A Saude Em Debate Na Educacao Fisica v.2[1]

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  • A SADE EM DEBATE

    NA EDUCAO FSICA

    VOLUME 2

  • Contatos para aquisio do livro

    E-mail: [email protected]

  • Marcos Bagrichevsky Alexandre Palma Adriana Estevo Marco Da Ros (Organizadores)

    A SADE EM DEBATE

    NA EDUCAO FSICA

    VOLUME 2

    Blumenau, 2006

  • Conselho editorial ad hoc Dra. Cludia Miranda

    Dr. Edgard Matiello Jnior Dr. Maurcio Roberto da Silva

    Dra. Monique Assis Dra. Yara Lacerda

    Diagramao da capa Adriana Helena Vaz

    Ilustraes Lor e Mayrink

    Diagramao e impresso Nova Letra Grfica e Editora

    Todos os direitos reservados: proibida a reproduo total ou parcial de qualquer forma ou por qualquer meio. A violao dos direitos do

    autor (Lei n 9.610/98) crime estebelecido pelo artigo 184 do Cdigo Penal.

    Ficha catalogrfica elaborada pela Biblioteca Municipal Fritz Mller

    613.7 S255s A sade em debate na educao fsica - volume 2 / organizadores Marcos Bagrichevsky,

    Alexandre Palma, Adriana Estevo, Marco Da Ros. Blumenau : Nova Letra, 2006.

    240p. : il.

    ISBN 85-7682-097-8

    1. Educao Fsica 2. Corpo 3. Sade Coletiva 4. Sociologia da sade 5. Sade Pblica 6. Sade Brasil - Polticas pblicas I. Bagrichevsky, Marcos II.

    Palma, Alexandre III. Estevo, Adriana IV. Da Ros, Marco.

    A tiragem desta edio (1.000 exemplares) foi parcialmente financiada pelo PR-SADE / Ministrio da Sade /

    Universidade Federal de Santa Catarina

  • Sumrio

    Apresentao ......................................................... 7

    Sobre os colaboradores ....................................... 17

    Artigo 1 - Sade Coletiva e Educao Fsica: aproximando campos, garimpando sentidos Marcos Bagrichevsky, Adriana Estevo e Alexandre Palma .............................21

    Artigo 2 - Polticas pblicas de sade no Brasil Marco Aurlio Da Ros ..............................................................45

    Artigo 3 - A noo estilo de vida em promoo de sade: um exerccio crtico de sensibilidade epistemolgica - Luis David Castiel e Paulo Roberto Vasconcellos-Silva .......67

    Artigo 4 - Sade como responsabilidade cidad - Maria Ceclia de Souza Minayo ...............................................93

    Artigo 5 - Promoo da vida ativa: nova ordem fsico-

    sanitria na educao dos corpos contemporneos Alex Branco Fraga ............................................................. 105

    Artigo 6 - Imagens do corpo em risco Marina Guzzo ................................................................................... 121

    Artigo 7 - Reflexes sobre a epidemiologia atual Maria Lcia F. Penna ............................................................. 139

    Artigo 8 - Em defesa do modelo JUBESA (juventude, beleza e sade) Hugo Lovisolo .............................. 157

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    Artigo 9 - Concepes de sade nos parmetros curriculares nacionais Carlos Leal Ferreira Cooper e Jane Dutra Sayd ................................................................. 179

    Artigo 10 - A obesidade como objeto complexo: uma abordagem filosfico-conceitual Maria Claudia Carvalho e Andr Martins ......................................................... 203

    Artigo 11 - Sade/Doena e triangulao: pontos de vista e inter-relaes Fernando Lefvre e Ana Maria Cavalcanti Lefvre ....................................................................... 225

  • Apresentao

    Desde a recente virada do sculo, no somos mais os mesmos diante do vertiginoso surgimento de inovaes biotecnolgicas que inegavelmente, tm produzido intensos efeitos no s materiais como tambm simblicos sobre a humanidade. A fascinao ambivalente da tecnologia claramente posta como a ponta final da pesquisa cientfica revela-se a ns, por inteira. Nunca antes o corpo pode ser reconstrudo, reformatado, reconfigurado, como agora, suscitando sonhos hedonistas de felicidade, promessas de vida eterna e trazendo, ao mesmo tempo, temores de perda da integridade/identidade fsica, emocional e psquica, da autonomia individual e, de sujeio a controle social indevido, levando subjugao. Alis, filmes de fico cientfica como Gattaca, Minority Report, The Final Cut (traduzido para o portugus como Violao de Privacidade), entre outros do gnero, tm, de certa forma, cumprido um papel de sondar a humanidade sobre tais questes emblemticas, naturalizando-as entre ns.

    A tecnologia sempre esteve vinculada a conflitos de poder e discursos contraditrios, dada a capacidade que proporciona para a interveno no real, potencializando, de maneira diferenciadora, habilidades de pessoas e grupos. O controle do conhecimento e da tecnologia tem sido historicamente um trampolim de acesso ao poder, bem como para seu exerccio. No coincidncia que o registro cronolgico destas trajetrias esteja fortemente entrelaado com a histria das guerras e da dominao de elites em diferentes sociedades no mundo.

    O corpo e a sade, objetos por excelncia do poder sobre a vida desde a modernidade, tm ocupado um lugar privilegiado como princpio tico, poltico e esttico no exerccio do governo de si e dos outros. Por certo, um outro corpo e uma outra sade, constitudos nos deslocamentos de

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    uma nova dinmica do poder. Encontramo-nos num contexto poltico que tem por princpio aumentar a vida e prolong-la o quanto possvel, multiplicando suas possibilidades, desviando seus acidentes e compensando suas deficincias e incapacidades.

    Nesse sentido, pode-se afirmar at que o culto ao msculo tornou-se signo identitrio de um modo de vida e de integrao ou, inversamente, um novo critrio de desfiliao que tem por base a racionalidade do consumo. Para tal perspectiva, ento, a sade pode ser concebida como o prprio estilo de vida, no interior dessa retrica e prtica poltica do uso do corpo.

    A valorizao aguda de uma tica fugaz da aparncia e dos cuidados para com a exterioridade, como um fim em si mesmo, parece estar em conformidade com a crescente volatilidade de valores humanos na contemporaneidade. Discursos de exaltao competio coletiva e individual (superar a si mesmo) vicejam, cada vez mais, em todas as instncias do cotidiano, entre ns. Variados esteretipos corporais tm, em comum, os caminhos da apologia ao consumo exacerbado de cosmticos, frmacos, alimentos dietticos, prticas de exercitao fsica, cirurgias, entre outros.

    Contudo, no cabem aqui julgamentos morais. No se trata disso. Mas, fica latente como exerccio de crtica salutar, a constatao da necessidade do desconcerto de certezas cientificadoras e, tambm, da emergncia de novas anlises e pesquisas que remexam o campo da Educao Fsica, extrapolando os limites formais e politicamente problematizveis que a rea tem imposto a si prpria, sobretudo, no trato das questes acerca da sade.

    Tomando tal panorama como ponto de partida, cabe ento perguntar: qual deve ser a preocupao primeira de uma obra ensastica, dita cientfica, tendo em vista um compromisso tico e poltico com a vida pblica (principalmente, em sua dimenso coletiva), bem como, com o seu correspondente campo acadmico constitutivo? Para o caso de julgarmos pertinente a questo formulada, talvez proceda, ainda, mais uma indagao: que pretenses dialgicas poderia buscar estabelecer tal obra com outras reas afins (e porque no?), considerando a existncia de um suposto avizinhamento de interfaces temticas do conhecimento

  • abordadas por ela, circunscritas no chamado campo das cincias da sade?

    Pode-se dizer que o compromisso desta coletnea de trabalhos se alinhava em um horizonte crtico interdisciplinar1, talvez, mais afeito queles pesquisadores, profissionais, estudantes e interessados nos temas da sade2, inclinados a admitir certos sinais de esgotamento da cincia moderna, tanto pela posio conservadora de setores desta, que advogam a manuteno de alguns modelos tericometodolgicos insuficientes aos processos explicativos de sade-doena, quanto pela frgil (seno incua) capacidade de apreender os singulares modos de vida, em seus infinitos significados.

    Todavia, no podemos ignorar alguns fatos. Sabe-se que a defesa deste status quo acadmico subsume muito mais coisas que, veladamente, esto em disputa nesta arena: interesses pecunirios e de poder, de toda ordem linhas de financiamento de pesquisas, regulao de polticas editoriais de peridicos e livros, possibilidades de ascenso hierrquica nas sociedades cientficas e de maior visibilidade na vida cotidiana, tambm. Ora, mas no interior da cincia normal, os pesquisadores no podem encontrar resultados distintos daquilo que obtm se no procurarem outras coisas3.

    Foi justamente a inquietao frente a este conjunto de questes, o imperativo desencadeador da organizao deste trabalho, intitulado A SADE EM DEBATE NA EDUCAO FSICA VOLUME DOIS. Nos pareceu imprescindvel reunir abordagens em torno do corpo (e de sua utilizao histrica) e dos modos de ser/estar/sentir-se saudvel e doente, em suas mltiplas determinaes e inter-relaes. em funo de tal perspectiva, que foram articuladas na obra reflexes sobre polticas pblicas de sade, risco, epidemiologia, estilo de vida, educao, atividade fsica e, corpo, obviamente. Por outro lado, necessrio reconhecer, de pronto, que as aspiraes

    1 O convite feito a pesquisadores de diferentes reas do conhecimento, oriundos, sobretudo, da Sade Coletiva e das Cincias Sociais, tornou o desafio de produzir o livro bastante promissor e estimulante, especialmente porque a Educao Fsica, a rigor, pouco tem investido nas problemticas que permeiam as esferas poltica, sociolgica e epistemolgica da sade. 2 Entendida, aqui, sua diversidade, como fio condutor fundamental e enriquecedor, para se discutir e problematizar dimenses histricas, ticas, biolgicas e culturais da vida social. 3 CASTIEL, Lus David. O buraco e o avestruz: a singularidade do adoecer humano. Campinas: Papirus, 1994. p. 13.

