A Sociedade contra o Estado - we.riseup.net+Pierre+A+sociedade...é isso mesmo o que dizem as...

74
A Sociedade contra o Estado Pierre Clastres Publicado em 1974

Transcript of A Sociedade contra o Estado - we.riseup.net+Pierre+A+sociedade...é isso mesmo o que dizem as...

Page 1: A Sociedade contra o Estado - we.riseup.net+Pierre+A+sociedade...é isso mesmo o que dizem as crônicas dos viajantes ou os trabalhos dos pesquisadores: não se pode imaginar a sociedade

A Sociedade contra o Estado

Pierre Clastres

Publicado em 1974

Page 2: A Sociedade contra o Estado - we.riseup.net+Pierre+A+sociedade...é isso mesmo o que dizem as crônicas dos viajantes ou os trabalhos dos pesquisadores: não se pode imaginar a sociedade

Este texto está disponível emwe.riseup.net/subta/sociedadecontraoestado

Page 3: A Sociedade contra o Estado - we.riseup.net+Pierre+A+sociedade...é isso mesmo o que dizem as crônicas dos viajantes ou os trabalhos dos pesquisadores: não se pode imaginar a sociedade

As sociedades primitivas são sociedades semEstado: esse julgamento de fato, em si mesmocorreto, na verdade dissimula uma opinião, um juízode valor, que prejudica então a possibilidade deconstituir uma antropologia política como ciênciarigorosa. O fato que se enuncia é que as sociedadesprimitivas estão privadas de alguma coisa – o Estado– que lhes é, tal como a qualquer outra sociedade – anossa, por exemplo – necessária. Essas sociedadessão, portanto, incompletas. Não são exatamenteverdadeiras sociedades – não são policiadas –, esubsistem na experiência talvez dolorosa de umafalta – falta do Estado – que elas tentariam, sempreem vão, suprir. De um modo mais ou menos confuso,

1

Page 4: A Sociedade contra o Estado - we.riseup.net+Pierre+A+sociedade...é isso mesmo o que dizem as crônicas dos viajantes ou os trabalhos dos pesquisadores: não se pode imaginar a sociedade

é isso mesmo o que dizem as crônicas dos viajantesou os trabalhos dos pesquisadores: não se podeimaginar a sociedade sem o Estado, o Estado é odestino de toda sociedade. Descobre-se nessaabordagem uma fixação etnocentrista tanto maissólida quanto é ela, o mais das vezes, inconsciente. Areferência imediata, espontânea 'é, se não aquilo quemelhor se conhece, pelo menos o mais familiar. Cadaum de nós traz efetivamente em si, interiorizadacomo a fé do crente, essa certeza de que a sociedadeexiste para o Estado. Como conceber então a própriaexistência das sociedades primitivas, a não ser comoespécies à margem da história universal,sobrevivências anacrônicas de uma fase distante e,em todos os lugares há muito ultrapassada?Reconhece-se aqui a outra face do etnocentrismo, aconvicção complementar de que a história tem um

2

Page 5: A Sociedade contra o Estado - we.riseup.net+Pierre+A+sociedade...é isso mesmo o que dizem as crônicas dos viajantes ou os trabalhos dos pesquisadores: não se pode imaginar a sociedade

sentido único, de que toda sociedade está condenadaa inscrever-se nessa história e a percorrer as suasetapas que, a partir da selvageria, conduzem àcivilização “Todos os povos policiados foramselvagens”, escreve Raynal. Mas o registro de umaevolução evidente de forma alguma fundamenta umadoutrina que, relacionando arbitrariamente o estadode civilização com a civilização do Estado, designaeste último como termo necessário atribuído a todasociedade. Pode-se então indagar o que manteve osúltimos povos ainda selvagens.

Por trás das formulações modernas, o velhoevolucionismo permanece, na verdade, intacto. Maisdelicado para se dissimular na linguagem daantropologia, e não mais na da filosofia, ele afloracontudo ao nível das categorias que pretendem sercientíficas. Já se percebeu que, quase sempre, as

3

Page 6: A Sociedade contra o Estado - we.riseup.net+Pierre+A+sociedade...é isso mesmo o que dizem as crônicas dos viajantes ou os trabalhos dos pesquisadores: não se pode imaginar a sociedade

sociedades arcaicas são determinadas de maneiranegativa, sob o critério da falta: sociedades semEstado, sociedades sem escrita, sociedades semhistória. Mostra-se como sendo da mesma ordem adeterminação dessas Sociedades no plano econômico:sociedades de economia de subsistência. Se, com isso,quisermos significar que as sociedades primitivasdesconhecem a economia de mercado onde sãoescoados os excedentes da produção, nada afirmamosde modo estrito, e contentamo-nos em destacar maisuma falta, sempre com referência ao nosso própriomundo: essas sociedades que não possuem Estado,escrita, história, também não dispõem de mercado.Todavia, pode objetar o bom senso, para que serve ummercado, se não há excedentes? Ora a ideia deeconomia de subsistência contém em si mesma aafirmação de que, se as sociedades primitivas não

4

Page 7: A Sociedade contra o Estado - we.riseup.net+Pierre+A+sociedade...é isso mesmo o que dizem as crônicas dos viajantes ou os trabalhos dos pesquisadores: não se pode imaginar a sociedade

produzem excedentes, é porque são incapazes de fazê-lo, inteiramente ocupadas que estariam em produzir omínimo necessário à sobrevivência, à subsistência.Imagem antiga, sempre eficaz, da miséria dosselvagens. E, a fim de explicar essa incapacidade dassociedades primitivas de sair da estagnação de viver odia-a-dia, dessa alienação permanente na busca dealimentos, invocam-se o subequipamento técnico, ainferioridade tecnológica.

O que ocorre na realidade? Se entendermos portécnica o conjunto dos processos de que se munem oshomens, não para assegurarem o domínio absoluto danatureza (isso só vale para o nosso mundo em seuinsano projeto cartesiano cujas consequênciasecológicas mal começamos a medir), mas paragarantir um domínio do meio natural adaptado erelativo às suas necessidades, então não mais

5

Page 8: A Sociedade contra o Estado - we.riseup.net+Pierre+A+sociedade...é isso mesmo o que dizem as crônicas dos viajantes ou os trabalhos dos pesquisadores: não se pode imaginar a sociedade

podemos falar em inferioridade técnica dassociedades primitivas: elas demonstram umacapacidade de satisfazer suas necessidades pelomenos igual àquela de que se orgulha a sociedadeindustrial e técnica. Isso equivale a dizer que todogrupo humano chega a exercer, pela força, o mínimonecessário de dominação sobre o meio que ocupa. Atéagora não se tem conhecimento de nenhumasociedade que se haja estabelecido, salvo por meio decoação e violência exterior, sobre um espaço naturalimpossível de dominar: ou ela desaparece ou muda deterritório. O que surpreende nos esquimós e nosaustralianos é justamente a riqueza, a imaginação e orefinamento da atividade técnica, o poder deinvenção e de eficácia demonstrada pelasferramentas utilizadas por esses povos. Basta fazeruma visita aos museus etnográficos: o rigor de

6

Page 9: A Sociedade contra o Estado - we.riseup.net+Pierre+A+sociedade...é isso mesmo o que dizem as crônicas dos viajantes ou os trabalhos dos pesquisadores: não se pode imaginar a sociedade

fabricação dos instrumentos da vida cotidiana fazpraticamente de cada modesto utensílio uma obra dearte. Não existe portanto hierarquia no campo datécnica, nem tecnologia superior ou inferior; só sepode medir um equipamento tecnológico pela suacapacidade de satisfazer, num determinado meio, asnecessidades da sociedade. E, sob esse ponto devista, não parece de forma alguma que as sociedadesprimitivas se mostraram incapazes de seproporcionar os meios de realizar esse fim. Essapotência de inovação técnica testemunhada pelassociedades primitivas desdobra-se sem dúvida notempo. Nada é fornecido de uma só vez, há sempre opaciente trabalho de observação e de pesquisa, alonga sucessão de ensaios, erros, fracassos e êxitos.Os historiadores da pré-história nos dão notícia dequantos milênios foram necessários para que os

7

Page 10: A Sociedade contra o Estado - we.riseup.net+Pierre+A+sociedade...é isso mesmo o que dizem as crônicas dos viajantes ou os trabalhos dos pesquisadores: não se pode imaginar a sociedade

homens do paleolítico substituíssem os grosseirosbifaces pelas admiráveis lâminas do solutreano.Segundo outro ponto de vista, observa-se que adescoberta da agricultura e a domesticação dasplantas são quase contemporâneas na América e novelho Mundo. E impõe-se constatar que os ameríndiosem nada se mostram inferiores, muito pelo contrário,no que se refere à arte de selecionar e diferençar,múltiplas variedades de plantas foram úteis.

Detenhamo-nos por um momento no funestointeresse que levou os índios a querereminstrumentos metálicos. Com efeito, ele estádiretamente relacionado com a questão da economianas sociedades primitivas, mas não da maneira quese poderia acreditar. Essas sociedades estariam,segundo se afirma, condenadas à economia desubsistência em razão da inferioridade tecnológica.

