A sempiterna questão de um esquecimento selectivo

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Ana da Palma está licenciado sob uma licença Creative Commons Atribuição-Uso não-comercial-No Derivative Works 2.5 Portugal . 1 A sempiterna questão de um esquecimento selectivo Pensar a Palestina também é uma questão de uma memória afectada pelo vírus do esquecimento colectivo e selectivo dos factos, para alimentar uma fábula entranhada de princípios humanísticos propositadamente deturpados e desviados da origem. Aqueles princípios que não promovem a nossa pertença comum à Humanidade, mas realçam subtilmente a supremacia de uns sobre outros, o ocidente sobre o resto, o norte sobre o sul, uma cultura sobre outra, os ricos sobre os pobres 1 , sempre na lógica dicotómica propagando e formulando dogmatismos, onde se configuram e inscrevem «maus extremismos» e «bons extremismos» (também!). Curiosamente, a recuperação de uma memória histórica tem sido uma questão central no nosso mundo. Recuperamos a memória das línguas aceitando o seu irremediável desaparecimento, recuperamos (tardiamente é certo!) as memórias sujas dos nossos tiranos ditatoriais, dos nossos «colaboracionistas», dos nossos colonialismos, dos nossos pactos silenciosos com guerras viciadas, etc. Tratamos de recuperar ou salvar os patrimónios materiais e imateriais e à revelia dos factos continuamos a limar mitos e fantasias para assegurar a supremacia de uma cultura ocidental com olhos atentos virados para o «exótico». O Outro não é mais que um prolongamento a recuperar e moldar à nossa imagem. O grande problema é que isto tem-nos levado a excessos e deturpações ingénuas e avassaladoras. No início de todos os anos, somos abundantemente regados por discursos imbuídos de um significado desviante propagando o erro e o simulacro. Não nos iludamos com declarações de intenções e mensagens falaciosas, mas eludamos os mensageiros dessas mensagens ou então enfrentemo-los e confrontemo-los! 2 . Na contemporaneidade, o esquecimento, o desvio, 1 Daí termos ouvido o Ministro israelita do Interior, Eli Yishai, dizer "The goal of the operation is to send Gaza back to the Middle Ages. Only then will Israel be calm for forty years." («O objectivo da operação é de reenviar Gaza para a idade média. Só então Israel ficará calma por quarenta anos») (Tradução nossa). Fonte: http://www.aljazeera.com/indepth/opinion/2012/11/2012111912538816887.html . Ler também este artigo de opinião de A. Gresh: http://blog.mondediplo.net/2012-11-18-Gaza-Nous-les-ramenerons-au-Moyen-Age 2 Referência ao alegre e ignaro descaramento das palavras proferidas pelo Presidente da República portuguesa a 1 de Janeiro de 2012 quando nos disse: «(...) No ano que agora começa, as dificuldades não irão ser menores.

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Ana da Palma

está licenciado sob uma licença Creative Commons Atribuição-Uso não-comercial-No Derivative Works 2.5 Portugal.

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A sempiterna questão de um esquecimento selectivo

Pensar a Palestina também é uma questão de uma memória afectada pelo vírus do

esquecimento colectivo e selectivo dos factos, para alimentar uma fábula entranhada de

princípios humanísticos propositadamente deturpados e desviados da origem. Aqueles

princípios que não promovem a nossa pertença comum à Humanidade, mas realçam

subtilmente a supremacia de uns sobre outros, o ocidente sobre o resto, o norte sobre o sul,

uma cultura sobre outra, os ricos sobre os pobres1, sempre na lógica dicotómica propagando e

formulando dogmatismos, onde se configuram e inscrevem «maus extremismos» e «bons

extremismos» (também!). Curiosamente, a recuperação de uma memória histórica tem sido

uma questão central no nosso mundo. Recuperamos a memória das línguas aceitando o seu

irremediável desaparecimento, recuperamos (tardiamente é certo!) as memórias sujas dos

nossos tiranos ditatoriais, dos nossos «colaboracionistas», dos nossos colonialismos, dos

nossos pactos silenciosos com guerras viciadas, etc. Tratamos de recuperar ou salvar os

patrimónios materiais e imateriais e à revelia dos factos continuamos a limar mitos e fantasias

para assegurar a supremacia de uma cultura ocidental com olhos atentos virados para o

«exótico». O Outro não é mais que um prolongamento a recuperar e moldar à nossa imagem.

O grande problema é que isto tem-nos levado a excessos e deturpações ingénuas e

avassaladoras.

