A riqueza da Verdadeira Educação - Capitulo

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A Educação segundo a Filosofia Perene Capítulo Oitavo - Pressupostos Metafísicos - Texto disponível para Download no site de Introdução ao Cristianismo segundo a obra de Santo Tomás de Aquino e Hugo de S. Vitor http://www.terravista.pt/Nazare/1946/

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Para a realidade do mundo da educação que nos vivemos, fundamental é uma edução voltada para o fim ultimo do homem.

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A Educao segundo a Filosofia Perene

Captulo Oitavo

- Pressupostos Metafsicos -

Texto disponvel para Download no site de

Introduo ao Cristianismo

segundo a obra de

Santo Toms de Aquino e Hugo de S. Vitor

http://www.terravista.pt/Nazare/1946/

http://www.cristianismo.org.br

http://www.accio.com.br/Nazare/1946/

VIII

Pressupostos Metafsicos.

VIII.1) Introduo.

Em tudo quanto expusemos at o momento pressupomos haver uma demonstrao dada por Aristteles e S.Toms de Aquino sobre a existncia de um ser inteligente e imaterial que seria a causa do ser de todas as coisas.

Ao iniciarmos este trabalho mostramos que a construo de um sistema educacional se articula em torno da questo do fim ltimo do homem e que a contemplao este fim ltimo para o homem.

Chegamos a esta concluso atravs de uma deduo baseada na prpria psicologia humana, mas aos poucos a existncia desta causa primeira pervadiu de tal maneira tudo quanto escrevemos que a justificativa ltima do sistema educacional que viemos descrevendo passou a transpor os dados iniciais de psicologia em que nos baseamos inicialmente para lanar razes mais profundas nesta causa primeira que a origem do ser e da ordem do cosmos.

Ser pois nossa inteno no presente captulo examinar quais so os fundamentos sobre os quais se pode demonstrar a existncia desta causa primeira que tem to profundas conseqncias sobre a prpria natureza da educao humana.

No ser possvel, entretanto, desenvolver uma demonstrao integral da existncia desta causa, muito menos examinar os vrios aspectos da demonstrabilidade da mesma; fazer isto, alm de exigir a apresentao de conhecimentos mais profundos de filosofia sobre os quais no tratamos, exigiria tambm transformar este trabalho em um tratado de Metafsica. Nosso objetivo, porm, no escrever um tratado de metafsica, mas tratar da questo da demonstrao da causa primeira na medida em que isto evidencie melhor em que sentido a contemplao o fim ltimo do homem e como a Pedagogia pode ser ordenada em torno a este fim. Vamos, portanto, desenvolver o presente captulo apenas at produzirmos alguma centelha da evidncia sobre que se fundamenta a certeza da existncia desta causa primeira, mais para termos um primeiro contato com a natureza desta certeza do que propriamente para investigar o assunto de modo abrangente.

VIII.2) As cinco vias para a demonstrao da causa primeira.

A alguns poder parecer surpreendente que nos refiramos demonstrao da existncia de uma causa primeira em termos que sugerem tratar-se de algo to complexo, e que gastemos muitas pginas de um inteiro captulo para produzir apenas alguma centelha de evidncia da existncia desta causa primeira, com receio de entrar no tema mais profundamente para no transformar este trabalho em um tratado de Metafsica. Se o assunto to complexo, como se explica que Santo Toms de Aquino exps, em algumas poucas pginas do incio da Summa Theologiae, no uma, mas cinco vias ou cinco demonstraes da existncia desta causa? Cada uma destas demonstraes no ocupa mais do que umas poucas linhas. Em uma ou duas pginas, portanto, parece poder demonstrar-se a existncia da causa primeira no s de uma, mas de cinco maneiras diferentes. Como ento podemos dizer que vamos gastar um captulo inteiro deste trabalho sem chegar a desenvolver integralmente sequer uma s?

Para responder a esta pergunta preciso examinar mais atentamente o prprio texto de Toms de Aquino.

Constata-se, em primeiro lugar, que na exposio das cinco vias S. Toms usa expresses filosficas sem se dar ao trabalho de explic-las; deduz-se da que evidentemente ele supe um leitor que conhea bem filosofia.

verdade que no prlogo da Summa Theologiae S. Toms diz que a obra se destina a principiantes:

"J que o doutor da verdade catlica deve instruir no somente os aproveitados, mas tambm os principiantes, o propsito de nossa inteno nesta obra tratar das coisas que pertencem religio crist segundo convm ao ensino dos principiantes" .

A obra, pois, se destina ao ensino dos principiantes, mas tratam-se de principiantes em Teologia, no em filosofia, pois desde o incio da Summa Santo Toms emprega termos filosficos cujo entendimento no imediato, antes, envolve conhecimento prvio de filosofia, e faz isto sem dar qualquer explicao dos mesmos, usando-os na medida em que os mesmos vo se fazendo necessrios sem qualquer ordem ou graduao de dificuldade.

Para entender a natureza da exposio das cinco vias, ademais, deve-se considerar que a demonstrao da existncia de uma causa primeira muito mais uma tarefa da filosofia do que da Teologia. Ao telogo interessa saber como a filosofia pode dar esta demonstrao, de quantas maneiras pode faz-lo e com base em que argumentos; desdobrar, porm, esta argumentao em seus detalhes um problema eminentemente filosfico e no teolgico. Por isso as cinco vias descritas no incio da Summa Theologiae no so desenvolvimentos completos destas demonstraes, mas uma exposio dos princpios sobre as quais elas se baseiam. Em sua essncia so completas; supondo um leitor perfeitamente versado em filosofia, so capazes de produzir a evidncia do que se pretende demonstrar. Mas para quem no conhece filosofia mais a fundo, elas mais parecem simples argumentos provveis destitudos de verdadeira fora demonstrativa.

preciso, ademais, levar em conta que na poca de Santo Toms de Aquino havia uma opinio muito difundida segundo a qual a existncia da causa primeira era uma verdade evidente que no necessitava nem podia ser demonstrada justamente porque as coisas evidentes no podem ser objeto de demonstrao. Por causa disso que, antes da exposio das cinco vias, na Summa Theologiae, Toms apresenta uma demonstrao de que a existncia da causa primeira no coisa evidente ; e, na Summa contra Gentiles, antes das demonstraes da existncia de Deus, Toms usa dois captulos para discutir as opinies dos que afirmavam ser evidente sua existncia e explicar porque seus argumentos careciam de fundamento .

Ademais, na Summa contra Gentiles, ele tambm afirma que

"esta opinio, (isto , a de que a existncia de uma causa primeira algo evidente que no necessita de demonstrao), tem sua origem em parte no costume, porque os homens se acostumaram desde o princpio de suas vidas a ouvir o nome de Deus e a invoc-lo. Ora, o costume, e principalmente o costume que provm desde o princpio, adquire fora de natureza; disto resulta que as coisas de que somos imbudos desde a infncia acabam por possuir tanta firmeza que nos parecem coisas naturalmente conhecidas e evidentes" .

Considerando, pois, o objetivo de conjunto da Summa Theologiae, que no era o de demonstrar a existncia de Deus, mas de um modo acessvel aos principiantes em Teologia expor

"a profundidade dos mistrios da f

e a perfeio da vida crist" ,

e considerando estas disposies de que seus contemporneos estavam imbudos, segundo a qual mais deviam ser convencidos que a existncia da causa primeira no era evidente do que do contrrio, fica claro que existem mais estes outros motivos para que na abordagem das cinco vias Toms se tivesse limitado a apontar apenas genericamente quais os fundamentos em que se baseiam as demonstraes de que ele trata do que em desenvolver plenamente as mesmas.

Deste modo, tal como so expostas, as cinco vias podem ser comparadas a uma comunicao sobre uma tcnica cirrgica apresentada em um Congresso de Medicina; toda a tcnica est ali contida, mas somente um mdico, ainda que em cirurgia seja um principiante, ser capaz de realizar a cirurgia apenas ouvindo aquela breve comunicao; o leigo que tenha estado presente comunicao, mesmo que no tivesse tido dificuldade em entender o sentido dos termos usados, no conseguiria fazer com ela o que o comunicante pretendia que se fizesse.

VIII.3) A causa primeira de todos os seres.

Vamos pois desenvolver um raciocnio, que no ser propriamente uma prova da existncia da causa primeira, mas ao longo do qual esbarraremos delicadamente vrias vzes na existncia deste ente inteligente e imaterial que a causa do ser de todas as demais coisas.

Partimos da natureza imaterial da inteligncia humana, sobre que discutimos mais pormenorizadamente no captulo IV. Na inteligncia humana, de fato, observamos operaes cujas caractersticas so tais que no poderiam ser realizadas por um rgo corporal; elas implicam, conforme comentamos no captulo IV, a imaterialidade do intelecto do homem. Embora a inteligncia necessite em suas operaes dos dados da imaginao como de seu objeto, dados estes que so um prolongamento material das operaes dos cinco sentidos, ela prpria, entretanto, no um rgo material; trabalha conjuntamente com o corpo, mas no corpo, necessita da matria para seu trabalho, mas no matria. Ressaltamos tambm no captulo IV que para a maioria dos homens esta afirmao no to evidente porque eles pouco se preocupam, ao contrrio dos filsofos, em cultivar at excelncia a faculdade do intelecto; ao contrrio, utilizam-se da inteligncia de um modo muito elementar e na maioria das vezes apenas para alcanar atravs dela pequenos objetivos imediatos da atividade corrente do dia a dia, quando ela muito se confunde com o prprio trabalho da imaginao, ou ento em atividades um pouco mais complexas, mas em que a inteligncia ainda assim se utiliza tanto do trabalho da imaginao que nem sempre se torna fcil ter uma percepo clara de seu trabalho prprio em meio atividade da fantasia. De qualquer modo, na atividade da inteligncia, especialmente naquela virtuosamente cultivada, que se manifesta pela primeira vez ao homem a possibilidade de existncia de um ente imaterial.