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    (pretensamente crticas) do presente livro resultado do envolvimento generoso do seu coletivo de participantes talvez, sejam muito maiores, do que nossa capacidade de responder s prprias questes que produzimos e compartilhamos com o leitor. Esta espcie de justificativa introdutria cumpre a funo de alertar aos incautos que os ensaios aqui apresentados, provavelmente, no servem a anseios prescritivos e solucionadores de problemas epistemolgicos e praxiolgicos em sade. Isto significa afirmar, portanto, dada a complexidade e subjetividades imbricadas no campo de anlise dos diferentes objetos temticos, retratados e discutidos por cada artigo, que no se recomenda leituras/interpretaes apressadas, muito menos definitivas, do material aqui reunido.

    importante ressaltar, por ltimo, que a obra segunda de uma srie organizada pelo grupo SALUS4, marca o fechamento de mais um perodo de esforos coletivos empreendidos entre 2004 e 2006, no qual foram produzidos e disponibilizados comunidade acadmica, por meio de diversas estratgias5, debates pertinentes aos objetivos j mencionados.

    Dito isto, podemos passar ento, a um breve comentrio sobre o teor dos artigos aqui reunidos. O texto que abre o livro, Sade Coletiva e Educao Fsica: aproximando campos, garimpando sentidos, de Marcos Bagrichevsky, Adriana Estevo e Alexandre Palma, busca, de incio, reconhecer as origens disciplinares da Educao Fsica, atreladas ao militarismo e ao higienismo, associando-as ao atual status mercantilizado das prticas corporais e do conceito reducionista de sade, que ainda predomina na rea. Ao final, sugere algumas pistas terico-metodolgicas para ampliao

    4 SALUS - Grupo Inter-Institucional de Trabalho Temtico em Sade, constitudo pelos pesquisadores Marcos Bagrichevsky, Alexandre Palma e Adriana Estevo. e-mail: [email protected]. 5 No podemos deixar de comentar que, tal como no lanamento de nosso livro anterior (2003), a produo desta obra tambm demarca o balano final de um conjunto de aes coletivas do SALUS. Em 2004, foi realizado o II CICLO DE CONFERNCIAS A Sade em Debate na Educao Fsica, no qual tivemos (desta vez, fora do eixo Rio-So Paulo) a presena de trs importantes conferencistas Dr. Naomar de Almeida Filho [ISC-UFBA] que abordou O conceito de sade-doena no mundo ps-genoma [19/11/2004]; Dr. Alex Branco Fraga [ESEF-UFRGS] que tratou do tema Promoo do agito: forma de ativar o corpo e regular a vida [25/ 11/2004]; e Dra. Sandra Caponi [DSP-UFSC] falando sobre a temtica Sade pblica, riscos privados [08/12/ 2004]. No ano de 2005 foi produzida e disponibilizada a COLEO DE VDEOS A Sade em Debate na Educao Fsica Volume 2, composta pelas trs conferncias do evento itinerante (e que permanecem disponveis para aquisio, assim como as conferncias do 1 Ciclo, tanto no formato VHS como em DVD. Contatos pelos e-mail: [email protected]).

  • crtica do sentido poltico e epistemolgico que a Sade Coletiva abarca no seu movimento constitutivo.

    Na seqncia, o ensaio produzido por Marco Aurlio Da Ros, Polticas Pblicas de Sade no Brasil, traz uma questo cara ao campo da Educao Fsica, quando este se avizinha Sade Pblica. O passeio histrico proposto pelo autor, traz preciosos esclarecimentos sobre questes centrais no tema, demonstrando a complexa relao existente entre a Poltica de Estado e a conformao do pensamento social em medicina no pas, em cada perodo cronolgico abordado, as quais vieram a influenciar fortemente a constituio e o desenvolvimento do SUS.

    A partir da considerao de que os conceitos tambm participam da construo de realidades, uma vez que a linguagem erige categorias que passam a descrever e explicar o mundo a partir de determinados prismas, Lus David Castiel e Paulo Roberto Vasconcellos-Silva realizam uma refinada anlise no artigo A noo estilo de vida em promoo de sade: um exerccio crtico de sensibilidade epistemolgica, problematizando aspectos atinentes ao emprego da categoria estilo de vida, instituinte de modelos, retricas e ideologias em prticas de sade na biomedicina, na Sade Pblica e, sobretudo, na promoo de sade. Contudo, segundo os pesquisadores, as concepes de sociedade, de pessoa e suas inter-relaes adotadas predominantemente pelo campo da promoo da sade, parecem ser insuficientes para se alcanar os propsitos de atenuao ou interrupo de comportamentos considerados de risco, supostamente danosos. Por outro lado, a possibilidade de escolhas de estilos de vida dentro do menu scio-cultural dominante, enseja um convite extremamente persuasivo, direcionado ao consumismo de determinados estratos scio-econmicos da populao.

    O debate acerca da concepo ampliada de sade retomado por Maria Ceclia de Souza Minayo, no texto A sade como responsabilidade cidad. A autora critica a vigncia do modelo medicalizante e hospitalocntrico de Ateno Sade, que, segundo ela, est baseada no conceito reduzido de sade e na prtica fragmentada de assistncia. Por ltimo, lana o desafio para pensar a Sade Pblica como um projeto da sociedade, de modo mais abrangente e menos medicalizada,

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    sugerindo a aproximao e colaborao das mais diferentes reas disciplinares e profissionais, para o xito dessa tarefa.

    No quinto ensaio, Alex Branco Fraga discorre sobre a Promoo da vida ativa: nova ordem fsico-sanitria e a educao dos corpos contemporneos. O autor chama a ateno, com propriedade, para a disseminao das estratgias de pedagogia da culpabilizao individual, que calcadas na idia do comportamento do risco e em lgicas estatsticas de convencimento, tentam propor a necessidade imperativa de adeso dos coletivos populacionais prtica de atividades fsicas, colocando como pano de fundo na pauta do discurso um vis de contingenciamento econmico. Destaca, ainda, a sutil, mas fundamental, inverso na ordem de prioridades de programas como o Agita So Paulo, os quais intentam persuadir os sujeitos a adotarem um estilo de vida ativo, desconsiderando, por vezes, a inexistncia de condies adequadas em espaos pblicos destinados exercitao fsica e, os impedimentos individuais de cada contexto social, alm de no valorizar adequadamente a dimenso cultural, que empresta diferentes significados positivos e negativos a uma mesma prtica corporal dependendo da regio e do momento histrico.

    Marina Guzzo assina o artigo Imagens do corpo em risco. A autora descreve as prticas corporais do acrobata circense que se arrisca desafiando os limites da condio humana, ao flutuar merc das alturas. A metfora imagtica do trapezista em vo, cujos movimentos so previa e exaustivamente ensaiados para sustentar a iluso de corpos libertos e desconectados do tempo e espao, serve para ludibriar o pblico, pois sugere atravs da plasticidade e leveza dos gestos que no h qualquer esforo muscular aplicado e, oculta o perigo real das manobras em jogo. Marina frisa tambm que ao instituir a fantasia de um corpo surreal, a figura do acrobata areo traz consigo a idia da superao do risco como uma construo esttica, que s pode se configurar numa sociedade de riscos, incertezas, ambivalncias. A esttica do risco, ento, permite a criao de manifestaes como o risco-espetculo e o risco-aventura, ingredientes fundamentais para vendagem de corpos e de vidas, transformando as formas de beleza e de humanidades, dentro de uma lgica societria de consumismo.

  • No texto Reflexes sobre a epidemiologia atual, a pesquisadora Maria Lcia Fernandes Penna discute os conceitos de populao e doena utilizados pelos epidemiologistas, contemporaneamente. Aponta, tambm, as fragilidades da teoria do estilo de vida (baseada nos fatores de risco), que tem sido defendida como categoria explicativa da etiolgica de doenas crnicas, vivamente presente nos estudos do campo a partir de meados do sculo XX. Como conseqncia, destaca, um progressivo afastamento entre a epidemiologia e a Sade Pblica, em funo da exacerbada tecnificao da primeira e da desconsiderao de preceitos scio-culturais durante a investigao de enfermidades populacionais, crtica que feita, inclusive, dentro da prpria epidemiologia. Tomando a histria da tuberculose como ponto de observao, a autora encerra sua anlise apontando a possibilidade de se encontrar, entre os aspectos postulados pelos cientistas para os mecanismos de produo de doenas, mltiplas razes na escolha de uma causa, incluindo as de ordem social e poltica.

    O oitavo ensaio do livro, Em defesa do modelo jubesa (juventude, beleza, sade) tem a autoria de Hugo Lovisolo. A partir da idia de que a modernidade nos apresenta paradoxos e contradies latentes, entre elas, a questo da conservao da sade e a busca da beleza e juventude eternas, ele prope desenvolver um conjunto de argumentos ou teses (associando-as no transcorrer do texto, a pensadores) para tentar compreender, por aproximao ou oposio, os desdobramentos e repercusses desta idia central entre ns. Afirma tambm, que o ideal do modelo jubesa tem se firmado como hegemnico, tornando-se uma referncia significativa para as condutas dos sujeitos e para a diversificao e crescimento do mercado/consumo. Comenta ao final, que a submisso a este modelo implica percorrer um caminho de sacrifcios.

    Sabe-se que os parmetros curriculares nacionais (PCNs) so uma referncia para o atual sistema educacional brasileiro e que a sade est alocada como um de seus contedos, nos chamados temas transversais. A partir de uma detida anlise do documento, Carlos Leal Ferreira Cooper e Jane Dutra Sayd apresentam no ensaio Concepes de sade nos parmetros curriculares nacionais, observaes consistentes

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    acerca das adequaes, insuficincias e contradies desses contedos, bem como, sobre os mecanismos de reproduo dos valores scio-culturais presentes nas concepes de sade ali inscritas e, que tm sido utilizadas amplamente nos bancos escolares.

    O texto subseqente, A obesidade como objeto complexo: uma abordagem filosfico-conceitual, de Maria Cludia Carvalho e Andr Martins, procura examinar a elaborao de conceitos que permeiam a rea da sade e sua utilizao como instrumento metodolgico na desconstruo de dicotomias, como corpo/mente. A partir de uma perspectiva filosfica de Espinosa, os autores buscam uma aproximao com a realidade complexa da Sade Coletiva, aplicada problemtica da obesidade. Nesse contexto, discutem, sob o ponto de vista tico, os conflitos alimentares presentes na situao dual comer porque quero e no comer porque engorda e finalizam apontando a necessidade de se compreender o ser humano em sua integralidade e de se respeitar a capacidade singular das pessoas de estarem potentes e ativas na vida.

