A Soberania Da Virgula
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A soberania da vírgula
Sinal com maior variedade de uso é desafio para o entendimento de um texto
Rogério Chociay
A vírgula é, e não por acaso, o corpo e a alma da pontuação. Quem não a
ama não a domina, e quem não a domina não escreve direito. A bem
da verdade, os outros sinais, em sua maioria, têm comportamento burocrático, não sendo difícil
aprender a empregá-los.
O contrário ocorre com a vírgula, cuja variedade de emprego é um
desafio constante.
Já por isso, quando a tratam como parte igual do conjunto, não dando o
devido desenvolvimento a seu estudo, alguns autores pecam por
omissão, pois, na verdade, o conjunto é quase inteiramente ocupado pela vírgula.
Uma prova? Quantas vezes ela aparece no parágrafo acima? 14. E
quantos pontos? 5. Não há dúvida: a vírgula, carro-chefe de todos os pontos, reina soberana em qualquer texto.
Até mesmo os poemas em versos livres da fase revolucionária do
Modernismo, que tentaram prescindir da pontuação, jamais conseguiram eliminá-la.
Para que serve o ponto, mesmo? Para fechar período, fechar
parágrafo, fechar texto. E acabou. É apenas um assistente: quando a vírgula vai embora, o ponto fecha a porta.
Para que serve o ponto de interrogação? Para marcar frases
interrogativas. Mas o pobre nem consegue distinguir interrogação total de interrogação parcial.
E para que serve a vírgula? Nem ela mesma, se pudesse responder,
teria certeza total de quantas funções pode exercer, sintáticas, lógicas, estilísticas. Uma enormidade.
Mais uma prova?
Quantos livros existem dedicados ao ponto, ou ao ponto de interrogação?
Nenhum, porque não há mais que dois ou três parágrafos a escrever
sobre eles.
E sobre a vírgula? Artigos, capítulos de livros, livros inteiros.
Por isso, se ela pudesse falar, diria que um livro com um nome ao estilo de Manual de Pontuação seria impróprio e incoerente: por
mérito e justiça, deveria ser substituído por Manual de Virgulação.
Falar dos outros sinais é, de certo modo, fazer a introdução ao que se vai falar da vírgula.
Personalidade
Assim, não seria possível revelar todo o poder da vírgula em poucas linhas.
O que se pode dizer, pela voz dos melhores escritores, súditos fiéis dessa soberana, é que o melhor modo de entender a multiplicidade
de seus empregos é usar como filtro suas habilidades básicas.
Poderíamos, no limite, até recorrer à prosopopeia, dando vida e voz à vírgula. Que diria ela, além do que acima foi dito?
Talvez algo mais ou menos como: "Sou a única presença feminina autêntica
na pontuação.
Certo pesquisador pretensioso anda dizendo que sou sinuosa, insinuante e
traiçoeira. Para falar a verdade, sou mesmo. Minhas
curvas suaves me fazem bela, minhas funções me tornam insinuante, minhas
virtudes estilísticas me tornam, não digo traiçoeira, mas um tanto oblíqua e
dissimulada, como a Capitu. Então, para ter todos os privilégios de minhas prendas, se quer ser mesmo um bom escritor, seja um
pouco o meu Bentinho e um pouco o Escobar.
Só quem sabe todas as manhas e malícias do feminino pode desfrutar ao máximo os meus poderes.
Machado sabia".
Rogério Chociay é pesquisador da Unesp, autor de Pontuação, Ponto a Ponto (editora Íbis, 2005)
As 10 habilidades básicas das vírgulas
1 Pausa inconclusa Quando surge na escrita, marca uma pausa
inconclusa na fala. Exemplo: "Quando surge na escrita, marca uma pausa inconclusa na fala".
2 Marcar fronteiras
Opera sempre na oração, marcando fronteiras entre orações ou entre elementos oracionais. Exemplo em
que surge com seu charme todo: "Julião Machado, segundo me dizem, é homem culto e ilustrado; e, como entre nós, no nosso meio
doutoral e bacharelesco, os artistas são apresentados como ignorantes, ele quer mostrar com as suas legendas, longas, virguladinhas, que
não é" (Lima Barreto, Feiras e Mafuás).
3 Habilidades seriais A vírgula sinaliza séries de vocábulos, de termos, de orações: "Preguei, demonstrei, honrei a verdade eleitoral, a verdade constitucional, a verdade
republicana" (Rui Barbosa, "Oração aos Moços").