J que, portanto, atravs da operao da inteligncia, o homem pode apreender que a imaterialidade est entre as possibilidades do ser, no parece haver motivos para que se negue a possibilidade de existncia de entes imateriais totalmente desvinculados da matria, o que no mais o caso do intelecto do homem. importante compreender bem o alcance desta afirmao; no est se afirmando que tais entes existem de fato, mas sim que, se a inteligncia do homem verdadeiramente imaterial isto significa que a imaterialidade uma possibilidade do ser, e, portanto, no h razo para ser impossvel a existncia de um ente imaterial que no seja o intelecto humano vinculado a um corpo. Mas o fato de uma coisa ser possvel no significa que ela exista. Poderia, por exemplo, existir uma ave que fosse um animal racional tal como o homem; tal ave nunca foi vista at hoje; at prova em contrrio, uma ave que seja um animal racional no existe; mas nada impede que ela venha a existir; sua existncia uma possibilidade. Assim tambm, se a imaterialidade da inteligncia humana demonstra que a imaterialidade est dentro das possibilidades do ser, a existncia de outras entidades imateriais alm da inteligncia humana uma possibilidade. Se a possibilidade existe, suponhamos, apenas para fins de hiptese, que um ser assim existe de fato e que seja tambm uma inteligncia , e consideremos como que operaria uma tal inteligncia, supondo que existisse.

Uma inteligncia totalmente desvinculada da matria receberia em si mesma, tal como a inteligncia humana, formas desprovidas de materialidade atravs das quais inteligiria. Isto seria para ela uma decorrncia de sua prpria natureza intelectiva, e nisto ela no diferiria da inteligncia humana. Ambas perceberiam em si mesmas a existncia de idias destitudas de caractersticas materiais atravs das quais se dariam suas operaes intelectivas.

Haveria, porm, uma diferena significativa. Na inteligncia humana tais formas seriam provenientes dos dados da imaginao, sobre os quais, por abstrao, a inteligncia extrai estas formas inteligveis por meio das quais ela apreende a essncia das coisas. Inteligir por abstrao dos dados da imaginao no , para a inteligncia humana, uma opo; sua operao inteiramente dependente do trabalho da imaginao; ela no pode apreender idias ora a partir dos dados da imaginao, ora diretamente de uma forma inteligvel que no tenha sido abstrada dos dados da imaginao; at mesmo para trabalhar com idias j possudas ela necessita do trabalho paralelo da imaginao. Por isso que, se lesamos o rgo em que se processa a atividade da fantasia impossibilitamos o trabalho da inteligncia. A imaginao, portanto, ao mesmo tempo em que possibilita a atividade da inteligncia no homem, se constitui num fator que a limita. O homem no pode apreender imediatamente uma forma imaterial, tem que abstra-la dos dados da imaginao; formas muito abstratas no podem ser facilmente apreendidas, porque no so aquelas que so imediatamente contemplveis nos dados da fantasia.

Quando a inteligncia no apenas apreende, mas tambm raciocina, ento, embora a imaginao lhe auxilie o trabalho, ao mesmo tempo lhe impe outros limites; a inteligncia passa de uma idia abstrata a outra, mas o movimento da fantasia deve acompanhar o movimento da inteligncia, o que impe uma certa lentido ao pensamento, por ser o movimento da fantasia um movimento que se processa materialmente.

Se supusermos, porm, a existncia de uma inteligncia separada da matria, todas estas limitaes no existiriam. Uma inteligncia separada da matria apreenderia as formas abstratas diretamente; poderia, por isso mesmo, apreender-se a si prpria por uma percepo direta, algo que, conforme explicado no final do captulo IV, vedado inteligncia humana. Nenhuma das limitaes impostas pela imaginao capacidade abstrativa do homem existiria para uma inteligncia separada da matria.

(6)No Comentrio ao Livro das Sentenas S. Toms de Aquino afirma explicitamente que todo ser existente por si separado da matria tem que ser necessariamente de natureza intelectual(I Sent.d.35 Q.1 a.1).

Isto no significa, porm, que apenas por ser separada da matria uma inteligncia no teria limitaes. As limitaes de uma inteligncia separada da matria seriam de outra natureza. Ela teria tambm limitaes, mas apenas aquelas que lhe seriam impostas pela sua prpria natureza imaterial. Para compreender isto necessrio perceber que na imaterialidade existe uma certa graduao. Isto j um fenmeno observvel na prpria inteligncia humana, pois todas as idias existentes na mente humana so entidades imateriais, mas entre elas h idias mais e menos abstratas; a partir do momento, portanto, em que supomos a possibilidade de uma entidade independente da matria que seja uma inteligncia, necessrio admitir tambm a possibilidade de uma gradao entre elas; todas elas so desvinculadas da matria e nisto so todas igualmente imateriais, sem terem entre si gradao de mais e menos; mas na medida em que uma forma inteligvel mais abstrata dita mais distante da materialidade do que uma forma inteligvel menos abstrata, embora ambas nada tenham de matria, assim tambm deve-se admitir que pode haver uma gradao de imaterialidade entre as inteligncias separadas da matria.

Deste modo a capacidade de abstrao, se que ainda se pode usar convenientemente este termo, de uma inteligncia separada da matria limitada apenas pela sua prpria natureza, isto , pelo seu prprio grau de imaterialidade, e no mais pelo trabalho da imaginao, como era o caso do homem.

Conclui-se tambm daqui que assim como a inteligncia humana mais intensamente ser do que os seres puramente materiais, estas inteligncias separadas da matria sero umas mais intensamente seres do que outras conforme o seu grau de imaterialidade.

Ademais, quanto maior o grau de imaterialidade, podero inteligir atravs de formas mais abstratas e, por isso mesmo, mais gerais e universais.

Isto significa que, medida em que uma mais imaterial do que outra, e por isso mesmo, mais intensamente ser do que outra, pela maior abstrao das formas inteligveis com que apreende, inteligir mais profundamente com um menor nmero de formas inteligveis um maior nmero de coisas do que outra, na proporo direta de seu maior grau com que participa do ser.

Toda esta argumentao no prova que existam as entidades que estamos descrevendo; se admitimos como certa a natureza imaterial da inteligncia humana decorre apenas que a existncia de tais entes faz parte das possibilidades do ser; estamos admitindo ento a hiptese de que elas existam apenas para examinar quais seriam as conseqncias desta hiptese. A primeira conseqncia a menor limitao da operao intelectiva destes entes decorrente da independncia da matria; a segunda que tais inteligncias no so todas de mesma natureza mas se distribuem em uma escala de imaterialidade crescente; a terceira que o grau de imaterialidade de cada uma impe um limite s suas operaes intelectivas. medida em que subimos na escala da imaterialidade destes entes possvel para eles inteligir mais profundamente um maior nmero de objetos com um menor nmero de formas inteligveis cada vez menos limitadas. Nada impediria que chegssemos a uma inteligncia com um grau to elevado de imaterialidade que conseguisse inteligir, com um s ato da inteligncia, a totalidade de todas as coisas. Novamente isto no significa que uma inteligncia como esta tenha que existir; nada, porm, parece impedir que ela possa existir.

Suponhamos ento, por hiptese, que exista uma tal inteligncia, to abstrata e imaterial que, com um s ato da inteligncia, intelija a totalidade de todas as coisas. Se existisse um ser assim, alm do fato dele inteligir a todos os demais entes com um nico ato da inteligncia, haveria alguma outra relao entre ele para com todos os demais entes? A resposta para esta pergunta que, se existisse um ser assim, ele no somente inteligiria a todos os demais entes, mas tambm seria a causa de todos estes demais entes porque, se no fosse ele prprio a causa dos entes que intelige, nada impediria que num dado momento, independentemente dele, passasse a existir outro ente que ele no conhecesse.

Ademais, se esta inteligncia fosse tal que pudesse conhecer todos os seres, conheceria a todos perfeitamente; pois se ela conhecesse todos os seres, mas no os conhecesse perfeitamente, isto significaria que na verdade ela no conheceria ainda todos os seres, pois aquilo que ela no conhecesse do ser que ela conhece imperfeitamente tambm um ser. Segue-se daqui, portanto, que se por um ato de sua inteligncia este ser capaz de conhecer perfeitamente todos os entes, isto significa que sua inteligncia esgota em si todas as possibilidades do ser; por esgotar em si todas as possibilidades do ser este ser seria o ser mais perfeito que poderia existir; e por causa disto mesmo que poderia causar o ser de todas as demais coisas. Ademais, entre todos os seres, se existe algum ser que possa esgotar em si todas as possibilidades do ser, que uma condio necessria para existir uma causa para o ser de todas as coisas, este ser que esgota todas as possibilidades do ser no pode ser um ser puramente material, mas teria que ser necessariamente uma inteligncia, pois as inteligncias so mais intensamente seres do que os seres materiais.

Todo este argumento no possui ainda fora suficiente para provar que um ser assim exista de fato; um ser assim est dentro das possibilidades do ser, e, ademais, se existir uma causa para o ser de todas as coisas, esta causa tem que ter esta natureza que acaba de ser descrita; mas, conforme dizamos, ainda no possvel mostrar com tudo isto que de fato esta causa existe.

Entretanto, ainda admitindo a hiptese que de fato seja assim que as coisas se do na realidade, importante ressaltar que esta hiptese explicaria certas observaes a respeito da natureza que de outra maneira seriam inexplicveis. Estamos nos referindo de maneira especial a algo que consta ter sido reportado na histria da filosofia pela primeira vez por um pr-socrtico chamado Parmnides. No Livro das Tapearias, Clemente de Alexandria relata que Parmnides teria afirmado que

"o mesmo o ser e o pensar" .

Esta afirmao tem uma notvel semelhana com a dos escolsticos segundo a qual o ser e o verdadeiro se convertem, isto , que todo ser necessariamente inteligvel e tudo o que inteligvel pode existir. Se, talvez, com sua afirmao, Parmnides no tenha querido dizer exatamente a mesma coisa que os escolsticos, pode-se pelo menos afirmar que parece ter sido ele o primeiro filsofo que se deparou, de alguma maneira, com a questo da inteligibilidade do ser. Tais afirmaes significam a convenincia de todos os seres inteligncia; que todos os

seres so inteligveis no por alguma qualidade que se lhes acrescente, mas apenas porque so seres; que h alguma coisa igual na estrutura fundamental dos seres reais e na estrutura fundamental da inteligncia; que h leis fundamentais comuns a todos os seres reais que so tambm leis fundamentais para a inteligncia enquanto inteligncia e vice versa; ou ainda, que o que impossvel para a inteligncia enquanto inteligncia tambm impossvel para os seres enquanto seres e vice versa.