    Fechando o livro, temos o artigo intitulado Sade/ doena e triangulao: pontos de vista e inter-relaes, de Fernando Lefvre e Ana Maria Cavalcanti Lefvre, que tambm nos convidam a uma discusso conceitual. De uma perspectiva sociolgica, sugerem trs pontos de vista, a partir dos quais a sade/doena pode ser compreendida pela tica: i) dos indivduos, ii) do sistema produtivo e; iii) do setor tcnico (profissionais que prescrevem). Segundo os autores, olhada desse modo, a sade/doena permite ser interpretada, ento, como sensao, como mercadoria e como exerccio de poder. As inter-influncias entre cada um destes pontos de vista so exploradas e desenvolvidas, no decorrer do texto, para nos auxiliar a repensar os fenmenos associados sade/doena, que se processam de modo complexo.

    Por fim, cabe comentar sobre a viabilizao desta obra (e as conotaes intrnsecas da derivadas). O naipe qualificado das discusses aqui registradas, a partir do comprometido exerccio de reflexo desenvolvido pelos(as) autores(as), foi alentador e fundamental aos propsitos primordiais do SALUS, quais sejam, redimensionar as opes terico-metodolgicas

  • para interpretao e investigao do processo sade-doena, frente ao arcabouo positivista ainda dominante em pesquisas no campo da Educao Fsica. Meno especial tambm deve ser feita aos renomados ilustradores do livro, Lor e Mayrink, que nos emprestaram todo o seu talento criativo, para atravs de refinadas imagens humorsticas, amplificar o contedo crtico das anlises de cada um dos artigos, incorporando um sentido especial ao objetivo do trabalho.

    Gostaramos de agradecer6 a todos(as) estes(as) colaboradores(as) pelo crdito de confiana que nos foi concedido, na tarefa de reunir, organizar e dar sentido a todo este material. justamente a partir deste tipo de parcerias de que nosso projeto coletivo tem encontrado suporte e estmulo para trilhar e consolidar caminhos ainda pouco enfrentados sistematicamente na comunidade da Educao Fsica, na tentativa de construir e disseminar, de modo perene, debates sobre temas atinentes ao campo da sade. Enxergamos sentido e relevncia em iniciativas organizadas para estabelecimento e compartilhamento de uma rede de saberes, como forma estratgica de se inferir e reprojetar, contextual e criticamente, as aes profissionais, cientficas, polticas e sociais que se relacionam interface Sade Coletiva/ Educao Fsica.

    Como o caminho se faz caminhando e, no, no ponto de partida ou de chegada, esperamos, vidos, pelo dilogo com a comunidade acadmica, na expectativa de receber crticas e comentrios sobre a consistncia (ou no) dos prpositos do livro que o leitor agora tem em mos.

    Marcos Bagrichevsky Alexandre Palma Adriana Estevo

    Marco Da Ros

    6 No poderamos deixar de prestar nossa homenagem tambm quelas e queles que foram imprescindveis nos trabalhos de planejamento, organizao e suporte tcnico (de toda ordem), nos permitindo realizar o 2 Ciclo de Conferncias em 2004. Nossos agradecimentos Ana Mrcia Silva, presidenta do Colgio Brasileiro de Cincias do Esporte na gesto 2003/2005; Claudia Miranda e Celi Taffarel, docentes/pesquisadoras da Universidade Federal da Bahia; Maria Denis Schneider, da Universidade Federal de Santa Catarina, alm, obviamente, dos conferencistas Naomar de Almeida Filho, Alex Fraga e Sandra Caponi por suas prestimosas participaes.

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  • Sobre os colaboradores

    ADRIANA ESTEVO Doutora em Cincias Sociais (PUC/SP) e Mestre em Educao (FURB/SC); Professora do Departamento de Educao Fsica da FURB/SC; Lder do Grupo de Pesquisa Ccorposes (Cultura das Prticas Corporais, Esttica e Subjetividade) na FURB/SC; Membro do Grupo de Pesquisa Salus (Estudos em Educao Fsica e Sade - UGF/RJ).

    ANA MARIA CAVALCANTI LEFVRE Doutora em Sade Pblica (FSP/USP); Professora Comissionada na Faculdade de Sade Pblica da USP; Pesquisadora-Associada do Instituto de Pesquisa do Discurso do Sujeito Coletivo (IPDSC/SP).

    ANDR MARTINS Ps-Doutorado pela Universit de Provence Aix Marseille I (Frana); Ps-Doutorado pela Universidade Federal do Rio de Janeiro; Doutor em Filosofia (Universidade de Nice, Frana); Docente do Mestrado em Sade Coletiva do NESC e Professor Adjunto da UFRJ.

    ALEX BRANCO FRAGA Doutor e Mestre em Educao (UFRGS); Docente do Programa de Ps-Graduao Stricto Sensu da ESEF/UFRGS; Pesquisador-Associado do Grecco (Grupo de Estudo sobre Cultura Corporal UFRGS).

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    ALEXANDRE PALMA Ps-Doutorado pela Universidade Federal do Rio de Janeiro; Doutor em Sade Pblica (ENSP/FIOCRUZ) e Mestre em Educao Fsica (UGF/RJ); Docente do Programa Stricto Sensu em Educao Fsica da UGF/RJ Professor dos Cursos de Graduao em Educao Fsica da UGF/RJ e UNESA/RJ; Lder do Grupo de Pesquisa Salus (Estudos em Educao Fsica e Sade - UGF/RJ).

    CARLOS LEAL FERREIRA COOPER Doutorando e Mestre em Sade Coletiva (IMS/UERJ).

    FERNANDO LEFVRE Doutor em Sade Pblica (FSP/USP) e Mestre em Semitica (Universidade de Paris/Frana); Docente do Programa Stricto Sensu da Faculdade de Sade Pblica e Professor Titular da USP.

    HUGO LOVISOLO Ps-Doutorado em Sociologia do Esporte pela Universidade do Porto (Portugal); Doutor em Antropologia Social (UFRJ); Docente do Programa Stricto Sensu em Educao Fsica da UGF/RJ e Professor Adjunto da UERJ.

    JANE DUTRA SAYD Doutora em Sade Coletiva (IMS/UERJ); Docente do Programa de Ps-Graduao Stricto Sensu em Sade Coletiva e Pesquisadora do Instituto de Medicina Social da UERJ.

  • LUIS DAVID CASTIEL Ps-Doutorado em Sade Pblica pela Universidade de Alicante (Espanha); Doutor em Sade Pblica (ENSP/FIOCRUZ); Pesquisador do Departamento de Epidemiologia e Mtodos Quantitativos em Sade da Escola Nacional de Sade Pblica (FIOCRUZ); Bolsista de Produtividade em Pesquisa do CNPq - Nvel 2.

    LUIZ OSWALDO RODRIGUES - LOR Cartunista e Ilustrador Profissional de vrios Jornais, Revistas e Livros; Doutor em Cincias Biolgicas (UNIFESP); Docente do Mestrado em Educao Fsica e Professor Titular da UFMG; Bolsista de Produtividade em Pesquisa do CNPq - Nvel 2.

    MANOEL CAETANO MAYRINK Diagramador, Cartunista e Ilustrador Profissional premiado internacionalmente; Colaborador em vrios Jornais, Revistas e Livros no pas; Curador de Diversas Exposies e Produes de Humor sobre Sade, inclusive na FIOCRUZ.

    MARCO AURLIO DA ROS Doutor em Educao (UFSC) e Mestre em Sade Pblica (ENSP/FIOCRUZ); Docente do Programa de Mestrado em Sade Pblica e Professor Titular da UFSC; Consultor do Ministrio da Sade.

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    MARCOS BAGRICHEVSKY Doutor em Sade da Criana e do Adolescente (FCM/ UNICAMP); Mestre em Educao Fsica (FEF/UNICAMP); Membro do Grupo de Pesquisa Salus (Estudos em Educao Fsica e Sade - UGF/RJ).

    MARIA CECLIA DE SOUZA MINAYO Doutora em Sade Pblica (ENSP/FIOCRUZ); Professora e Pesquisadora Titular da Fundao Oswaldo Cruz; Coordenadora Cientfica do Grupo de Pesquisa Claves (FIOCRUZ); Editora Cientfica da Revista Cincia & Sade Coletiva da ABRASCO; Bolsista de Produtividade em Pesquisa do CNPq - Nvel 1A.

    MARIA CLUDIA CARVALHO Mestre em Sade Coletiva pelo NESC (UFRJ); Professora do Instituto de Nutrio da UERJ.

    MARIA LUCIA FERNANDES PENNA Doutora em Sade Pblica (USP); Docente de Ps-Graduao em Sade Coletiva do Instituto de Medicina Social (UERJ); Pesquisadora da Escola Nacional de Sade Pblica (FIOCRUZ).

    MARINA SOUZA LOBO GUZZO Doutoranda e Mestre em Psicologia Social (PUC/SP); Professora da Pontifcia Universidade Catlica de Campinas (PUCCAMP/SP).

    PAULO ROBERTO VASCONCELLOS SILVA Doutor em Sade Pblica (ENSP/FIOCRUZ); Docente da Ps-graduao em Educao e Comunicao em Sade (ENSP/FIOCRUZ); Professor Adjunto da Universidade do Rio de Janeiro (UNIRIO).

  • SADE COLETIVA E EDUCAO FSICA: APROXIMANDO CAMPOS, GARIMPANDO SENTIDOS

    Marcos Bagrichevsky Adriana Estevo Alexandre Palma

  • SADE COLETIVA E EDUCAO FSICA: APROXIMANDO CAMPOS, GARIMPANDO SENTIDOS1

    Marcos Bagrichevsky Adriana Estevo Alexandre Palma

    Uma crtica no questo de dizer que as coisas no esto certas da forma como esto;

    uma questo de ressaltar em que espcies de suposies, em que espcies familiares de modos de pensar

    no discutidos, no refletidos, se baseiam as prticas que aceitamos...

    (Michel Foucault,1988)

    Questes Iniciais

    Este texto tem como proposta suscitar uma reflexo acerca das concepes sobre sade na Educao Fsica, indicando e problematizando suas limitaes e possibilidades epistemolgicas, com vistas a sugerir elementos para uma anlise contextualizada do fenmeno na rea. Para isso, buscamos considerar tambm alguns referenciais recorrentes na Sade Coletiva e Cincias Sociais, uma vez que esses campos do conhecimento abarcam discusses de grande densidade, amadurecidas no enfrentamento de questes histricas referentes temtica.

