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A Sabedoria das Nossas Fúrias Da fúria que destrói à fúria que constrói Tradução de Cristina Rodriguez e Artur Guerra Marc Pistorio

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A Sabedoria das Nossas Fúrias

Da fúria que destrói

à fúria que constrói

Tradução deCristina Rodriguez e Artur Guerra

Marc Pistorio

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ÍNDICE

Introdução

PRIMEIRA PARTEAs fúrias dirigidas contra os outros

CAPÍTULO 1As emoções perturbamOs indivíduos desligados das suas emoçõesEntrar no mundo das emoções desde a conceçãoNunca mais se deixar magoarEmotivo ou cerebralAs emoções são úteisUm repertório comportamental limitadoOs riscos de reprimirDesligar-se das suas emoções para se desligar de siO peso do meio socioculturalA neurofisiologia da fúria

CAPÍTULO 2Forças vitais em concorrênciaPulsão de vida, pulsão de morte

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Uma mistura complexa como fonte de equilíbrioEscolher a construção ou a destruiçãoPulsões de autoconservação, pulsões sexuais,

pulsões epistemofílicasPulsões de destruição, pulsões de agressãoA compulsão de repetiçãoA pulsão de destruição contra os outros ou contra siA pulsão de agressão para controlar o outroConhecer-se reconhecendo as suas pulsõesO aparecimento das pulsões na infânciaA necessidade da carência para desejar

CAPÍTULO 3Fúria interditaA fúria abafada na infânciaA fúria reprimida na idade adultaOs não coléricos encerrados nos seus mecanismos de defesaA proibição da fúria, uma imposição parentalTemer a invasão da fúriaA falsa gentileza dos não coléricos

CAPÍTULO 4As explosões de fúriaUma perda de controlo totalAprender o controlo da fúria na infânciaTudo é pretexto para a fúriaViver as suas fúrias para as libertarDesprender-se da fúria explosivaRevelar a violência familiar

CAPÍTULO 5As fúrias na intimidadeAs mulheres e os homens que se condenam ao celibato

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Os solitáriosOs foliõesOs dominadoresOs independentesA mulher-criança e o eterno adolescenteOs fóbicos do sexoOs abstinentesA cuidadora e o salvadorA sexualidade como ferramenta da fúriaAs mulheres que se forçam a ter relações sexuaisAs mulheres e os homens resignadosRecusar as relações sexuais para punirA violência conjugalA perda de controlo como prelúdio da violênciaUma dinâmica relacional de violênciaQuando a violência é verbal é psicológicaOs objetivos da psicoterapia de casalO agressor controlaO agressor exige uma total disponibilidadeO agressor tem falta de sensibilidadeO agressor ou o ciúme patológicoO agressor ameaça

CAPÍTULO 6A fúria como instrumento de manipulaçãoFingir a fúriaTirano, depois falso coléricoFélix, 23 anos, tirano e abandono escolarPorquê a tirania?Para não se tornar tiranoColocar limitesTestar os limites com o seu corpo

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CAPÍTULO 7Expressões ocultas da fúriaA raiva surdaTrês casais com raiva surdaDanièle et FrédéricJuliette e YvesMarie e SimonA agressividade passiva ou o exercício

da energia negativaChristian, o passivo-agressivoA fúria ao volanteA fúria ao volante, do lado da pulsão de morteProjetar as suas fúrias reprimidas nos outros condutoresExasperar os outros para relaxar as tensões internasTestar os limites da lei

CAPÍTULO 8A violência verbal e psicológicaNo mundo do trabalhoA diferença como risco de assédioQuem é o agressor psicológico?Da perversão e do narcisismoO narcisista perverso quer fazer malO narcisista perverso age para manter as suas aquisiçõesPessoas que estão mais «em risco»Uma autoestima e uma autoconfiança deficientesUma hipersensibilidade às críticasUma necessidade de reconhecimento exageradaQuando as relações pessoais e profissionais se misturamCaroline e JuliaÈve e MélissaJean-Paul e os seus empregadosA importância dos limites

