessas palmeiras imen- sas, como espantalhos nus ao longo da estrada, observam os viajantes. O Sol preen- che tudo, como sempre fez em qualquer recanto do planeta. Só que, no interior do Piauí, ele atinge os homens como um malho alcança uma bigorna. Dói. E torna tudo seco, e cinza. Mas isso não é definitivo. De repente, basta uma chuvinha, por mixuruca que seja, e a cena toda se tinge de verde. O que era desértico passa a ser viçoso, num malabarismo biológico de agilidade estonteante. Essa é uma artima- nha antiga do agreste, que gosta de zombar do forasteiro. A alteração é tão brusca que parece espalhar uma palavra pela paisagem – esperança. Como se vê, ali, o cenário não só fala como tem lá as suas expectativas. Afinal, a qualquer momento, tudo pode mudar. Então, tudo pode acontecer. 70 71 epocanegocios.globo.com epocanegocios.globo.com Abril 2016 Abril 2016 ESPECIAL

Transcript of a revolução -...

Page 1: a revolução - editora.globo.comeditora.globo.com/premios/assets/epocanegocios-revolucaoed-110.pdf · formado na cidade, em uma escola pública, ... viviam em uma espécie de ioiô

CARLOS RYDLEWSKI GUILHERME ZAUITH

a revolução possível

Como um grupo de professores do interior do Piauí está reescrevendo o destino de seus alunos a partir das salas

de aula. Se alguém procura uma solução para as mazelas do país, pode ter certeza – ela começa por aqui

A PALHA DA CARNAÚBA já foi colhida. Agora, os troncos dessas palmeiras imen-sas, como espantalhos nus ao longo da estrada, observam os viajantes. O Sol preen-che tudo, como sempre fez em qualquer recanto do planeta. Só que, no interior do Piauí, ele atinge os homens como um malho alcança uma bigorna. Dói. E torna tudo seco, e cinza. Mas isso não é definitivo. De repente, basta uma chuvinha, por mixuruca que seja, e a cena toda se tinge de verde. O que era desértico passa a ser viçoso, num malabarismo biológico de agilidade estonteante. Essa é uma artima-nha antiga do agreste, que gosta de zombar do forasteiro. A alteração é tão brusca que parece espalhar uma palavra pela paisagem – esperança. Como se vê, ali, o cenário não só fala como tem lá as suas expectativas. Afinal, a qualquer momento, tudo pode mudar. Então, tudo pode acontecer.

70 71epocanegocios.globo.com epocanegocios.globo.comAbril 2016 Abril 2016

E S P E C I A L

Page 2: a revolução - editora.globo.comeditora.globo.com/premios/assets/epocanegocios-revolucaoed-110.pdf · formado na cidade, em uma escola pública, ... viviam em uma espécie de ioiô

UM SALTO IMENSO Cocal dos Alves e Capitão de Campos têm taxas de analfabetismo superiores a 40%, mas mostram que é possível ter educação de qualidade

OCAL dos Alves é um lu-garejo cravado no norte do Piauí, onde sobrevi-vem, como se diz na re-gião, perto de 6 mil almas. À primeira vista, ele não difere das centenas de vilarejos espalhados pe-los grotões do Nordeste. É isolado, simpático e tão quente que se torna len-

to. A cidadezinha, contudo, abriga uma tremenda con-tradição (e bota tremenda nisso!). Ela está entre os 30 municípios brasileiros com o pior Índice de Desenvol-vimento Humano (IDH). Ali, nove em cada dez pessoas fazem parte do Bolsa Família. Quase metade da popu-lação é analfabeta. Não cabe, portanto, àquele pontinho do mapa nacional outra definição além de paupérrimo.

Em contrapartida, os estudantes do município acumula-ram 232 premiações na Olimpíada Brasileira de Matemática das Escolas Públicas (Obmep), uma competição nacional, realizada desde 2005. No total, em dez anos, eles conquis-taram 17 medalhas de ouro, além de 26 pratas, 69 bronzes e uma enormidade de 120 menções honrosas. O epicentro desse fenômeno é a Escola Estadual Augustinho Brandão. Proporcionalmente (em uma relação medalha-aluno), esse é o colégio público com o maior número de distinções nessa disputa em todo o país. Ou seja, é recordista nacional.

Tão impressionantes quanto as conquistas são seus desdobramentos. Os alunos de Cocal dos Alves estão de-safiando uma sina que desde sempre se impôs na região. Com médias elevadas no Exame Nacional do Ensino Médio (Enem), eles têm ingressado em massa nas uni-versidades do estado. As taxas de aprovação da escola no vestibular ficam entre 70% e 80%. Em 2010, chegaram a bater nos 100%. Esses novos universitários, em geral, filhos de pais iletrados, estão dando um salto histórico, como se, verdadeiramente, rompessem uma barreira fincada no tempo. Numa só tacada, deixam para trás um passado obscuro, que parecia intransponível, para avan-çar sobre um futuro potencialmente promissor.

lllÉ POSSÍVEL_ Rodolfo Vieira Fontenele, de 20 anos, é um rapaz de tez clara e modos gentis. É um exemplo de quem realizou essa travessia. Filho de uma lavradora e um pedreiro, a principal fonte de renda da família, que inclui mais dois irmãos, concentrou-se por muito tem-po nas constantes peregrinações do pai rumo ao Rio de Janeiro, em busca de trabalho em obras. Na Obmep, Ro-dolfo conquistou medalhas de ouro, prata e bronze. Ele acredita que o esforço empregado na preparação das provas o qualificou ainda mais como aluno. “Isso me ajudou a desenvolver o raciocínio lógico”, diz o jovem, que sempre acrescenta um leve sorriso ao fim de cada frase, como se fosse um ponto final.