    Desse modo, preocupamo-nos em registrar a emergencial necessidade de se repensar as propostas tericometodolgicas na Educao Fsica que balizam intervenes, ditas de Promoo Sade, buscando coadun-las s perspectivas crticas, fecundamente disseminadas na Sade Coletiva.

    Um argumento inicial, que parece justificar tal preocupao, reside no fato da Educao Fsica e seus

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    1 Este ensaio foi desenvolvido a partir das verses anteriores de dois textos diferentes, publicados na Revista da Educao Fsica da UEM, v.15, n.2, p.57-66, 2004 e, na Revista Arquivos em Movimento, v.1, n.1, p.65-74, 2005.

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    intelectuais figurarem timidamente nas esferas de formulao de polticas pblicas de sade do pas, nos trs nveis de governo, sobretudo, se considerarmos as ltimas dcadas. O mesmo vem ocorrendo em relao participao da rea nos principais fruns/instncias cientficos e tecnolgicos deliberativos do setor sade (salvo raras excees), como os congressos da ABRASCO2 e da REDE UNIDA3 e, os manifestos/movimentos das Conferncias Nacionais de Sade4

    e do CEBES5. Essa constatao nos remete ao atual dficit do

    conhecimento na rea sobre sade pblica, que raramente reconhecido como um saber sociolgico, que expressa necessidades de carter coletivo. Claro que essa tendncia tem relao com a prpria gnese da Educao Fsica enquanto campo profissional, que teve sua orientao formativa guiada por um iderio militar de disciplinamento e controle biopoltico dos corpos (Foucault, 1999), o qual buscava extrair-lhes, ao mximo, uma funcionalidade servil e acrtica. Portanto, no de todo inesperado que a Educao Fsica venha abrigando esse legado em seu contexto histrico brasileiro, tendo como carro-chefe os ideais da exercitao corporal. (Soares, 1994; Fraga, 2003a; Gis Jnior e Lovisolo, 2003).

    Ainda hoje, notrio a prevalncia de enfoques em pesquisa que exploram mais os determinantes biolgicos, em detrimento da abordagem dos elementos scio-culturais econmicos e polticos intervenientes no processo sade-doena. A dimenso exultada nessa tendncia a da atividade fsica (ou aptido fsica) associada sade, compreenso esta, recorrente em boa parte das publicaes acadmicas na rea e que busca advogar a existncia de uma relao de causa e efeito, quase exclusiva, entre exerccio e sade. Em outras palavras, para tais estudos, a sade poderia ser tomada, a priori, como conseqncia de efeitos fisiolgicos (mensurveis

    2 Associao Brasileira de Ps-Graduao em Sade Coletiva (www.abrasco.org.br). 3 A Rede Unida (www.redeunida.org.br) conecta pessoas que executam e/ou articulam projetos que tem como objetivo comum o desenvolvimento de Recursos Humanos em Sade. Caracteriza-se pela diversidade de projetos e de experimentos na rea que buscam uma mudana no modelo de ateno sade, no modelo de ensino e na participao social no setor. 4 Espao institucional importante, que tem abrigado debates e avanos fundamentais no projeto da Reforma Sanitria Brasileira e que, inclusive, vem registrando a ascenso efetiva de vrios profissionais advindos das Cincias Humanas e Sociais na conduo de proposies significativas no processo histrico de reformulao de polticas de sade no pas. 5 Centro Brasileiro de Estudos de Sade (http://cedoc.ensp.fiocruz.br/cebes/).

  • quantitativamente) produzidos pela prtica regular de atividades fsicas sistemticas.

    Tal fato traz implicaes delicadas para o campo do conhecimento e da interveno, uma vez que essa interpretao adota um olhar parcial/distorcido da realidade, que no leva em conta, outros fatores contextuais relevantes aos quais as pessoas esto submetidas e que no podem ser dissociados de seus cotidianos: distribuio desigual da renda populacional, nvel de (des)emprego, condies sanitrias bsicas, condies de moradia e alimentao, grau de escolaridade e de saber funcional, (in)disponibilidade de tempo livre, acesso a servios de sade e educao, entre outros. Esses tambm so aspectos que amoldam as condies da vida humana e, portanto, precisam ser igualmente considerados em qualquer pesquisa que busca estabelecer inferncias mais consistentes sobre a sade populacional.

    O cuidadoso estudo revisional de Palma (2000) corrobora essa idia, ao enunciar que as possveis articulaes entre atividade fsica e sade no so dotadas de uma pressuposta correlao constante de causalidade. Mudar o foco da problemtica de investigaes afins, inserindo no curso da anlise o mapeamento de parmetros scio-econmicos e culturais pode influenciar, sobremaneira, os achados obtidos ao final das pesquisas.

    Carlos Mira (2000) tambm erige questes interessantes e pertinentes acerca das relaes imbricadas no binmio exerccio fsico-sade. Em seu trabalho, argumenta que o anncio de possveis efeitos de preveno e proteo adicional dos exerccios sobre a sade de pessoas fisicamente ativas no passa de uma hiptese otimista, pois a interao entre os dois fatores no pode ser compreendida de forma linear e determinista. O pesquisador leva a pensar que seria mais razovel considerar, por outro lado, que so os indivduos possuidores de aporte nutricional e financeiro e, de tempo disponvel para atividades de lazer quem buscam a prtica sistemtica de atividade fsica (e no o contrrio).

    Palma et al. (2003) reforam esse entendimento, ao demonstrar em sua investigao, que a questo da adeso aos exerccios fsicos tem um vis especfico. O acesso regular aos espaos formais mais especializados para as prticas de

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    exercitao corporal, como as academias de ginstica, por exemplo, demarcado por algumas caractersticas do pblico freqentador, cujo perfil geral se encaixa nos estratos sociais mais abastados (os quais, por sua vez, representam o percentual minoritrio populacional, se considerarmos a totalidade demogrfica da sociedade brasileira).

    Portanto, no equivocado conjecturar que os discursos e iniciativas dos programas de promoo da atividade fsica, ditos para a populao bombasticamente preconizados em nosso meio possuem na verdade, alcance e efetividade limitados a um nicho bem restrito da mesma, levando-se em conta as pssimas condies de vida da maior parte dos brasileiros, onde ainda hoje, persevera um quadro estarrecedor de pobreza e iniqidades generalizadas.

    Ademais, esses programas institucionais, que tm sido difundidos tambm por meio de campanhas publicitrias, buscam enfatizar a exercitao corporal como parte essencial de um estilo de vida, outorgando-lhe um carter de estatuto ou modelo individualista a ser seguido, diante da nfase de combate ao sedentarismo e, ao despejarem um vasto repertrio de comportamentos recomendveis sade, ignoram as injunes scio-polticas e financeiras do pas, nas quais est mergulhada a nossa coletividade (Castiel e Vasconcellos-Silva, 2006).

    Se por um lado parcialmente aceitvel a generalizao de que h benefcios orgnicos decorrentes de algumas modalidades de exerccio (se respeitados certos preceitos), por outro, esta argumentao torna-se discutvel, na medida que pretende sustentar uma poltica conservadora, uma dimenso moral que responsabiliza cada pessoa por seu prprio adoecimento e desconsidera a dinmica sistmica e multifria que influencia os estados de enfermidade humana.

    Talvez seja prudente, nesse momento, um esclarecimento. O conjunto de argumentaes levantadas at aqui no intenciona demonstrar que a prtica da atividade fsica incua ou desprovida de qualquer interferncia positiva sobre o corpo humano. A literatura tambm apresenta trabalhos bem conduzidos, que evidenciam sua ao teraputica benfica sobre vrias patologias ou potenciais comprometimentos do organismo e, por isso mesmo, no

  • nossa pretenso neg-la. Igualmente, no se quer ignorar ou sublimar a considervel tradio que o tema goza junto Educao Fsica, seja como objeto de pesquisa ou forma de interveno, ainda que achemos que algumas reinterpretaes so indispensveis.

    Todavia, urge a tarefa de se analisar cuidadosamente as tentativas de massificao de uma norma moralizante da aparncia fsica utpica do corpo sarado6, da gerao sade e do estilo de vida ativo7, que esto em curso na sociedade contempornea. Sobretudo, porque se encontram ancoradas na lgica quantificadora e positivista de estudos cientficos publicados na rea, corroborando os slogans de programas institucionais que propagandeiam uma imperiosa e inequvoca necessidade de se exercitar de qualquer modo, em qualquer lugar e a qualquer tempo. Mas, principalmente, complicado consentir na aceitao acrtica de que to simplesmente mantendo-se ativo que se obtm sade. Costa e Venncio (2004) argumentam que:

    Nesse momento importante realar a idia central de Habermas sobre o enfraquecimento da ao comunicativa quando uma parte dos profissionais de Educao fsica est deixando de apresentar um posicionamento crtico e tico diante da ao da mdia e dos avanos biotecnolgicos. Estes profissionais esto paulatinamente valendo-se do uso da razo instrumental ao expor e transformar o corpo atravs de atividades fsicas, dietas, drogas e do consumo de imagens ideais de atletas. Eles corroboram os discursos de controle do corpo que a mdia produz ao fazer da atividade fsica (associada biotecnologia) uma possibilidade de corresponder ao padro de beleza em nome da sade (p. 70).

    6 Seguindo os preceitos difundidos nos meios de comunicao de massa, este seria esteticamente desejvel, como objeto de conquista nas relaes amorosas e como produto modelar para a indstria da beleza, moda, fitness... 7 Tambm propalado como sinnimo de economicamente produtivo, j que para tais discursos, em tese, diminuiria o absentesmo nos postos de trabalho e os custos do Estado na destinao de verbas para a sade pblica. Alm de ser pouco provvel constatar essas premissas por meio de pesquisas srias e com critrios objetivos, preciso afirmar que a vida e a sade das pessoas no podem ser reduzidas a uma perspectiva de contingenciamento financeiro, de relao custo-benefcio. Como nos lembra Castiel (2003), uma crtica comum ao conceito estilo de vida referente a seu emprego em contextos de misria e aplicado a grupos sociais onde as margens de escolha praticamente inexistem. Muitas pessoas no elegem estilos para levar suas vidas. No h opes disponveis. Na verdade, nestas circunstncias, o que h so estratgias de sobrevivncia [grifo do autor] (p.93).