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SEGUNDA PARTEAs fúrias viradas contra si

CAPÍTULO 9Fazer o corpo pagar: o peso da fúriaA fúria retrofletidaA fúria faz engordarRomper com o esquemaA anorexia e a bulimia, outras formas de automutilaçãoA fúria insinuada

CAPÍTULO 10As dependências, prazeres que fazem malUm tratamento contra a ansiedadePrincípio neurofisiológico do consumo de drogasPreencher um vazio, acalmar a dorIncapaz de não fazer mal a si próprio

CAPÍTULO 11O suicídio, a depressão que mataFalsas causas aparentesFracos recursos internosUma consciência que prejudica

CAPÍTULO 12Fazer mal a si e aos outros na sexualidadeLibertar-se das tensõesÉdouard, celibatário inveteradoPauline e o poder de seduzirJulien, sedutor compulsivoBruno, homossexual e seropositivo«Eu gostaria de ter sida!»

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Impor a si próprio uma sexualidade de infelicidade no casal

CAPÍTULO 13Automutilar-se para exprimir a sua raivaTentar conter a ansiedadeOs comportamentos de automutilação dos adolescentesMaltratar-se para fazer bem a si próprioRestabelecer o contacto com o adolescenteQuando a fúria impele a maltratar-se

TERCEIRA PARTEConstruir-se em plena consciência das suas fúrias

CAPÍTULO 14Ser responsável e agirA fúria nasce na infânciaAceitar que qualquer um tome conta de siRecusar assumir o papel de vítimaO poder das palavras para evoluirEvitar os tormentos da falsa escutaCompaixão pelas suas fúrias

CAPÍTULO 15Sair de uma posição defensivaUm arsenal de reações defensivasPrevenir as reações defensivasUm método para desenvolver uma atitude construtiva1. Peça exemplos precisos2. Recorra à sua intuição3. Reformule com palavras suas as ideias do outro4. Ponha questões sobre os efeitos do seu comportamento5. Pergunte se há mais críticas

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6. Concorde com o que é verdadeiro7. Reconheça a perceção do outro e escolha ou não aceitá-laMelhorar o seu estilo de comunicação em situação de conflitoO comportamento de evitação:

a energia negativa do passivo-agressivoA agressividade diretaO comportamento manipuladorO comportamento afirmativo

CAPÍTULO 16Uma resolução de conflitos win-winUm método de resolução em seis etapas1. Identifique o problema e as necessidades insatisfeitas2. Marque um encontro3. Exponha o problema e as necessidades4. Considere o ponto de vista do interlocutor5. Negoceie um acordo6. Tire partido da solução encontradaUm método realista e ganhador

CAPÍTULO 17O que fazer perante o assédio no meio laboral?Um plano de ação em três estapas1. Efetuar um levantamento sistemático dos factos2. Garantir a sua defesa no seio da empresa3. Encontrar uma soluçãoRevelar para acabar com o assédio psicológico

CAPÍTULO 18Uma nova abordagem da fúriaA mindfulness ou a plena consciência de siMedidas objetivas da plena consciênciaO efeito positivo da plena consciência nas doenças físicas

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A plena consciência para um saudável domínio de siA fúria como fenómeno epigenéticoA neuroplasticidade do cérebro para mudar os comportamentosUma nova compreensão da fúriaMudar o rótulo da sua fúriaTomar consciência da sua respiraçãoRecalibrar os pensamentos mudando de canalIdentificar a quem se dirige verdadeiramente a fúria viva

ConclusãoMediagrafia

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PRIMEIRA PARTE

As fúrias dirigidas contra os outros

Quando alguém te enfurece,fica a saber que é o teu julgamento que te enfurece.