Antes de prosseguirmos, portanto, devemos nos perguntar o que entendemos por algo ser impossvel para a inteligncia enquanto inteligncia. Esta pergunta fundamental porque ela esclarece todo o sentido da observao feita por Parmnides e pelos escolsticos e condensados nas frmulas "o mesmo o ser e o pensar" e "o ser e o verdadeiro se convertem".

Dizemos ser impossvel para a inteligncia enquanto inteligncia aquilo que contraria uma evidncia da mesma. Ora, o que a inteligncia apreende como evidente so os primeiros princpios das demonstraes; todas as demais evidncias da natureza intelectiva so evidncias por reduo evidncia dos primeiros princpios das demonstraes. Neste sentido, dito ser impossvel para a inteligncia enquanto inteligncia aquilo que envolve uma negao dos primeiros princpios que regem sua atividade racional. No impossvel, neste sentido, para a inteligncia, conceber um homem com mais de uma cabea; um ser humano com vrias cabeas seria uma coisa estranha e que nunca consta ter sido vista, a no ser talvez como uma anomalia congnita; no existe uma raa humana cuja caracterstica seja a de possuir duas ou mais cabeas; tal raa no existe e nunca foi vista, mas se existisse isso no envolveria uma negao dos primeiros princpios das demonstraes. Coisas como estas no existem, mas nada impediria que existissem se a ordem natural fosse diferente; acostumados como estamos ordem presente da natureza, fica difcil pensar como seria a vida de uma sociedade em que os homens tivessem vrias cabeas, mas, apesar disso, no se tratam de coisas em si mesmas impensveis. Coisa muito diversa ocorre quando nos defrontamos algo que envolve uma negao dos primeiros princpios do intelecto; neste caso estamos diante de algo impensvel simplesmente falando. Por exemplo, algo ser e no ser uma mesma coisa ao mesmo tempo impensvel simplesmente; um fato que aconteceu passar a jamais ter acontecido tambm outra coisa impensvel simplesmente. A negao dos teoremas da matemtica, admitida a evidncia das hipteses, tambm outro exemplo de coisas simplesmente impensveis; a geometria prova que a soma dos ngulos internos de um tringulo sempre 180 graus; a existncia de um tringulo cujos ngulos internos quando somados resultassem num total superior ou inferior a 180 graus envolveria uma contradio da evidncia dos primeiros princpios em que se baseia a deduo realizada pela geometria; um tringulo assim seria uma coisa impensvel simplesmente.

Porm o que a realidade mostra que, apesar de impensveis, estas coisas jamais tambm foram vistas. Nunca se viu algo ser e no ser uma mesma coisa ao mesmo tempo; nunca se viu algo que aconteceu passar a jamais ter acontecido; e nunca se viu em lugar algum um tringulo que tivesse uma soma de ngulos internos maior do que 180 graus.

Tais constataes podem primeira vista ser consideradas como fatos to evidentes que no necessitam de uma explicao. Quando, porm, passa-se a examinar melhor o assunto, verifica-se que no se trata de algo to evidente. Pois que uma coisa envolva uma contradio dos primeiros princpios do intelecto e portanto seja ininteligvel por causa desta razo uma propriedade que pertence ao mundo da inteligncia. Significa que h coisas que a inteligncia no capaz de apreender. A inteligncia no capaz de apreend-las no porque isto lhe seja difcil, mas porque para o pensamento trata-se de uma coisa impossvel em si mesmo. Mas se o pensamento no capaz de conceber tais coisas, isto no deveria significar que elas no pudessem existir. , porm, o contrrio o que se verifica, porque alm de tais coisas nunca terem sido vistas, ningum tambm tem esperana de que algum dia venham a s-lo.

Cabe ento a pergunta: por que no pode existir alguma coisa que a mente humana seja radicalmente incapaz de apreender, se esta limitao uma limitao que parece que deveria ser apenas da inteligncia? Por que esta limitao parece ser tambm uma limitao da realidade, se a realidade no uma inteligncia? Por que algum no poderia ver diante de seus olhos algo que a inteligncia fosse capaz de provar que para ela se trata de uma contradio mas que, apesar disso, j que a realidade no obrigada a ter as restries prprias da inteligncia, ela seria capaz de produzir? Uma contradio dos primeiros princpios da inteligncia , como o prprio nome indica, algo que, por sua natureza, no pode existir no mundo inteligvel. Por que, porm, tambm no pode existir no mundo real? Existiria ento uma relao mais profunda entre o mundo inteligvel e o mundo real conforme apontado por Parmnides e os escolsticos?

No foram porm apenas Parmnides e os escolsticos que afirmaram isso; quase todos ns, algum dia, tambm o afirmamos. Isto certamente ocorreu, por exemplo, quando algum, refletindo sobre algum assunto, e chegando concluso de que o raciocnio feito envolve uma contradio, afirma simplesmente:

-Isto no existe.

Ele no diz:

-Isto impensvel.

Aparentemente esta ltima afirmao deveria ser a nica coisa a que se teria direito de dizer. Mas quando nos vemos diante destas contradies, o que fazemos pular da concluso que afirma que "isto impensvel", diretamente para a concluso que diz que "isto no pode, em hiptese alguma, existir".

Chegamos, assim, a uma concluso digna de muita ateno: a realidade e a inteligncia parecem estar seguindo as mesmas leis fundamentais,

importante mostrar que este fato um desafio insolvel para todas as cincias modernas. No h nenhuma cincia que possa fornecer uma explicao para este fenmeno. Ao dizermos que no h cincia que explique este fenmeno, esta afirmao to categrica no procede de nenhum desprezo das cincias modernas em favor da filosofia antiga ou preconceitos similares. Ao contrrio, dizemos que este fato no pode ser explicado por nenhuma cincia, qualquer que seja o estgio de desenvolvimento em que ela se encontre, porque este fato algo que transcende em sua natureza o mbito de todas as cincias; somente a Metafsica pode fornecer uma explicao satisfatria para este fenmeno.

Vejamos, seno, alguns exemplos.

O bilogo poderia tentar enquadrar o fenmeno dentro do mbito da teoria da evoluo. Segundo a teoria da evoluo, diria o bilogo, todo ser vivo, animal ou vegetal, produz descendentes que podem estar sujeitos a mutaes genticas. Quando, por acaso, tais mutaes so melhor ambientadas ao mundo que os cerca e os torna mais aptos para a luta pela sobrevivncia, isto faz com que sobreviva o animal mais apto em detrimento do animal menos apto. Desta maneira ocorre uma seleo natural em favor dos seres superiores na escala da evoluo.

Por que o homem, por exemplo, diz o bilogo, no enxerga por meio da vista os raios X, mas apenas a luz nos comprimentos de onda normalmente emitidos pelos objetos sua volta? A razo a seguinte: se tivesse existido alguma vez algum animal dotado de viso de raios X, ou se tivesse pelo menos comeado a haver uma mutao gentica neste sentido, este animal nada veria ou pelo menos veria menos do que os outros, j que os corpos na superfcie da terra no emitem raios X, e, portanto, um animal com estas qualidades nada teria para ver ou veria pior do que os outros. Com isso, sua espcie seria devorada pela espcie dos outros animais que enxergassem de fato ou que enxergassem melhor. Os animais, porm, que fossem capazes de enxergar as coisas ao seu redor, isto , aqueles que fossem capazes de enxergar no espectro dos comprimentos de onda correspondentes luz visvel, poderiam se defender com mais facilidade dos ataques dos animais que nada ou pouco enxergam e apenas se orientam pelo tato.

por argumentos semelhantes a este que a teoria da evoluo explica porque o homem est adaptado a digerir justamente os alimentos que a natureza oferece sua volta, porque enxerga justamente nas frequncias de onda de luz que os objetos sua volta emitem, porque ouve justamente os sons nas frequncias em que os principais acontecimentos sua volta provocam rudo, porque respira justamente o ar na composio que a atmosfera oferece, etc..

Seria de se esperar, portanto, que a mesma explicao funcionasse para o caso da inteligncia. Pelo mecanismo da seleo natural teria-se originado no homem uma inteligncia que segue as mesmas leis do ambiente que o cerca. Se alguma vez tivesse havido algum animal cuja inteligncia no estivesse em harmonia com as leis do mundo sua volta, ou mesmo tivesse apenas comeado a sofrer alguma mutao gentica neste sentido, este animal teria perecido na luta pela sobrevivncia.

Tal seria o argumento que surgiria espontaneamente na mente de um bilogo; ocorre, porm, que um argumento como este convincente apenas num primeiro momento; na verdade, ele no fornece explicao para a questo da inteligibilidade do ser. Pois em todos os casos de seleo natural o modo de operar desta seleo natural tal que produz um modo de seleo apenas entre as capacidades de sobrevivncia adaptadas em relao ao meio ambiente diretamente em contato com o animal, porque com este meio ambiente imediatamente prximo ao animal que o animal luta e perece em sua espcie se no for capaz de se adaptar, ou continua existindo se for capaz. Assim que o homem est adaptado para viver presso prxima daquela encontrada na atmosfera terrestre ao nvel do mar, que o seu ambiente imediato. Conduzido apenas a alguns quilmetros acima do solo ou alguns metros abaixo da superfcie da gua,(e o que isto diante das dimenses do universo?), a diferena de presso lhe ser fatal. Da mesma forma, o homem somente pode se alimentar das substncias qumicas produzidas pela natureza; se entrasse em um laboratrio qumico em que se produzissem substncias artificiais e as ingerisse a esmo provavelmente morreria envenenado. Igualmente, se a temperatura ambiente passar de 25 para 70 graus centgrados, poucos graus acima da mxima temperatura observada na superfcie da terra, uma pequenssima frao diante da escala possvel de temperaturas, o homem morre.