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    O Mercado do Corpore Sano

    As constataes anteriores no esto descontextualizadas historicamente; pelo contrrio, encontram-se demarcadas por uma considervel tradio cultural. Os Movimentos Eugnico e Higienista - corporificados no Brasil no incio do sculo XX (Soares, 1994) podem ser considerados os precursores ideolgicos da apologia ao estilo de vida ativo, cujos ditames impositivos j se encontram de tal modo arraigados no imaginrio popular da atual sociedade, que so capazes de gerar um forte sentimento de culpa nas pessoas que resistem em demonstrar inclinao para descobrir as supostas benesses proporcionadas sade ou, cujos corpos se afastam da normalidade cannica de uma silhueta sempre magra, jovial e esbelta. Para Goldenberg e Ramos (2002) Devido a mais nova moral, a da boa forma, a exposio do corpo em nossos dias, no exige dos indivduos apenas o controle de suas pulses, mas tambm o (auto)controle de sua aparncia fsica (p. 25).

    Um trecho da obra Da Educao Physica, de Fernando de Azevedo (1920), ilustra bem o legado eugnico da sade, associado prtica de atividades fsicas e aos valores morais, deixado j nas primeiras dcadas do sculo passado:

    Demeny afirma que por meio dessa ginstica, assim caracterizada, devem adquirir-se, sobre o ponto de vista fisio-anatmico: [...] a beleza corporal e, sob o ponto de vista psicolgico, a coragem, a iniciativa, a vontade perseverante, ou, em uma palavra, certas aptides morais, alm do equilbrio funcional dos rgos, que a expresso e o ndice da sade do corpo, e, por fim, a beleza na forma e no movimento. Deve ela, pois, na concepo moderna, tender, no ao engrossamento do msculo, mas ao desenvolvimento racional de todos os rgos e de todas as funes, para chegar, por um treinamento, isto , por uma progresso lenta, gradativa e metdica, a favorecer o desenvolvimento do sistema nervoso e a coordenao de suas manifestaes, e a facilitar assim todos os atos da vida, pondo uma alma s num corpo igualmente sadio e vigoroso (p. 70).

    As perspectivas de exercitao fsica ganharam fora mais ao final do mesmo sculo. A partir da dcada de 1980, deu-se grande nfase nos discursos sobre a necessidade de

  • envolvimento populacional mais abrangente na prtica de atividades fsicas, a qual era escudada pelo argumento utilitarista (econmico) de tornar a sade menos custosa para o Estado. Esse movimento Healthism cujo bero precursor foi nos Estados Unidos da Amrica, anos mais tarde, passa a ser denominado no Brasil de Movimento da Sade (Soares, 1994; Fraga, 2003a).

    O Movimento da Sade marcado por um perfil de orientao individualista, em detrimento da considerao de questes sociais. Assim, as intervenes fsicas que operam sobre o corpo, perdem o sentido mais coletivizado de outrora (do perodo Higienista, que preconizava a soberania do Estado-Nao por intermdio da melhoria da raa) e assumem, declaradamente, priorizaes fundamentais com o privado. O movimento evidencia um carter simbintico com diversos setores miditicos, os quais o percebem como potencial nicho de mercadorizao do consumo (Gis Jnior e Lovisolo, 2003). O personal training seria um dos seus smbolos pontuais na protagonizao do individualismo exacerbado e das preocupaes com o prprio corpo e do acesso apenas para quem pode pagar pelo oferecimento de tal servio. Lovisolo (1999) ilustra tal noo ao afirmar que

    Os campos de interveno tm nas sociedades ditas ocidentais, uma forte tendncia a gerar quase que ininterruptamente produtos ou processos, vistos quer como ondas da moda que podem rapidamente desaparecer, quer como inovaes significativas duradouras [...]. Essa dinmica caracteriza reas to dspares quanto as da [...] educao fsica e outras. [...] Os meios de comunicao prestam especial ateno aos lanamentos que realizam promessas relacionadas sade e longevidade. Diversos autores tm apontado que na sociedade dita ps-moderna os valores da sade e da longevidade [grifo do autor] aparecem como sendo quase os nicos consensuais, embora perigosamente separados das discusses sobre o significado da vida boa ou da vida plena que talvez ocupassem um lugar muito mais significativo no passado. Na rea da educao fsica, o ltimo produto lanado no mercado talvez seja o personal training, suscitando discusses, cursos, debates e experimentaes. (p. 17).

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    Essa perspectiva de mercadorizao da sade, tambm suscetvel crtica, decorrente do espraiamento desse mote de idias totalizadoras, assume um carter emblemtico e busca, em ltima instncia, materializar a obteno da sade atravs da venda de produtos e servios. Tal argumentao pode ser verificada, por exemplo, nas incontveis ofertas de atividades fsicas em academias de ginstica, suplementos alimentcios, frmacos para emagrecimento, tratamentos em spas, seguros-sade, etc (Illich, 1982; Lefvre 1991; Paim e Almeida-Filho, 2000; Restrepo, 2001).

    Todavia, Courtine (1995) adverte que essa cultura de consumo no recente e j aparece na dcada de 1960, fortemente circunstanciada nas questes hedonistas do corpo e subscrita no modelo da american way of life (estilo de vida americano). O autor relata que,

    As ambigidades desse hedonismo inscrevem-se, ainda, literalmente, em sua linguagem, isto , no carter paradoxal e na fora performtica desses enunciados obrigatrios que levam busca de um bem-estar na atividade fsica. Have fun: a alegria um dever moral, uma forma insistente de obrigao. No mesmo contexto, o bem-estar psicolgico (feeling good) entendido como uma conseqncia da forma fsica (being in shape) (Courtine, 1995, p. 101).

    Lefvre (1991) tambm refora que esse fenmeno de mercadorizao da sade no se d de forma repentina; ao contrrio, ele fruto de um longo processo histrico de expropriao da mesma, de perda de sua condio de premissa existencial humana para se transformar em algo apenas recuperado e recupervel no mercado de bens de consumo (p. 21).

    A idia, intencionalmente suscitada no imaginrio popular, de que seria possvel obter sade, atravs do acesso s atividades corporais oferecidas nesse nicho mercadolgico, ratifica a noo simblica de sade conquistada, quer seja pelo envolvimento em suas prticas, quer seja pela utilizao dos produtos a elas agregadas.

    Mas tal perspectiva, na sociedade capitalista e globalizada da contemporaneidade8, ambiciona ampliar ainda

    8 Que se reafirma como a sociedade de fluxo, numa irrefrevel e intensa volatilidade consumista.

  • mais essa dependncia; ainda segundo Lefvre (1991), para se oferecer a sade como mercadoria, preciso que se amplie o seu grau de necessidade. Alm disso, importante que essa necessidade seja percebida como algo natural, abstrato, igual para todas as classes sociais. Desta forma, o consumo transforma-se num ato unicamente individual de satisfao de necessidades dentro do poder aquisitivo de cada um. Se assumirmos a coerncia dessa noo, torna-se inteligvel a razo pela qual os elementos circunscritos no universo do fitness e da corpolatria alcanaram uma dimenso fetichizadora no contexto sociolgico da atualidade. A publicidade, propaganda e marketing atravs dos meios de comunicao de massa completam a corrente que liga o processo de produo dessas mercadorias ao de criao dos desejos e aspiraes de se obt-las.

    Outras Demarcaes para o Significado de Sade

    Ao contrrio do enfoque reducionista de sade que a Educao Fsica9 tem hegemonicamente advogado, permitindo para si um papel difusor de idias rasas e simplistas do tipo pratique exerccio e ganhe sade, as dimenses relacionais entre sade e sociedade tm sido proficuamente debatidas por outras reas do conhecimento. Do ponto de vista das relaes de produo, existem olhares que privilegiam, principalmente, as condies de sade das classes pobres e trabalhadoras (Garrafa, 1983; Engels, 1988; Moura, 1989; Granda e Breilh, 1989; Fleury, 1992; Dejours, 2002). Vrias crticas densas tambm foram formuladas quanto ao processo de tecnificao da medicina, ao poder de monoplio das grandes organizaes corporativas fabricantes de remdios e a medicalizao social (Illich, 1982; Castiel, 1994; Sigolo, 1998; Lefvre 1999; Boltanski, 2004; Bunton e Burrows, 2004).

    Assim, para no se tornar um exerccio intelectual esvaziado de propsito, conceber sade no pode representar unicamente a busca pela compreenso de terminologias e seus sentidos semnticos, mas antes, a considerao da complexidade de fatores entrecruzados econmicos,

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    9 Por outro lado, preciso ressaltar que j existem debates consistentes na prpria rea, apresentados em estudos que se destacam, pelas perspectivas crticas de anlise acerca do fenmeno sade e suas interfaces (Maia, 1996; Maia, 1997; Della Fonte, 1997; Lovisolo, 2000; Mira, 2000; Carvalho, 2001; Palma, 2001a; Palma, 2001b; Lovisolo, 2002; Matiello Jnior, 2002; Fraga, 2003b; Nogueira e Palma, 2003; Fraga, 2005).

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    polticos, e culturais que perpassam-na e a atribuio de sentido s repercusses sociais da decorrentes (Breilh, 1991). E mesmo que se adotem determinadas noes para expressla, preciso reconhecer que definies, taxionomias e seus afins, so to somente instrumentos subjetivos empregados para auxiliar na tentativa de capturar o(s) significado(s) de determinado fenmeno, o que nem sempre exeqvel. Desse modo, por mais elaborado que seja o conceito, trata-se apenas de uma representao simblica imperfeita e parcial da realidade.

    Todavia, um dos ns que persiste no julgamento das prioridades de pesquisa em sade, em algumas reas acadmicas que a subordinam aos seus preceitos definitrios, talvez seja o uso instrumental indiscriminado de noes hierarquizantes e classificatrias, como forma de se enxergar (ou reduzir) os problemas que interferem nas condies da vida humana. Isso se torna ainda mais complicado na perspectiva das formulaes de polticas de interveno social para enfrentamento das agruras da sade, quando os aspectos concretos do cotidiano so, de certo modo, subvalorizados como critrios norteadores das preocupaes, em detrimento da exultao de ferramentas operativas abstratas e de carter perigosamente homogenizador. A ttulo de exemplificao, vale citar o recente emprego, em escala mundial, de inquritos validados para mensurar qualidade de vida10 (o que j , no mnimo, um paradoxo lingstico11), aplicados indistintamente, em pases ricos e pobres (Minayo et al., 2000).

