A Roupa Como Artefato Social

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A roupa como artefato social por uma sociologia da moda

Maria Dolores de Brito Mota

De um modo geral, os estudos sobre a roupa e o vestir configuram-se como estudos sobre a moda. No entanto a moda o modo ou a prtica do vestir caracterstica da sociedade moderna. A relao da roupa com o corpo e a cultura transcende o fenmeno da moda, tomando a forma de um artefato social e um elemento de civilizao, e nessa perspectiva que a colocaremos no presente artigo. Na tradio sociolgica do sculo XIX alguns autores se interrogaram sobre a moda, como mostra Rainho (2002) ao traar um percurso de abordagens sobre a moda realizadas por alguns pensadores que, j naquele perodo, examinaram esse fenmeno como Gabriel de Tarde, Torstein Veblen, George Simmel e no sculo XX autores como J. C. Flugel, Roland Barthes, Pierre Bourdieu, e finalmente Gilles Lipovetsky, com O Imprio do Efmero (1997) que estabeleceu a moda como fenmeno social histrico, prprio da modernidade, que, se configurada no mbito do vesturio, seu arqutipo, se estendeu como lgica de organizao social. Todos esses autores observaram o uso das roupas privilegiando o contexto da moda, expresso histrica da produo e uso das vestimentas sob a lgica do capitalismo. Esta pioneira produo acadmica foi produzida ao mesmo tempo em que a moda se configurava como um fenmeno social e histrico singular. Postulamos aqui uma reflexo sobre a roupa e a sociedade, para alm do fenmeno da moda, a roupa como artefato social, na proposio de Crane (2006). Essa perspectiva foi insinuada por Barthes (2005a) ao reivindicar uma histria a ser feita sobre o vesturio em termos de dimenso econmica e social, de relaes entre o vesturio e fatos de sensibilidade (p.258). Barthes, conquanto tenha se centrado no uso da roupa como um ato de significao (2005) pleiteou a captao da moda em sua histria sem, no entanto, perder sua constituio de estrutura (p.259). Nesse mesmo texto, o autor afirma que as histrias da indumentria at ento tem cuidado da indumentria aristocrtica e nunca relacionada com o trabalho feito por quem a usa: e, assim, todo o problema da funcionalizao do vesturio foi omitido (p.259).

nessa fresta aberta por Barthes, que pretendemos focar a reflexo sobre a roupa, aqum e alm do fenmeno da roupa moda. A idia de artefato, de acordo com o dicionrio Houaiss (eletrnico) corresponde a produto de trabalho mecnico; objeto, dispositivo, artigo manufaturado; aparelho, engenho, mecanismo construdo para um fim determinado. A roupa artefato um produto da sociedade, e reflete o seu nvel de desenvolvimento tcnico e sua cultura. Para Crane (2006) as roupas como artefatos, criam comportamentos por sua capacidade de impor identidades sociais e permitir que as pessoas afirmem identidades sociais latentes (p. 22). Esse sentido funcional de uma roupa artefato que influencia o comportamento das pessoas pode ser estendido para absorver o seu processo de fabricao. Assim, pode-se ir alm da roupa como fato para compreend-la como prxis1, como categoria do real cuja construo social inclui no apenas o uso e o significado, mas a sua feitura. A unidade de feitura e significao integra a criao e a manifestao da roupa como realidade concreta histrico-social produto da ao humana em condies determinadas. Pensar a construo social da roupa remete ao exame dos materiais utilizados e da tcnica de sua feitura, bem como do uso e significado que lhe so atribudos. Crane (idem, p.24) afirma que as modificaes no vesturio e nos discursos acerca dele indicam mudanas nas relaes sociais e tenses entre os diferentes grupos sociais que se apresentam de forma diferente no espao pblico. Dessa maneira, fazer e deixar de fazer, usar e deixar de usar, e tambm dar sentido a uma determinada roupa, so processos relacionados com a forma de organizao da sociedade, seus modos de vida e seus valores culturais. Pitombo (2003, p.1) afirma que o homem se veste e enquanto tal exerce sua atividade significante; portar uma vestimenta fundamentalmente um ato de significao, para alm dos motivos de pudor, proteo e adorno. A roupa acompanha a histria da civilizao humana, ou acompanha os homens em seu processo civilizatrio, o que pode se observar em mitos antigos como que pode ser compreendida como o memento de instituio da cultura e da histria, pela ruptura com o tempo eterno do paraso, ao comerem do fruto da sabedoria Ento foram abertos os olhos de ambos, e conheceram que estavam nus; pelo que coseram folhas de figueira, e fizeram1

Prxis no sentido concebido por Kosik (1976), do mundo real historicamente determinado, ou seja, realidade humano-social como unidade de produo e produto, de sujeito e objeto, de gnese e estrutura (p.18), em que a verdade no dada, mas devm, tem um decurso, processo de criao da realidade concreta (p. 19).