8

Page 11: A Sociedade contra o Estado - we.riseup.net+Pierre+A+sociedade...é isso mesmo o que dizem as crônicas dos viajantes ou os trabalhos dos pesquisadores: não se pode imaginar a sociedade

Como acabamos de ver, esse argumento não temfundamento em direito nem em fato. Nem emdireito, porque não existe escala abstrata pela qualse possam medir as "intensidades" tecnológicas: oequipamento técnico de uma sociedade não édiretamente comparável àquele de uma sociedadediferente, e de nada serve opor o fuzil ao arco. Nemem fato, uma vez que a arqueologia, a etnografia, abotânica etc. nos demonstram precisamente apotência de rentabilidade e de eficácia dastecnologias selvagens. Por conseguinte, se associedades primitivas repousam numa economia desubsistência, não é por lhes faltar uma habilidadetécnica. A verdadeira pergunta que se deve formularé a seguinte: a economia dessas sociedades érealmente uma economia de subsistência?Precisando o sentido das expressões: se por

9

Page 12: A Sociedade contra o Estado - we.riseup.net+Pierre+A+sociedade...é isso mesmo o que dizem as crônicas dos viajantes ou os trabalhos dos pesquisadores: não se pode imaginar a sociedade

economia de subsistência não nos contentamos ementender economia sem mercado e sem excedentes -o que seria um simples truísmo, o puro registro dadiferença - então com efeito se afirma que esse tipode economia permite à sociedade que ele funda tãosomente subsistir; afirma-se que essa sociedademobiliza permanentemente a totalidade de suasforças produtivas para fornecer a seus membros omínimo necessário à subsistência.

Existe aí um preconceito tenaz, curiosamenteco-extensivo à ideia contraditória e não menoscorrente de que o selvagem é preguiçoso. Se emnossa linguagem popular diz-se "trabalhar como umnegro", na América do Sul, por outro lado, diz-se"vagabundo como um índio". Então, das duas uma:ou o homem das sociedades primitivas, americanas eoutras, vive em economia de subsistência e passa

10

Page 13: A Sociedade contra o Estado - we.riseup.net+Pierre+A+sociedade...é isso mesmo o que dizem as crônicas dos viajantes ou os trabalhos dos pesquisadores: não se pode imaginar a sociedade

quase todo o seu tempo à procura de alimento, ounão vive em economia de subsistência e podeportanto se proporcionar lazeres prolongadosfumando em sua rede. Isso chocou claramente osprimeiros observadores europeus dos índios doBrasil. Grande era a sua reprovação ao constataremque latagões cheios de saúde preferiam seempetecar, como mulheres, de pinturas e plumasem vez de regarem com suor as suas áreascultivadas. Tratava-se, portanto, de povos queignoravam deliberadamente que é preciso ganhar opão com o suor do próprio rosto. Isso era demais, enão durou muito: rapidamente se puseram os índiospara trabalhar, e eles começaram a morrer. Doisaxiomas, com efeito, parecem guiar a marcha dacivilização ocidental desde a sua aurora: o primeiroestabelece que a verdadeira sociedade se

11

Page 14: A Sociedade contra o Estado - we.riseup.net+Pierre+A+sociedade...é isso mesmo o que dizem as crônicas dos viajantes ou os trabalhos dos pesquisadores: não se pode imaginar a sociedade

desenvolve sob a sombra protetora do Estado; osegundo enuncia um imperativo categórico: énecessário trabalhar. Os índios, efetivamente, sódedicavam pouco tempo àquilo a que damos o nomede trabalho. E apesar disso não morriam de fome.As crônicas da época são unânimes em descrever abela aparência dos adultos, a boa saúde dasnumerosas crianças, a abundância e variedade dosrecursos alimentares. Por conseguinte, a economiade subsistência das tribos indígenas não implicavade forma alguma a angustiosa busca, em tempointegral, de alimento. Uma economia de subsistênciaé, pois, compatível com uma considerável limitaçãodo tempo dedicado às atividades produtivas. Era oque se verificava com as tribos sul americanas deagricultores, como os Tupi-Guarani, cuja ociosidadeirritava igualmente os franceses e os portugueses. A

12

Page 15: A Sociedade contra o Estado - we.riseup.net+Pierre+A+sociedade...é isso mesmo o que dizem as crônicas dos viajantes ou os trabalhos dos pesquisadores: não se pode imaginar a sociedade

vida econômica desses índios baseava-se sobretudona agricultura, e, acessoriamente, na caça, na pescae na coleta. Uma mesma área de cultivo era utilizadapor um período ininterrupto de quatro a seis anos.Em seguida, era abandonada, por esgotar-se o soloou, mais provavelmente, em virtude da invasão doespaço destacado por uma vegetação parasitária dedifícil eliminação. O grosso do trabalho, efetuadopelos homens, consistia em arrotear, por meio de ummachado de pedra e com auxílio do fogo, a superfícienecessária. Essa tarefa, realizada no fim da estaçãodas chuvas, mobilizava os homens durante um oudois meses. Quase todo o resto do processo agrícola- plantar, mondar, colher -, em conformidade com adivisão sexual do trabalho, era executado pelasmulheres. Donde a seguinte conclusão feliz: oshomens, isto é, a metade da população, trabalhavam

13

Page 16: A Sociedade contra o Estado - we.riseup.net+Pierre+A+sociedade...é isso mesmo o que dizem as crônicas dos viajantes ou os trabalhos dos pesquisadores: não se pode imaginar a sociedade

cerca de dois meses em cada quatro anos! O resto dotempo era passado em ocupações encaradas nãocomo trabalho, mas como prazer: caça, pesca; festase bebedeiras; a satisfazer, enfim, o seu gostoapaixonado pela guerra.

Ora, esses dados maciços, qualitativos,impressionistas, encontram uma brilhanteconfirmação em pesquisas recentes – algumas emcurso - de caráter rigorosamente demonstrativo, jáque medem o tempo de trabalho nas sociedadescom economia de subsistência. Quer se trate decaçadores-nômades do deserto do Kalahari ou deagricultores sedentários ameríndios, os númerosobtidos revelam uma divisão média do tempo diáriode trabalho inferior a quatro horas por dia. JacquesLizot, que vive há muitos anos entre os índiosYanomami da Amazônia venezuelana, estabeleceu,

14

Page 17: A Sociedade contra o Estado - we.riseup.net+Pierre+A+sociedade...é isso mesmo o que dizem as crônicas dos viajantes ou os trabalhos dos pesquisadores: não se pode imaginar a sociedade

cronometricamente, que a duração média do tempo,que os adultos dedicam todos os dias ao trabalho,incluídas todas as atividades, mal ultrapassa trêshoras. Não chegamos, pessoalmente, a realizarcálculos desse gênero entre os Guayaki, caçadoresnômades da floresta paraguaia. Mas pode-seassegurar que os índios - homens e mulheres –passavam pelo menos a metade do dia em quasecompleta ociosidade, uma vez que a caça e a coletase efetuavam, e não todos os dias, entre, mais oumenos, 6 e 11 horas da manhã. É provável queestudos desse gênero, levados a efeito entre asúltimas populações primitivas, resultassem -consideradas as diferenças ecológicas - emresultados muito parecidos.

Estamos portanto bem longe da miserabilidadeque envolve a ideia de economia de subsistência.

15

Page 18: A Sociedade contra o Estado - we.riseup.net+Pierre+A+sociedade...é isso mesmo o que dizem as crônicas dos viajantes ou os trabalhos dos pesquisadores: não se pode imaginar a sociedade

Não só o homem das sociedades primitivas não estáde forma alguma sujeito a essa existência animal queseja a busca permanente para assegurar aexistência, como é ao preço de um tempo deatividade notavelmente curto que ele alcança - e atéultrapassa -. esse resultado. Isso significa que associedades primitivas dispõem, se assim odesejarem, de todo o tempo necessário paraaumentar a produção dos bens materiais. O bomsenso questiona: por que razão os homens dessassociedades quereriam trabalhar e produzir mais,quando três ou quatro horas diárias de atividade sãosuficientes para garantir as necessidades do grupo?De que lhes serviria isso? Qual seria a utilidade dosexcedentes assim acumulados? Qual seria o destinodesses excedentes? É sempre pela força que oshomens trabalham além das suas necessidades. E

16

Page 19: A Sociedade contra o Estado - we.riseup.net+Pierre+A+sociedade...é isso mesmo o que dizem as crônicas dos viajantes ou os trabalhos dos pesquisadores: não se pode imaginar a sociedade

exatamente essa força está ausente do mundoprimitivo: a ausência dessa força externa defineinclusive a natureza das sociedades primitivas.Podemos admitir, a partir de agora, para qualificar aorganização econômica dessas sociedades, aexpressão economia de subsistência, desde que não aentendamos no sentido da necessidade de um defeito,de uma incapacidade inerentes a esse tipo desociedade e a sua tecnologia, mas, ao contrário, nosentido da recusa de um excesso inútil da vontade derestringir a atividade produtiva à satisfação dasnecessidades. E nada mais. Tanto mais que, paraexaminar as coisas mais de perto, há efetivamenteprodução de excedentes nas sociedades primitivas: aquantidade de plantas cultivadas produzidas(mandioca, milho, fumo, algodão etc.) sempreultrapassa o que é necessário ao consumo do grupo,

17

Page 20: A Sociedade contra o Estado - we.riseup.net+Pierre+A+sociedade...é isso mesmo o que dizem as crônicas dos viajantes ou os trabalhos dos pesquisadores: não se pode imaginar a sociedade

estando essa produção suplementar, evidentementeincluída no tempo normal de trabalho. Esse excesso,obtido sem sobre-trabalho, é consumido, consumado,com finalidades propriamente políticas, por ocasiãode festas, convites, visita de estrangeiros etc. Avantagem de um machado de metal sobre ummachado de pedra é evidente demais para que nelanos detenhamos: podemos, no mesmo tempo,realizar com o primeiro talvez dez vezes maistrabalho que com o segundo; ou então executar omesmo trabalho num tempo dez vezes menor. E, aodescobrirem a superioridade produtiva dos machadosdos homens brancos, os índios os desejaram, não paraproduzirem mais no mesmo tempo, mas paraproduzirem a mesma coisa num tempo dez vezes maiscurto. Mas foi exatamente o contrário que se verificou,pois, com os machados metálicos, irromperam no

18

Page 21: A Sociedade contra o Estado - we.riseup.net+Pierre+A+sociedade...é isso mesmo o que dizem as crônicas dos viajantes ou os trabalhos dos pesquisadores: não se pode imaginar a sociedade

mundo primitivo dos índios a violência, a força, opoder, impostos aos selvagens pelos civilizados recém-chegados.