No início de todos os anos, somos abundantemente regados por discursos imbuídos de

um significado desviante propagando o erro e o simulacro. Não nos iludamos com declarações

de intenções e mensagens falaciosas, mas eludamos os mensageiros dessas mensagens ou

então enfrentemo-los e confrontemo-los!2. Na contemporaneidade, o esquecimento, o desvio,

1 Daí termos ouvido o Ministro israelita do Interior, Eli Yishai, dizer "The goal of the operation is to send Gaza back to the Middle Ages. Only then will Israel be calm for forty years." («O objectivo da operação é de reenviar Gaza para a idade média. Só então Israel ficará calma por quarenta anos») (Tradução nossa). Fonte: http://www.aljazeera.com/indepth/opinion/2012/11/2012111912538816887.html . Ler também este artigo de opinião de A. Gresh: http://blog.mondediplo.net/2012-11-18-Gaza-Nous-les-ramenerons-au-Moyen-Age 2 Referência ao alegre e ignaro descaramento das palavras proferidas pelo Presidente da República portuguesa a 1 de Janeiro de 2012 quando nos disse: «(...) No ano que agora começa, as dificuldades não irão ser menores.

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a fragmentação e a multiplicação de dados é a arma dos governos e dos media a saldo daquilo

que nos têm dito ser os «maiores interesses», essa coisa impalpável, não identificável!. É

através do uso de uma língua numa linguagem formatada obedecendo a princípios falseados e

chavões desviantes que genuinamente somos levados a acreditar, em nome de uma

humanidade que se limita ao nosso indivíduo ocidental, e a defender uma forma de viver no

mundo, sendo que implica pactuarmos com este novo tipo de OVNI, Objecto Voraz Não

Identificável (Os tais interesses maiores que, por questões óbvias, nos deixam no limbo da

indefinição. Não se sabe bem a que se aplica a palavra «maiores», nem se sabe ao certo de

cujos interesses se trata!) e seus fiéis satélites.

Neste contexto, voltando à Palestina, as razões deste histórico esquecimento, ou desta

limpeza histórica, são de várias ordens, todas elas ancoradas no sôfrego desejo de supremacia

do ocidente. Vejamos algumas, tendo em mente, contudo que as opções políticas dos

sucessivos governos de Israel têm obedecido a um verdadeiro programa enraizado no século

XIX3. Primeiro, no que nos concerne, estamos confrontados com aquela vergonha colectiva

que nos toca na nossa íntima construção identitária, devido à elaboração e reiteração de uma

responsabilidade e culpabilidade colectiva do ocidente no Holocausto. Por um lado, isto

reafirma um desejo evidente de supremacia ocidental, revestindo o rosto de uma certa

concepção da humanidade e da ideia da democracia, com base numa ideologia colonialista

ultrapassada que, com toda a crueza e frieza, se investiu num neocolonialismo fornecendo e

continuando de fornecer aos governos sionistas de políticas colonialistas, por necessária

oposição ao que podemos referir como sionismo cultural4, todos os motivos de chantagem

Esta é uma realidade que não pode ser iludida.(...)» http://www.presidencia.pt/?idc=22&idi=60565 Falta-nos saber como fazer para eludir a realidade da sua mensagem para 2013. 3 Referimo-nos ao fundador do sionismo Theodor Herzl (1860 —1904) sobre quem se pode ler mais aqui: http://en.wikipedia.org/wiki/Theodor_Herzl e a um programa de colonização explicitado nos diários de Herzl: "When we occupy the land, we shall bring immediate benefits to the state that receives us. We must expropriate gently the private property on the estates assigned to us. We shall try to spirit the penniless population across the border by procuring employment for it in the transit countries, while denying it any employment in our country." The Complete Diaries of Theodor Herzl", vol. 1 (New York: Herzl Press and Thomas Yoseloff, 1960), pp. 88, 90 4 http://en.wikipedia.org/wiki/Ahad_Ha%27am e http://en.wikipedia.org/wiki/Martin_Buber

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histórica e os instrumentos bélicos, capacidades financeiras e estratégicas de se realizar

concretamente no terreno, enquanto política de Estado. Este Estado auto proclamado como

sendo a «única democracia do Médio Oriente», mas que revela sérios indícios de ser um

estado com tendências totalitárias a todos os níveis, sendo de guardar memória que o Sionismo

foi considerado como «uma forma de racismo e de discriminação racial» pela resolução 3379

da Assembleia Geral da ONU, datada de 10 de Novembro de 19755 e que esta resolução foi

anulada, pela resolução 4686, a 16 de Dezembro de 19916, em condições pouco claras, em

termos de justificação suficientemente válida, posto que envolveu a respectiva chantagem

exercida pelo governo de Israel e constituiu-se como condição prévia para iniciar as

negociações de Paz de Madrid. Por outro lado, o estado de Israel através dos seus

representantes, delegados e/ou embaixadores está continuadamente a relembrar-nos a nossa

culpa para alimentar uma adesão e apoio incondicional. Neste caso, basta relembrar as

palavras proferidas pelo embaixador de Israel7 na Fundação Gulbenkian, em Outubro 2012,

tentando fomentar a culpa do povo português por meio da acusação, da coação e da ingerência

no contexto da educação.

Segundo, partindo desta culpabilização colectiva, Israel beneficia do supremo direito

de se estar continuadamente a defender e de ter todo o apoio de um certo ocidente para tal8.