Hoje, Rodolfo cursa o terceiro ano de medicina, na Universidade Federal do Piauí (UFPI), em Teresina. Ele será o primeiro morador de Cocal dos Alves, oriun-do da zona rural (morava a 13 quilômetros do centro), formado na cidade, em uma escola pública, a se tornar médico. “Esse era o meu sonho”, afirma, desta vez pon-tuando a frase com um sorriso franco. E a barra das me-tas e desejos futuros do universitário mantém-se alta: “Tenho interesse pela neurologia”.

Sandoel Brito Viera, de 22 anos, é outro ex-aluno da cidade. Ele se define como um garoto de classe média

c(entenda-se: da classe média de Cocal dos Alves, “sem regalias; mas também sem grandes perrengues”). Seu pai é comerciante. Sandoel ganhou medalhas todos os anos em que disputou a Obmep. Foram três ouros, dois bronzes e uma menção honrosa. Foi aprovado no vesti-bular para os cursos de engenharia e matemática, tam-bém na UFPI. Instigado pelo bichinho da competição, que o cutucou desde a infância, optou pelo segundo. E detonou. Fez a graduação e o mestrado ao mesmo tem-po. (E ele nem se espanta quando pensa nisso.)

Este ano, mudou de endereço. Foi para o Rio, onde faz doutorado no Instituto de Matemática Pura e Apli-cada (Impa), um centro de pesquisas disputadíssimo e de renome internacional. É no Impa que atuam e de onde saem grandes nomes da ciência brasileira. Entre eles, Artur Ávila, que ganhou a Medalha Fields, em 2014, uma espécie de Nobel dos matemáticos. Ali, Sandoel está se divertindo com coisas do tipo “álgebra linear em dimen-são infinita” (seja lá o que isso dizer). Como conseguiu ir tão longe? “A primeira premiação, ainda no ensino fun-damental, teve um significado bastante claro para mim”, diz, em tom circunspecto, mirando o vazio, como quem faz um cálculo no ar. “Ali, percebi que era possível.”

lllONDE 1 MAIS 1 DÁ MIL_ Parece mágica. Em certo sentido, é mesmo. Mas a fórmula da reprodução das medalhas nada tem de misteriosa. Os dois principais pilares do sucesso do colégio Augustinho Brandão são conhecidos. Eles têm nome, sobrenome e profissão. An-

tônio Cardoso do Amaral, de 36 anos, e Aurilene Vieira de Brito, de 33. São professores. Amaral leciona mate-mática, embora exerça atualmente um cargo de gestão. Aurilene é a diretora. Ele é bonachão, tranquilo e flexí-vel, ainda que bastante exigente com a garotada. Ela é agitada e linha-dura. Dura mesmo. “Aurilene não tem medo de nada”, diz Amaral, sobre a colega. “Enfrenta o aluno que não quer estudar, o professor que não quer ensinar e o pai que quer atrapalhar.”

Por acumular pilhas de medalhas nas olimpíadas, Amaral é o integrante mais conhecido da dupla. Os alunos que deixam Cocal dos Alves, e rodam quase 300 quilômetros para estudar na UFPI, em Teresina, são co-nhecidos no campus da universidade como os “filhos do Amaral”. E olha que não são poucos. Estão em quase todos os cursos. Além de medicina e matemática, a lista inclui biologia, química, jornalismo, direito, engenha-ria... Enfim, a família é grande. São perto de 30 jovens, que se dividem em seis apartamentos, chamados de as “Repúblicas de Cocal”.

Por tudo isso, é justo imaginar que Amaral seja um daqueles gênios da lida, com números e raciocínios abstratos, além de uma pessoa desde sempre apaixo-nada pela educação. Quem não quiser se decepcionar com essa história é bom parar a leitura por aqui mesmo. Isso porque ele nem de longe personifica esse arquéti-po. Amaral passou a infância e a adolescência sonhando em ganhar dinheiro com o que mais amava: jogar fu-tebol. “Na verdade, nem posso me considerar um ba-talhador, um vencedor”, diz. “Dei sorte.” Deu mesmo.

fotos: Guilherme Zauith72 73

E S P E C I A L

epocanegocios.globo.com epocanegocios.globo.comAbril 2016 Abril 2016

Page 3: a revolução - editora.globo.comeditora.globo.com/premios/assets/epocanegocios-revolucaoed-110.pdf · formado na cidade, em uma escola pública, ... viviam em uma espécie de ioiô

Amaral driblou o destino. Seu pai não estudou. Sua mãe concluiu o equivalente ao quinto ano do fundamen-tal. A família, que inclui mais dois irmãos, vivia da roça e dali não extraía mais do que a subsistência. A maior parte de seus colegas de escola estudou até os 14 anos. Depois, migrou em busca de trabalho. (São histórias ro-tas de tão conhecidas, que ainda se repetem com uma frequência infame pelo país.) Quando davam sorte, os retirantes voltavam para montar um pequeno comércio. Caso contrário, viviam em uma espécie de ioiô da sobre-vivência, indo e vindo para o Sudeste, à caça de dinheiro. Amaral só enveredou pelo caminho das salas de aula por-que conseguiu uma bolsa de estudos em um colé-gio privado, o único que oferecia ensino médio (o antigo colegial) na cidade.