As sociedades primitivas são, como escreveLizot ao propósito dos Yanomami, sociedades derecusa do trabalho: "O desprezo dos Yanomami pelotrabalho e o seu desinteresse por um progressotecnológico autônomo é certo”1 Primeiras sociedadesdo lazer, primeiras sociedades da abundância, najusta e feliz expressão de Marshall Sahlins. Se oprojeto de constituir uma antropologia econômicadas sociedades primitivas como disciplina autônomatem um sentido, este não pode advir da simples

1 Jaques Lizot, "Economie ou sociéte? Quelques thêmes àpropos de l'étude d'une communauté d'Amérindiens.”Journal de Ia Sociiti des Amiricanistes, n. 9, 1973, pp 137-75.

19

Page 22: A Sociedade contra o Estado - we.riseup.net+Pierre+A+sociedade...é isso mesmo o que dizem as crônicas dos viajantes ou os trabalhos dos pesquisadores: não se pode imaginar a sociedade

consideração da vida econômica dessas sociedades:permanecemos numa etnologia da descrição, nadescrição de uma dimensão não-autônoma da vidasocial primitiva. É muito antes, quando essadimensão do "fato social total" se constitui comoesfera autônoma, que a ideia de uma antropologiaeconômica parece fundamentada: quandodesaparece a recusa ao trabalho, quando o sentidodo lazer é substituído pelo gosto da acumulação,quando, em síntese, surge no corpo social essa forçaexterna que evocamos antes, essa força sem a qualos selvagens não renunciariam ao lazer e que destróia sociedade como sociedade primitiva; essa força é apotência de sujeitar, é a capacidade de coerção, é opoder político. Mas, em consequência disso, aantropologia deixa desde então de ser econômica, eperde de alguma forma o seu objeto no próprio

20

Page 23: A Sociedade contra o Estado - we.riseup.net+Pierre+A+sociedade...é isso mesmo o que dizem as crônicas dos viajantes ou os trabalhos dos pesquisadores: não se pode imaginar a sociedade

instante em que crê agarrá-lo, e a economia torna-se política. Para o homem das sociedadesprimitivas, a atividade de produção é exatamentemedida, delimitada pelas necessidades que têm deser satisfeitas, estando implícito que se trataessencialmente das necessidades energéticas: aprodução é projetada sobre a reconstituição doestoque de energia gasto. Em outros termos, é avida como natureza que - com exceção dos bensconsumidos socialmente por ocasião das festas -fundamenta e determina a quantidade de tempodedicado a reproduzi-la. Isso equivale a dizer que,uma vez assegurada a satisfação global dasnecessidades energéticas, nada poderia estimular asociedade primitiva a desejar produzir mais, isto é, aalienar o seu tempo num trabalho sem finalidade,enquanto esse tempo é disponível para a ociosidade, o

21

Page 24: A Sociedade contra o Estado - we.riseup.net+Pierre+A+sociedade...é isso mesmo o que dizem as crônicas dos viajantes ou os trabalhos dos pesquisadores: não se pode imaginar a sociedade

jogo, a guerra ou a festa. Quais as condições em quese podem transformar essa relação entre o homemprimitivo e a atividade de produção? Sob quecondições essa atividade se atribui uma finalidadediferente da satisfação das necessidades energéticas?Temos aí levantada a questão da origem do trabalhocomo trabalho alienado.

Na sociedade primitiva, sociedadeessencialmente igualitária, os homens são senhoresde sua atividade, senhores da circulação dosprodutos dessa atividade: eles só agem para sipróprios, mesmo se a lei de troca dos bens sómediatiza a relação direta do homem com o seuproduto. Tudo se desarruma, por conseguinte,quando a atividade de produção se afasta do seuobjetivo inicial quando em vez de produzir apenaspara si mesmo, o homem primitivo produz também

22

Page 25: A Sociedade contra o Estado - we.riseup.net+Pierre+A+sociedade...é isso mesmo o que dizem as crônicas dos viajantes ou os trabalhos dos pesquisadores: não se pode imaginar a sociedade

para os outros, sem troca e sem reciprocidade. Sóentão é que podemos falar em trabalho: quando aregra igualitária de troca deixa de constituir o"código civil” da sociedade, quando a atividade deprodução visa a satisfazer as necessidades dosoutros, quando a regra de troca é substituída peloterror da dívida. Na verdade, é exatamente aí que seinscreve a diferença entre o selvagem amazônico e oíndio do império inca. O primeiro produz, em suma,para viver, enquanto o segundo trabalha, de mais amais, para fazer com que outros vivam – os que nãotrabalham, os senhores que lhe dizem: cumpre quetu pagues o que nos deves; impõe-se que tueternamente saldes a dívida que conosco contraíste.

Quando, na sociedade primitiva, o econômicose deixa identificar como campo autônomo edefinido, quando a atividade de produção setransforma em trabalho alienado, contabilizado e

23

Page 26: A Sociedade contra o Estado - we.riseup.net+Pierre+A+sociedade...é isso mesmo o que dizem as crônicas dos viajantes ou os trabalhos dos pesquisadores: não se pode imaginar a sociedade

imposto por aqueles que vão tirar proveito dosfrutos desse trabalho, é sinal de que a sociedadenão é mais primitiva, tornou-se uma sociedadedividida em dominantes e dominados, em senhorese súditos, e de que parou de exorcizar aquilo queestá destinado a matá-la: o poder e o respeito aopoder. A principal divisão da sociedade, aquela queserve de base a todas as outras, inclusive semdúvida a divisão do trabalho, é a nova disposiçãovertical entre a base e o cume, é o grande cortepolítico entre detentores da força, seja ela guerreiraou religiosa, e sujeitados a essa força. A relaçãopolítica do poder precede e fundamenta a relaçãoeconômica de exploração. Antes de ser econômica, aalienação é política, o poder antecede o trabalho, oeconômico é uma derivação do político, aemergência do Estado determina o aparecimentodas classes.

Inacabamento, incompletude, falta: não éabsolutamente desse lado que se revela a natureza

24

Page 27: A Sociedade contra o Estado - we.riseup.net+Pierre+A+sociedade...é isso mesmo o que dizem as crônicas dos viajantes ou os trabalhos dos pesquisadores: não se pode imaginar a sociedade

das sociedades primitivas. Ela impõe-se bem maiscomo positividade, como domínio do meio ambientenatural e do projeto social, como vontade livre de nãodeixar escapar para fora de seu ser nada que possaalterá-lo, corrompê-lo e dissolvê-lo. É a isso que nosdevemos prender com firmeza: as sociedadesprimitivas não são os embriões retardatários dassociedades ulteriores, dos corpos sociais de decolagem"normal" interrompida por alguma estranha doença;elas não se encontram no ponto de partida de umalógica histórica que conduz diretamente ao termoinscrito de antemão, mas conhecido apenas aposteriori, o nosso próprio sistema social. (Se ahistória é essa lógica, como podem ainda existirsociedades primitivas?) Tudo isso se traduz, no planoda vida econômica, pela recusa das sociedadesprimitivas em se deixarem tragar pelo trabalho e pela

25

Page 28: A Sociedade contra o Estado - we.riseup.net+Pierre+A+sociedade...é isso mesmo o que dizem as crônicas dos viajantes ou os trabalhos dos pesquisadores: não se pode imaginar a sociedade

produção, através da decisão de limitar os estoquesàs necessidades sociopolíticas, da impossibilidadeintrínseca da concorrência – de que serviria, numasociedade primitiva, ser rico entre os pobres? – emsuma, pela proibição, não formulada ainda que dita,da desigualdade.

O que é que determina que numa sociedadeprimitiva a economia não seja política? Isso se dá,como se vê, devido ao fato da economia nela nãofuncionar de maneira autônoma. Poder-se-ia dizerque, nesse sentido, as sociedades primitivas sãosociedades sem economia por recusarem aeconomia. Mas deve-se então classificar tambémcomo ausência a existência do político nessassociedades? É preciso admitir que, por se tratar desociedades "sem lei e sem rei " o campo político lhesfalta? E não tornaríamos dessa forma a cair na rotina

26

Page 29: A Sociedade contra o Estado - we.riseup.net+Pierre+A+sociedade...é isso mesmo o que dizem as crônicas dos viajantes ou os trabalhos dos pesquisadores: não se pode imaginar a sociedade

clássica de um etnocentrismo para o qual a faltaassinala em todos os níveis as diferentes sociedades?