Mas no assim no caso da inteligncia. Em qualquer lugar do espao, em qualquer lugar do Universo, em qualquer poca da histria ou em qualquer era geolgica, em qualquer presso e temperatura, o que uma contradio dos primeiros princpios do intelecto no existe.Seria pedir muito que a seleo natural, obrigando o homem por um mtodo na verdade to primitivo e limitado a lutar pela sobrevivncia junto apenas ao seu reduzidssimo meio ambiente tivesse produzido uma qualidade to ilimitada, em que mais parece que o homem estivesse lutando pela sobrevivncia no na face da Terra, mas simultaneamente na totalidade da extenso do Universo e contra todas as possibilidades do ser.

Vimos o que o bilogo teria a dizer para explicar o problema da inteligibilidade do ser. Vejamos o que o fsico teria a declarar.

Um fsico tentaria enquadrar o fenmeno por um ngulo totalmente diverso. O bilogo concordaria com o princpio de Parmnides; de fato, o ser e o pensar so o mesmo, a observao de Parmnides correta, mas, diria o bilogo, no h nada de transcendente nisto, a teoria da evoluo explica. O fsico, ao contrrio, negaria a validade do princpio. A inteligncia no est adaptada, diria o fsico, de maneira alguma, a todos os seres do Universo. A Biologia desconhece, enquanto tal, este fato, diria o fsico, mas no a Fsica. De fato, quando a Fsica comeou, por volta de 1900, a estudar os tomos, e depois as partculas sub atmicas e posteriormente as partculas elementares, descobriu um mundo to pequeno com que nossa inteligncia no seu dia a dia no pode ter contato direto, e com o qual nunca tomou contato em momento algum durante toda a histria evolutiva, a no ser algumas poucas vezes nos laboratrios de Fsica nos ltimos 8O anos. O mundo das partculas sub atmicas e elementares, portanto, um mundo que no faz parte do ambiente em que evoluiu a inteligncia humana e, de fato, continuaria a dizer o fsico, nele se observa muita coisa que afronta o bom senso intelectual. H coisas no mundo sub atmico que so um desafio lgica, e no entanto elas esto ali. Diante destes fatos, diz o fsico, o princpio da convenincia de todo ente com a inteligncia simplesmente se desvanece pela prpria fora dos contra exemplos.

So consideraes como estas que viriam espontaneamente ao pensamento de um fsico moderno se ouvisse a exposio do princpio de Parmnides. Segundo este princpio afirmamos que todo ente necessariamente inteligvel apenas por ser ente, nada mais necessitando que se lhe acrescente para ser inteligvel; dissemos, ademais, que nenhuma cincia alm da metafsica capaz de dar uma explicao satisfatria para este fenmeno porque ele de tal natureza que em sua amplitude ultrapassa o mbito de todas as cincias particulares. Mostramos em seguida como a explicao do bilogo no satisfatria; mas agora o fsico, em vez de tentar uma explicao, afirma, ao contrrio, ter elementos para mostrar com exemplos que tal princpio falso.

No ser possvel discutir neste trabalho a colocao do fsico com os detalhes que seriam exigidos para bem fundamentar quanto vamos dizer; fazer isto requereria escrever um tratado de Fsica Moderna, e com isto extrapolaramos as intenes do presente captulo. Mas to importante mencionar a natureza do que se pode responder a uma colocao como esta que mesmo sem poder fundamentar devidamente a resposta julgamos dever faz-lo.

Que dizer, pois, do argumento do fsico? Quando os fsicos trabalham, primeiramente observam um fenmeno no laboratrio e depois, sobre este fenmeno, constrem uma teoria que geralmente um modelo matemtico daquele fenmeno. Por exemplo, observa o desvio de uma partcula; este o fenmeno. Supe depois que existem foras atuando sobre ela e elabora uma frmula matemtica que d a expresso desta fora; este o modelo que descreve o fenmeno e do qual o fsico se utiliza para explic-lo. Ora, se fizssemos uma anlise dos contra exemplos que a Fsica teria a apresentar ao princpio de Parmnides, constataramos que os desafios lgica no aparecem nos fenmenos, mas nos modelos. Como se tornou quase uma segunda natureza para os que se dedicam Fsica tomarem os modelos pelas realidades, ainda que freqentemente se esforcem por no faz-lo, isto faz com que se produza a impresso de que o que ocorre nos modelos seja tambm o que ocorre na realidade. Um excelente exemplo disto o prprio primeiro modelo daquilo que depois veio a se tornar a Mecnica Quntica; em 1900, vendo que a Fsica tradicional no conseguia explicar a radiao emitida por um corpo negro aquecido a altas temperaturas, ou um forno completamente fechado com uma pequena abertura pela qual se emite radiao para o meio ambiente, Max Planck props um modelo segundo o qual os eltrons que vibram no corpo negro ou dentro do forno e que produzem as radiaes emitidas saltavam de uma frequncia vibratria a outra no s sem passarem pelas frequncias intermedirias como tambm sem que pudessem faz-lo, o que parecia ser um atentado apreenso da inteligncia; com isto, porm, explicava-se o espectro das radiaes emitidas pelo corpo negro ou pela abertura existente no forno. Cinco anos depois, porm, A. Einstein props um outro modelo; segundo este as radiaes no eram ondas eletromagnticas, mas feixes de partculas s quais ele deu o nome de ftons; fazendo esta hiptese, conseguiu calcular o espectro das radiaes emitidas pelo corpo negro sem o aparente atentado razo envolvido na teoria de Planck . Em ambos os casos, tratava-se do mesmo fenmeno e de dois modelos diferentes. O primeiro explicava o fenmeno, mas parecia envolver um atentado inteligncia; sem mudar o fenmeno, o segundo produziu outra explicao que no violava mais o bom senso. No era, de fato, o fenmeno que atentava inteligncia, mas o modelo. O mesmo pode ser dito de muitos outros exemplos que poderiam ser dados se isto no extrapolasse os objetivos do presente captulo. Deve-se. ademais, mencionar que muitos exemplos apontados pelos textos de Fsica moderna como atentatrios ao bem senso no envolvem de fato uma contradio dos primeiros princpios mas apenas um comportamento diverso do que se observa no mundo cotidiano dos homens. Fica assim a concluso, no suficientemente demonstrada, verdade, por causa dos limites deste trabalho, que, ao que consta, nunca foi observado nenhum fenmeno nem nenhum ente, nem mesmo na Fsica das partculas sub atmicas, que em si contivesse alguma contradio dos primeiros princpios do intelecto.

Poderamos ainda, no fossem novamente os limites do presente captulo, levantar um maior nmero de possveis explicaes para o princpio de Parmnides inspirados em argumentos destas ou de outras cincias, em todos os casos para mostrar em seguida que no se tratam de explicaes satisfatrias. Ver-se-ia assim como uma questo aberta para as cincias o problema de se explicar a conversibilidade entre o ser e o verdadeiro. Todo ser, somente pelo fato de ser, apenas por isto mesmo necessariamente inteligvel; e tudo o que inteligvel, apenas por isto mesmo, possvel de existir. A mesma coisa no verdade em relao a outras propriedades. No so todos os seres visveis, apenas porque existem. No so todos os seres audveis, apenas porque existem. No so todos os seres mensurveis, apenas porque existem. Mas por que todos os seres tem que ser inteligveis, apenas porque existem, , de fato, diante das possibilidades de explicao das cincias, um enigma. O homem pode ter-se adaptado por meio de sua inteligncia ao meio ambiente. Pode ter-se inclusive adaptado ao Universo inteiro. Mas, mesmo que este tenha sido o caso, se que o foi, por que que no pode surgir aqui e agora, depois de acabada esta adaptao, um ser totalmente novo no Universo, um ser que jamais tenha existido antes e para o qual, portanto, a inteligncia humana no tenha podido ter sido adaptada, e que fosse um atentado aos primeiros princpios do intelecto?

A nica explicao satisfatria, o que no quer dizer ainda que ela seja verdadeira ou que seja mais do que um modelo, aquela segundo a qual a realidade um produto daquela inteligncia que esgota em si todas as possibilidades do ser; sendo produto desta inteligncia que maximamente ser, a realidade est seguindo leis fundamentais que so leis daquele ser, isto , leis do mundo inteligvel; segundo esta explicao, a inteligncia humana algo intermedirio entre o mundo material e aquela inteligncia que esgota em si as possibilidades do ser e por isso que diante da inteligncia humana as leis fundamentais da realidade tm uma evidncia que na prpria realidade elas no tm. Com isto no se demonstra que esta explicao seja a verdadeira, mas o fato que para esta explicao no h rplica, como o h para a explicao proveniente da teoria da evoluo ou para a explicao proveniente da Fsica das partculas sub atmicas. A nica objeo possvel que, com o que argumentamos at agora, no se demonstra a veracidade desta explicao, o que de fato assim, pois at aqui apenas demos argumentos de possibilidade e plausibilidade, no de factualidade.

Supondo provisoriamente que esta explicao seja a correta, temos nela um exemplo da analogia do ser.

Segundo a teoria da analogia do ser, o ser no se predica de modo unvoco de todos os entes; h entes que so mais ser do que outros.

O ser se predica de alguns entes de um modo apenas parcial em relao a como se predica de outros que so mais ser do que os anteriores. Os entes que so mais intensamente ser do que outros em parte so e em parte no so ser no mesmo sentido que os que so ser menos intensamente.

Alguns entes so ser apenas em parte, outros so mais totalmente, outro, enfim, no ser em parte, mas plenissimamente ser, esgotando em si todas as possibilidades do ser.

Neste sentido, as inteligncias participam mais do que os entes materiais da plenitude do ser, porque se aproximam mais da natureza do ser que ultrapassa todos os entes por esgotar em si todas as possibilidades do ser. Todos os entes recebem o ser deste primeiro ser e dele recebem uma parte das possibilidades do ser que ele contm, uns mais, outros menos.