Ele fez o colegial téc-nico e começou a dar au-las. Na sequência, estudou matemática na Univer-sidade Estadual do Piauí (Uespi), dentro de um programa de qualifica-ção de professores. Por que matemática? Carrei-ras como engenharia e medicina eram distantes demais da sua realidade, “ilusões”, como ele defi-ne. “Eu tinha três opções: pedagogia (mas não que-ria dar aulas para crianças muito novas), educação física (gostava, mas temia não conseguir me sustentar com isso) e matemática”, diz. Optou pela última, por uma questão de ensejo: “Vai que mais para a frente eu ar-ranjasse emprego em um banco...”. Na faculdade, porém, Amaral interessou-se um pouco mais pela educação. Não pelas teorias, mas pelas pessoas que exerciam o ofício.

lllVERGONHA DA AMBIÇÃO_ Em 2002, Amaral e Auri-lene, a gestora boa de briga, participaram da fundação do que seria a base do Augustinho Brandão. “Todos os pro-fessores tinham histórias parecidas”, afirma o professor de matemática. “Queríamos dar aos meninos aquilo que não tivemos como alunos.” Mas a precariedade grassava. A escola funcionava em duas salinhas, sem carteiras. Os alunos sentavam-se no chão ou na borda das janelas. O transporte escolar era feito por uma C-10, uma picape com a traseira aberta, movida a botijão de gás. A criança-da chegava ao colégio com a pele e as roupas avermelha-

das, cobertas pela piçarra, um pó usado para revestir as estradas sem asfalto que cortam a região, nor-malmente ligando os pe-quenos centros urbanos às zonas rurais. “Era uma escola sem eira nem bei-ra”, afirma Aurilene. “Não tínhamos nada.”

Na verdade, tinham algo: ambição. É o que se depreende do documen-to que fixou a proposta pedagógica e a visão de futuro daquela turma. Ele definia que o colégio iria se transformar na “melhor escola pública do Piauí” e “seria reco-nhecida em todo o país pela qualidade do ensi-

no”. “Não mostramos isso para ninguém”, diz Aurilene. Por quê? Vergonha do quão surreal aquela ideia soaria a ouvidos alheios. “Ainda assim, ela se mostrou proféti-ca”, afirma a diretora. Agora, o lema foi alterado. O ob-jetivo atual é “expandir”. Embora o termo soe um tanto enigmático, o logotipo da escola traz um indício de seu significado. Ele retrata um bonequinho estilizado, cra-vando uma bandeira no solo, numa alusão à chegada do homem à Lua. Ou seja, eles miram longe.

Até 2005, contudo, as coisas não iam bem. Amaral vivia às turras com pais e estudantes, em meio a perma-nentes ameaças de reprovação. “Cheguei a ficar de olho nos concursos públicos, para mudar de profissão”, diz. Foi

DETALHE Werbety Costa renovou o ensino em Capitão de Campos a partir da geometria

OS PILARES Antônio Amaral e Aurilene Brito à frente da escola pública com o melhor desempenho em matemática do país

fotos: Guilherme Zauith 75

E S P E C I A L

epocanegocios.globo.comAbril 201674 epocanegocios.globo.com Abril 2016

Page 4: a revolução - editora.globo.comeditora.globo.com/premios/assets/epocanegocios-revolucaoed-110.pdf · formado na cidade, em uma escola pública, ... viviam em uma espécie de ioiô

aí que, na visão dos gestores, o projeto ganhou impulso. Surgiram os primeiros prêmios da olimpíada de matemá-tica. E vieram numa enxurrada. Foram 17 distinções, sen-do duas medalhas de prata, uma de bronze e 14 menções honrosas. “Vi que estávamos no caminho certo e o traba-lho fazia sentido”, diz o professor. De quebra, ele partici-pou de um curso de qualificação, oferecido pela Obmep, no Rio. “Ali, conheci professores de matemática de todos os lugares do país e entendi o que eu deveria fazer na sala de aula”, afirma. “Voltei completamente inspirado.”

lllCOMO PRODUZIR CAM- PEÕES_ Nesse momento, começou a ser construída a máquina de produzir medalhas – e, principal-mente, alunos campeões no norte do Piauí. No iní-cio, o professor mal sabia o que fazer. Pesquisava as questões das provas na internet e preparava aulas de reforço para a garotada. Elas aconte-ciam entre três e quatro vezes por semana. O pro-blema é que ele mal con-seguia decifrar algumas perguntas voltadas para o ensino médio. Resol-veu terceirizá-las. “Elas eram muito difíceis”, diz. “Mas eu tinha duas alunas muito boas e passei tudo para elas. Deu certo.”

A engrenagem foi azeitada com o tempo. Na verda-de, a olimpíada cria uma dinâmica peculiar nas escolas nas quais o ambiente lhe é favorável (leia mais à pág. 87). Ela atua como uma espécie de gatilho educacional. Fun-ciona assim: os alunos, ainda que minimamente orien-tados, conquistam as primeiras vitórias. Começam, a partir daí, a ser contaminados pelo vírus do desafio e buscam novas premiações. Isso cria um sistema benfa-zejo, que funciona num misto de disputa e brincadeira e se retroalimenta. A autoestima também encorpa à me-dida que surgem novas medalhas. E pronto. No mais, é só alimentar o fogo.