Abordemos pois a questão do político nassociedades primitivas. Não se trata simplesmente deum problema "interessante", de um tema reservadoapenas à reflexão dos especialistas, pois a etnologiaganha as dimensões de uma teoria geral (aconstruir) da sociedade. A extrema diversidade dostipos de organização social, a abundância, no tempoe no espaço, de sociedades dessemelhantes, nãoimpedem entretanto a possibilidade de uma ordemna descontinuidade, a possibilidade de uma reduçãodessa multiplicidade infinita de diferenças. Reduçãomaciça, uma vez que a história só nos oferece, defato, dois tipos de sociedade absolutamenteirredutíveis um ao outro, duas macro-classes, cadauma das quais reúne em si sociedades que, além de

27

Page 30: A Sociedade contra o Estado - we.riseup.net+Pierre+A+sociedade...é isso mesmo o que dizem as crônicas dos viajantes ou os trabalhos dos pesquisadores: não se pode imaginar a sociedade

suas diferenças, têm em comum alguma coisa defundamental. Existem por um lado as sociedadesprimitivas ou sociedades sem Estado; e, por outrolado, as sociedades com Estado. É a presença ou aausência da formação estatal (suscetível de assumirmúltiplas formas) que fornece a toda sociedade o seuelo lógico, que traça uma linha de irreversíveldescontinuidade entre as sociedades. Oaparecimento do Estado realizou a grande divisãotipológica entre selvagens e civilizados, e traçouuma indelével linha de separação além da qual tudomudou, pois o Tempo se torna História. Tem-sefrequentemente descoberto - e com razão - nomovimento da história mundial duas aceleraçõesdecisivas do seu ritmo. O motor da primeira foi o quese denomina a revolução neolítica (domesticação dosanimais, agricultura, descoberta das artes da

28

Page 31: A Sociedade contra o Estado - we.riseup.net+Pierre+A+sociedade...é isso mesmo o que dizem as crônicas dos viajantes ou os trabalhos dos pesquisadores: não se pode imaginar a sociedade

tecelagem e da cerâmica, sedentarizaçãoconsequente dos grupos humanos etc.). Estamosainda vivendo, e cada vez mais (se nos é lícita aexpressão) no prolongamento da segundaaceleração, a revolução industrial do século XIX.

Evidentemente não há dúvida de que a linha deseparação neolítica alterou de modo considerável ascondições de existência material dos povos outrorapaleolíticos. Mas essa transformação teria sido tãoradical a ponto de afetar em sua mais extremaprofundidade a essência das sociedades? Pode-sefalar em um funcionamento diferente dos sistemassociais, conforme sejam eles pré-neolíticos ou pós-neolíticos? A experiência etnográfica indica antes ocontrário. A passagem do nomadismo àsedentarização seria a consequência mais rica darevolução neolítica, no sentido de que permitiu, pela

29

Page 32: A Sociedade contra o Estado - we.riseup.net+Pierre+A+sociedade...é isso mesmo o que dizem as crônicas dos viajantes ou os trabalhos dos pesquisadores: não se pode imaginar a sociedade

concentração de uma população estabilizada, aformação das cidades e, mais adiante, dos aparelhosde Estado. Mas determina-se que, ao fazer isso, todo"complexo" tecnocultural desprovido de agriculturaestá necessariamente fadado ao nomadismo. Eis oque é etnograficamente inexato: uma economia decaça, pesca e coleta não exige obrigatoriamente ummodo de vida nômade. Vários exemplos, tanto naAmérica como em outros lugares, o atestam: aausência de agricultura é compatível com osedentarismo. Isso permitiria supor, então, que, secertos povos não chegaram a possuir agricultura, nomomento em que ela era ecologicamente possível, nãofoi por incapacidade, atraso tecnológico, inferioridadecultural, porém, mais simplesmente, porque dela nãotinham necessidade.

30

Page 33: A Sociedade contra o Estado - we.riseup.net+Pierre+A+sociedade...é isso mesmo o que dizem as crônicas dos viajantes ou os trabalhos dos pesquisadores: não se pode imaginar a sociedade

A história pós-colombiana da Américaapresenta o caso de populações de agricultoressedentários que, sob o efeito de uma revoluçãotécnica (conquista do cavalo e, acessoriamente, dasarmas de fogo), preferiram abandonar a agriculturapara se dedicarem de maneira quase exclusiva àcaça, cujo rendimento era multiplicado pelamobilidade dez vezes maior proporcionada pelocavalo. A partir do momento em que se tornaramequestres, as tribos das planícies da América doNorte ou as do Chaco, na América do Sul,intensificaram e estenderam os seus deslocamentos:contudo, estamos aí bem longe do nomadismo emque recaem geralmente os bandos de caçadores-coletores (como os Guayaki do Paraguai), e oabandono da agricultura não se traduziu, para osgrupos em questão, pela dispersão demográfica, nem

31

Page 34: A Sociedade contra o Estado - we.riseup.net+Pierre+A+sociedade...é isso mesmo o que dizem as crônicas dos viajantes ou os trabalhos dos pesquisadores: não se pode imaginar a sociedade

pela transformação da organização social anterior.Que nos é ensinado por esse movimento de maioriade sociedades que passaram da caça à agricultura epelo movimento inverso, de algumas outras, que,partindo da agricultura, chegaram à caça? É que issoparece efetivar-se sem que ocorra qualquer mudançana natureza da sociedade; que esta permaneceidêntica a si mesma enquanto se transformamapenas as suas condições de existência material; quea revolução neolítica, se por um lado afetouconsideravelmente, e sem dúvida facilitou, a vidamaterial dos grupos humanos de então, por outrolado não acarreta de maneira automática umaperturbação da ordem social. Em outros termos, e noque tange às sociedades primitivas, a mudança noplano do que o marxismo chama a infraestruturaeconômica não determina de modo algum o seu

32

Page 35: A Sociedade contra o Estado - we.riseup.net+Pierre+A+sociedade...é isso mesmo o que dizem as crônicas dos viajantes ou os trabalhos dos pesquisadores: não se pode imaginar a sociedade

reflexo consequente a superestrutura política, já queesta surge independente da sua base material. Ocontinente americano ilustra claramente aautonomia respectiva da economia e da sociedade.Grupos de caçadores-pescadores-coletores, nômadesou não, apresentam as mesmas propriedadessociopolíticas que os seus vizinhos agricultoressedentários: "infraestruturas" diferentes,"superestrutura” idêntica. Inversamente, associedades mesoamericanas – sociedades imperiais,sociedades com Estado - eram tributárias de umaagricultura que, mais intensiva que alhures, nãoficava muito longe, do ponto de vista de seu níveltécnico, da agricultura das tribos "selvagens" daFloresta Tropical: "infraestrutura" idêntica,"superestruturas" diferentes, uma vez que, num dos

33

Page 36: A Sociedade contra o Estado - we.riseup.net+Pierre+A+sociedade...é isso mesmo o que dizem as crônicas dos viajantes ou os trabalhos dos pesquisadores: não se pode imaginar a sociedade

casos, se trata de sociedades sem Estado, e, no outro,de Estados acabados.

É então a ruptura política - e não a mudançaeconômica - que é decisiva. A verdadeira revolução,na proto-história da humanidade, não é a doneolítico, uma vez que ela pode muito bem deixarintacta a antiga organização social, mas a revoluçãopolítica: é essa aparição misteriosa, irreversível,mortal para as sociedades primitivas, queconhecemos sob o nome de Estado. E caso hajadesejo de conservar os conceitos marxistas deinfraestrutura e de superestrutura, então talvez sejanecessário reconhecer que a infraestrutura é opolítico e que a superestrutura é o econômico.Somente uma convulsão estrutural, abissal podetransformar, destruindo-a como tal, a sociedadeprimitiva: aquilo que faz surgir em seu seio, ou do

34

Page 37: A Sociedade contra o Estado - we.riseup.net+Pierre+A+sociedade...é isso mesmo o que dizem as crônicas dos viajantes ou os trabalhos dos pesquisadores: não se pode imaginar a sociedade

exterior, aquilo cuja ausência mesma define essasociedade, a autoridade da hierarquia, a relação depoder, a dominação dos homens, o Estado. Seria vãoprocurar sua origem numa hipotética modificaçãodas relações de produção na sociedade primitiva,modificação que, dividindo pouco a pouco asociedade em ricos e pobres, exploradores eexplorados, conduziria mecanicamente à instauraçãode um órgão de exercício do poder dos primeirossobre os segundos, ao aparecimento do Estado.