Nesta função de seriadora, às vezes cede espaço para o ponto e vírgula, e fazem elegantes manobras conjuntas: "Mal o avistavam, já as caras refloriam; se fazia um gesto, espirravam risos; se abria a boca, espigaitavam-se uns, outros afrouxavam os coses, terceiros desabotoavam os coletes." (Monteiro
Lobato, O Engraçado Arrependido).
4 Intercalação A vírgula marca bem a intercalação de elementos na oração, mas não reclama se o escritor por vezes usar para isso travessões ou parênteses: "Pode-se dizer, sem a menor sombra de dúvida, que a vírgula
é - e não por acaso - o corpo e a alma da pontuação".
5 Dar ênfase
Sinaliza com eficácia a transposição enfática de um elemento do meio ou do final de uma oração para o início, ou do início para o final: "Ingênuo, o Inácio nunca foi. - Era um sujeito de fala mansa e longas dissertações, o Inácio." Colaborar com a elipse
6 Colaborar com a elipse A vírgula marca a omissão de termos no período: "Aqueles são a parte da natureza. Estes, a do trabalho" (Rui Barbosa, Oração aos Moços)
7 Ser, muitas vezes, facultativa
O que abre campo a manobras estilísticas: "Mas neste clima singular e típico destacam-se outras anomalias, que ainda mais o agravam." Nessa
passagem de Os Sertões, Euclides também poderia ter escrito: "Mas, neste clima singular e típico, destacam-se outras anomalias, que ainda mais o
agravam".
8 Ser lógica e articulada Não se presta a separar o inseparável. Assim, nada de pô-la entre sujeito e predicado ou entre verbo e seu objeto. Não "Pedro, compra livros" ou "Pedro compra, livros" quando se quer "Pedro compra livros". Se há aposto, pode-se tê-la duas vezes, antes e depois, para marcar o fato: "Pedro, meu
irmão, compra livros".
9 Substituir outros sinais A vírgula não é egoísta. Atua em ambientes em que outros sinais atuariam. Uma mina de ouro para
escritores, que descobrem veios de expressividade na alternância de vírgula, ponto, ponto e vírgula, dois-pontos, travessões, parênteses. Veja a passagem de Euclides: "O jagunço é menos teatralmente heroico; é mais tenaz; é mais
resistente; é mais perigoso; é mais forte; é mais duro." Belo efeito, que teria diferente matiz com a vírgula: "O jagunço é menos teatralmente heroico, é mais tenaz, é mais resistente, é mais perigoso, é
mais forte, é mais duro". Matiz distinto haveria com o uso de pontos: "O jagunço é menos teatralmente heroico. É mais tenaz. É mais resistente. É mais perigoso. É mais forte. É mais duro". Ao escritor
compete a escolha adequada ao texto.
10 Ser usada com expressividade A vírgula costuma ser certinha no comportamento, mas, vez por outra, por expressividade, pode surgir onde não devia, ou não surgir onde devia. Malícias do ofício! Foi o que fez Euclides, ao colocá-la para marcar pausa mecânica (também chamada
respiratória) em "Mas no sul a força viva restante no temperamento dos que vinham de romper o mar imoto, não se delia num clima enervante."
Os sentidos da vírgula
Há casos em que a vírgula pode mudar o sentido da frase e gerar dúvidas
Josué Machado
É verdade que a vírgula, como a crase, não nasceu para humilhar ninguém. Mas pode humilhar, sim. E até causar pequenos desastres de compreensão. Ou
de incompreensão, dependendo do caso e do contexto, porque quem virgula mal em geral escreve mal por não entender bem a estrutura da frase.
Primeiro, convém lembrar que nem toda vírgula indica pausa e nem toda pausa é indicada por
vírgula. Depois, é da maior importância ressaltar que nunca se devem pôr vírgulas entre o sujeito e o verbo e entre o verbo e seus complementos. Posto isso e agrupando casos de alguma semelhança,
podem-se resumir a quatro os principais empregos da vírgula.
1 Marcar inversões da ordem direta Quando a crise chegou, estavam desprevenidos.
Embora achasse que não, disse que o amava. Depois da lua de mel, fugiu dele para não mais voltar.
Quando o adjunto adverbial for representado por uma só palavra, a vírgula é dispensável, a menos que se queira acentuar o valor do advérbio: Hoje vamos passear no bosque. Melancolicamente se
despediram. (Ou: "Melancolicamente, se despediram" /"Melancolicamente, despediram-se".)