Nesse processo, destaca Amaral, os estudantes tam-bém aprendem a se organizar e a suportar cargas cres-centes de estudo. “Esses meninos de Cocal dos Alves aguentam um rojão”, diz João Xavier da Cruz Neto, do Departamento de Matemática da UFPI e coordenador da Obmep no estado. “Dez horas de trabalho é fichinha para eles. Pode ser sábado, domingo, às 7 horas da noite, eles ficam por aqui, na faculdade. Os professores logo perce-bem quando chega um aluno da cidade.”

Dentro da escola, esse mecanismo não tem por que ficar restrito à matemática. E não fica. Ao contrário, irra-dia-se. Os estudantes melhoram em outras matérias, além

de participar de com-petições de toda a sorte. Elas incluem áreas como física, química, astrono-mia, robótica, português, informática... “Acho que não tem nenhuma olim-píada de que a gente não participe”, diz Aurilene. “E temos o hábito de ga-nhar muitas delas.”

lllEFEITO MULTIPLICA-DOR_ O sucesso da garo-tada de Cocal dos Alves contaminou outras esco-las do interior do Piauí, em uma espécie de efeito multiplicador. Isso acon-teceu em cidades como Piripiri, Lagoa Alegre, Co-

cal de Telha e Boa Hora. Capitão de Campos, com 11 mil habitantes, na região central do estado, a 130 quilômetros de Teresina, viveu uma experiência desse tipo entre 2011 e 2014. Ali, o catalisador do processo foi o professor de história Werbety Araújo Costa, de 37 anos. Sua platafor-ma de lançamento foi a Escola Estadual Paulo Ferraz.

UM FEITO Franciele Cardoso, que conquistou uma vaga em direito, e a professora Ruth do Vale

AO ESPAÇO Antônio Almeida (à esq.) e Felipe Machado exibem o prêmio de uma prova

nacional de lançamento de foguetes

77epocanegocios.globo.comAbril 2016fotos: Guilherme Zauith76

E S P E C I A L

epocanegocios.globo.com Abril 2016

Page 5: a revolução - editora.globo.comeditora.globo.com/premios/assets/epocanegocios-revolucaoed-110.pdf · formado na cidade, em uma escola pública, ... viviam em uma espécie de ioiô

É brincadeira A educação é vista pelos garotos

como um jogo e uma oportunidade de mudar de vida

A OLIMPÍADA de matemática vira uma brincadeira entre os alunos mais novos do colégio Augustinho Brandão, em Cocal dos Alves (PI). Isso pode soar estranho para adolescentes hiperconectados das grandes metrópoles. Mas, ali, as opções de lazer são minúsculas. Elas se resumem a encontros na praça e a visitas a amigos. Sho-ppings e cinemas? Nem pensar. Ficam a centenas de quilômetros de distância. É por isso que os irmãos Francisco Anderson da Silva Brito (centro), de 14 anos, vencedor de uma medalha de prata no ano passado, Jeferson (à esq.), de 13, que levou um bronze, e Márcio, de 12 anos, ainda na luta por um “título”, falam das provas como quem se refere a um jogo, mas que pode ir muito além de um passatempo. Eles disputam entre si quem vai tirar as melhores notas e ganhar uma premiação. Vivem com os pais em uma casinha modesta, com três cômodos, na franja da zona rural da cidade. Moram a 12 quilômetros do colégio, penam para chegar até lá, mas vão satisfeitos. “A gente sabe que a única chance de melhorar na vida é pelo estudo”, diz Jeferson, o mais falante do trio. Essa é outra lição que os garotos de Cocal dos Alves já aprenderam.

fotos: Guilherme Zauith78 79epocanegocios.globo.com epocanegocios.globo.comAbril 2016 Abril 2016

E S P E C I A L

Page 6: a revolução - editora.globo.comeditora.globo.com/premios/assets/epocanegocios-revolucaoed-110.pdf · formado na cidade, em uma escola pública, ... viviam em uma espécie de ioiô

da usava os banheiros para produzir vídeos pornográficos com celulares. “A única sala que tinha ar-condicionado era a do diretor”, afirma Werbety. “A primeira coisa que fiz foi fechá-la. Eu ficava andando pelos corredores.”

A instituição também não tinha regimento interno ou proposta pedagógica. Não havia nem sequer um conse-lho. Ele o criou. Para isso, recrutou alunos e a população (ao menos, uma parte singular dela). “Como eu conhecia todo mundo na cidade, saí convocando os pais mais brigões da região para participar do grupo”, afirma. “Quando um professor faltava, eu não descontava o dia no contracheque. Mandava ele se explicar para os conselheiros. Ele tinha de prestar contas para a comunidade.” Outra mudança cru-cial: a compra da merenda escolar só podia ser feita com a assinatura de três dos rabugentos integrantes do conselho.

No campo pedagógico, Werbety teve insights precio-sos. Ele vasculhou, em detalhes, os dados sobre o desempe-nho dos alunos entre 2005 e 2010. Levantou, por exemplo, qual era o principal motivo de reprovação e evasão escolar. “Foi aí que me deparei com a matemática”, diz. “Ela era o grande bicho-papão da turma.” Dentro desse “monstro”, porém, havia outro, um tanto mais oculto – a geometria.