Hipotética, essa modificação da baseeconômica é ainda mais impossível. Para que, numadada sociedade, o regime de produção se transformeno sentido de uma maior imensidade de trabalho quevisa a uma produção acrescida de bens, é necessárioou que os homens dessa sociedade desejem essatransformação de seu gênero de vida tradicional, ou

35

Page 38: A Sociedade contra o Estado - we.riseup.net+Pierre+A+sociedade...é isso mesmo o que dizem as crônicas dos viajantes ou os trabalhos dos pesquisadores: não se pode imaginar a sociedade

que, mesmo não a desejando, eles se vejamobrigados por uma violência externa. No segundocaso, nada advém da própria sociedade, que sofre aagressão de uma força externa em beneficio da qualo regime de produção vai modificar-se: trabalhar eproduzir mais para satisfazer as necessidades dosnovos senhores do poder. A opressão políticadetermina, chama, permite a exploração. Mas aevocação de uma tal "encenação" não serve de nada,uma vez que ela coloca uma origem externa,contingente, imediata, da violência estatal, e não alenta realização das condições internas,socioeconômicas, de seu aparecimento. O Estado,dizem, é o instrumento que permite à classedominante exercer sua dominação violenta sobre asclasses dominadas. Que seja. Para que haja oaparecimento do Estado, é necessário pois, que exista

36

Page 39: A Sociedade contra o Estado - we.riseup.net+Pierre+A+sociedade...é isso mesmo o que dizem as crônicas dos viajantes ou os trabalhos dos pesquisadores: não se pode imaginar a sociedade

antes divisão da sociedade em classes sociaisantagônicas, ligadas entre si por relação deexploração. Por conseguinte, a estrutura da sociedade- a divisão em classes - deveria preceder a emergênciada máquina estatal. Observemos de passagem afragilidade dessa concepção puramente instrumentaldo Estado. Se a sociedade é organizada por opressorescapazes de explorar os oprimidos, é que essacapacidade de impor a alienação repousa sobre o usode uma força, isto é, sobre o que faz da própriasubstância do Estado "monopólio da violência físicalegítima". A que necessidade responderia desde entãoa existência de um Estado, uma vez que sua essência -a violência - é imanente à divisão da sociedade, já queé, nesse sentido, dada antecipadamente na opressãoexercida por um grupo social sobre os outros? Ele não

37

Page 40: A Sociedade contra o Estado - we.riseup.net+Pierre+A+sociedade...é isso mesmo o que dizem as crônicas dos viajantes ou os trabalhos dos pesquisadores: não se pode imaginar a sociedade

seria senão o inútil órgão de uma função preenchidaantes e alhures.

Articular o aparecimento da máquina estatalcom a transformação da estrutura social levasomente a recuar o problema desse aparecimento. Éentão necessário perguntar por que se produz, noseio de uma sociedade primitiva, isto é, de umasociedade não-dividida, a nova divisão dos homensem dominantes e dominados. Qual é o motor dessatransformação maior que culminaria na instalaçãodo Estado? Sua emergência sancionaria alegitimidade de uma propriedade privadapreviamente surgida, e o Estado seria orepresentante e o protetor dos proprietários. Muitobem. Mas por que se teria o surgimento dapropriedade privada num tipo de sociedade queignora, por recusá-la, a propriedade? Por que alguns

38

Page 41: A Sociedade contra o Estado - we.riseup.net+Pierre+A+sociedade...é isso mesmo o que dizem as crônicas dos viajantes ou os trabalhos dos pesquisadores: não se pode imaginar a sociedade

desejaram proclamar um dia: isto é meu, e como osoutros deixaram que se estabelecesse assim o germedaquilo que a sociedade primitiva ignora, aautoridade, a opressão, o Estado? O que hoje se sabedas sociedades primitivas não permite mais procurarno nível econômico a origem do político. Não é nessesolo que se enraíza a árvore genealógica do Estado.Nada existe, no funcionamento econômico de umasociedade primitiva, de uma sociedade sem Estado,que permita a introdução da diferença entre maisricos e mais pobres, pois aí ninguém tem o estranhodesejo de fazer, possuir, parecer mais que seuvizinho. A capacidade, igual entre todos, desatisfazer as necessidades materiais, e a troca debens e serviços, que impede constantemente oacúmulo privado dos bens, tornam simplesmenteimpossível a eclosão de um tal desejo, desejo de

39

Page 42: A Sociedade contra o Estado - we.riseup.net+Pierre+A+sociedade...é isso mesmo o que dizem as crônicas dos viajantes ou os trabalhos dos pesquisadores: não se pode imaginar a sociedade

posse que é de fato desejo de poder. A sociedadeprimitiva, primeira sociedade de abundância, nãodeixa nenhum espaço para o desejo desuperabundância.

As sociedades primitivas são sociedades semEstado porque, nelas, o Estado é impossível. Eentretanto todos os povos civilizados foramprimeiramente selvagens: o que fez com que o Estadodeixasse de ser impossível? Por que os povos cessaramde ser selvagens? Que formidável acontecimento, querevolução permitiram o surgimento da figura doDéspota, daquele que comanda os que obedecem? Deonde provém o poder político? Mistério, talvezprovisório, da origem.Se parece ainda possível determinar as condições deaparecimento do Estado, podemos em troca precisaras condições de seu não-aparecimento, e os textos

40

Page 43: A Sociedade contra o Estado - we.riseup.net+Pierre+A+sociedade...é isso mesmo o que dizem as crônicas dos viajantes ou os trabalhos dos pesquisadores: não se pode imaginar a sociedade

que foram aqui reunidos tentam cercar o espaço dopolítico nas sociedades sem Estado. Sem fé, sem leisem rei: o que no século XVI o Ocidente dizia dosíndios pode estender-se sem dificuldade a todasociedade primitiva. Este pode ser mesmo o critériode distinção: uma sociedade é primitiva se nela faltao rei, como fonte legítima da lei, isto é, a máquinaestatal. Inversamente, toda sociedade não-primitivaé uma sociedade de Estado: pouco importa o regimesocioeconômico em vigor. É por isso que podemosreagrupar numa mesma classe os grandesdespotismos arcaicos – reis, imperadores da Chinaou dos Andes, faraós – as monarquias mais recentes -O Estado sou eu - ou os sistemas sociaiscontemporâneos, quer o capitalismo seja liberalcomo na Europa ocidental, ou de Estado comoalhures... Portanto, a tribo não possui um rei, mas

41

Page 44: A Sociedade contra o Estado - we.riseup.net+Pierre+A+sociedade...é isso mesmo o que dizem as crônicas dos viajantes ou os trabalhos dos pesquisadores: não se pode imaginar a sociedade

um chefe que não é chefe de Estado. O que significaisso? Simplesmente que o chefe não dispõe denenhuma autoridade, de nenhum poder de coerção,de nenhum meio de dar uma ordem. O chefe não éum comandante, as pessoas da tribo não têmnenhum dever de obediência. O espaço da chefia nãoé o lugar do poder, e a figura (mal denominada) do"chefe" selvagem não prefigura em nada aquela deum futuro déspota. Certamente não é da chefiaprimitiva que se pode deduzir o aparelho estatal emgeral.

Em que o chefe da tribo não prefigura o chefe deEstado? Em que uma tal antecipação do Estado éimpossível no mundo dos selvagens? Essadescontinuidade radical - que torna impensável umapassagem progressiva da chefia primitiva à máquinaestatal - se funda naturalmente nessa relação de

42

Page 45: A Sociedade contra o Estado - we.riseup.net+Pierre+A+sociedade...é isso mesmo o que dizem as crônicas dos viajantes ou os trabalhos dos pesquisadores: não se pode imaginar a sociedade

exclusão que coloca o poder político no exterior dachefia. O que se deve imaginar é um chefe sem poder,uma instituição, a chefia, estranha à sua essência, aautoridade. As funções do chefe, tal como foramanalisadas acima, mostram perfeitamente que não setrata de funções de autoridade. Essencialmenteencarregado de eliminar conflitos que podem surgirentre indivíduos, famílias e linhagens etc., ele sódispõe, para restabelecer a ordem e a concórdia, doprestígio que lhe reconhece a sociedade. Masevidentemente prestígio não significa poder, e osmeios que o chefe detém para realizar sua tarefa depacificador limitam-se ao uso exclusivo da palavra:não para arbitrar entre as partes opostas, pois ochefe não é um juiz e não pode se permitir tomarpartido por um ou por outro, mas para, armadoapenas de sua eloquência, tentar persuadir as

43

Page 46: A Sociedade contra o Estado - we.riseup.net+Pierre+A+sociedade...é isso mesmo o que dizem as crônicas dos viajantes ou os trabalhos dos pesquisadores: não se pode imaginar a sociedade

pessoas da necessidade de se apaziguar, derenunciar às injúrias, de imitar os ancestrais quesempre viveram no bom entendimento.Empreendimento cuja vitória nunca é certa, apostasempre incerta, pois a palavra do chefe não temforça de lei. Se o esforço de persuasão fracassa,então o conflito corre o risco de se resolver pelaviolência e o prestígio do chefe pode muito bem nãosobreviver a isso, uma vez que ele deu provas de suaimpotência em realizar o que se espera dele.