    Tal quadro evidencia, portanto, opes valorativas de parte da comunidade cientfica, as quais tm determinado um direcionamento preferencial pela operacionalizao desses conceitos em sade (e pela agregao de seu arsenal utilitarista), ao invs da explorao de outras possveis interfaces metodolgicas que tangenciam melhor a realidade, fato este, bastante significativo. Com toda cautela, preciso lembrar que a cincia constitui-se, antes de tudo, como uma das atividades mais genunas e representativas da cultura

    10 A respeito da subjetividade desse conceito e das incongruncias inerentes ao seu emprego no contexto da sade, verificar os comentrios de Segre e Ferraz (1997). 11 Segundo Ferreira (1986), qualidade um substantivo feminino; aspecto sensvel, e que no pode ser medido [grifo nosso], das coisas (p. 1424).

  • humana, ainda que sua dimenso iluminista utpica de um promissor progresso estendido a toda populao mundial anunciado, sobretudo pela cincia mdica tenha se perdido no seu discurso histrico.

    Nesse sentido, ao analisar com maior detalhamento a atuao epidemiolgica nas investigaes em sade, Jos da Rocha Carvalheiro admite que nem sempre ela se dirige, de fato, ao coletivo populacional tomado como objeto de investigao. Ele afirma que freqentemente, este coletivo meramente estratgico para superar a variabilidade biolgica individual. (Granda e Breilh, 1989, p. 1). E continua: uma descrio deste objeto, com base cientfica, nunca neutra [grifo nosso]. Tem que ver com a concepo de mundo do investigador, com a teoria que est por trs de sua concepo da sociedade. Tradicionalmente, a populao tratada, pela Epidemiologia e pela prpria Demografia, como um todo homogneo (Granda e Breilh, 1989, p. 2).

    Almeida Filho (1992) complementa tal percepo ao tecer comentrios crticos sobre o eixo norteador da epidemiologia na dcada de 1980: para os epidemiologistas, a natureza essencialmente empiricista da sua prtica cientfica apresenta-se como um suposto fundamental, axiomtico, indiscutvel. Empiricismo aqui referido como o referencial [...] que apreenderia a realidade sem mediaes, sendo os conceitos cientficos imediatamente redutveis observao (p. 25). Para o autor, a prtica disciplinar de campo da epidemiologia na atualidade parece no ter abandonado essa percepo, que se destaca no aforismo de John Locke: No direct measurement, no basic concept (p. 26); ou seja, s aquilo que for mensurvel passvel de um tratamento cientfico. Sob esse juzo, s seria possvel conceder uma outorga cientifica para qualquer fenmeno estudado, se fosse vivel criar indicadores quantificveis. Essa crena baseia-se na concepo positivista de cincia, que se considera neutra, livre de julgamentos valorativos. Para Minayo (1993), esse foi o fio condutor que acabou fortalecendo o emprego de termos matemticos nas investigaes da rea, como a linguagem das variveis e a sistematizao dos mtodos quantitativos.

    Manter um posicionamento crtico, interrogando-nos, permanentemente, sobre os ditames certificadores de

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    correntes hegemnicas em pesquisa necessidade premente, no s no campo da sade. At porque, multiplicam-se a todo momento as estratgias de entidades internacionais (OMS12, por exemplo) que, a partir de achados em estudos epidemiolgicos, tm buscado estabelecer em abrangncia global, quais formas de comportamento podem ser consideradas saudveis e de risco s pessoas (vide campanhas de preveno da AIDS, contra o fumo, o sedentarismo, etc). No entanto, mais do que recomendaes sade, tais normas engendram com sutileza, aspectos descontextualizados, preconceituosos e elitistas, j que nem sempre suas preconizaes so factveis a todas as naes e aos diferentes estratos sociais daquelas que as adotam (Castiel, 2002).

    Em tempos de uma perigosa fuso entre os avanos tecnolgicos da biomedicina, a mdia e o mercado, no h como negar que nossas vidas so assoladas diariamente no cenrio contemporneo, com a profuso de discursos cientificistas quase inexpugnveis, especialmente se olharmos para as questes relativas ao processo sade-doena. Vale lembrar as palavras de Nogueira (2003) quando destaca uma das crticas centrais do sagaz intelectual Ivan Illich, tecida modernidade mdica e sua exacerbada tecnificao instrumental: [...] o consumo intensivo da medicina moderna uma forma de dependncia, no sentido especfico de dependncia a uma droga. Essa forma de dependncia assegurada, de um lado, pela monopolizao do exerccio profissional dos mdicos e, de outro, pela confiana que os leigos depositam gratuitamente nos agentes da medicina (2003, p. 27).

    Outro aspecto dessa nova configurao hbrida da sade humana no sculo XXI, diz respeito ao Projeto Genoma13, cujas descobertas j alcanaram grande notoriedade pela divulgao nos meios de comunicao em massa. So conhecidas as promessas feitas em pblico pelos cientistas, de como a engenharia gentica poder modificar

    12 Organizao Mundial da Sade 13 Lucien Sfez (1995), em sua densa obra intitulada A sade perfeita: crtica a uma nova utopia, defende a idia de que frente ao insucesso das promessas iluministas da cincia, surge uma nova dimenso utpica da humanidade na virada do sculo, constituda pelos Projetos Biosfera II, Artificial Life e Genoma, que representariam a busca desenfreada pela juventude eterna e pela cura de todas as enfermidades que assolam o homem e o ecossistema do planeta.

  • positivamente a sade de toda populao mundial. Esses falaciosos enunciados deixam escapar, intencionalmente, um sentido futurstico de prevalncia quanto a um suposto acesso majoritrio das pessoas s benesses proporcionadas pela manipulao gnica, fato em parte, inverossmil, considerando o alto custo das tcnicas e produtos pertencentes megaindstria de biotecnologia e, a desigualdade scio-econmica instaurada no mundo, sobretudo nos pases mais pobres (Kottow, 2002; Cardoso e Castiel, 2003). Em sntese, razovel dizer que boa parte das pessoas s poder ser beneficiria se tiver poder aquisitivo para pagar pelo consumo de tais servios.

    Mesmo diante de algumas supostas incongruncias imbricadas no panorama lato sensu da sade (por vezes, veladamente), no seria sensato execrar o papel da cincia e dos pesquisadores na tentativa de conseguir avanos para minimizar males ou doenas da coletividade humana. No se trata disso. Mas, preciso reconhecer que, antes de tudo, o emprego destinado s descobertas cientificas, assim como a deciso do que deve ser pesquisado (onde, porque, para que e para quem), so sim opes valorativas legtimas da vontade humana e, portanto, parciais e intrinsecamente sujeitas a erros e preferncias de julgamento pessoal. tarefa igualmente imprescindvel comunidade acadmica, suscitar mecanismos para que as diferentes reas do conhecimento estabeleam um criterioso e perene exerccio de reflexo, na identificao dos juzos que subjazem as concepes de sade defendidas pelos seus profissionais, uma vez que so esses aspectos que norteiam as prioridades nos respectivos campos de interveno social.

    Ser que apesar do que foi exposto at aqui, caberia ainda perguntar, mas afinal de contas, o que sade? Mesmo correndo o risco da provvel impreciso, acreditamos na conotao veiculada pelas disciplinas da Sade Pblica e das Cincias Sociais que advogam ser um conjunto de elementos associados ao suprimento das necessidades humanas. Complementarmente, o marco histrico brasileiro poltico e social da VIII Conferncia Nacional da Sade realizada em 1986, empresta um relevante significado ao fenmeno

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    (superando inclusive, outras concepes dicotmicas14

    difundidas anteriormente pela OMS): em sentido mais abrangente, a sade resultante das condies de alimentao, habitao, educao, renda, meio ambiente, trabalho, transporte, emprego, lazer, liberdade, acesso e posse da terra e acesso aos servios de sade. assim, antes de tudo, o resultado das formas de organizao social da produo, as quais podem gerar desigualdades nos nveis de vida. (Fleury, 1992, p. 170). Ivan Illich pensa que

    [...] a sade designa um processo de adaptao. No o resultado de instinto, mas uma reao autnoma, embora culturalmente moldada, diante da realidade socialmente criada. Ela designa a habilidade de adaptar-se aos ambientes mutveis, ao crescimento e ao envelhecimento, cura quando enfermo, ao sofrimento e expectativa pacfica da morte. A sade abrange o futuro tambm e, portanto, inclui a angstia assim como os recursos internos para conviver com ela (Nogueira, 2003, p. 5).

    Sublinhamos uma ltima interpretao, de Dejours (1986):

    a sade a liberdade de dar ao corpo [...] de comer quando tem fome, de faz-lo dormir quando tem sono, de dar-lhe acar quando baixa a glicemia. No anormal estar cansado ou com sono, no anormal ter uma gripe [...]. Pode at ser normal ter algumas enfermidades. O que no normal no poder cuidar dessa enfermidade, no poder ir para a cama, deixar-se levar pela enfermidade [...] (p. 11).

    A complexidade que perpassa o breve panorama de recortes esboado no texto, leva pensar que no tarefa fcil analisar ou tentar conceber a sade. Mas, julgamos que se faz necessrio investir nas perspectivas de compreenso do fenmeno a partir de um olhar menos centrado no paradigma biomdico e mais atento aos corpos sociais. Isto se, de fato, quisermos referendar-lhe seu primordial significado como representante legtimo de aspiraes, idias e prticas

    14 A Organizao Mundial da Sade (OMS) diz que sade um estado de completo bem-estar fsico, mental e social e no apenas a ausncia de doena ou enfermidade; tal concepo mostra-se esttica e impossvel de ser alcanada, uma vez que no compreende o fenmeno sade a partir de um processo dinmico, onde a doena seria uma nova dimenso da vida e, portanto, no poderiam estar dissociadas uma da outra. De todo modo, h ainda a necessidade de se considerar que completo bem-estar expressa a total ausncia de problemas, idia utpica para a condio humana (Nogueira e Palma, 2003).

  • convergentes melhoria das condies da vida humana num sentido mais amplo; se, realmente, pretendermos galgar estratgias para superao das agruras e males coletivos da sade social, em detrimento do contexto individualista-privado que prev e privilegia resoluo dos problemas de sade, priori, para quem pode pagar por ela.

    Guiar-nos nesta desafiadora tarefa de reinterpretao dos sentidos da sade a partir de alguns pressupostos e experincias produzidos e acumulados pela Sade Coletiva, pode ser bastante auspicioso, especialmente sendo a Educao Fsica uma rea cuja matriz terico-cientfica ainda lacnica e permanece em formao, mas, sobretudo porque, a rigor, pouco tem investido nas problemticas que permeiam a dimenso sociolgica da sade.