O conteúdo completo das matérias raramente era pas-sado pelos professores durante o ano. Como as aulas de geometria estavam programadas para o fim do período letivo, ninguém sabia lhufas sobre o assunto. E o tema era constantemente requisitado nas provas do Enem. “Foi aí que eu criei um projeto específico para geometria”, afir-ma o professor. “Isso começou a mudar o resultado das

Franzino, Werbety, como é conhecido na região (fa-la-se Uérbeti), é tão agitado que parece uma usina atô-mica ambulante. “Sou inquieto mesmo”, diz. Sua história parece um repeteco da narrativa dos demais mestres da região. O pai não estudou. A mãe não concluiu o funda-mental. Considerando a população com 25 anos ou mais, a taxa de analfabetismo no município é de 40%. Foi por um triz que ele não largou os livros na adolescência.

Como não havia escolas públicas de ensino médio em Capitão de Campos, ele foi para um colégio parti-cular na cidade vizinha. Sua mãe, mesmo que varasse noites sobre uma máquina de costura, não conseguiu bancar as mensalidades. O pai lidava na roça. Subsis-tia, enfim. “Tive de desistir no terceiro ano porque, nas semanas de exames, a diretora entrava na sala de aula e dizia: ‘Quem não pagou, não faz prova’”, afirma. “De-pois, ela lia uma relação com o nome dos devedores.” Werbety era presença garantida na lista de inadimplen-tes. Ele não suportava aquela humilhação.

Só se manteve nos bancos escolares porque um profes-sor da mesma instituição, João Afonso de Sousa, conhecido como Baué, o procurou. “Como eu era um bom aluno e par-

provas.” Mas faltava outra coisa. “Como sou apaixonado por competitividade, vi que o colégio não participava de nenhuma olimpíada”, diz. “Entramos em várias delas.”

lllA EDUCAÇÃO COMO TRAMPOLIM_ Para entender os meandros dessas disputas estudantis, Werbety e seus dois fiéis escudeiros, os irmãos e professores de matemá-tica Antônio Marcos, de 30 anos, e Jackson Oliveira, de 20, foram beber na fonte primária. Desabaram para Cocal dos Alves, a “Pitagorândia” do Piauí, cujos feitos à época já corriam o país. Ali, foi a autoestima dos alunos o que mais chamou a atenção do trio. “A garotada se achava melhor do que a competição”, afirma Jackson, chamado pelas crianças de Jacão. “Elas não viam as provas como uma barreira, mas, sim, um trampolim.”

Os bons resultados – e os talentos – não demoraram a despontar em Capitão de Campos. Em 2010, menos de 50% dos alunos da Paulo Ferraz participavam do Enem, sendo que no máximo cinco deles eram apro-vados nos vestibulares. “Eles nem tentavam fazer as provas, porque achavam que não teriam chances”, diz Werbety. Em 2011, esse percentual saltou para 80%, e perto de uma centena conseguiu vagas em universida-des tanto públicas como privadas. Na olimpíada de ma-temática, a escola deu o primeiro sinal de vida em 2012. Ganhou uma menção honrosa. No ano seguinte, foram cinco bronzes e oito menções. Em 2014, deu-se o estou-ro: dois ouros, duas pratas, três bronzes e 15 menções.

Os professores rapidamente entenderam o sentido desses resultados e os propagaram por todos os cantos. Werbety adotou a tática de “bater o tambor”. Ele fazia barulho com cada vitória. Banners com o nome dos vencedores eram espalhados pelo colégio. Os premia-dos davam nome às salas de aula. “Em vez de fazer a prova na ‘Sala 1’, por exemplo, eles seguiam para a ‘Sala

ticipativo, ele queria que eu voltasse às aulas”, diz Werbety. “Eu expliquei a situação e ele se propôs a quitar todos os débitos, que se arrastavam a mais de um ano. Esse homem passou a ser a grande referência na minha vida.”

lllUM EX-ANTRO_ Werbety lecionava na Paulo Ferraz des-de 2003, quando, em 2011, foi alçado a diretor. Assumiu o cargo por um motivo simples: ninguém o queria. O colégio, nessa época, era o que ele define como um antro travestido de escola. Havia consumo de drogas e bebidas. A garota-

TININDO As melhorias no colégio de Cocal dos Alves só vieram com as medalhas na Obmep

DÚVIDA Joana Andrade, em sua casa. Ela ganhou uma bolsa na Flórida (EUA). Agora, tem dúvidas sobre o futuro da escola em Capitão de Campos

fotos: Guilherme Zauith80 81

E S P E C I A L

epocanegocios.globo.com epocanegocios.globo.comAbril 2016 Abril 2016

Page 7: a revolução - editora.globo.comeditora.globo.com/premios/assets/epocanegocios-revolucaoed-110.pdf · formado na cidade, em uma escola pública, ... viviam em uma espécie de ioiô

Joana’”, afirma Antônio Marcos. “E isso não desesti-mulava os meninos que não tinham conseguido meda-lhas. Eles também se sentiam desafiados.”

Anne Beatriz de Souza, de 13 anos, que concorre ao prêmio de menina mais tímida do Piauí, foi um dos talen-tos revelados nessa avalanche. Ela fala pouco, pouquís-simo, mas calcula que é uma beleza. Em 2014, emplacou um ouro. E fez mais: foi a estudante com maior pontua-ção do torneio em todo o Nordeste. Obteve ainda a ter-ceira melhor nota do país. Criada pelos avós, ela ficou tão empolgada com o prêmio que se tornou uma aficionada por números e equações. Resolveu até se filiar à Socie-dade Brasileira de Mate-mática (SBM). Para isso, encaminhou um e-mail à instituição. Como res-posta, recebeu um delica-do não. Afinal, não tinha nem idade para isso. A menina, no entanto, não se resignou. Retrucou, descrevendo o fascínio que sentia pela matéria e argumentando que havia sido premiada e... Bem, a SBM cedeu. Anne tornou-se, muito provavelmente, a mais jovem associada da entidade no país.

lllPERCALÇOS PARRU-DOS_ O intrigante, aqui, é que todas essas conquis-tas de alunos e professores ocorrem em um ambiente in-sólito. É assim quer pela pobreza da região, quer pela área onde elas incidem – a depauperada educação pública. É por esse motivo que essas pessoas podem ser vistas como artífices de uma revolução improvável, embora ela esteja se mostrando possível em condições ideais de tempera-tura e estímulo. O problema é que essa caminhada não ocorre sem percalços. E, não raro, bem parrudos.