Pelo fato das inteligncias mais participarem do ser da causa primeira, a relao de todos os entes para com a causa primeira tem uma certa analogia com a relao dos entes materiais para com as inteligncias; todos os entes recebem uma parte das possibilidades da causa primeira; os seres materiais recebem uma parte das possibilidades que recebem as inteligncias; deste modo, assim como todos os entes tm que seguir leis fundamentais que so prprias da causa primeira, assim tambm os entes materiais esto seguindo algumas leis que so leis prprias do mundo inteligvel, no necessariamente apenas da causa primeira, mas das inteligncias em geral. De fato, os primeiros princpios das demonstraes, apesar de seguidos por todos os entes, so na verdade leis prprias do mundo inteligvel. O prprio modo como se procede ao especular sobre estes princpios faz perceber que se tratam de propriedades do mundo inteligvel.

assim que, por exemplo, quando Aristteles na Metafsica indaga se o estudo dos primeiros princpios das demonstraes so objeto da Metafsica, ele afirma que sim, porque o estudo destes princpios prprio da cincia que estuda o ser enquanto ser, j que eles tambm so princpios do ser enquanto ser, e no apenas das demonstraes:

"Estes princpios abarcam a todos os seres e no apenas a um ou outro gnero do ser, e todas as cincias se servem eles porque so prprias do ser enquanto ser. Portanto, ao ser evidente que se do nos seres enquanto seres, seu estudo pertence quela cincia cujo objeto prprio conhecer o ser enquanto ser; por isso que ningum dos que estudam os seres em particular tenta dizer nada sobre se estes princpios so ou no verdadeiros" .

Nesta passagem Aristteles evidencia que tais princpios so princpios de todos os seres, e no apenas das demonstraes. No que dependesse desta passagem, portanto, no parece que poderia se inferir que fossem algo prprio do mundo inteligvel, nem do mundo material, mas algo comum a todos os seres. Esta impresso, porm, passa para um segundo plano quando Aristteles comea a procurar quais sejam estes princpios; ele faz isto elencando uma srie de qualidades que estes princpios devero ter para poderem ser primeiros princpios; nestas qualidades se evidencia que os princpios que ele est procurando so princpios prprios do mundo inteligvel, pois os requisitos que os candidatos a primeiros princpios devem preencher, segundo Aristteles, so os seguintes:

-Que sejam os princpios mais certos do que todos;

-Que sejam aqueles sobre os quais seja impossvel enganar-se;

-Que sejam aqueles que sejam conhecidos em grau mximo;

-Que no sejam hipotticos;

-Que seja necessrio conhece-los para conhecer qualquer coisa;

-Que seja necessrio abordar qualquer assunto de estudo j possuindo o conhecimento destes princpios ,

todas estas sendo caractersticas prprias do mundo inteligvel, no do mundo material.

Os seres materiais, portanto, ao seguirem tais princpios, esto como que seguindo uma regra que no prpria deles, mas de outros, como se esta regra fosse de uma natureza anterior deles e se lhes estivesse sendo imposta de fora.

Na verdade o que acontece que os seres materiais esto seguindo princpios que so princpios de todos os entes enquanto tais; porm, como as inteligncias so mais intensamente seres do que os entes materiais, elas participam, por isso mesmo, mais intensamente das propriedades do ser enquanto tal do que os entes materiais; nelas, portanto, brilha mais intensamente a evidncia destas propriedades do que nos seres materiais; estas propriedades lhes so, neste sentido, mais prprias. Por isso que os seres materiais, embora estejam seguindo as propriedades do ser enquanto ser, parecem estar seguindo princpios de entes de outra natureza, como se isto lhes estivesse sendo imposto de fora. Neste sentido o mundo inteligvel parece algo de natureza anterior ao mundo material, pois aquilo que segue uma lei de outro, supe que o outro lhe seja anterior.

Mas, por outro lado, a inteligncia humana evidentemente posterior no tempo ao mundo material, pois ela requer, em seu operar, o mundo material como algo que lhe seja anterior. A inteligncia humana requer, de fato, em primeiro lugar, ao prprio corpo material; depois, requer rgos dos sentidos; requer ainda a faculdade da imaginao; e tudo isto pode operar de modo perfeito sem a existncia da inteligncia, como se observa ser o caso dos animais. Sem corpo, sentidos e imaginao, porm, a inteligncia humana no opera. Ora, tudo aquilo que para existir, ou pelo menos para operar, necessita de outros, os quais, porm, podem existir e operar por si ss, necessariamente posterior no tempo. De argumentos como estes pode-se deduzir, independentemente da evoluo, que o homem , por natureza, o ltimo ser que desponta no tempo.

Como possvel ento que uma lei que prpria da inteligncia, manifestamente posterior s demais coisas, estar sendo imposta com natureza de anterioridade a todas as demais coisas que j existiam quando ela ainda no existia?

E, mesmo que as inteligncias fossem anteriores no tempo, h ainda o problema de que elas no tm fora para imprimir suas propriedades nas coisas, mas apenas para perceber suas evidncias.

Parece razovel, portanto, deduzir que os entes estejam recebendo estas propriedades de alguma outra causa que tenha estas mesmas propriedades num grau mais elevado do que as inteligncias que ns conhecemos, to mais elevado que possa imprim-las nos entes. Esta causa ser um ente que tenha estas propriedades que pertencem ao mundo inteligvel num grau mais elevado para que possa causar a obedincia das coisas a estas leis.

Estas leis, porm, j vimos que so leis inerentes ao ser, isto , so leis do ser enquanto ser.

Portanto, a causa capaz de imprimir estas propriedades nos entes dever ser capaz tambm de causar o ser de todas as coisas, pois estas propriedades so inseparveis do ser. Se as coisas recebem o ser, recebem necessariamente estas propriedades, e no necessitam de outra causa que as imprima aps terem recebido o ser. Se elas no recebem o ser, no podem ter estas propriedades sem o ser. A causa, portanto, capaz de imprimir estas propriedades nos seres tambm causa capaz de causar o ser de todas as coisas.

Parece existir, portanto, uma causa primeira de todas as coisas que ao mesmo tempo maximamente ser e maximamente inteligncia. Nela ser e natureza inteligvel se convertem perfeitissimamente; a conversibilidade entre o ser e o verdadeiro que se observa em todos os demais entes e a evidncia dos primeiros princpios do intelecto na inteligncia humana no seria nada mais do que participaes, em graus diversos, da natureza da causa primeira nos diversos demais entes.

Assim, do fato de que os seres materiais possuem uma participao de propriedades que so de natureza inteligvel deduzimos estarem eles seguindo uma regra que no lhes prpria; as inteligncias possuem estas propriedades de uma maneira mais prpria do que as coisas materiais; mas, uma vez que elas manifestamente so incapazes de caus-las nos seres materiais, parece inferir-se da a existncia de uma causa de natureza inteligvel mais elevada do que as inteligncias que conhecemos, que a causa da inteligibilidade dos entes materiais e, por conseqncia, tambm do ser delas, pois a inteligibilidade propriedade do ser enquanto ser. Daqui a inferncia segundo a qual este ser que causa a inteligibilidade dos entes materiais no apenas inteligncia mas tambm ser em grau mximo.

Cumpre observar que se este argumento vlido dele no se deduz diretamente que esta inteligncia que possui o ser em grau mximo seja tambm causa do ser das inteligncias; o que se deduz que, para causar o ser dos entes materiais ela tem que ser uma inteligncia mais elevada do que as demais inteligncias; mas nada impediria, pelo que dissemos at agora, que estas inteligncias intermedirias tivessem um ser autnomo que no necessitasse de causa; pode-se, porm, de outro modo, mostrar que isto no assim.

Quando se parte dos entes materiais e se sobe na escala do ser, passamos aos entes de natureza inteligvel em que, alm de possurem ser, pelo seu carter inteligvel so capazes de perceber a evidncia de certas propriedades do ser das coisas a que chamamos de primeiros princpios do intelecto. Entretanto, o ser e a percepo intelectiva destes princpios do ser no so atributos totalmente diferentes. Trata-se da mesma realidade que, medida em que se intensifica, comea a participar mais abundantemente da plenitude do ser. As inteligncias inteligem porque so seres mais intensamente; so entes suficientemente intensos a ponto de perceberem a evidncia das propriedades do ser que so capazes de inteligir, mas no a ponto de serem a causa da evidncia destas propriedades.

No , porm, s porque no so capazes de causar a evidncia das propriedades do ser, mas apenas de perceb-las, que as inteligncias que ns conhecemos ocupam um lugar inferior causa primeira na escala do ser. Elas ocupam o lugar inferior em que esto tambm porque no so capazes de perceber a evidncia de todas as propriedades do ser, mas apenas de uma pequena parte. Os entes materiais no percebem evidncia nenhuma. A inteligncia humana percebe a dos primeiros princpios, mas no percebe, por exemplo, a evidncia intelectiva da existncia das coisas.

De fato, a existncia das coisas no imediatamente evidente para a inteligncia humana; a existncia das coisas inferida pela inteligncia de modo indireto a partir dos dados dos sentidos. No se trata de uma evidncia intelectiva de natureza imediata, como a evidncia dos primeiros princpios, os quais percebemos que tem que ser daquele modo necessariamente. principalmente atravs da vida sensorial que nos relacionamos com a realidade concreta das coisas; para nosso intelecto a existncia destas coisas com que nos relacionamos atravs dos sentidos uma inferncia; ao apreendermos indiretamente pela inteligncia esta existncia, no percebemos nela nenhuma evidncia intelectiva de sua necessidade como aquela evidncia da necessidade que contemplamos nos primeiros princpios.

manifesto, porm, que em sua prpria natureza as coisas se comportam diversamente. Os entes podem ser necessrios ou contingentes, mas, a partir do momento em que eles existem, eles existem necessariamente. Para nosso intelecto, porm, no se nos mostra nenhuma evidncia intelectiva imediata dessa necessidade, nenhum fundamento para percebermos a necessidade da existncia das coisas. por isso que a seguinte pergunta, quando bem compreendida em sua profundidade, to misteriosa:

Por que as coisas existem,

e simplesmente no voltam ao nada?

Ao receber o impacto de uma pergunta como esta, a inteligncia humana simplesmente cai num vcuo. Ela percebe, ainda que no o saiba explicar, que a partir do momento em que as coisas existem, elas existem necessariamente, e por isso que elas no voltaram ao nada no momento em que a pergunta foi feita. Mas, ao mesmo tempo, no lhe possvel perceber a evidncia nem de uma causa externa nem de uma necessidade intrnseca para os seres existirem. Os seres aparecem inteligncia humana como contingentes, como entidades que podem ser mas para os quais no se v por que no poderiam no ser, pois no h nenhuma evidncia intelectiva de uma necessidade intrnseca para sua existncia; nem a inteligncia tem tambm qualquer evidncia imediata de uma causa externa para a existncia delas. Da o impacto que causa uma pergunta como esta quando corretamente compreendida em toda a sua profundidade. Se a inteligncia pudesse perceber de modo imediato uma evidncia para a existncia das coisas, as coisas seriam percebidas por ela como existentes por uma necessidade comparvel evidncia dos primeiros princpios.