Apesar de cada suposto «acto de defensa», que se alimenta na manipulação mediática e

naquele dilema tão apreciado pela natureza humana, ou seja, saber aquele que tem as culpas de

5 http://daccess-dds-ny.un.org/doc/RESOLUTION/GEN/NR0/000/92/IMG/NR000092.pdf?OpenElement 6 http://www.un.org/documents/ga/res/46/a46r086.htm7 http://www.publico.pt/sociedade/noticia/embaixador-de-israel-diz-que-portugal-tem-uma-nodoa-que-os-judeus-nao-esquecem-1569558 e respectiva reacção do governo: http://www.publico.pt/politica/noticia/governo-manifestou-desagrado-ao-embaixador-de-israel-15705188 Veja-se a recente declaração do Presidente norte-americano Obama (http://www.cbsnews.com/8301-250_162-57551535/obama-israel-has-right-to-defend-itself/ ) relativamente à operação chumbo fundido (o relatório Goldstone [ http://www2.ohchr.org/english/bodies/hrcouncil/docs/12session/A-HRC-12-48.pdf ]e os artigos de Norman Finkelstein [http://normanfinkelstein.com/] são bastante esclarecedor sobre o assunto ). No que concerne a mais recente «defesa» intitulada: Pilar de Defesa, sabemos que se tratou mais de uma operação de retaliação do que de defesa. É importante notar que cada «defesa» Israelita tem um nome pomposo iludindo a nossa razão, mas, pensando melhor, posto que se tem um nome, há um plano prévio, não é propriamente um acto espontâneo de defesa!

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ter sido o «primeiro» a atacar, isto constituindo-se frequentemente na base do esquecimento

fomentado pelos medias e convocado para dar lugar a autênticos massacres da população civil

palestiniana.

Terceiro, porque verificamos que a legitimidade de Israel está sempre a ser evocada

pelos seus mais variados defensores e representantes, indicando, claramente, que esta

preocupação constante de legitimidade, apenas confirma o receio da evidência e da

consciência das suas bases ilegítimas. A criação do Estado de Israel fundamentou-se numa

série de ilegalidades, abusos e desejo de poder e cegueira do mundo ocidental, tal como os

acordos Sykes–Picot recentemente questionados pela Turquia9, tal como a evidente

«ilegalidade» da declaração Balfour10 e ainda a intervenção da SDN/ONU nas resoluções que

definem territórios, sendo que não vai ao encontro da Carta das Nações Unidas11 e finalmente

por Israel nunca ter cumprido com os requisitos da resolução 27312, datada de Maio 1949, que

o admitia no seio da ONU. Podemos intuir que estes factos justificam a permanente e quase

doentia insistência de Israel em querer ser reconhecido, quando já o foi historicamente por

vários países, inclusive pela OLP, em 1993, com Arafat13. Este reconhecimento foi um

compromisso com uma série de acontecimentos nitidamente injustos para com o povo

palestino. Contudo, desde 2011, temos vindo a saber da insistência de Israel em ser

reconhecido como estado judeu14. Esta última exigência que nos deve levar a uma longa e

necessária reflexão, tem vindo a ser legitimada pelo silêncio, pela condescendência, pela

reiterada culpa «comum» do mundo ocidental, apesar de não ir ao encontro dos grandes

argumentos que rotulam Israel como sendo a «única democracia» do médio oriente e apesar de

não ter sido uma questão discutida no seio da sociedade civil de Israel. O aparecimento de um

9 Veja-se este artigo de opinião: http://weekly.ahram.org.eg/2011/1066/in2.htm 10 http://en.wikipedia.org/wiki/Balfour_Declaration 11 http://www.un.org/en/documents/charter/ 12 http://unispal.un.org/UNISPAL.NSF/0/83E8C29DB812A4E9852560E50067A5AC 13 Ler a correspondência trocada entre Arafat e Rabin aqui: http://www.monde-diplomatique.fr/cahier/proche-orient/lettre93-fr 14 http://blog.mondediplo.net/2011-05-18-L-Etat-juif-contre-les-juifs mas também http://blog.mondediplo.net/2011-08-01-Israel-Etat-juif-Doutes-francais e http://www.huffingtonpost.com/mj-rosenberg/the-bogus-demand-to-recog_b_765218.html

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estado religioso, uma teocracia, mesmo sendo um estado de raiz judeo-cristã deve suscitar

algum receio junto de todos os estados chamados, ou com desejos, «democráticos». Por outro

lado, a justificação religiosa destas exigências deve ser revisitada à luz da realidade expressa

por Shlomo Sand no livro intitulado «Como foi inventado o povo judeu»15

Quarto, porque recentemente verificámos num artigo acompanhado de um mapa

delineando e salientando as questões de autonomia energética de Israel16, uma postura que vai

nitidamente ao encontro das múltiplas intervenções levadas ilegalmente a cabo revelando o

desejo do ocidente de «reinstalar» o seu poder na região.

Então, desviam-se todos princípios básicos que regem a nossa humanidade, alimenta-

se a mentira, fomenta-se o esquecimento para engordar o desejo de poder do ocidente? Vale

tudo? Mesmo pactuar com um lento e cruel genocídio?

15 Ler o artigo de M. Rodrigues sobre o livro: http://www.odiario.info/?p=272716 http://www.voltairenet.org/article174007.html