Em função de que a tribo estima que talhomem é digno de ser um chefe? No fim das contas,somente em função de sua competência "técnica":dons oratórios, habilidade como caçador, capacidadede coordenar as atividades guerreiras, ofensivas oudefensivas. E, de forma alguma a sociedade deixa ochefe ir além desse limite técnico, ela jamais deixa

44

Page 47: A Sociedade contra o Estado - we.riseup.net+Pierre+A+sociedade...é isso mesmo o que dizem as crônicas dos viajantes ou os trabalhos dos pesquisadores: não se pode imaginar a sociedade

uma superioridade técnica se transformar emautoridade política. O chefe está a serviço dasociedade, é a sociedade em si mesma - verdadeirolugar do poder - que exerce como tal sua autoridadesobre o chefe. É por isso que é impossível para ochefe alterar essa relação em seu proveito, colocar asociedade a seu próprio serviço, exercer sobre atribo o que denominamos poder: a sociedade nuncatolerará que seu chefe se transforme em déspota.Grande vigilância, de certo modo, a que a tribosubmete o chefe, prisioneiro em um espaço do qualela não o deixa sair. É possível que um chefe desejeser chefe? Que ele queira substituir o serviço e ointeresse do grupo pela realização do seu própriodesejo? Que a satisfação do seu interesse pessoalultrapasse a submissão ao projeto coletivo? Emvirtude do estreito controle a que a sociedade - por

45

Page 48: A Sociedade contra o Estado - we.riseup.net+Pierre+A+sociedade...é isso mesmo o que dizem as crônicas dos viajantes ou os trabalhos dos pesquisadores: não se pode imaginar a sociedade

sua natureza de sociedade primitiva e não, é claro,por cuidado consciente e deliberado de vigilância -submete, como todo o resto, a prática do líder, rarossão os casos de chefes colocados em situação detransgredir a lei primitiva: tu não és mais que osoutros. Raros certamente, mas não inexistentes:acontece às vezes que um chefe queira bancar ochefe, e não por cálculo maquiavélico, mas antesporque definitivamente ele não tem escolha, nãopode fazer de outro modo. Expliquemo-nos. Emregra geral, um chefe não tenta (ele nem mesmosonha) subverter a relação normal (conforme àsnormas) que mantém com seu grupo, subversão que,de servidor da tribo, faria dele o senhor. Essa relaçãonormal, o grande cacique Alaykin, chefe guerreiro deuma tribo Abipione do Chaco argentino, a definiuperfeitamente na resposta que deu a um oficial

46

Page 49: A Sociedade contra o Estado - we.riseup.net+Pierre+A+sociedade...é isso mesmo o que dizem as crônicas dos viajantes ou os trabalhos dos pesquisadores: não se pode imaginar a sociedade

espanhol que queria convencê-lo de levar sua tribo auma guerra que ela não desejava: "Os Abipiones, porum costume recebido de seus ancestrais, fazem tudode acordo com sua vontade e não de acordo com ado seu cacique. Cabe a mim dirigi-los, mas eu nãopoderia prejudicar nenhum dos meus sem prejudicara mim mesmo; se eu utilizasse as ordens ou a forçacom meus companheiros, logo eles me dariam ascostas. Prefiro ser amado e não temido por eles” E,não duvidemos, a maior parte dos chefes indígenasteria sustentado o mesmo discurso.

Existem entretanto exceções quase sempreligadas à guerra. Sabemos com efeito que apreparação e a condução de uma expedição militarsão as únicas circunstâncias em que o chefe podeexercer um mínimo de autoridade, fundada somente,repitamo-lo, em sua competência técnica de

47

Page 50: A Sociedade contra o Estado - we.riseup.net+Pierre+A+sociedade...é isso mesmo o que dizem as crônicas dos viajantes ou os trabalhos dos pesquisadores: não se pode imaginar a sociedade

guerrear. Uma vez as coisas terminadas, e qualquerque seja o resultado do combate, o chefe guerreirovolta a ser um chefe sem poder, e em nenhumahipótese o prestígio decorrente da vitória setransforma em autoridade. Tudo se passaprecisamente sobre essa separação mantida pelasociedade entre poder e prestígio, entre a glória deum guerreiro vencedor e o comando que lhe éproibido exercer. A fonte mais apta para saciar asede de prestígio de um guerreiro é a guerra. Aomesmo tempo, um chefe cujo prestígio está ligado àguerra não pode conservá-lo e reforçá-lo senão naguerra: é uma espécie de fuga impulsiva para afrente que o faz querer organizar sem cessarexpedições guerreiras das quais ele conta retirar osbenefícios (simbólicos) aferentes à vitória. Enquantoseu desejo de guerra corresponder à vontade geral

48

Page 51: A Sociedade contra o Estado - we.riseup.net+Pierre+A+sociedade...é isso mesmo o que dizem as crônicas dos viajantes ou os trabalhos dos pesquisadores: não se pode imaginar a sociedade

da tribo, em particular dos jovens para os quais aguerra é também o principal meio de adquirirprestígio, e enquanto a vontade do chefe nãoultrapassar a da sociedade, as relações habituaisentre o segundo e o primeiro manter-se-ãoinalteradas. Mas o risco de uma ultrapassagem dodesejo da sociedade pelo desejo do seu chefe, o riscopara ele de ir além do que deve, de sair do estreitolimite determinado à sua função, é permanente. Ochefe às vezes aceita corrê-lo, tenta impor à triboseu projeto individual tenta substituir o interessecoletivo por seu interesse pessoal. Alterando arelação normal que determina o líder como meio aserviço de um fim socialmente definido, ele tentafazer da sociedade o meio de realizar um fimpuramente privado: a tribo a serviço do chefe, e nãomais o chefe a serviço da tribo. Se isso funcionasse,

49

Page 52: A Sociedade contra o Estado - we.riseup.net+Pierre+A+sociedade...é isso mesmo o que dizem as crônicas dos viajantes ou os trabalhos dos pesquisadores: não se pode imaginar a sociedade

então teríamos aí a terra natal do poder político,como coerção e violência, teríamos a primeiraencarnação da figura mínima do Estado. Mas issonunca funciona.

No belíssimo relato dos vinte anos que passouentre os Yanomami,2 Helena Valero fala longamentede seu primeiro marido, o líder guerreiro Fousiwe.Sua história ilustra perfeitamente o destino da chefiaselvagem quando ela é, por força das coisas, levadaa transgredir a lei da sociedade primitiva que,verdadeiro lugar do poder, recusa cedê-lo, recusadelegá-lo. Fousiwe foi então reconhecido como"chefe" por sua tribo em virtude do prestígio queadquiriu como organizador e condutor de ataquesvitoriosos contra os grupos inimigos. Ele dirigeconsequentemente guerras desejadas por sua tribo,

2 Ettore Biocca, Yanoama (Paris: Pkm, 199?).

50

Page 53: A Sociedade contra o Estado - we.riseup.net+Pierre+A+sociedade...é isso mesmo o que dizem as crônicas dos viajantes ou os trabalhos dos pesquisadores: não se pode imaginar a sociedade

coloca à disposição de seu grupo sua competênciatécnica de homem de guerra, sua coragem, seudinamismo, e é o instrumento eficaz de suasociedade. Mas a infelicidade do guerreiro selvagemé que o prestígio adquirido na guerra se perderapidamente, se não se renovam constantemente asfontes. A tribo, para a qual o chefe é apenas “uminstrumento apto a realizar sua vontade”, esquecefacilmente as vitórias passadas do chefe. Para ele,nada é definitivamente adquirido e, se ele querdevolver às pessoas a memória tão facilmenteperdida de seu prestígio e de sua glória, não éapenas exaltando suas antigas façanhas que oconseguirá, mas antes suscitando a ocasião de novosfeitos bélicos. Um guerreiro não tem escolha: eleestá condenado a desejar a guerra. É exatamente aíque se dá o limite do consenso que o reconhece

51

Page 54: A Sociedade contra o Estado - we.riseup.net+Pierre+A+sociedade...é isso mesmo o que dizem as crônicas dos viajantes ou os trabalhos dos pesquisadores: não se pode imaginar a sociedade

como chefe. Se seu desejo de guerra coincide com odesejo de guerra da sociedade, esta continua asegui-lo. Mas se o desejo de guerra do chefe tenta seestabelecer sobre uma sociedade animada pelodesejo de paz - com efeito, nenhuma sociedadedeseja sempre guerrear -, então a relação entre ochefe e a tribo se modifica, o líder tenta utilizar asociedade como instrumento de seu objetivoindividual, como meio de sua meta pessoal. Ora, nãoo esqueçamos, o chefe primitivo é um chefe sempoder: como poderia ele impor a lei de seu desejo auma sociedade que o recusa? Ele é ao mesmo tempoprisioneiro de seu desejo de prestígio e de suaimpotência em realizá-lo. O que pode então ocorrer?O guerreiro está destinado à solidão, a esse combateduvidoso que só o conduz à morte. Tal foi o destinodo guerreiro sul-americano Fouiswe. Por ter querido

52

Page 55: A Sociedade contra o Estado - we.riseup.net+Pierre+A+sociedade...é isso mesmo o que dizem as crônicas dos viajantes ou os trabalhos dos pesquisadores: não se pode imaginar a sociedade

impor aos seus uma guerra que eles não desejavam,foi abandonado por sua tribo. Só restava lutarsozinho nessa guerra, e ele morreu crivado deflechas. A morte é o destino do guerreiro, pois asociedade primitiva é tal que não permite que avontade de poder substitua o desejo de prestígio. Ou,em outros termos, na sociedade primitiva, o chefe,como possibilidade de vontade de poder, estáantecipadamente condenado à morte. O poderpolítico isolado é impossível na sociedade primitiva;nela não há lugar, não há vazio que o Estado pudessepreencher. Menos trágica em sua conclusão, masmuito semelhante no seu desenvolvimento é ahistória de um outro líder indígena, infinitamentemais célebre que o obscuro guerreiro amazônico,uma vez que se trata do famoso chefe apache

53

Page 56: A Sociedade contra o Estado - we.riseup.net+Pierre+A+sociedade...é isso mesmo o que dizem as crônicas dos viajantes ou os trabalhos dos pesquisadores: não se pode imaginar a sociedade