Não é tarefa simples para esses jovens universitários, por exemplo, sobreviver longe de casa. Em suas cida-des, eles levam uma vida comedida, mas a base está lá, garantida. Maria dos Remédios da Silva Andrade, de 19 anos, enfrenta esse tipo de problema. Remédios, como

é chamada, nunca ganhou uma medalha. Ainda assim, realizou seu sonho – ir para a UFPI, onde faz engenharia agronômica. Ela atribui boa parte da vitória ao fato de ter mergulhado nesse caldo de autoestima e competição, in-troduzido na escola de Capitão de Campos. Para manter-se na capital, conta com uma bolsa de R$ 400, oferecida pela universidade (Werbety a conseguiu com o reitor da instituição). O valor cobre o aluguel e a luz. As refeições são feitas no campus. Subsidiadas, elas saem por cerca de R$ 1 no bandejão universitário. A família ajuda com R$ 100 ou R$ 200 mensais, dependendo da situação. Por “situação”, entenda-se algo que, com razoável frequên-

cia, é bem dura. Em Teresina, a garo-

ta, que fala com um mis-to de doçura e assertivi-dade, passa a maior parte do tempo sobre livros. “Ainda nem sei andar di-reito por aqui. Nem estou acostumada a tomar ôni-bus. Tudo isso é novo para mim”, diz. Sua meta é en-veredar por uma carrei-ra acadêmica. Pensa em mestrado, em doutorado. Por que não? Ela apren-deu – e comprovou – que “é possível”. Remédios acredita que talvez até ajude a vencer os desafios da agricultura no semiá-rido. “O que eu aprendo aqui quero levar para Ca-

pitão de Campos. Lá, o povo nem planta mais. Não tem ex-pectativa nenhuma com a produção”, afirma a estudante.

Também não se pode dizer que Anderson Ferreira da Silva, de 18 anos, leve uma vida folgada na capital piauien-se. Ele é outro ex-aluno de Capitão de Campos e, agora, cursa engenharia civil na Universidade Estadual do Piauí

IMPULSO Para Rodolfo Fontenele, que estuda medicina, professores funcionaram como catalisador

SEM LIMITES Sandoel Vieira estudou na escola de Cocal dos Alves e, agora, faz

doutorado em matemática no Impa, no Rio

fotos: Guilherme Zauith82 83

E S P E C I A L

epocanegocios.globo.com epocanegocios.globo.comAbril 2016 Abril 2016

Page 8: a revolução - editora.globo.comeditora.globo.com/premios/assets/epocanegocios-revolucaoed-110.pdf · formado na cidade, em uma escola pública, ... viviam em uma espécie de ioiô

(Uespi). Como Remédios, ele não fez grandes estragos nas competições. Ganhou menções em torneios de matemáti-ca e geografia. Mas deu o grande salto: “O professor Wer-bety me disse que eu tinha potencial.” Ele acreditou. En-roscado entre soluços e pausas para conter a emoção, mal consegue falar quando pensa no tamanho do buraco da falta de oportunidades que tinha diante de si poucos anos atrás. “Eu realmente não tinha muita esperança”, afirma, como se as palavras pesassem toneladas. Mas, agora, a cena que visualiza quando pensa no futuro é diferente: “Pontes e grandes obras”, afirma. “Eu gostaria de cons-truir coisas assim, que as pessoas pudessem ver e eu sabe-ria que ajudei a erguê-las.”

lllA LUTA DE AURILE-NE_ Os desafios não se resumem a problemas financeiros. Há entraves mais cabeludos. Eles têm a ver com o tema falên-cia institucional e não se limitam ao interior do Piauí. Nesse caso, têm um alcance bem maior. Valem para todo o país. Mesmo porque manter uma pro-posta educacional viva, voltada para o futuro, de-veria ser uma tarefa pra-zerosa, ainda que exaus-tiva. Em geral, não é isso o que acontece. Nas es-colas públicas, mesmo as que funcionam, a tônica do dia é dada pela palavra luta.

Ela se desdobra em diversas frentes: a luta contra a influência de políticos; a luta contra um sistema público de ensino que não só permite, mas estimula o fracasso; a luta contra a mais elementar falta de recursos; a luta con-tra a mediocridade e autoindulgência de profissionais

descompromissados; a luta contra o desestímulo e o ma-rasmo dele decorrente; e assim por diante, numa grande e contínua série de outras lutas mais. “É tanta briga que chega a ser enfadonho”, diz Aurilene. “Mas, quando me deparo com a realidade de outras escolas, percebo que vale a pena. Parece que estou em uma ilha. Na verdade, é justamente isso: estamos numa ilha.”