EPICTETO

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CAPÍTULO 1

As emoções perturbam

OS INDIVÍDUOS DESLIGADOS DAS SUAS EMOÇÕES

Para tratar a fúria, existem várias classificações possíveis.Alguns autores preferem descrevê-la como uma emoçãosimples, ao lado do desejo e da melancolia, enquanto outros,pelo contrário, a associam a diferentes tipos de persona-lidade. Pela minha parte, escolho descrevê-la segundo trêsgrandes tendências: a fúria que infligimos aos outros, aque dirigimos contra nós mesmos e a que os outros exercemsobre nós. Assim, proponho conceber a fúria como umaemoção complexa que se exprime, eventualmente, quandoa fluidez da relação com o outro é contrariada. Veremosque cada uma das tendências implica manifestações quecorrespondem às suas expressões diferentes e complemen-tares. O leitor poderá facilmente encontrar-se numa ounoutra das tendências e apanhar mais precisamente o queesta «diz» de si e da sua construção no plano psicológico.

Interessar-se pela fúria é entrar ao mesmo tempo novasto mundo das emoções. As emoções desconcertam por-que perturbam, quer esta perturbação seja de natureza

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positiva ou negativa. Vêm, de repente, estragar um equi-líbrio momentâneo insuflando-lhe uma energia nova, fontede prazer ou de desconforto; de imediato, o organismo«interpreta» que está em jogo algo importante, ou seja,vital. Enquanto psicólogo – e acima de tudo como indivíduo–, não concebo as emoções senão sob o ângulo do movi-mento interior positivo que elas me inspiram porque asemoções nos fazem sentir vivos. Elas traduzem este impulsointerior que nos empurra, levam-nos a recordar até queponto nós somos seres em constante interação com osnossos sentidos. Quando as emoções são reprimidas, apesarde tudo mantêm-se presentes, como um pesado contenciosoa carregar que, com o tempo, esmaga e torna as interaçõescomplexas. É preciso compreender que, quando ignoramosuma emoção, ela permanece em nós tal como a marcaindelével de um sofrimento reprimido.

Inversamente, as emoções plenamente sentidas des-pertam-nos para a consciência do ambiente de que fazemosparte, com o qual interagimos numa influência mútua. Asnossas emoções definem-nos numa espontaneidade trans-portadora de informações extremamente interessantessobre o que nos estimula, nos motiva e nos afeta. Mas épreciso saber descodificá-las para não nos assustarmos comelas.

ENTRAR NO MUNDO DAS EMOÇÕES DESDE A CONCEÇÃO

Desde a conceção intrauterina, e provavelmente antes, noplano do fantasma parental que prenuncia a conceção, nósinscrevemo-nos radicalmente numa história psicológica que

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fala de emoções complexas, conjugadas numa herança fami-liar que alia dois pais, é claro, mas também duas históriasgeracionais. Nós somos um produto puro de emoções ecom bastantes subtilezas a descobrir acerca da realidadeidentitária do nosso ser. A nossa história afetiva é a causadireta da nossa abertura ou do nosso fechamento relativa-mente às emoções. Desde as primeiras etapas da nossa con-ceção que vivemos as nossas primeiras emoções. A qualidadeparticular destas experiências no plano emocional e a suaduração no tempo vai determinar, para cada um de nós, sese trata de experiências positivas ou negativas, construtivasou destrutivas, motivadoras ou traumatizantes.

O curso da vida de um ser é estreitamente influenciadopela sua própria perceção do caráter inspirador das emoçõesou do seu incómodo. Então, é fácil compreender até queponto as interações e as escolhas de vida estão intimamentetingidas por esta perceção sobre a qual se vão apoiar asdecisões importantes. Podemos, portanto, dizer que onosso caminho já está bastante orientado desde cedo. Osseres magoados nos planos afetivo e emocional, conscientesda sua história familiar e psicológica, podem ter acesso auma influência positiva sobre a marca inicial; os outros,sem tomada de consciência, ficarão condenados a sofreros avatares dos primeiros instantes falhados da construçãoda sua história.