No entanto, no s os entes materiais, mas tambm as inteligncias existem; existindo, elas esto se comportando de um modo para o qual deveriam possuir uma evidncia, pois manifesto que a partir do momento em que elas existem pelo menos naquele momento existem necessariamente. Apesar disso, porm, elas no conseguem apreender esta necessidade. Portanto, tal como os entes materiais, que seguem as regras dos primeiros princpios das demonstraes sem lhes apreenderem a evidncia, as inteligncias tambm esto seguindo as regras da existncia, mas no lhes conseguem apreender nenhuma evidncia. As inteligncias, portanto, esto seguindo uma regra que no lhes prpria. Resta saber de quem a regra da existncia uma regra prpria.

Supondo a existncia daquela inteligncia que causa do ser dos entes materiais, pode-se mostrar que a existncia uma regra prpria de sua natureza.

De fato, pode-se mostrar facilmente que esta inteligncia, por sua prpria natureza, existe necessariamente. Pois se ela causa do ser dos entes materiais, ou seu prprio ser causado ou no; se no for, fica demonstrado o que se pretendia; se seu ser for causado, h outra causa que causa do ser da causa dos entes materiais; mas no se pode proceder nesta srie de causas at o infinito, de modo que se acaba por alcanar uma causa primeira no causada, isto , que existe necessariamente .

Ademais, por ser inteligncia separada da matria, a causa do ser dos entes materiais capaz de se apreender de modo imediato a si mesma; portanto, ao apreender-se a si prpria, apreende tambm a necessidade de sua existncia, no porque ela apreendeu primeiro que existe e, partindo desse pressuposto, infere que existe necessariamente, mas porque, apreendendo a sua natureza, percebe que existe por uma evidncia imediata da apreenso de sua prpria natureza. Nesta apreenso, apreende-se tambm como causa do ser dos entes materiais; da que, se ela se fizesse aquela mesma pergunta:

Por que as coisas existem,

e simplesmente no voltam ao nada?

ela teria para isto uma resposta por evidncia intelectiva imediata, ao contrrio da inteligncia humana que diante desta pergunta cai no vazio.

Com isto mostramos que, assim como os entes materiais quando seguem os primeiros princpios das demonstraes esto seguindo uma regra que prpria das inteligncias, uma regra que parece lhes estar sendo imposta de fora, embora no, porm, por estas mesmas inteligncias, mas por outra que lhes superior, as inteligncias tambm, ao existirem, esto seguindo uma regra que prpria da causa do ser dos entes materiais, como se lhes estivesse sendo imposta de fora, por esta mesma causa que seria ento simplesmente a causa primeira do ser de todas as coisas.

primeira vista tudo isto parece ser novamente apenas mais um argumento de plausibilidade. Pode-se mostrar, entretanto, que agora temos, na verdade, um autntico argumento probativo.

Antes tinhamos mostrado que o carter inteligvel dos entes no tinha explicao plausvel fora da existncia de uma causa primeira do ser de todas as coisas que fosse tambm ela inteligvel; mas agora mostramos que este carter inteligvel possudo pelos diversos entes em graus diversos, de modo que um parece estar seguindo uma regra que mais prpria de outro, como se se tratasse de algo que lhe estivesse sendo imposto ou causado. Em outras palavras, do carter inteligvel dos entes verificamos a plausibilidade da existncia de uma causa primeira; mas da existncia de uma gradao de inteligibilidade dos entes deduzimos a existncia de uma causa primeira.

Ora, segundo S. Toms de Aquino esta ltima inferncia possui verdadeiro valor probativo; de fato, quando na Summa Theologiae ele demonstra a existncia de Deus por meio de cinco vias, na quarta via, partindo apenas "dos graus que existem nas coisas", ele afirma poder chegar-se concluso de que "existe algo que para todas as coisas causa do ser e da bondade e de qualquer perfeio, a quem chamamos Deus" . No se trata, portanto, de um argumento de plausibilidade, mas de factualidade:

"A quarta via", -diz Toms de Aquino-, " tomada dos graus que se encontram nas coisas.

De fato, encontramos nas coisas algumas que so mais ou menos boas, mais ou menos verdadeiras, mais ou menos nobres, e assim quanto a outras perfeies semelhantes.

Porm o mais e o menos se dizem de coisas diversas segundo que se aproximem de modo diverso a algo que o seja maximamente, assim como mais quente aquilo que se aproxima ao que maximamente quente.

Existe, portanto, algo que verssimo, timo e nobilssimo, e, por conseqncia, maximamente ente; pois as coisas que so maximamente verdadeiras so maximamente entes, conforme diz o II da Metafsica.

Mas o que se diz maximamente tal em algum gnero causa de todos os que esto naquele gnero, como o fogo, que maximamente quente, causa de todas as coisas quentes, conforme se diz no mesmo livro.

Existe, portanto, algo que para todas as coisas causa do ser e da bondade e de qualquer perfeio.

E a este chamamos Deus" .

O que este texto quer dizer bastante claro; a dificuldade comea quando se quer determinar como uma coisa prova a outra. De fato o texto afirma que h gradao nos entes, e isto suficiente para que se possa deduzir existir uma fonte que possui em grau mximo aquilo que nos diversos entes observado existir graduadamente. Que seja isto o que o texto pretende afirmar algo fora de qualquer dvida; o que causa perplexidade como daquela premissa pode-se passar com tanta certeza concluso indicada. O texto de Toms de Aquino muito conciso, e, tendo em vista os objetivos e as circunstncias em que foi escrita a Summa Theologiae, no comportava maiores explicaes. Mesmo assim, porm, Toms tentou, com o exemplo do fogo, fornecer um auxlio inteligncia dos leitores. Na sua exposio sobre o Credo, por ser um texto mais popular, Toms recorre mais abertamente ao exemplo do fogo:

"Para no fazermos uso de demonstraes repletas de sutilidades, mostraremos atravs de um exemplo simples como todas as coisas foram criadas e feitas por Deus.

manifesto que se algum entra em uma casa e na entrada da casa percebe calor, e depois, medida em que se dirige mais para o seu interior sente mais calor e assim sucessivamente, acreditar haver fogo dentro da casa, mesmo se no puder ver o prprio fogo que fosse a causa daqueles calores.

Ora, assim tambm ocorre ao que considera as coisas deste mundo. Pois ele encontra todas as coisas se disporem segundo diversos graus de beleza e nobreza, e quanto mais se aproximam de Deus, tanto mais belas e melhores as encontra. assim que os corpos celestes so mais belos e nobres do que os corpos inferiores e os seres invisveis mais belos e nobres do que os visveis.

Deve-se, portanto, crer que todas estas coisas procedem de um s Deus, que d o ser e a nobreza s coisas singulares" .

O exemplo do fogo de que Toms se utiliza , nestes dois textos, apropriadssimo para explicar o que ele quer dizer. O exemplo tem, ademais, para a Fsica moderna o mesmo valor que ele tinha para a Fsica do tempo de Toms de Aquino. Ele tem tambm o mesmo valor probativo para o caso do fogo do que para o caso do ser, no se tratando, portanto, de apenas um meio de sensibilizar ou tornar mais facilmente compreensvel uma demonstrao que somente teria verdadeiro valor probatrio no caso do ser, mas no no caso do fogo.

De fato, quando ele diz que o fogo maximamente quente, no quer dizer com isto que o fogo possui a temperatura mxima que seja possvel existir, pois em qualquer poca foi evidente para qualquer bom observador que o fogo de uma vela possui uma temperatura menor do que o fogo que est no interior de uma fornalha, que possui uma temperatura menor do que o fogo que h no Sol. O calor de uma vela no derrete os metais, mas o mesmo no se pode dizer do calor de uma fornalha bem construda; o calor de uma fornalha sentido apenas at a uma determinada distncia, mas o calor do Sol se espalha sobre toda a terra e provm de mais longe do que o calor da fornalha. Portanto, quando Toms de Aquino afirma que o fogo maximamente quente ele est se referindo no temperatura mxima que possa ser alcanada, mas a uma razo de ser diversa do calor no fogo e no Sol, por um lado, e nas demais coisas, por outro.

Nas coisas quentes o calor existe como algo que recebido de fora; todas as coisas quentes recebem o calor de uma fonte que pode ser o fogo ou o Sol. J no fogo e no Sol o calor se encontra segundo um modo de ser diverso do que encontrado nas demais coisas; o fogo e o Sol possuem calor sem receb-lo de nenhuma fonte externa; ao contrrio, o fogo e o Sol so fontes prprias de calor, da o fato de no precisarem receber calor de nenhuma fonte para serem quentes e todas as demais coisas receberem delas o calor pelo qual so quentes. Em ambas estas coisas, Sol e fogo, de um lado, e as demais coisas, de outro, h calor, porm de modos diversos; no Sol e no fogo o calor no tem causa externa, elas prprias so fonte de calor; nas demais coisas o calor causado por causas externas.

Ademais, em uma passagem da Summa Theologiae diz Toms de Aquino que tudo o que existe em algo pode ser ou a prpria essncia, ou algo causado pela prpria essncia, ou algo causado por uma causa externa .

Pode-se mostrar facilmente que o calor existe nas coisas que no so fogo nem Sol como algo causado por uma causa externa; mas no fogo e no Sol o calor existe como algo causado pela sua prpria essncia.

De fato, o fogo uma reao qumica pela qual um composto de carbono, combinando-se com oxignio, reage quimicamente produzindo gs CO2 e vapor de gua. Esta reao, porm, liberta, pela sua prpria natureza, uma quantidade extraordinria de calor que faz com que os gases que ela mesmo produz sejam liberados j a uma temperatura elevadssima e, portanto, em estado incandescente. A chama do fogo nada mais do que a incandescncia dos gases produzidos. Este calor provm da prpria essncia da reao qumica que a produziu.