Gerônimo. A leitura de suas Memórias3 , se bem quebastante futilmente recolhidas, se revela muitoinstrutiva. Gerônimo não passava de um jovemguerreiro como os outros quando os soldadosmexicanos atacaram o acampamento de sua tribo emassacraram mulheres e crianças. A família deGerônimo foi inteiramente exterminada. As diversastribos Apache se aliaram para se vingar dosassassinos e Gerônimo foi encarregado de conduzir ocombate. Sucesso completo para os Apache, queeliminaram a guarnição mexicana. O prestígioguerreiro de Gerônimo, principal artífice da vitória,foi imenso. E, desde esse momento, as coisasmudaram, alguma coisa se passou em Gerônimo,alguma coisa sucedeu. Pois se, para os Apache,satisfeitos com uma vitória que realizou

3 Mimoires de Géronimo (Paris: Maspero, 197:1.).

54

Page 57: A Sociedade contra o Estado - we.riseup.net+Pierre+A+sociedade...é isso mesmo o que dizem as crônicas dos viajantes ou os trabalhos dos pesquisadores: não se pode imaginar a sociedade

perfeitamente seu desejo de vingança, o caso estavade alguma forma acabado, para Gerônimo, osrumores eram outros: ele queria continuar a sevingar dos mexicanos e considerou insuficiente asangrenta derrota imposta aos soldados. Mas ele nãopôde, é claro, atacar sozinho as aldeias mexicanas.Tentou pois, convencer os seus a fazer uma novaexpedição. Inutilmente. A sociedade Apache, umavez realizado o objetivo coletivo – a vingança –aspirava ao repouso. O objetivo de Gerônimo foi,portanto, um objetivo individual para cuja realizaçãoele pretendeu arrastar a tribo. Ele quis fazer da triboo instrumento de seu desejo, ao passo que antes elefoi, em função de sua competência como guerreiro, oinstrumento da tribo. Evidentemente, os Apachejamais quiseram seguir Gerônimo, da mesma formaque os Yanomami se recusaram a seguir Fousiwe.

55

Page 58: A Sociedade contra o Estado - we.riseup.net+Pierre+A+sociedade...é isso mesmo o que dizem as crônicas dos viajantes ou os trabalhos dos pesquisadores: não se pode imaginar a sociedade

Quando muito o chefe Apache conseguia (por vezes,ao preço de mentiras) convencer alguns jovensávidos de glória e de saque. Para uma dessasexpedições, o exército de Gerônimo, heroico eridículo compunha-se de dois homens! Os Apache,que, em função das circunstâncias, aceitavam aliderança de Gerônimo em virtude da sua habilidadede combatente, sistematicamente lhe davam as costasquando ele queria fazer sua guerra pessoal. Gerônimofoi o último grande chefe de guerra norte-americano,que passou trinta anos de sua vida querendo "bancaro chefe" e não conseguiu...

A propriedade essencial (quer dizer, que toca aessência) da sociedade primitiva é exercer um poderabsoluto e completo sobre tudo que a compõe, éinterditar a autonomia de qualquer um dossubconjuntos que a constituem, é manter todos os

56

Page 59: A Sociedade contra o Estado - we.riseup.net+Pierre+A+sociedade...é isso mesmo o que dizem as crônicas dos viajantes ou os trabalhos dos pesquisadores: não se pode imaginar a sociedade

movimentos internos, conscientes e inconscientes,que alimentam a vida social nos limites e na direçãodesejados pela sociedade. A tribo manifesta, entreoutras (e pela violência se for necessário), suavontade de preservar essa ordem social primitiva,interditando a emergência de um poder políticoindividual, central e separado. Sociedade à qualnada escapa, que nada deixa sair de si mesma, poistodas as saídas estão fechadas. Sociedade que, porconseguinte, deveria eternamente se reproduzir semque nada de substancial a afete através do tempo.Há contudo um campo que, parece, escapa, aomenos em parte, ao controle da sociedade: é um"fluxo" ao qual ela só parece poder impor uma"codificação" imperfeita. Trata-se do domíniodemográfico, domínio regido por regras culturais,mas também por leis naturais, espaço de

57

Page 60: A Sociedade contra o Estado - we.riseup.net+Pierre+A+sociedade...é isso mesmo o que dizem as crônicas dos viajantes ou os trabalhos dos pesquisadores: não se pode imaginar a sociedade

desdobramento de uma vida enraizada tanto nosocial quanto no biológico, lugar de uma "máquina"que funciona talvez segundo uma mecânica própria eque estaria, em seguida, fora de alcance da empresasocial.

Sem sonhar em substituir um determinismoeconômico por um determinismo demográfico, eminscrever nas causas - o crescimento demográfico - anecessidade dos efeitos - transformação daorganização social - é entretanto necessárioconstatar, sobretudo na América, o peso sociológicodo número da população, a capacidade que possui oaumento das densidades de abalar - não dissemosdestruir a sociedade primitiva. Com efeito é bastanteprovável que uma condição fundamental daexistência da sociedade primitiva consista numafraqueza relativa de seu porte demográfico. As coisas

58

Page 61: A Sociedade contra o Estado - we.riseup.net+Pierre+A+sociedade...é isso mesmo o que dizem as crônicas dos viajantes ou os trabalhos dos pesquisadores: não se pode imaginar a sociedade

só podem funcionar segundo o modelo primitivo se apopulação é pouco numerosa. Ou, em outros termos,para que uma sociedade seja primitiva, é necessárioque ela seja pequena em número. E, de fato, o que seconstata no mundo dos selvagens é um extraordinárioesfacelamento das “nações”, tribos, sociedades emgrupos locais que tratam cuidadosamente deconservar sua autonomia no seio do conjunto do qualfazem parte, com o risco de concluir aliançasprovisórias com seus vizinhos “compatriotas”, se ascircunstâncias – guerreiras em particular – o exigem.Essa atomização do universo tribal é certamente ummeio eficaz de impedir a constituição de conjuntossociopolíticos que integram os grupos locais, e, maisalém um meio de proibir a emergência do Estado que,em sua essência, é unificador.

59

Page 62: A Sociedade contra o Estado - we.riseup.net+Pierre+A+sociedade...é isso mesmo o que dizem as crônicas dos viajantes ou os trabalhos dos pesquisadores: não se pode imaginar a sociedade

Ora, é perturbador constatar que os Tupi-Guarani parecem, na época que a Europa osdescobre, afastar-se sensivelmente do modeloprimitivo habitual, e em dois pomos essenciais: a taxade densidade demográfica de suas tribos ou gruposlocais ultrapassa claramente a das populaçõesvizinhas; por outro lado, o porte dos grupos locais nãotem medida comum com o das unidades sociopolíticasda Floresta Tropical. Evidentemente, as aldeiastupinambá, por exemplo, que reuniam vários milharesde habitantes, não eram cidades; mas deixavamigualmente de pertencer ao horizonte "clássico" dadimensão demográfica das sociedades vizinhas. Sobreessa base de expansão demográfica e deconcentração da população se destaca - fato tambéminabitual na América dos selvagens, ao menos na dosimpérios - a tendência evidente das chefias em obter

60

Page 63: A Sociedade contra o Estado - we.riseup.net+Pierre+A+sociedade...é isso mesmo o que dizem as crônicas dos viajantes ou os trabalhos dos pesquisadores: não se pode imaginar a sociedade

um poder desconhecido alhures. Os chefes tupi-guarani não eram certamente déspotas, mas nãoeram mais de modo algum chefes sem poder. Nãocabe aqui empreender a longa e complexa tarefa deanalisar a chefia entre os Tupi-Guarani. Baste-nossimplesmente revelar, num extremo da sociedade, seé possível dizer, o crescimento demográfico, e, nooutro, a lenta emergência do poder político. Semdúvida não cabe à etnologia (ou ao menos a elasozinha) responder às questões das causas daexpansão demográfica numa sociedade primitiva. Emcompensação, incumbe a essa disciplina a articulaçãodo demográfico e do político, a análise da força que oprimeiro exerce sobre o segundo através dosociológico.

Não cessamos, ao longo deste texto, deproclamar a impossibilidade interna do poder

61

Page 64: A Sociedade contra o Estado - we.riseup.net+Pierre+A+sociedade...é isso mesmo o que dizem as crônicas dos viajantes ou os trabalhos dos pesquisadores: não se pode imaginar a sociedade

político separado numa sociedade primitiva, aimpossibilidade de uma gênese do Estado a partir dointerior da sociedade primitiva. E eis que, ao queparece, evocamos nós mesmos, contraditoriamente,os Tupi-Guarani como um caso de sociedadeprimitiva onde começava a surgir o que poderia terpodido se tornar o Estado. Incontestavelmente sedesenvolvia, nessas sociedades, um processo, semdúvida, em curso já há muito tempo, de constituiçãode uma chefia cujo poder político não eranegligenciável, a ponto mesmo de os cronistasfranceses e portugueses da época não hesitarem ematribuir aos grandes chefes de federações de tribosos títulos de "reis de província” ou “régulos. Esseprocesso de transformação profunda da sociedadetupi-guarani teve uma interrupção brutal com achegada dos europeus. Quererá isso dizer que, se o

62

Page 65: A Sociedade contra o Estado - we.riseup.net+Pierre+A+sociedade...é isso mesmo o que dizem as crônicas dos viajantes ou os trabalhos dos pesquisadores: não se pode imaginar a sociedade

descobrimento do Novo Mundo tivesse sido adiado deum século por exemplo, uma formação estatal seriaimposta às tribos indígenas do litoral brasileiro?Sempre é fácil, e arriscado, reconstruir uma históriahipotética que nada viria desmentir. Mas, no presentecaso, pensamos poder responder com firmeza pelanegativa: não foi a chegada dos ocidentais que cortoua emergência possível do Estado entre os Tupi-Guarani, e sim um sobressalto da própria sociedadeenquanto sociedade primitiva, um sobressalto, umasublevação de alguma forma dirigida, se nãoexplicitamente contra as chefias, ao menos, por seusefeitos, destruidor do poder dos chefes. Queremosfalar desse estranho fenômeno que, desde os últimosdecênios do século XV, agitava as tribos tupi-guarania predicação inflamada de alguns homens que, degrupo em grupo, concitavam os índios a tudo

63

Page 66: A Sociedade contra o Estado - we.riseup.net+Pierre+A+sociedade...é isso mesmo o que dizem as crônicas dos viajantes ou os trabalhos dos pesquisadores: não se pode imaginar a sociedade

abandonar para se lançarem na procura da Terra semMal, do paraíso terrestre.