NUNCA MAIS SE DEIXAR MAGOAR

Quando uma pessoa se protege das suas emoções, parece--me sempre extremamente vantajoso ir procurar explica-ções e uma compreensão mais afinada às experiências rela-

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cionais desde a mais tenra idade. Uma pessoa magoadana infância, ferida no plano afetivo, desenvolverá com ocorrer dos anos mecanismos de proteção para se resguardarde um sofrimento semelhante: «Não me deixarei enganarmais, pois é demasiado doloroso.» Devo referir que, quandofalo das mágoas da infância, não considero exclusivamenteas crianças abusadas de forma brutal pelos adultos, masigualmente aquelas que conheceram um ambiente familiaraparentemente «normal» e que nunca serão notícia. Falodaquelas infâncias de sofrimentos escondidos em que anegligência parental não era tão exagerada ao ponto dealertar as instituições escolares ou as autoridades. Falodos sofrimentos psicológicos que marcam a alma durantemuito tempo, sem objetivamente deixar vestígios na pele.Gostaria que ficasse claro, de uma vez por todas, quetodos temos mágoas e cicatrizes no plano emocional,mesmo que o nosso ambiente familiar tenha sido global-mente securizante e respondesse globalmente às nossasnecessidades de base. Portanto, não é preciso ter sidovítima de abuso sexual ou de ter tido pais violentos oualcoólicos para ter sofrido na infância e ter interiorizadofúrias muito fortes.

A questão das mágoas ligadas às emoções não se colocaem termos de legitimidade: alguns terão «sofrido bastante»para ter mágoas assim, comparativamente a outros quenão sofreram tanto! Partamos do princípio que cada umtem direito aos seus sofrimentos. As mágoas emocionaisresultam, em primeiro lugar, da frustração incontornávelligada ao estatuto de criança, como ser de necessidadesincessantes e inicialmente de dependência total. Nestaperspetiva, é muito claro que um pai não pode responderexatamente às necessidades do seu filho, em particular às

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necessidades afetivas, cuja descodificação é certamentemenos evidente do que a relativa à fome, por exemplo.

Quer isto dizer que todos os pais estão condenadosao fracasso? Não, claro, mas todas as crianças estão con-denadas a sentir, a dado momento, a ausência afetiva e afrustração repetida ligada às suas necessidades insatisfeitas.Quando ela tenta exprimir as suas emoções, os pais reagirãode forma positiva ou negativa. Desta vivência das reaçõesparentais multiplicadas se tecerá progressivamente a tramadas reações posteriores que ela própria mostrará enquantoadulta. Deste tecido de experiências emocionais dos anosde lenta construção da infância surgirão as reações típicasperante as emoções posteriores dos longos anos da vidaadulta. Assim, a criança que se tornou adulta aprenderáou a sentir plenamente as emoções e a exprimi-las aber-tamente, ou a integrar o mal-estar da sua intensidade e anecessidade de reprimi-las.

EMOTIVO OU CEREBRAL

Muitas vezes instala-se a seguinte confusão relativamenteàs emoções: aquele que as sente e as manifesta é qualificadocomo «emotivo» – onde se pode perceber «demasiado emo-tivo» –, e aquele que as sente menos e as manifesta poucoé qualificado como «cerebral» – onde se pode perceber«demasiado racional». O primeiro será socialmente tidocomo um ser mais para o fraco, que se deixa levar comexcessiva facilidade, melodramático, ou melhor, histérico,enquanto o segundo será mais valorizado socialmente, poisnão perturba muito, tem domínio de si próprio e é discreto(as suas reações «totalmente controladas» não envergonham

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ninguém!). Globalmente, as pessoas estão autorizadas adeixar-se expandir à vontade apenas em certas circunstân-cias, por exemplo em ajuntamentos desportivos ou emconcertos musicais. E, no entanto, noto que mesmo nessesacontecimentos algumas pessoas ainda não se sentem livrespara viver plenamente as suas irrupções de alegria.