para si aventais (C 3, v. 7). Um dos primeiros atos de cultura foi cobrir os corpos, vestir-se. Criar significado de si e sobre si, com o corpo e no corpo foi um dos primeiros atos de significao. A narrativa mtica fabula realidades e conquanto no possa ser demonstrada, no pode ser desmitificada, pois se refere a prticas reais cuja origem impossvel datar. No percurso de fundao da civilizao a prtica do vestir est registrada no imaginrio social como elemento integrante. Ao longo da histria humana, as roupas acompanharam os seres humanos, com texturas, formas, materiais e significados produzidos pelas formas de vida caractersticas de cada sociedade em pocas determinadas. A roupa no social A reivindicao de perscrutar a relao roupa, sociedade e individuo atravs das prticas de vestir, permite pensar a roupa no apenas como significado, mas como produto cuja fabricao est diretamente relacionada com a forma social, seu desenvolvimento tecnolgico, seus costumes e valores. Assim, sejam pinturas, adereos, peles de animais, tecidos, os diversos materiais empregados na fabricao das vestimentas de uma sociedade, correspondem ao nvel de desenvolvimento e forma de organizao vigente numa dada sociedade. senso comum afirmar a moda como o espelho de uma poca, mas esse enfoque toma a roupa pronta, em suas formas e significados. Esse entendimento permite que se descreva e apresente as roupas usadas numa dada poca e sociedade, no entanto sem dar conta dos mecanismos sociais que gestaram as suas formas, cores, texturas e usos. Proceder uma investigao nessa perspectiva seria construir um foco para os materiais utilizados na fabricao das roupas, sua disponibilidade, acessibilidade e manuseio. Assim tambm se colocaria como questo o conhecimento das tcnicas de tingimentos e as formas de produo de corantes e estampas, alm do prprio significado das cores utilizadas. Entretanto, apenas conhecer o aspecto da fabricao do vesturio, no possibilita como prope Barthes (2005a), captar a sua histria sem, no entanto, perder a sua constituio de estrutura; o vesturio , a cada momento da histria o equilbrio entre formas normativas, cujo conjunto, apesar disso, est o tempo todo no devir (p. 259). E nesse ponto, onde se encontra a histria, ou seja, na mudana de uma pea, mas o prprio autor ressalta a dificuldade de encontrar essa histria, pois quando uma pea

muda realmente?. Ainda mais quando geralmente se leva em conta as vestes externas e no se leva em conta as roupas intimas, ou como refere o autor, veste e sobreveste. Outra questo importante que Barthes nos coloca, no referido trabalho, diz respeito ao fato de que as histrias da indumentria tm considerado as vestes das classes dominantes, o que reduz a classe a uma imagem sem contedo ideolgico, ao tempo em que no se atenta para as demais classes sociais e no se relaciona a indumentria com o trabalho de quem a usa, desconsiderando uma discusso sobre a sua funcionalidade. O autor destaca ainda outro elemento qual seja a periodizao, alegando que no se pode confundir a inveno de uma pea, com a sua adoo e o seu desuso. Coloca-se ento o problema do tempo, que no caso das roupas, emerge nessas consideraes como tempo elstico, fluido, pela sutileza da demarcao do incio ou do fim de sua criao e seu uso. Esse fato se torna ainda mais sutil quando atualmente o vintage e os brechs reatualizam o uso de roupas antigas e outras modas, e o prprio movimento da moda tem um carter cclico, expresso nas famosas releituras de modas passadas. Sintetizando, so trs aspectos problematizadores que Barthes coloca para uma histria do vesturio: a sua mudana, incluindo esta a diferenciao externa e interna das roupas, a funcionalidade das roupas e a sua periodizao. Mas preciso estar atento ao sentido do ciclo da moda, que Baudrillard considera como o poder de reverter todas as formas ao nada e recorrncia. A moda sempre retro, mas baseada na abolio do passado: morte e ressurreio espectrais das formas (1996, p. 112) Num plano mais sociolgico, a roupa est diretamente ligada aos cdigos de diferenciao social, a construo das identidades de gnero, aos processos de mudana social, aos fenmenos sociais como religio, cinema, msica, movimentos juvenis, tribos urbanas, movimentos sociais. Na sociedade do presente, regida pelo mercado e pelo capital, predominam o culto as marcas, diretamente vinculado busca de experincias de luxo emocional e intrnseco, como concebe Lipovetsky (2005). Nesses novos tempos, a produo generalizada de cpias, similares e rplicas de produtos de marcas permite um consumo ldico, descartvel e acessvel, para as massas. Nesse contexto, ganha intensidade a discusso sobre a moda indumentria como mecanismo de diferenciao e identificao de sujeitos sociais, coletivos ou individuais. Movimentos sociais como o Movimento de Trabalhadores Sem Terra MST, tem uma indumentria caracterstica de sua identidade poltica, com a cor vermelha prevalecendo em camisetas com a logomarca do mapa do Brasil em cor verde