O termo “realidade”, para Aurilene, equivale ao conjunto de “atrocidades” que escuta sobre outros co-légios públicos quando comparece a reuniões de líde-res educacionais. “Eu não teria coragem de colocar um filho meu para estudar em um lugar desses”, afirma a

diretora, que é mãe de um garoto de 8 anos. “É por isso que digo para os professores que não po-demos nos comparar ao que há de ruim por aí. Se fizermos isso, vamos lar-gar mão”, diz. “Nós sabe-mos que ainda há muito a melhorar, que estamos fazendo o básico do bá-sico, mas o básico, em educação, rende muito resultado.”

Entre os maiores pro-blemas que Aurilene en-frenta está a rotatividade de professores. Dos 22 profissionais do colé-gio, quatro são efetivos. O restante, o grupo de temporários, roda em

ritmo que varia de ano a ano. No início de 2016, entra-ram quatro novos docentes. Eles têm de passar por uma adaptação. Aurilene e Amaral não abrem mão de provas semanais, aplicadas para todas as turmas. As sabatinas têm de ser corrigidas e os resultados, levados aos pais. No ensino médio, desde o primeiro ano, são feitos si-mulados como preparação ao Enem. “Isso dá trabalho e o professor tem de rebolar para achar questões de bom nível”, diz a diretora. “Mas, como a educação é uma área falida no Brasil, e todo mundo sabe disso, muitas vezes a pessoa não quer se coçar. Por que ela vai fazer mais se, sem fazer nada, ganha o mesmo?” O salário dos profissionais temporários, com gratificação, é de R$

NO LIMITE Remédios e Anderson, felizes, mas com dificuldades para viver em Teresina

A CAMPEÃ Anne Beatriz, de Capitão de Campos, fala pouco, mas obteve a maior pontuação do NE na olimpíada de 2014

fotos: Guilherme Zauith84 85

E S P E C I A L

epocanegocios.globo.com epocanegocios.globo.comAbril 2016 Abril 2016

Page 9: a revolução - editora.globo.comeditora.globo.com/premios/assets/epocanegocios-revolucaoed-110.pdf · formado na cidade, em uma escola pública, ... viviam em uma espécie de ioiô

2,2 mil. Um efetivo ganha R$ 2,8 mil. Isso é pouco em qualquer lugar, mas nos pequenos municípios do país é acima do normal. Em Cocal dos Alves, a renda média era de R$ 183,59 em 2010.

lllUMA TRANSFORMAÇÃO CHOCANTE_ As grandes transformações físicas no Augustinho Brandão também só aconteceram após o sucesso nas olimpíadas – e muitas boas brigas. Hoje, não é difícil entender a reação embas-bacada do visitante que chega ao colégio e conhece a sua história (dos tempos das duas salinhas, sem carteiras, e da C-10). É um baita choque. Equivale a colocar os dois dedos na tomada. As insta-lações são todas novinhas. Elas incluem salas de aula climatizadas, refeitório, biblioteca, dois labora-tórios, quadra esportiva.

O que mais falta, Au-rilene? “Um auditório e material para trabalhar com robótica”, diz, sem pestanejar. “Isso sem con-tar com o fardamento dos alunos.” Em 2014, a dire-tora deu uma palestra na Ambev, em Fortaleza. Em troca, pediu a doação dos uniformes para a garota-da: blusas (R$ 15 cada), calças (R$ 40) e calçados (R$ 70) para todos os es-tudantes. E levou. Mas esse é um drama anual do colégio. “Em 2016 não conseguimos nenhuma parceria com em-presas, mas demos um jeito”, afirma. O “jeito” foi juntar os parcos recursos da escola e recorrer à comunidade.

Aurilene, pelas constantes reivindicações, afirma que é tida como a “rebelde” da educação local. Ainda que a persona a incomode, parece inevitável. Ela e o professor Amaral até romperam com o prefeito da cidade, Antônio Brito (PSB), em 2013. Eles se recusavam a aceitar a in-fluência política na escola. O caso só não foi mais trau-mático porque o então secretário estadual da educação, o atual deputado federal Átila Lira (PSB), interveio. “Aque-le pessoal conquistou tudo sozinho, trabalhando em con-

dições adversas”, diz Lira. Para o parlamentar, a dupla não poderia perder o controle do colégio. “Mas a única solução para esse tipo de situação é a autonomia da esco-la, com eleição para o cargo de diretor. Caso contrário, o colégio vai enfrentar sempre dois problemas: a politiza-ção partidária e o corporativismo sindical.”

Em Capitão de Campos, esse tipo de conflito resultou no fim do projeto educacional iniciado pelo professor Werbety. Em 2015, ele deixou a direção da Paulo Ferraz. Alguns alunos não se conformaram com a mudança. En-tre eles, Joana Rafaela da Silva Andrade, de 17 anos, irmã de Remédios, que cursa engenharia agronômica, em Te-

resina. Joana acabou de ingressar na faculdade de Farmácia, na mesma UFPI. Durante a gestão de Werbety, ela e mais quatro garotas da cidade ganharam um dos prê-mios mais cobiçados pe-los estudantes da região: uma bolsa de estudos de seis meses em Orlando, na Flórida, nos Estados Unidos, em um progra-ma bancado pelo governo do estado. “Foi uma coisa inimaginável”, diz, pro-longando cada sílaba do adjetivo. “O nosso medo é que tudo isso se acabe. Muitas pessoas já estão querendo deixar a esco-la.” Entre elas, Anne Bea-

triz, a jovem integrante da Sociedade Brasileira de Ma-temática. Para ela, o nível das aulas de matemática caiu.