    Nesse sentido, importa esclarecer que o campo da Sade Coletiva designa um agregado de saberes e prticas referido sade como fenmeno social e, portanto, de interesse pblico. As origens do movimento de constituio dessa rea remontam ao trabalho terico e poltico empreendido por pesquisadores de departamentos de instituies universitrias e de escolas de Sade Pblica da Amrica Latina e do Brasil, em particular, ao longo das duas ltimas dcadas. A profcua atividade desenvolvida no campo cientfico da Sade Coletiva deu suporte a um embate poltico iniciado em meados de 1970, em torno da crise da sade, contextualizada nas lutas ideolgicas do pas naquele tempo. Esse movimento difundiu-se entre as mais diferentes instncias organizacionais da sociedade, contribuindo para a formulao e execuo de um conjunto de mudanas identificadas como a Reforma Sanitria Brasileira.

    As proposies desse movimento incluram significativa alterao na concepo de sade, ao postular mudanas no modelo gerencial, organizativo e operativo do sistema de servios pblicos de sade, na formao e capacitao de pessoal no setor, no desenvolvimento cientfico e tecnolgico nesta rea e, principalmente, nos nveis de participao crtica e criativa dos diversos atores envolvidos no processo de reorientao das polticas econmicas, sociais e sanitrias, tendo em vista a melhoria dos nveis de vida e a reduo das profundas iniqidades j instauradas no pas.

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    Feitas essas consideraes, talvez seja prudente ressalvar uma ltima questo. Quando sugerimos um estreitamento interdisciplinar (terico-metodolgico) entre Sade Coletiva e Educao Fsica, no significa que desejamos desconsiderar ou excluir os conhecimentos fisiolgicos inerentes aos aspectos da sade e da doena, sabidamente relevantes. A pretenso, de fato, exultar a promissora aproximao entre as dimenses scio-culturais e econmicas e as de carter individual e biolgico nas incurses investigativas sobre a sade, na expectativa de incitar os pesquisadores da Educao Fsica, a perceberem a possibilidade de se produzir inferncias mais consistentes sobre a realidade, nesses estudos temticos.

    J h bons indcios entre nossos pares de que talvez a Educao Fsica esteja dando mostras de seu amadurecimento como campo cientfico e de interveno, inclusive, em decorrncia de uma interrogao mais veemente sobre seu pertencimento exclusivo a um papel majoritrio de promotor de atividades fsicas. Entendemos que para poder se reconhecer, efetivamente, como rea pertencente ao campo da Sade Coletiva, a Educao Fsica precisa incorporar uma mudana crtica do prprio conceito de sade que tem defendido, ressaltando antes de tudo, as inter-relaes com a eqidade social, postura que, de forma alguma, a far perder sua especificidade e legitimidade frente s questes da motricidade humana. Parece coerente admitir que para ocorrer tal avano, a rea precise expugnar todo o arsenal de discursos e aes pragmticas moralizantes utilizados para combater o sedentarismo, idia que se tornou to cara rea nas ltimas dcadas.

    Vivemos um certo paroxismo mensurativo nos dias de hoje, sobretudo, em relao s prticas de preveno a doenas, propaladas pela biomedicina (e suas dimenses correlatas). Contudo, apesar de novos instrumentos conseguirem descrever, cada vez melhor, distintos fenmenos fisiolgicos do processo sade-doena no organismo humano, simultaneamente, essa euforia de sucessivos avanos tecnocientficos tem deixado muito para trs, perdido de vista, a preocupao com a condio da vida humana, sobretudo em sua dimenso coletiva. Ser que a Educao Fsica,

  • enquanto rea ou disciplina que se pretende cientfica, subjugada e subjacente a essa euforia de conquistas e inovaes tecnoinstrumentais inesgotveis, no tem reforado tal viso (ao invs de interrog-la) ?

    mais do que passada a hora de nos colocarmos crtica, tentando desenvolver, com toda cautela e perplexidade necessrias, uma anlise dialgica com outros campos do saber, sobretudo aqueles que privilegiam discutir as questes profundamente demarcadas pelas desigualdades sociais dos tempos atuais, no aceitando-as como um curso natural da histria da humanidade. A Educao Fsica postada como campo de atuao social e cientfica, mas que se ancora numa prxis, onde ainda predominam incurses mensurativas que objetivam classificar comportamentos de risco e de sade, precisa se interrogar urgentemente, sobre essas questes.

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  • POLTICAS PBLICAS DE SADE NO BRASIL

    Marco Aurlio Da Ros

  • POLTICAS PBLICAS DE SADE NO BRASIL

    Marco Aurlio Da Ros

    1. Premissas iniciais

    Um referencial importante para iniciar uma reflexo sobre Polticas Pblicas de Sade no Brasil pode ser localizado no Movimento Europeu de Medicina Social do sculo XIX. Rosen (1980) relata que esse Movimento, localizado em termos cronolgicos, aproximadamente entre 1830 e 1870, difundiu-se na Europa e coincidiu com os Movimentos pela transformao do capitalismo, que vivia uma de suas fases de maior crueldade.

    Alguns filmes (produes cinematogrficas) explicitam essas condies como Daens: um grito de justia ou Germinal. Estes, mais o livro de Engels (1986), intitulado A situao da classe trabalhadora na Inglaterra, demonstram a alta mortalidade e superexplorao da fora de trabalho. Em um ambiente sem saneamento, grvidas e menores de 10 anos, trabalhavam mais de 14 horas de trabalho por dia em fbricas sem janelas, em troca de pouca comida.

    Nesse ambiente grassavam epidemias e os mdicos eram chamados para tentar deter a morbi-mortalidade. E a era evidente que as condies scio-econmicas eram determinantes. Portanto, a proposta de mudar o modo de produo era condio para alterar o processo sade-doena da populao.

    Villerm na Frana, Grosjahn na Blgica, Chadwick na Inglaterra e Virchow e Neumann na Prssia personificavam alguns dos elaboradores do Movimento de Medicina Social (DA ROS, 2000).

    Virchow e Neumann, em 1847, conseguem a aprovao da lei de Sade Pblica prussiana que, se fosse apresentada de forma sinttica, poderia ser resumida como: sade, direito de todos, dever do Estado.

    O Movimento d uma explicao social para o processo sade-doena e tende a tornar-se hegemnico enquanto

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    modelo explicativo: mudem-se as condies da sociedade que acabam as epidemias e transforma-se o perfil das patologias.

    Claro que este Movimento chocava-se com o poder dominante e seus responsveis, que relutavam em aceitar as prescries de Virchow, tais como: reduo da jornada de trabalho, tempo para lazer, salrios suficientes para alimentar toda a famlia com abundncia, menores de 12 anos no trabalharem, saneamento nas fbricas, etc... Isto implicava em afrontar o capitalismo nessa fase de expanso/acumulao. Caso o trabalhador no aceitasse aquelas condies, havia um imenso exrcito de desempregados pronto para substitulo. Portanto, porque investir em mudana?

    Com a descoberta da associao causal entre a bactria e a doena, a partir de Pasteur, ao invs de se aumentar o potencial explicativo do processo sade-doena, ocorreu uma ruptura, sintetizada por Behring em 1896, na Prssia, com um sentido que expressava aproximadamente o seguinte: Agora, com a descoberta das bactrias, desnudada a causa das doenas, o mdico no precisa mais se preocupar com a sociedade (ROSEN, 1980). E esse passou a ser o modelo hegemnico ao final do sculo XIX incio do sculo XX: o modelo unicausal de explicao da doena, negador da determinao social do processo.

    Uma outra reflexo, que se superpe a esta, a forma como se estabelece o modelo mdico norte-americano. A Rockfeller Foundation, um dos pilares do modelo capitalista norte-americano financiou a Johns Hopkins University, no incio do sculo XX (DA ROS, 2000). Nesse local, originou-se um modelo de ensino de medicina centrado na unicausalidade, biologicista, hospitalocntrico, fragmentado, detentor da verdade cientfica, positivista. Dessa universidade foi chamado um professor, Abraham Flexner, para fazer uma investigao sobre as faculdades de medicina dos Estados Unidos da Amrica (EUA). Em 1910, foi publicado um relatrio, chamado de Relatrio Flexner, que em sntese, sugeria o no-financiamento de faculdades de medicina que contemplassem outros modelos de entendimento do processo sade-doena, diferentes da Johns Hopkins University (MENDES, 1985). Dessa forma, em menos de 5 anos foram fechadas mais de 100

  • faculdades norte-americanas: aquelas que enfatizavam Sade Pblica, ensinavam homeopatia, acupuntura, fitoterapia ou, que aceitavam negros e mulheres (CUTOLO, 2001). E se estabelecia um modelo claramente hegemnico de medicina especializada medicina/cincia/verdade no hospital. A utilizao de exames e medicamentos passa a ser superestimulada e se desenvolvem as bases para o poderoso complexo mdico-industrial, com imensos lucros por sobre as doenas. Com isso, as Cincias Sociais, definitivamente, no cabiam no entendimento vigente, nem a Sade Pblica, nem a dimenso psicolgica. Essa mesma universidade norte-americana, em 1918, entendeu que Sade Pblica poderia ser ensinada como um curso de especializao, depois da graduao, o que a fez propr, na poca, o primeiro curso nos EUA. Dois professores da Faculdade de Medicina de So Paulo fizeram esse curso e voltaram para o Brasil com a idia de formar uma faculdade de Sade Pblica. A Rockfeller Foundation fez, nesse perodo, uma doao para a construo do prdio, com a exigncia de que o diretor dessa escola fosse indicado pela entidade norte-americana (VASCONCELLOS, 1995). Samuel Darling dirigiu por trs anos o Instituto de Higiene (que no se tornou a Faculdade de Sade Pblica) estabelecendo diretrizes para as investigaes: unicausalidade biologia de vetores em educao e, a culpabilizao da vtima. Isto marcou por muito tempo a lgica da Sade Pblica no Brasil (DA ROS, 2000).