dentro de um crculo vermelho, tendo no interior um casal com o homem empunhando um faco, o bon vermelho. Essas peas tornam inconfundveis e imediatamente reconhecveis um membro deste movimento. Grupos diversos ou tribos como skatistas, surfistas, roqueiros, emos entre outros, povoam as cidades compondo a paisagem urbana com suas imagens caractersticas. O simbolismo predominante nesse processo de diferenciao identificao e comunicao visual, no exclui uma anlise da fabricao e da funcionalidade dessas roupas, as quais dispem de todo uma engrenagem de produo e consumo. A roupa no pessoal O indivduo e a moda, esta entendida como uma modalidade de prtica de vestir orientada pela novidade, pela mudana programada e pela generalizao, tal como a conhecemos, surgiram historicamente articulados entre si. Sobre essa questo, Simmel (2005a) refora a opinio de que foi na renascena italiana que se desenvolveu o que chamamos de individualidade, com a superao de formas comunitrias que faziam desaparecer os traos pessoais e impossibilitando o desenvolvimento da liberdade pessoal, da singularidade de cada um e da auto responsabilidade(p. 107). O autor destaca queSe no comeo desse perodo, como se comenta, no existia em Florena nenhuma moda dominante para a vestimenta masculina, posto que cada qual desejava se vestir de uma maneira prpria e especial, no era uma questo de diferenciao simples, mas, antes de tudo, um desejo individual de aparecer, de se apresentar da maneira mais favorvel e merecedora de ateno do que era permitido pelas formas habituais (Ibdem, p. 107).

A roupa desde ento vai estar indissociavelmente ligada aos processos de identificao e diferenciao dos indivduos. Simmel destaca a moda como forma de vida social pela qual se procura produzir um compromisso entre a tendncia para a igualdade social e a tendncia para a distino individual (2005b, p.161). A moda est sempre recriando as condies do paradoxo de aplicar a regra da semelhana e acirrar a indispensabilidade da diferena, levando Baudrillard anunci-la como "o jogo mais diferencial quanto como a forma social mais profunda (1996, p. 111). O aspecto da relao dos indivduos com a as roupas nas formas da moda tem sido o mais discutido e estudado, especialmente nas questes que envolvem a

construo das identidades e as formas comunicacionais. Fazendo-se ora imagem texto construdo individual ou coletivamente, ora engrenagem que inclui, exclui, modela, recria sujeitos sociais, individuais ou coletivos, dispondo lugares, papis e significados sociais. A roupa-moda est tambm diretamente ligada a histria de cada um, em cada momento, instante vivido, vestimos algo que compe a paisagem do vivido. O nascimento, batizado, aniversrios, festas, namoros, casamento, enterros, qualquer acontecimento e lugar que experimentamos, qualquer coisa que fazemos, uma roupa nos veste e investe em memrias e significados. Stallybrass (2004) expe com muita sensibilidade esta questo ao dizer quea mgica da roupa est no fato de que ela nos recebe; recebe nosso cheiro, nosso suor; recebe at mesmo nossa forma. E quando nossos pais, nossos amigos e nossos amantes morrem, as roupas ainda ficam l, penduradas em seus armrios, sustentando seus gestos ao mesmo tempo confortadores e aterradores, tocando os vivos com os mortos (p. 13).

Essa dimenso existencial da roupa pouca considerada, talvez por estar muito prxima de ns, em qualquer de nossas memrias que nem nos damos conta de penslas em separado. As roupas so histria e memria e sobrevivem aos corpos que vestem, segundo esse autor, para quem elas recebem a marca humana (Ibdem, p. 14), e absorvem a presena ausente de seus donos. A roupa no se reduz a moda e nem a moda se reduz roupa, mas ambas se encontram no arqutipo da moda criado no decurso da modernidade e sua sociedade de mercado. A roupa em sua dimenso existencial articula-se com o corpo para inserir o individuo na estrutura social, mas tambm para entrelaar os elos da prpria vida compondo imagens pessoais, paisagens sociais, possibilitando assim a experimentao de situaes e emoes. Vestir uma roupa um ato que acompanha todos os movimentos que constituem as maneiras e o tempo de durao de toda uma vida. Isso coloca o vestir sempre situado em contextos, sejam amplos ou especficos. Tomar a moda como produto ou signo requer buscar seus nexos com a estrutura e o sistema, com a forma e o signo, com o coletivo e o pessoal.

KOSIK, Karel. Dialtica do Concreto. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1976. BARTHES, Roland. Histria e Sociologia do vesturio. In: BARTHES, R. Imagem e Moda. Inditos Vol. 3. So Paulo: Martins Fontes, 2005. CRANE, Daiane. A moda e seu papel social. Classe, gnero e identidade das roupas. So Paulo: Editora SENAC, 2006. PITOMBO, Renata. Moda, Cultura e Sentido. In: GHREBH. Nmero 3, So Paulo, julho de 2003. Disponvel em: http://revista.cisc.org.br. SIMMEL, Georg. O indivduo e a modernidade. In: SOUZA, J. e ELZE, B. Simmel e a Modernidade. 2. Ed. Braslia: Editora UNB, 2005a. SIMMEL, Georg. Da psicologia da moda: um estudo sociolgico. In: SOUZA, J. e ELZE, B. Simmel e a Modernidade. 2. Ed. Braslia: Editora UNB, 2005b. BAUDRILLARD, Jean. A moda ou a magia do cdigo. In:A troca simblica e a morte. (Parte III) So Paulo: Edies Loyola, 1996.