A secretária de Educação de Capitão de Campos, Os-carina Gomes, credita as atuais críticas a um choque pós--mudança de gestão. Ela considera natural que a troca da cúpula do colégio provoque dúvidas e insatisfações, principalmente entre adolescentes. “Mas o novo gestor é muito comprometido e conta com uma equipe forte”, diz.

TRADIÇÃO Jackson e Antônio Marcos Oliveira vêm de uma família de professores. Entre sete irmãos, somente um deles, que se ordenou padre, não seguiu a carreira

Ela reconhece que o atual grupo perdeu o foco em alguns momentos, mas a correção do rumo, observa, é uma ques-tão de tempo. O prefeito de Cocal dos Alves, Antônio Brito, afirmou que não faria comentários por telefone sobre as desavenças com Aurilene e Amaral, mas disse que não se considera um adversário da direção do colégio Augustinho Brandão e não quer comprometer seu projeto educacional.

lllVÁRIOS DRAMAS_ Política e educação, isoladas, e a intersecção entre ambas, não são temas que passam des-percebidos entre os estudantes do interior do Piauí. Lon-ge disso. Franciele de Brito Cardoso, de 19 anos, mostrou que está atenta a eles. Ela faz parte do grupo de estudan-tes que estão entre os mais pobres do Augustinho Bran-dão, em Cocal dos Alves. E o que é estar entre os mais pobres em uma cidade bem distante de ser rica (ainda que Cocal dos Alves seja bem ajeitadinha)? A diretora Aurilene explica: “É viver com R$ 100 por mês”.

É por isso que, até o fim do mês passado, Franciele vivia um drama. Ela realizou um feito incrível, ao alcance

de pouquíssimos estudantes da região. Entrou no curso de direito da UFPI, a carreira mais concorrida no esta-do. Como seu foco sempre foi letras, Franciele nunca ga-nhou uma medalha na olimpíada de matemática. Assim, não conta com alguns benefícios oferecidos pela Obmep, como bolsas para universitários. Ela ainda não tinha até recentemente, portanto, a menor ideia de como – ou mes-mo, se – conseguiria se sustentar em Teresina.

Esbelta e articuladíssima, Franciele, que vive somente com a mãe, venceu no ano passado um concurso de reda-ção (o seu ponto forte) chamado Jovem Senador. Ele sele-ciona um aluno do ensino médio por estado da federação. Os estudantes passam quase uma semana no Congresso e vivenciam a rotina de um integrante do Senado. Simulam, por exemplo, a discussão e a elaboração de leis. Franciele, na ocasião, apresentou um projeto. Propôs a criação de um órgão federal, que atuasse em microrregiões, para fiscali-zar o uso das verbas públicas em educação. “O meu ponto é o seguinte: na nossa escola, fazemos muito com pouco”, diz a garota. “Por que em todo o país não é assim?” A pergunta da garota, como se vê, é mais do que pertinente.

Uma grande lupa em busca de talentosA Obmep, a olimpíada criada pelo Impa, mobiliza 18 milhões de estudantes por ano

EXISTE uma grande peça, uma espécie de treliça, que oferece uma espécie de grande suporte para as histórias de sucesso de jovens estudantes em todo o país. Trata-se da própria Olimpíada Brasileira de Matemática das Escolas Públicas e Privadas, a Obmep. A prova foi idealizada pelo Instituto de Matemática Pura e Aplicada (Impa), com sede no Rio. Desde 2005, atua como uma grande lupa lançada sobre todo o território nacional, pronta para pinçar talentos de qualquer canto do país. E isso tem acontecido de maneira recorrente. Todo ano, 18 milhões de crianças e adolescentes participam da competição.

Uma das peculiaridades da Obmep é a forma como as questões são calibradas. O objetivo não é somente avaliar o conhecimento formal dos estudantes. Isso seria um de-sastre em se tratando de turmas de escolas públicas. Essa garotada não teria a menor chance de concorrer, por exem-plo, com os alunos de colégios militares e de aplicação, além dos institutos federais. Embora públicos, eles fazem uma seleção prévia dos candidatos a vagas. A proposta da olimpíada é aferir, por meio de questões dissertativas,

a capacidade de raciocínio dos estudantes. Anualmente, são distribuídas 6,5 mil medalhas (500 de ouro, 1,5 mil de prata e 4,5 mil de bronze) e 42 mil menções honrosas. Não é fácil conseguir uma premiação, mas também não é impossível. Esse limite tênue estimula os participantes.

O custo da olimpíada é inferior a R$ 3 por aluno (sim, você não leu errado). Os medalhistas da competição participam ainda de cursos anuais de iniciação científica, nos quais recebem R$ 100 por mês (uma quantia respeitável em pequenos municípios do país) e podem se beneficiar de bolsas de mestrado na universidade (R$ 400 por mês). “A Obmep foi o melhor teorema que criei na minha vida como matemático”, diz César Camacho, pesquisador e ex-presidente do Impa. “Mas ainda podemos aperfeiçoá-la.” Hoje, muitos estudantes deixam de ir para as universidades por falta de recursos. Todo ano, a operadora TIM oferece uma bolsa de R$ 1,5 mil por mês para 50 universitários indicados pela Obmep. Ela vale por quatro anos. Essa é uma iniciativa importante, mas ainda insuficiente para resolver o problema.

fotos: Guilherme Zauith86 87

E S P E C I A L

epocanegocios.globo.com epocanegocios.globo.comAbril 2016 Abril 2016