    Uma terceira reflexo, antes de iniciar propriamente a discusso das Polticas Pblicas de Sade, diz respeito epistemologia ou, resumidamente, como se constri o conhecimento. No desenvolvimento da cincia, o positivismo e os detentores da verdade nica, foram superados desde as contestaes ao crculo de Viena, mas, especialmente, pelo entendimento de que existe um processo permanente de desvelamento, que constri permanentemente novas verdades provisrias. Este novo conhecimento podemos chamar de princpio do conhecimento mximo (FLECK, 1986), o qual teria, supostamente, potencial explicativo para superar ou incorporar os conhecimentos anteriores. Mas, tambm se pode entender, com este autor, que estilos de pensamento antigos tendem a persistir no tempo e, no caso

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    do positivismo, sendo impermevel (incomensurvel) a qualquer outra lgica diferente da sua, tornada, ento, como a verdadeira. Portanto, com essas trs premissas que acredito que podemos refletir melhor sobre as Polticas Pblicas de Sade no Brasil.

    2. Condies para instalao do Modelo Brasileiro

    Fao ento, por opo explicativa, um corte histrico que nos remete assim, dcada de 1960, o ponto que considero importante para as definies em pauta, ainda hoje.

    As Polticas Pblicas de Sade anteriores a essa poca podem ser resumidas ao sanitarismo-campanhista (lgica do Ministrio da Sade) e a um modelo de ateno doena baseado nos IAPs (Institutos de Aposentadoria Privada antigos fundos de aposentadorias e penses) para os trabalhadores organizados. Em 1963, por exemplo, o IAPI (dos industririos), o mais organizado dos institutos, cobrava 3% dos trabalhadores e igual contribuio dos patres. Com esse recurso tinha hospitais prprios, corpo de mdicos e enfermeiros, equipamentos de ltima gerao e ambulatrios gerais. O recurso era suficiente para garantir as penses/ aposentadorias e para financiar casas prprias, as vilas do IAPI (dos industririos) existentes nas cidades industrializadas do Brasil naquela poca. O Ministrio da Sade era encarregado da preveno das doenas. Detinha 8% do oramento da unio e realizava desde perfurao de poos at confeco de fossas e operaes mata-mosquitos, bem como mantinha Centros de Sade para atender as grandes endemias de hansenase, tuberculose, verminose. Caiava casas para a preveno de Doena de Chagas.

    J a medicina privada no Brasil, naquela poca, apresentava um forte trao europeu, mais ecltico que o modelo fragmentador norte-americano e a nfase ainda centrava-se na atuao de mdicos generalistas e de famlia (DA ROS, 2000). A populao pobre dependia de hospitais de caridade, Santas Casas de Misericrdia, normalmente, sob a responsabilidade da Igreja. Tnhamos at ento, 26 faculdades de medicina no pas. Em 1963, Paulo Freire colaborou com o Ministrio da Educao para estimular o Movimento Estudantil organizado na Unio dos Estudantes (UNE), de forma que

  • este colocasse seus conhecimentos disposio da populao na poca das frias escolares. O Movimento Estudantil se iniciava j na primeira srie ginasial (equivalente, hoje, sexta srie do primeiro grau) e se discutia muito um modelo de desenvolvimento para o Brasil.

    Como em 1959 havia eclodido uma revoluo em Cuba, os norte-americanos se tornaram apreensivos com democracias que permitiam organizaes populares/polticas que contestavam a explorao capitalista. Em 1 de abril de 1964, deu-se um golpe militar contra um presidente legitimamente eleito, o qual foi financiado e pensado, em conjunto, pelo governo dos EUA e pelos militares brasileiros. Instalou-se, a partir da, uma ditadura onde os pensamentos contrrios a ela foram duramente perseguidos com ameaas, cadeia, exlio ou mesmo morte. A censura passou a ser exercida em todos os meios de comunicao. Houve interveno nos sindicatos, fechamento da UNE, tendo inclusive, sua sede queimada. Esse golpe determinou extensas modificaes em relao ao patamar anterior. Proponho colocar mais 10 anos de intervalo, 1973 1974, para tirar outro retrato da situao e avaliar o que ocorreu nesse outro perodo.

    Os IAPs foram desapropriados e passaram a ser hospitais governamentais submetidos ao MPAS (Ministrio da Previdncia e Assistncia Social) que, em mdia, alocava 25% do que arrecadava para o setor sade. Sua alocao era, em teoria, tripartite e j no mais de 3% e, sim, de 6% do salrio do trabalhador e de 6% do recurso do patro (que nem sempre pagava e que ainda recebia do governo anistia da dvida a cada cinco anos de sonegao, gerando novos no-pagantes). Este recurso do MPAS, (que deveria gerar lastro para o financiamento e assegurar os benefcios no futuro) foi pulverizado: a) financiando as grandes obras do BrasilPotncia (Hidreltrica de Itaipu, Usina de Angra dos Reis, Ponte Rio-Niteri, Rodovia Transamaznica); b) financiando a construo de hospitais privados e comprando exames e medicamentos do mercado privado; c) com corrupo disseminada em todos os nveis, desde as aposentadorias falsas, pacientes inexistentes at exames inventados, diagnsticos falsos, superfaturamento do material de consumo utilizado e pagamento por Unidades de Servio (US) quanto mais sofisticado o ato, mais caro

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    se pagava por ele. O emprstimo com dinheiro da Previdncia para a construo de hospitais consistia em at 10 anos de no-pagamento, para o setor privado. Aps isso, que o recurso comearia a ser pago, sem juros e sem correo monetria; d) porque se hipertrofiou a compra de aparelhos de exames sofisticados (muitos deles desnecessrios), bem como ocorreu uma verdadeira exploso de construo de hospitais e de compra de medicamentos.

    O Ministrio da Sade teve, ento, reduo no seu oramento de 8% para 0,8% permitindo o ressurgimento de epidemias relativamente controladas. Criou-se uma central de medicamentos cuja principal funo passou a ser a de ampliar a possibilidade do remdio privado chegar populao pobre, aumentando muito os lucros dos fabricantes. Associado ao que ocorre na formao do mdico e do farmacutico isso fez com que o Brasil se tornasse um dos dois pases (junto com o Mxico) com maior nmero de medicamentos com patentes comerciais, absolutamente sem controle. Ento, as grandes bases para o complexo mdico-industrial estavam ali plantadas hospitais, equipamentos e medicamentos. Faltava mexer na formao profissional. Em 1968, a Reforma Universitria, entre outras intenes, buscava reprimir a possibilidade de organizao estudantil, mas, em especial, na rea da sade recomendada para a medicina, alm da adoo do modelo Flexneriano, a supresso da disciplina de teraputica, o que tornou os alunos refns dos representantes de laboratrios (estes, por sua vez, se travestiam de ensinadores do funcionamento dos medicamentos). No curso de Farmcia-Bioqumica foi suprimida a disciplina de Farmacognosia (conhecimentos de onde so extrados os princpios ativos dos medicamentos) e de Farmacotcnica (como se transformam em produto de venda, os princpios ativos) assegurando que tornvamo-nos somente consumidores do medicamento pronto vendido pelas multinacionais (KUCINSKI e LEDOGAR, 1977).

    Em menos de 10 anos saltamos de 26 para 56 faculdades de medicina e todas essas novas escolas tinham, obrigatoriamente, o modelo biologicista, hospitalocntrico, fragmentado e com estmulo ao positivismo como referncia, em busca da verdade dos exames feitos por aparelhos cada

  • vez mais sofisticados e com a teoria unicausal (j superada internacionalmente), posando de modernidade. Tudo isso ocorreu sob a impossibilidade de denncia ou de reao, que seria entendida, pelos militares e seus rgos de segurana, como subverso.

    De 1964 a 1973 foram dez anos de represso forte. Nesses anos, o complexo mdico-industrial brasileiro se fortaleceu em nveis inimaginveis. Elegeu deputados, senadores, governadores. Ministros de Estado viabilizavam seus interesses e a Poltica Pblica de Sade era formulada de acordo com o interesse de fortalecimento desse complexo. O discurso vigente era que, em primeiro lugar, o governo faria o bolo financeiro crescer para depois ser repartido. Mas em 1973, com a primeira crise internacional do petrleo, ocorreram srias conseqncias para os pases capitalistas dependentes, o que acabou desencadeando a primeira grande crise do governo militar. Em funo disso, parte do governo militar comea a buscar outras sadas, inclusive para o modelo de sade, buscando ajuda nos setores at ento proibidos de se falar. A prpria ESG (Escola Superior de Guerra - a base da inteligentzia militar) denunciou a diminuio das condies de sade dos candidatos ao servio militar, dizendo que nesses dez anos aumentara, significativamente, o nmero de cries nos brasileiros, o percentual de verminoses, a altura mdia havia diminudo, alm de terem eclodido epidemias at ento relativamente sob controle, como malria, esquistossomose, Doena de Chagas, febre amarela, em funo da diminuio extrema de recursos para medidas preventivas do Ministrio da Sade.

    As condies materiais de existncia, na poca, permitiram dessa forma, que surgissem os movimentos contra: a prpria ditadura militar e, na rea de sade, apareceu, ento, a contra-hegemonia ao modelo Flexneriano e ao modelo unicausal e s atividades do complexo mdico-industrial, defendendo um sistema hierarquizado de sade, em que prticas curativas e preventivas estivessem dentro de um comando ministerial nico.

    A inteno deste artigo caracterizar as Polticas Pblicas de Sade no Brasil da dcada de 1960/1970, como uma proposta positivista, unicausal, Flexneriana, voltada aos

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    interesses do capitalismo e que se sustentava na base da ditadura militar, em contraponto s novas foras emergentes a partir da dcada de 1970, que irei caracterizar a seguir.

    Este novo pensamento, em oposio ao complexo mdico-industrial, pode ser simbolizado pelo chamado Movimento pela Reforma Sanitria ou simplesmente Movimento Sanitrio. Naquele perodo histrico do pas, vrios movimentos, separadamente, iniciaram uma contraposio poltica hegemnica. Os preventivistas do Ministrio da Sade, pleiteavam recursos para reiniciar medicina preventiva e denunciavam o gasto com a ateno curativa. Os publicistas do INAMPS lembravam que nos tempos das IAPs, os recursos eram para a construo de hospitais e compra de equipamentos prprios. Estes conclamavam, ainda, que o dinheiro pblico deveria ser usado para equipamentos pblicos. Denunciavam tambm que a forma de pagamento por unidades de servio (US), era uma fonte incontrolvel de corrupo. Por exemplo, na poca se pagava mais US por parto cesreo do que por parto normal e com isso, na poca, o Brasil foi campeo mundial de cesarianas.

    A Igreja se organizou nas pastorais de sade, criando os ENEMECs (Encontros Nacionai