A mesma coisa pode-se dizer do Sol, com a diferena que neste caso no se trata de uma reao qumica, mas de uma reao nuclear, que produz, por isso, temperaturas muito mais elevadas. Em ambos os casos do fogo e do Sol, porm, trata-se de um calor causado internamente pela prpria essncia; por isso mesmo, fogo e Sol se comportam, do ponto de vista do calor, de um modo mais nobre do que as demais coisas; fogo e Sol so fontes de calor, enquanto que as demais coisas apenas recebem e transmitem o calor que receberam, em ltima anlise, de algum ente que calor de modo mais nobre, que , portanto, maximamente calor, isto , que por si mesmo fonte de calor.

S. Toms de Aquino afirma que o mesmo que ocorre com o calor ocorre com o ser. H diferentes graus no ser; portanto, estes diversos graus do ser esto sendo recebidos de uma fonte de onde brota o ser.

Como, porm, podemos ter certeza que de fato isto o que ocorre com o ser? Do mesmo modo que o podemos saber no caso do calor. Como podemos saber se algo fonte de calor ou se apenas recebe e transmite calor? Sabemos que o contedo de calor de um corpo aumenta quando aumenta a sua temperatura; sabemos que algum corpo recebe calor de fora e apenas transmite o calor recebido se, isolando termicamente este corpo, isto , impedindo sua interao com qualquer possvel fonte ou sorvedouro, sua temperatura no aumenta nem diminui. Se, apesar de estar termicamente isolado, a temperatura do corpo aumenta, isto indcio certo de que ali h uma fonte de calor.

Vemos assim que para estabelecermos se algum ente fonte de calor ou se apenas recebe o calor de fora necessria uma anlise em que se leve em conta o movimento; preciso observar os corpos ao longo do tempo e ver se quando isolados suas temperaturas aumentam ou permanecem estacionrias, ou se quando no esto isolados suas temperaturas aumentam ou permanecem estacionrias. No possvel saber se algo apenas recebe calor de uma causa externa ou fonte de calor somente com uma medida esttica de temperaturas. Mas de uma medida dinmica de temperaturas possvel fazer inferncias deste tipo.

Estas inferncias, por sua vez, se fundamentam em ltima anlise na teoria da causalidade. A relao casual no algo que possa ser observada pelos sentidos; quando se aproxima o fogo de um objeto e este aumenta de temperatura, o que se observa apenas uma seqncia de fatos: o fogo se aproxima um fato; a temperatura que aumenta outro fato; que o fogo seja a causa do aumento da temperatura uma inferncia puramente intelectiva. Por mais que se repita a experincia centenas de vezes, no h nada que possa provar experimentalmente de que no se trata de uma coincidncia, mas de uma verdadeira relao causal. A necessidade de uma relao causal somente pode ser provada metafisicamente, com base no fato de que o ser no pode passar da potncia ao ato sem uma causa em ato, conforme discutido no Apndice ao captulo II sobre teoria da causalidade. De qualquer modo, porm, com base neste princpio, para inferir a existncia de uma causa necessrio observar uma passagem da potncia ao ato; se no se observa este movimento, no se pode inferir causalidade, no pelo menos com base neste princpio.

assim que se faz em cincia no caso do calor. Se um corpo termicamente isolado e no passa da potncia ao ato, isto , no aumenta de temperatura, mas quando deixa de estar termicamente isolado aumenta de temperatura, daqui se infere que h uma causa exterior que provoca o aumento da temperatura. Se o corpo aumenta ele prprio de temperatura mesmo estando termicamente isolado, porque a causa interna; o corpo ele prprio possui calor sob uma razo diversa de outros corpos; o corpo uma fonte de calor.

Quando transpomos este exemplo para o caso do ser verificamos que impossvel fazer a mesma anlise que fizemos no caso do calor, pois, de fato, no se observam mudanas no ser das coisas no Universo. At o momento no se observou a criao de matria no Universo; no consta ningum ter observado ente algum ter vindo do nada ao ser e do ser ter passado ao nada. Pelo que diz a Metafsica tal passagem possvel, mas o fato que ela no tem sido observada. O ser , portanto, aparentemente esttico. Quando uma coisa menos quente se torna mais quente, muda de cor, muda de forma, o que ocorre so alteraes nos acidentes das coisas; mas uma verdadeira passagem do nada ao ser ou do ser ao nada no tem sido observada em lugar algum. Ao contrrio, existe at uma lei da Qumica, a Lei de Lavoisier, estendida atualmente pela Fsica sob forma de diversos princpios de conservao, segundo a qual nada se cria e nada se destri, tudo apenas se transforma. Ningum at o momento possui qualquer prova de que isto uma lei necessria. Trata-se apenas de uma generalizao do que se tem visto, no de uma afirmao categrica de que nada pode ser criado nem destrudo absolutamente falando. Mas o fato que tais fenmenos no tm sido observados na natureza.

Parece, portanto, que com isto chegamos a um ponto morto. Embora seja possvel que o ser das coisas seja algo causado externamente, tal causalidade parece no poder ser demonstrada porque para inferir causalidade, em princpio, necessrio partir do movimento, isto , da passagem da potncia ao ato.

No obstante isso, h indcios notveis desta causalidade. Se fizssemos uma fotografia do sistema solar com uma chapa sensvel ao infra vermelho, uma radiao emitida pelos corpos que varia em frequncia e intensidade de acordo com a temperatura em que eles esto, observaramos uma variao de colorido de acordo com a gradao de temperaturas de cada regio do sistema solar. Observaramos toda uma graduao de temperaturas que apontaria em todos os locais para a mesma direo em que haveria um mximo de temperatura; este mximo estaria na posio em que est situado o Sol. De uma fotografia como esta poderia-se inferir que o Sol a causa de todas as temperaturas que existem no sistema solar. Mesmo que se fotografasse apenas uma regio do sistema solar sem o Sol, observaramos um gradiente de temperaturas que apontaria sempre na mesma direo, isto , na direo do Sol que no teria aparecido na fotografia; da tambm poderia-se inferir a existncia, naquela direo, de uma fonte de calor causa do calor existente em todo o restante do sistema solar. Isto s no seria uma verdadeira demonstrao de que o Sol a causa do gradiente de temperatura observado porque est implcito na interpretao desta chapa fotogrfica que o calor j um fenmeno conhecido e que, quando analisado em seu movimento, demonstra-se manifestamente tratar-se de um fenmeno causado por uma fonte, isto , o calor quando analisado no em uma nica chapa fotogrfica, mas em seu movimento, um fenmeno tal que manifestamente implica a existncia de seres que so fontes e seres que so quentes por causalidade externa; esta informao, quando transposta para a fotografia, que causa a certeza de que o gradiente de temperatura implica necessariamente na existncia de uma fonte de calor no ponto de temperatura mxima. De fato, podem-se dar muitos outros exemplos de gradientes em que da simples presena do gradiente no se infere a presena de uma fonte.

Vejamos o seguinte exemplo.

H um deserto onde no chove, mas no qual passa um rio; nas margens do rio os camponeses plantam trigo; quanto mais prximo margem mais alto e de melhor qualidade o trigo. H um gradiente de altura e de qualidade do trigo. Disto no se pode inferir que existe, para alm do trigo mais alto, uma outra espcie de trigo, que seja um trigo supereminente e do qual brota a trigalidade que transmitida para o trigal. Por que? Porque o trigo no trigo por participao; ser trigo algo que provm da prpria essncia de cada trigo; cada espiga de trigo trigo plenamente, no em parte.

Porm, neste mesmo exemplo, pode-se perceber que o teor de umidade do trigo prximo margem do rio mais elevado do que o teor de umidade do trigo longe da margem; esta umidade uma participao do trigo no carter da gua; pode-se provar que o trigo tal que esta qualidade causada e recebida de fora; portanto, a presena de um gradiente de umidade aqui prova que, para alm do trigo mais mido, deve existir uma fonte de gua que seja mida de uma maneira mais eminente do que o prprio trigo, e que esta a fonte e a causa da umidade que existe no trigo. Tal fonte existe e o prprio rio.

Portanto, quando olhamos uma fotografia do gradiente de temperatura no sistema solar e inferimos que no ponto de temperatura mxima est um Sol que a causa do calor em todo o sistema solar, esta deduo s correta porque antes j tinhamos demonstrado o carter participativo e externamente causvel do calor. Entretanto, mesmo sem este conhecimento prvio da natureza do calor, uma fotografia como esta um indcio fortssimo de que provavelmente no ponto para onde converge o gradiente h alguma coisa que causa do gradiente. o exemplo de Toms de Aquino que j citamos:

" manifesto que se algum entra em uma casa e na entrada da casa percebe calor, e depois, medida em que se dirige mais para o seu interior sente mais calor e assim sucessivamente, acreditar haver fogo dentro da casa, mesmo se no puder ver o prprio fogo que fosse a causa daqueles calores".

Temos neste exemplo um gradiente de temperaturas; por qualquer lugar da casa por que se entre, o gradiente aponta sempre na mesma direo; h, portanto, uma regio da casa em que deve haver uma fonte de calor que seja mais quente do que todos as temperaturas observadas.

A mesma coisa ocorre nas coisas. Entre os entes puramente materiais e as inteligncias h um gradiente no ser; tal gradiente aponta em uma determinada direo, para uma fonte de ser que seja mais intensamente ser e mais intensamente inteligente do que os demais seres que observamos. Sem, porm, uma demonstrao prvia da natureza participativa do ser, sem que se demonstre antes que o ser algo que pode ser recebido e causado externamente, tal observao no passa de um forte indcio, de um argumento provvel, mas do qual no se pode dizer que seja uma demonstrao certa.

Para ter, porm, esta demonstrao do carter externamente causado do ser, teramos que observar o movimento no ser enquanto ser, o que no parece algo que nos seja concedido pela natureza. Com isto camos novamente no mesmo impasse.