No plano pessoal, particularmente nas relações de inti-midade, o emotivo será vivamente criticado pela sua inten-sidade explosiva e pelo seu questionamento interminávelcom o objetivo de compreender as relações quotidianas,enquanto o cerebral, «não emotivo», será vivamente repreen-dido pelos seus recuos excessivos e pelo seu mutismo exas-perante. A tarefa é bastante difícil, pois ao mesmo tempoé preciso saber controlar as próprias emoções para se sersocialmente adequado e exprimi-las no momento certopara comunicar bem e ser equilibrado psicologicamente.Tentemos, então, pôr um pouco de ordem nas conceçõesambíguas que rodeiam as emoções.

AS EMOÇÕES SÃO ÚTEIS

Em primeiro lugar, parece-me pertinente lembrar que asemoções têm em si uma utilidade real: informam-nosacerca dos nossos estados interiores físicos e mentais, acercadas nossas perturbações e agitações. Este equipamentoemocional, próprio de cada um, guia-nos na nossa formade nos colocarmos face ao que nos rodeia no imediato. Asemoções levam-nos, portanto, de volta à nossa herançainstintiva, ao nosso lado animal. Lembremo-nos que hámilhões de anos, as emoções desempenharam um papelfundamental na sobrevivência da nossa espécie; o medo,

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por exemplo, fazia pressentir os perigos e favorecia o afluxode sangue nos membros inferiores para desencadear a even-tual fuga. O que é que hoje nos resta disso?

De século em século, o homem tem vindo progressi-vamente a perder esta capacidade de sentir e de recorrera esta sensação para cuidar de si mesmo. As emoções tor-naram-se inimigas e muitos sonham não ter de as sofrer.Alguns conseguem isso, e então dizemos que estão «des-ligados» das suas emoções – desligar-se das emoções parajá não sentir o que magoou demasiado ou que poderá aindavir a magoar. Quando uma criança sofre e sente violenta-mente as suas emoções, constrói rapidamente uma carapaça,uma proteção interna que a preserva pouco a pouco denovas invasões emocionais: «Se eu não sentir nada, nãosofrerei.» A pessoa impõe-se este modo de funcionamentocomo uma modalidade de sobrevivência. É esta a tramade vida de bastantes indivíduos que se tornaram adultos.Apesar de tudo, esta lógica implacável tem os seus reversos,sendo o pior perder o contacto consigo mesmo e bloqueartodas as ligações emotivas com os outros.

UM REPERTÓRIO COMPORTAMENTAL LIMITADO

No quotidiano, as pessoas desligadas das suas emoçõesrecorrem a um espetro de comportamentos não verbaismuito restritos. Quando falamos com elas, o seu rostomantém-se relativamente sem expressão e é difícil desco-dificar o que pensam. Estão nos antípodas da transparência,pois uma parte importante da sua energia relacional estádedicada ao controlo, ao bloqueio das emoções e à leituraque nós poderemos fazer do impacto das nossas propostas.

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É evidente que se sente logo o mal-estar e implicitamenteo incómodo de levar a conversa mais longe. Todo o nossoser nos dá uma mensagem clara: se entrarmos em contactonum modo cognitivo centrado no pragmatismo, elas estarãorecetivas, se suscitarmos o seu campo emotivo para con-vidá-las a partilhar o que sentem ou o que sentimos, elascortarão o contacto.

As pessoas desligadas das suas emoções não estão emligação com os outros e é precisamente o que elas desejam,mas ao proceder dessa maneira, estão a dar mais uma voltano aperto do reforço negativo que deriva da distância. Noque diz respeito às relações amorosas, por exemplo, podemfacilmente recorrer às racionalizações em excesso para jus-tificar a necessidade da distância: «Acho isto demasiadocomplicado, encontrar um homem que tem filhos. Alémdisso, devo tentar integrar-me na sua família, quando elepróprio tem dificuldade em se entender com ela! Prefirocontinuar celibatária.» No plano emotivo, uma relaçãoamorosa resumir-se-á verdadeiramente a isto?