Chefia e linguagem estão, na sociedadeprimitiva, intrinsecamente ligadas; a palavra é oúnico poder concedido ao chefe: mais do que isso apalavra é para ele um dever. Mas há uma outrapalavra, um outro discurso, articulado não peloschefes, mas por esses homens que, nos séculos XV eXVI, arrastavam atrás de si milhares de índios emloucas migrações em busca da pátria dos deuses: éo discurso dos karai, é a palavra profética, palavravirulenta eminentemente subversiva que chama osíndios a empreender o que se deve reconhecercomo a destruição da sociedade. O apelo dosprofetas pra o abandono da terra má, isto é, dasociedade tal como ela era, para alcançar a Terrasem Mal, a sociedade da felicidade divina, implicava

64

Page 67: A Sociedade contra o Estado - we.riseup.net+Pierre+A+sociedade...é isso mesmo o que dizem as crônicas dos viajantes ou os trabalhos dos pesquisadores: não se pode imaginar a sociedade

a condenação à morte da estrutura da sociedade edo seu sistema de normas. Ora, a essa sociedade seimpunha cada vez mais fortemente a marca daautoridade dos chefes, o peso de seu poder políticonascente. Talvez então possamos dizer que, se osprofetas, surgidos no coração da sociedade,proclamavam mau o mundo em que os homensviviam, é porque eles revelavam a infelicidade, omal, nessa morte lenta à qual a emergência do podercondenava num prazo mais ou menos longo, asociedade tupi-guarani, como sociedade primitiva,como sociedade sem Estado. Habitados pelosentimento de que o antigo mundo selvagem tremiaem seu fundamento, perseguidos pelopressentimento de uma catástrofe sócio-cósmica, osprofetas decidiram que era preciso mudar o mundo,abandonar o dos homens e ganhar o dos deuses.

65

Page 68: A Sociedade contra o Estado - we.riseup.net+Pierre+A+sociedade...é isso mesmo o que dizem as crônicas dos viajantes ou os trabalhos dos pesquisadores: não se pode imaginar a sociedade

Palavra profética ainda viva, como otestemunham os textos "Profetas na selva" e "Do Umsem o Múltiplo". Os 3 ou 4 mil índios Guarani quesubsistem miseravelmente nas florestas do Paraguaigozam ainda da riqueza incomparável que os karailhes oferecem. Estes não são mais - duvidamos -condutores de tribos, como seus ancestrais do séculoXVI, não é mais possível a procura da Terra sem Mal.Mas a falta de ação parece ter permitido umaembriaguez do pensamento, um aprofundamentosempre mais tenso da reflexão sobre a infelicidadeda condição humana. E esse pensamento selvagemque quase cega por tanta luz, nos diz que o lugar denascimento do Mal, da fonte da infelicidade, é o Um.

Talvez seja preciso dizer um pouco mais e seperguntar o que o sábio guarani designa sob o nomede Um. Os temas favoritos do pensamento guarani

66

Page 69: A Sociedade contra o Estado - we.riseup.net+Pierre+A+sociedade...é isso mesmo o que dizem as crônicas dos viajantes ou os trabalhos dos pesquisadores: não se pode imaginar a sociedade

contemporâneo são os mesmos que inquietavam, hámais de quatro séculos, aqueles a quem já sechamava karai, os profetas. Por que o mundo é mau?O que podemos fazer para escapar ao mal? Questõesque ao cabo de gerações esses índios não cessam dese colocar: os karai de agora se obstinampateticamente em repetir o discurso dos profetas deoutros tempos. Estes sabiam, pois, que o Um é omal; eles o diziam de aldeia em aldeia, e as pessoasos seguiam na procura do Bem, na busca do não-Um.Temos, portanto, entre os Tupi-Guarani do tempo doDescobrimento, de um lado uma prática – a migraçãoreligiosa – inexplicável se não vemos nela a recusada via em que a chefia engajava a sociedade, arecusa do poder político isolado, a recusa do Estado;do outro, um discurso profético que identifica o Umcomo a raiz do Mal e afirma a possibilidade de

67

Page 70: A Sociedade contra o Estado - we.riseup.net+Pierre+A+sociedade...é isso mesmo o que dizem as crônicas dos viajantes ou os trabalhos dos pesquisadores: não se pode imaginar a sociedade

escapar-lhe. Em que condições é possível pensar oUm? É preciso que, de algum modo, sua presença,odiada ou desejada, seja visível. É por isso que o Umé o Estado. O profetismo tupi-guarani é a tentativaheróica de uma sociedade primitiva para abolir ainfelicidade na recusa radical do Um como essênciauniversal do Estado. Essa leitura "política" de umaconstatação metafísica deveria então incitar acolocar uma questão, talvez sacrílega: não sepoderia submeter a semelhante leitura toda ametafísica do Um? Que acontece ao Um como Bem,como objeto preferencial, que, desde sua aurora, ametafísica ocidental impõe ao desejo do homem?Detenhamo-nos nesta perturbadora evidência: opensamento dos profetas selvagens e aquele dosgregos antigos pensam a mesma coisa, o Um; mas oíndio Guarani diz que o Um é o Mal, ao passo que

68

Page 71: A Sociedade contra o Estado - we.riseup.net+Pierre+A+sociedade...é isso mesmo o que dizem as crônicas dos viajantes ou os trabalhos dos pesquisadores: não se pode imaginar a sociedade

Heráclito diz que ele é o Bem. Em que condições épossível pensar o Um como Bem? Voltemos, paraconcluir, ao mundo exemplar dos Tupi-Guarani. Eisuma sociedade primitiva que, atravessada, ameaçadapela irresistível ascensão dos chefes, suscita em simesma e libera forças, capazes, mesmo ao preço deum quase-suicídio coletivo, de fazer fracassar adinâmica da chefia, de impedir o movimento quepoderia levar à transformação dos chefes em reisportadores de leis. De um lado os chefes; do outro, econtra eles os profetas: tal é, traçado segundo suaslinhas essenciais, o quadro da sociedade tupi-guarani no final do século XV. E a "máquina"profética funcionava perfeitamente bem, uma vezque os karai eram capazes de se fazer seguir pormassas surpreendentes de índios fanatizados,

69

Page 72: A Sociedade contra o Estado - we.riseup.net+Pierre+A+sociedade...é isso mesmo o que dizem as crônicas dos viajantes ou os trabalhos dos pesquisadores: não se pode imaginar a sociedade

diríamos hoje, pela palavra desses homens, a pontode acompanhá-los até na morte.

O que quer isso dizer? Os profetas, armadosapenas de seus logos, podiam determinar uma"mobilização" dos índios, podiam realizar esta coisaimpossível na sociedade primitiva: unificar namigração religiosa a diversidade múltipla das tribos.Eles conseguiram realizar, de um só golpe, o"programa" dos chefes! Armadilha da história?Fatalidade que apesar de tudo consagra a própriasociedade primitiva à dependência? Não se sabe.Mas, em todo o mais poder do que os segundosdetinham. Então talvez seja preciso retificar a ideiada palavra como oposto da violência. Se o chefeselvagem é obrigado a um dever de palavrainocente, a sociedade primitiva pode também,evidentemente em condições determinadas, se voltar

70

Page 73: A Sociedade contra o Estado - we.riseup.net+Pierre+A+sociedade...é isso mesmo o que dizem as crônicas dos viajantes ou os trabalhos dos pesquisadores: não se pode imaginar a sociedade

para a escuta de uma outra palavra, esquecendo queessa palavra é dita como um comando: é a palavraprofética. No discurso dos profetas jaz talvez emgerme o discurso do poder, e sob os traços exaltadosdo condutor de homens que diz o desejo dos homensse dissimula talvez a figura silenciosa do Déspota.

Palavra profética, poder dessa palavra:teríamos nela o lugar originário do poder, o começodo Estado no Verbo? Profetas conquistadores dasalmas antes de serem senhores dos homens? Talvez.Mas, mesmo na experiência extrema do profetismo(porque sem dúvida a sociedade tupi-guarani tinhaatingido, por razões demográficas ou outras, oslimites extremos que determinam uma sociedadecomo sociedade primitiva), o que os selvagens nosmostram é o esforço permanente para impedir oschefes de serem chefes e a recusa da unificação; é o

71

Page 74: A Sociedade contra o Estado - we.riseup.net+Pierre+A+sociedade...é isso mesmo o que dizem as crônicas dos viajantes ou os trabalhos dos pesquisadores: não se pode imaginar a sociedade

trabalho de conjuração do Um, do Estado. A históriados povos que têm uma história é, diz-se, a história daluta de classes. A história dos povos sem história é,dir-se-á como ao menos tanta verdade, a história dasua luta contra o Estado.

72