Se considerarmos, porm, mais atentamente os argumentos precedentes, poderemos observar que a teoria da causalidade neles infere a existncia da causa porque a potncia no pode passar ao ato sem a interveno de uma causa em ato. Por sua vez, que a potncia passe ao ato, em cada caso em particular, algo que inferido a partir do movimento, pois no movimento se d uma passagem da potncia ao ato. Na verdade, at a prpria diviso do ser em potncia e ato inferida nos livros de Metafsica de Aristteles a partir da constatao do movimento. Disto se segue que a teoria da causalidade, mais do que no movimento, tem seu fundamento ltimo na diviso do ser em potncia e ato. A constatao do movimento apenas uma via de acesso para se inferir esta estrutura bipartida do ser em potncia e ato. Se fosse possvel, portanto, demonstrar esta estrutura bipartida em potncia e ato do ser das coisas sem necessitar tomar o movimento como ponto de partida, poderamos disto deduzir o carter participativo e externamente causado do ser das coisas. Esta inferncia, transposta para a constatao da existncia de graus no ser das coisas, nos levaria concluso da existncia de uma fonte do ser de todos os entes que fosse uma causa primeira inteligente e imaterial.

No tentaremos, porm, esta via no presente trabalho; se o fizssemos, transformaramos este texto de pedagogia numa obra de metafsica. Em seu lugar tentaremos demonstrar o carter participativo e recebido por causalidade externa do ser das coisas de um outro modo mais limitado mas mais acessvel para as finalidades que temos em vista.

De fato, considerada mais atentamente, verifica-se existir na natureza uma movimentao no ser passvel de observao.

Trata-se do ato da reproduo humana, em que a matria inanimada se converte em ser humano dotado de inteligncia.

A inteligncia assim produzida no fruto do rearranjo na estrutura da matria como conseqncia do ato da fecundao. Se a inteligncia fosse apenas a prpria matria dotada de uma disposio mais complexa, seria possvel esperar que daqui a no muitos anos se construsse um computador que se tornasse um filsofo dotado de todas as qualidades descritas neste trabalho; um computador capaz de uma vida contemplativa no mais alto grau e at mais, que superasse em muito, pela ilimitada perfectibilidade de seus circuitos, o maior grau de contemplao possvel ao homem. Entretanto, tal coisa no ser possvel, pois o computador um ente puramente material, e mostramos que a inteligncia humana, para possuir as qualidades que discutimos neste trabalho no pode s-lo.

Corre na sociedade contempornea como coisa certa que a inteligncia apenas um fenmeno resultante de reaes qumicas processadas em circuitos neuroniais, formalmente anlogo ao funcionamento dos circuitos internos de um computador eletrnico, mas com um maior nvel de complexidade. Ouve-se falar disto tantas vzes que esta concepo se torna, parafraseando S. Toms de Aquino, um costume que adquire fora de natureza. Mas a verdade que at hoje no se produziu nenhuma evidncia de que esta afirmao tenha fundamento; todas as evidncias apresentadas neste sentido apenas apontam no sentido de que a imaginao um produto de reaes qumicas ocorridas em circuitos neuroniais, no a inteligncia. Se assim fosse, que se projete ento, mesmo que seja a nvel apenas terico, um programa de computador que seja capaz de ter conscincia de sua prpria existncia, que seja capaz de possuir uma percepo total de sua prpria atividade cognitiva, que seja capaz de apreender a evidncia dos primeiros princpios das demonstraes, e, mais ainda, que seja capaz de apreender a idia do ser, que aquilo sobre o qual se baseiam as operaes anteriores. Qualquer pessoa que conhea computao, ouvindo uma coisa destas, no saberia sequer por onde comear um programa com estes objetivos, nem teria idia sobre que princpios teria que se basear para um dia poder vir a faze-lo. Segundo a filosofia, trata-se de uma tarefa impossvel, porque operaes como estas pressupem a imaterialidade que nenhum circuito eletrnico ou neuronal capaz de possuir.

H, portanto, no ato da reproduo humana, uma verdadeira passagem da potncia ao ato que envolve o ser enquanto tal; h uma verdadeira elevao da temperatura e da intensidade do ser. Esta elevao no pode ser causada internamente, pois o que material no pode produzir o que imaterial; e se todo movimento da potncia ao ato pressupe uma causa, e neste caso a causa no pode ser interna, resulta que a causa externa. Tal como nos exemplos de gradiente de calor, portanto, deve existir uma fonte externa de ser que possua aquilo que dela causado de um modo mais eminente do que os efeitos que ela causa. Esta fonte tem que possuir qualidades intelectivas mais intensas do que as da inteligncia humana, assim como o calor do fogo mais quente do que o calor do corpo que foi esquentado.

Esta causa externa no poderia ser um reservatrio de inteligncias que fossem acrescentadas matria, de tal maneira que a inteligncia fosse algo apenas externamente justaposto matria quando da reproduo humana. Se fosse assim, o ser humano seria apenas uma inteligncia aprisionada na matria, o que porm no o que se observa acontecer no caso do homem. O corpo do homem tal que exige por natureza a presena da inteligncia. Dado um corpo humano, a presena do elemento intelectivo uma exigncia interna de sua prpria natureza. Se assim no fosse, se a inteligncia humana fosse algo pr existente ao corpo e que fosse simplesmente anexado ao corpo, nada impediria que pudesse haver alguma falha fortuita deste processo de justaposio da inteligncia ao corpo e com isto se produzisse um corpo perfeito sem inteligncia alguma. Um corpo assim, perfeito, mas inteiramente destitudo de inteligncia, poderia viver perfeitamente, pois o corpo do homem possui todos os rgos corporais que os demais animais possuem e os possui ainda mais perfeitos. Portanto, se a inteligncia fosse algo externamente anexado a um corpo, se a um determinado corpo no se houvesse anexado nenhuma inteligncia, ainda assim este corpo poderia continuar vivendo uma vida biolgica to perfeita quanto a de qualquer animal, embora este corpo diferisse dos demais homens por estar inteiramente desprovido de capacidades intelectivas. Um em cada determinado nmero de indivduos perfeitamente sadios do ponto de vista biolgico, no obstante sua sanidade biolgica, seria inteiramente incapaz por toda a sua vida de qualquer atividade intelectiva, por maiores que fossem os esforos e mais intensas e prolongadas que fossem as terapias a que ele fosse submetido. Nunca, porm, consta ter-se visto semelhante fenmeno na histria humana. A privao de capacidades intelectivas est sempre associada a algum problema orgnico ou gentico; jamais se viu um corpo humano perfeitamente so e ntegro do ponto de vista biolgico ser incapaz de inteligir, nem se saberia como provocar um tal fenmeno. De onde que deve-se concluir que a inteligncia humana no pode ser algo externamente justaposto ao corpo; , antes, uma exigncia interna de sua prpria essncia.

Na reproduo humana, portanto, no h uma simples anexao da inteligncia matria; ao contrrio, h um fenmeno de verdadeira elevao na escala do ser; diversamente das demais transformaes da natureza, a reproduo humana no pode ser explicada sem a introduo de um elemento que transcende a natureza da matria e da prpria inteligncia humana. Assim como quando uma chapa de ferro aquecida e passa de uma temperatura a outra a anlise mostra que o calor desta chapa uma participao externamente causada, tanto antes como depois do aquecimento, e h em jogo uma chama que possui o calor como fonte de calor, assim tambm a reproduo humana evidencia o carter participativo e externamente causado do ser da matria e do ser da inteligncia.

Evidencia-se com isto tambm que o ato da reproduo humana est mais diretamente ligado causa primeira do ser de todas as coisas, e de um modo mais eminente, do que a prpria ordem do restante do universo. Pois a ordem do universo conseqncia das inclinaes que se seguem s formas prprias de cada coisa; segundo afirma Toms de Aquino na quinta via, pode-se demonstrar daqui a existncia de uma causa primeira, mas isto no exclui o fato de que esta ordem seja mediada pelas formas que constituem a essncia das coisas. Mas na reproduo do homem no existe forma intermediria alguma qual se possa seguir a gerao do homem como se fosse uma operao produzida por uma inclinao prpria daquela forma; a gerao do homem pressupe uma ao imediata da prpria causa primeira.

Do ato da reproduo humana pode-se inferir o carter participativo e externamente causado do ser de todas as coisas, e da a existncia de uma fonte primeira do ser que est diretamente envolvido neste ato. Desta fonte ns e todas as coisas recebemos o ser. Juntamente com o ser, recebemos as inclinaes prprias do ser, que produzem a ordem do universo. Nesta ordem, todas as coisas procuram assemelhar-se causa primeira; o ser inteligente, em particular, faz isto pelo movimento da inteligncia, na medida em que intelige ao ser primeiro; a prpria ordem do universo lhe meio para tanto, fazendo com isto que o universo tenha, para com a inteligncia humana, natureza de espetculo; o ser inteligente tal que tende por natureza a admirar este espetculo e, mediante isso, alcanar a sua fonte; tal o seu fim ltimo, ao qual tendem todas as suas potncias, razo pela qual este fim lhe deleitabilssimo; este fim a sua prpria felicidade, no porque lhe deleitabilssimo, mas -lhe deleitabilssimo por ser a sua felicidade; e nesta estrutura do universo assim descrita repousam os fundamentos ltimos da educao humana.

Summa Theologiae, Ia, Prlogo.

Summa Theologiae, Ia, Q.2 a.1.

Summa contra Gentiles, I,10-11.

Idem,I,11.

Summa Theologiae,IIIa, Q.71 a.4 ad 3.

No Comentrio ao Livro das Sentenas S. Toms de Aquino afirma explicitamente que todo ser existente por si separado da matria tem que ser necessariamente de natureza intelectual(I Sent.d.35 Q.1 a.1).

Clemente de Alexandria: Stromata, L.VI,l.2; PG ,237-8.

Eisberg,R. e Resnick,R.: Quantum Physics of Atoms, Molecules, Solids, Nuclei and Particles;New York, John Wiley, 1974; C.1-2.

Aristteles: Metafsica, IV, 3.

Ibidem, IV, 4.

Com base, porm, em outros argumentos, S. Toms mostra que no h causas intermedirias na produo do ser enquanto ser, isto , que o ser de todas as coisas causado diretamente pela causa primeira.Cf. Summa Theologiae, Ia,Q.44 a.1; Quaestiones Disputatae De Potentia, Q.3 a.4.

Summa Theologiae, Ia, Q.2 a.3.

Idem, loc. cit..

Expositio super Symbolum Apostolorum, C.1.

Summa Theologiae, Ia, Q.3 a.4.