Como estas pessoas não aceitam sentir as suas emoções,condenam-se à solidão ou a entrar numa relação com outrosindivíduos que, como ela, preferem já não sentir ou quase…a menos que elas encontrem alguém que aceita educá-lasde modo a ajudá-las a sentir. E depois, claro, existe tambéma dinâmica de casal que eu observo muitas vezes em terapia,na qual os parceiros se censuram reciprocamente por umser demasiado emotivo e o outro de não o ser suficiente-mente. Neste esquema, a pessoa que tem falta de sentimentoemotivo escolheu este parceiro com o desejo inconscientede se religar ao seu próprio campo emotivo; por sua vez,a pessoa emotiva projeta sobre o seu parceiro o sofrimentovivido durante a infância em contacto com o progenitor

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frio, esperando fazê-lo sair da sua frieza para (finalmente)conhecer o calor da bondade emocional. Vemos aqui atéque ponto, numa perspetiva assim, as emoções equivalema uma energia ativa de sofrimento constantemente renovado.

OS RISCOS DE REPRIMIR

Os indivíduos que reprimem as suas emoções o mais quepodem pavoneiam-se no seu meio, gabando-se de seremfortes, «de se controlarem», mas a sua ilusão é grande,tendo em conta a imagem da sua infelicidade interior.Neste sentido, Émile confessa: «Apercebo-me que mefechei dentro de um perfil de tipo forte. Aliás, foi sempreisso o que disseram de mim. E um tipo forte tem de estarmais do lado do racional e da lógica que das emoções. Tam-bém tinha uma forma muito condescendente de ver aspessoas emotivas que me incomodavam e que, no fundo,eu considerava fracas.»

À força de reprimir, as pessoas como Émile acabam pordescarregar a sua carga emotiva demasiado cheia sobre aspessoas erradas, esmagadas pela incapacidade repentina deconter as suas emoções, a não ser que tenham somatizadoe apresentem dores difusas que podem alternar de um órgãomais vulnerável para outro. O problema das emoções é queelas podem ser reprimidas durante algum tempo ou durantemuito tempo, deslocadas, transformadas e aguentar as estra-tégias mais íntimas para serem contidas, mas nunca são com-pletamente eliminadas. Para alguns, elas são como um vírusque se mantém escondido em nós, mas num estado latentedurante um determinado período, e que acaba por se tornarinvasor e incontrolável num momento imprevisto. Pode

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dizer-se: as emoções estão lá para ficar, porque nós somosgeneticamente programados para as produzir e sentir.A nossa única salvação: compreendê-las para as canalizarmospara nosso proveito, para as tornarmos entidades vitais.

Quando acontece uma separação, por exemplo, muitospais colocam-me questões sobre o que é essencial dizer aosfilhos: ficam inquietos por não serem suficientemente fortespara evitar serem tomados pela tristeza. «E se eu desato achorar?», perguntam eles com ansiedade. E eu respondo:«Então tudo estará no seu lugar.» Esta resposta, que os des-concerta sempre, permite-me explicar-lhes que, como psi-cólogo, nunca fico preocupado com as emoções adaptadasàs situações do quotidiano. Para uma criança, é triste queos seus pais se separem. Se ela vir lágrimas no momentoem que isso é anunciado, vê nesse instante que o seu paiou mãe vive uma emoção ligada ao momento presente. Istoconstitui para ela numerosas vantagens: pode identificar cla-ramente a tristeza da situação, portanto, validar com justezao que ela própria sente interiormente, e pode autorizar-sea viver abertamente a sua emoção pois o pai, seu modelo,também o faz. Tudo estará, verdadeiramente, no seu lugar.

DESLIGAR-SE DAS SUAS EMOÇÕES PARA SE DESLIGAR DE SI

Desligar-se das suas emoções acaba, em suma, por ser umdesligar de si, dos outros, do mundo. É muito triste paraum indivíduo funcionar assim. É o caso, por exemplo, dopatrão marginalizado na sua distanciação relacional, incapazde se pôr muito ou pouco no lugar dos seus empregados.Não precisarei de desenvolver muito para que apreendam

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