2 Marcar intercalações que interrompam a ordem natural da frase
Em explicações, retificações, ressalvas, continuações, aposições, vocativos, conclusões, inclusive oracionais: Aquele político, eterno
candidato, se refugia na Câmara para não ir preso.
Nós, respondeu o representante da bancada da motosserra, daremos um jeito.
Deus meu, por que me abandonaste?
3 Marcar omissão do verbo já enunciado na oração anterior
Ele foi de primeira classe; ela, de terceira. (Foi.) O marido gostava de balé; a mulher, de luta livre.
(Gostava.) Ou:
O marido gostava de balé, e a mulher, de luta livre. Nota-se que no exemplo anterior justifica-se a
vírgula antes da conjunção "e" porque ela une duas orações com sujeitos diferentes: marido e mulher.
4 Separar termos da mesma função em sequência, coordenados
Laranjas, limões, bananas; ladrões, traficantes,
políticos; jogar, correr, disputar; primeiro, segundo, terceiro, quarto. A casa onde nasceu, a rua onde viveu, a cidade onde morreu. Ela deixou livros,
discos, quadros, tapetes, saudades.
Mas não se usa vírgula antes do verbo, após o último elemento de uma série de núcleos de sujeito separados por vírgula: Os livros raros, os discos da coleção, os quadros antigos, os tapetes puídos, as lembranças amargas (sujeito) foram deixados pela
amada que partia.
Proibição Fora os quatro grupos de casos mais ou menos
óbvios, é preciso acentuar dois casos fundamentais, já citados, de vírgulas absolutamente impróprias.
1 Jamais se separa por vírgula o sujeito (grifado nos exemplos) do predicado verbal,
mesmo que o núcleo, modificado por adjuntos, esteja distante do verbo, destacado em
negrito.
A) O consultório daquele cirurgião plástico açougueiro no extremo oposto de minha rua foi
fechado pela polícia.
B) O padre procurado pela justiça e o filho dele
mantinham a igreja caça-níqueis em funcionamento.
C) Muito melhor do que cassar aquele político seria
forçá-lo a devolver o dobro do que afanou.
Para descobrir o sujeito pergunta-se ao verbo: o que ou quem.
A) O que foi fechado? Sujeito: o consultório (núcleo
do sujeito).
B) Quem mantinha a igreja caça-níqueis? Sujeito: o
padre e o filhote (sujeito composto por dois núcleos).
C) O que seria melhor do que cassá-los? Sujeito: forçá-los a devolver em dobro a bufunfa afanada.
Há orações que funcionam como sujeitos. Nem
assim devem ser separadas do predicado verbal de que são sujeitos: Quem com ferro fere com ferro
será ferido. O homem que lê vale mais. É absolutamente necessário que todos votemos
melhor.
2 A vírgula jamais deve separar o verbo de seus complementos (grifados).
O Luís come empadinhas engorduradas todos os dias. O Edgard gostou muito daquela garota robusta. Elas responderam a eles (compl.) que não voltariam (compl.). À mulher e aos filhos (compl.) ele disse
que não voltaria mais (compl.).
Exercício 1
Corrija se necessário
1 O que ela mais queria, era voltar a ser amada.
2 Quem tem pressa, come cru.
3 Até os maus funcionários, ajudaram na tragédia.
4 Estapeada, voltou a outra face.
5 Depois de chorar, confessou, à mulher e aos
filhos, que, nunca mais, faria aquilo.
6 Depois da fome, vem a miséria.
7 Os senadores, lamentavelmente, vão à breca.
8 Temos o dever de criar condições, para que, este
grande país, cresça cada vez mais.
9 O melhor de tudo isso, é que deixamos de pagar a
CPMF, com amor à pátria estremecida.
10 Como diz o velho ditado, quem não tem cão,
caça com cachorro.
Exercício 2
Corrija, se necessário
1 Quem quiser se casar cedo, pode fazê-lo desde que tenha meios.
2 Depois dos Jogos Pan-Americanos o governo brasileiro entregou, ao governo cubano, os dois
boxeadores fugitivos.
3 Os presidentes atual e anterior fazem, e fizeram no governo, o que criticavam, quando na oposição.
4 Se nunca tivesse visto aquela mulher não teria enlouquecido de amor.
5 Por causa da pressão popular o corrupto talvez seja cassado.
6 Houve muitos candidatos mas poucos foram eleitos.
7 Ele só escapará se o voto for secreto.
8 Se o voto for secreto ele poderá escapar.
9 Já se sabia que se o voto fosse secreto ele poderia escapar.
10 No princípio criou Deus o Céu e a Terra.