A surdez

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Copyright © by Editora Mediação 1998N enhum a parte desta obra pode ser reproduzida ou duplicada sem autorização expressa do Editor.

Coordenação Editorial: Jussara ? m l ^ im iQ

Assistente Editorial: LuanaAquino uPivsrw!!?«.<• : "'o.ujéií 'K > Ama ?d í i C o ; ' " - .

Revisão de Texto: Rosa Suzana Ferreir;

Capa*: Bento de Abreu

Editoração: Gabriela Dias

* Ilustração da capa: im agem de M. C. Escher (A ut& reírato, 1943)1..." JDADOS INTERNACIONAIS DA CATALOGAÇÃO NA PUBLICAÇÃO (CIP)

S961 A surdez : um olhar sobre as diferenças / org. de Carlos Skliar. -Porto Alegre: Mediação, 2010 (4. ed. atual, ortog.)

192 p.

ISBN 978-85-87063-17-5

1. Educação Especial. 2. Educação de deficientes auditivos. 3. Surdos.4. Deficientes auditivos - política educacional. 5. Deficientes auditivos - Trabalho. 6. Deficientes auditivos - arte. 7. Deficientes auditivos - gênero. 8. Alteridade. I. Skliar, Carlos. II. Título.

CDU: 376.353

Bibliotecária: Maria Amazília Penna de Moraes Ferlini

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Printed in Brazil/Impresso no Brasil

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4. Os discursos sobre surdez, trabalho e educação e a formação do surdo trabalhador

Madalena Klein

O presente texto é motivado por constantes indagações referentes à minha prática profissional voltada à educação, trabalho e surdez, encontrando resso­nância em temas como a diferença, o multiculturalismo, as etnias, o gênero, que se constituem enquanto pauta privilegiada ao se pensar a educação de surdos.

Meu interesse em relação à surdez e aos surdos se deve ao trabalho junto a uma escola de surdos e o conseqüente envolvimento com os mo­vimentos surdos1. Sou assistente social e, desde minha entrada na escola, me sentia desafiada a participar de discussões que iam para além da prática do cotidiano escolar. Já no início da minha atuação ficou claro meu desco­nhecimento da realidade das pessoas surdas e de sua comunidade: esse era um desafio, que se colocava, cada vez mais urgente. Naquele momento, as perguntas que me inquietavam eram: quem é essa criança e adolescente surdos? Que forma é essa de se comunicar? Que língua é essa que me chega pelos olhos e não pelos ouvidos?

Procurei, então, participar de seminários, congressos, encontros, onde o tema fosse a surdez. Nestas oportunidades eram importantes os depoimen­tos de outros profissionais, dos familiares e, principalmente, dos próprios surdos. Esses momentos foram me proporcionando uma aproximação às diferentes questões ligadas à surdez, mas, principalmente, a certeza da ne­cessidade de um estudo mais permanente nessa área. Tanto nas pesquisas, quanto nos depoimentos, era possível perceber um tema em emergência, no qual diferentes abordagens vinham procurando sua legitimidade junto às escolas e às comunidades de surdos.

1 Movimentos surdos aqui são entendidos como movimentos sociais articulados a partir de aspirações, reivindicações, lutas das pessoas surdas no sentido do reconhecimento de sua língua, de sua cultura.

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A aproximação ao tema da surdez era, cotidianamente, tencionada com minha prática profissional, principalmente as intervenções junto aos programas de capacitação profissional, encaminhamentos e acompanhamen­tos, ao mercado de trabalho, de jovens surdos, provocando a inquietação em entender quais os discursos que vêm constituindo um modelo de surdo trabalhador a partir das práticas pedagógicas que envolvem programas de preparação do surdo para o trabalho.

A questão da surdez, em geral, e da educação dos surdos, em particular, vem sendo atravessada por diferentes discursos, muitos deles considerados “cientificamente” embasados e, assim, aceitos enquanto verdade. Ao me referir aos discursos, tomo por base as análises motivadas pela chamada

virada lingüística na teorização social, onde o sujeito modemo é descentrado do mundo social: a autonomia do sujeito e de sua consciência cede lugar a um mundo social constituído em anterioridade e precedentemente àquele sujeito, na linguagem e pela linguagem (Silva, 1994, p.248).

Os discursos exercem um papel central nas práticas sociais. O que importa não é saber o significado das palavras, mas como os discursos vão produzindo efeitos de poder e controle, fazendo com que as coisas sejam pensadas de um jeito e não de outro, como sendo a verdade.

Interessam-me, pois, uma aproximação das práticas pedagógicas das escolas e dos movimentos surdos organizados, procurando reconhecer as regularidades presentes nos discursos e que determinam uma suposta legitimidade, um certo sentido de verdade ao que se fala sobre quem é o surdo trabalhador. Segundo Foucault (1996), os discursos têm um caráter construtivo, no sentido em que são práticas que formam os objetos sobre os quais falam. Ao se falar do surdo trabalhador, vão se constituindo sujeitos que se entendem como tal.

Entendo, segundo a perspectiva que se inscreve em estudos da pós- modemidade, que os discursos sobre a surdez e os surdos não se apresen­tam de forma homogênea. Eles estão inscritos entre diversas formações discursivas, constituídas a partir de diferentes práticas ligadas aos campos da medicina, da pedagogia, da lingüística, entre outros. Esses saberes articulam-se através de jogos de poder que devem ser entendidos em sua historicidade, levando em conta as suas marcas institucionais, como também

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a posição e a situação dos sujeitos que falam nesses discursos (Fischer, 1995). Como disse Foucault (1980, p. 136), em “Arqueologia do saber”, as práticas discursivas referem-se a “um conjunto de regras anônimas, histó­ricas, sempre determinadas no tempo e no espaço, que definiram em uma época dada, e para uma área social, econômica, geográfica ou lingüística dada, as condições de exercício da função enunciativa”.

Desde a segunda metade do século passado, persistindo até os dias atuais, a hegemonia de discursos ligando a surdez à questão médica, fez predominar uma abordagem clínico-terapêutica dentro dos projetos educa­cionais. A escola, desta forma, para além do espaço pedagógico, se apresenta enquanto proposta clínica de atendimento aos alunos surdos.

Autores como Sanchez (1990) e Skliar (1997a), procurando con- textualizar historicamente a educação de surdos, fazem referência a essa perspectiva clínico-terapêutica que tem predominado na educação e nas escolas, interferindo diretamente nos projetos pedagógicos. Segundo Skliar (1997b, p.248),

as ideias dominantes nos últimos cem anos são um claro testemunho de um sentido comum segundo o qual os surdos correspondem, encaixam-se e adaptam-se com naturalidade a um modelo clínico-terapêutico, versão amplificada e exagerada da pedagogia corretiva de princípios do século XX e vigentes até o momento.

Ainda hoje, podemos perceber, nos discursos que circulam pelas es­colas de surdos, o que Sanchez (1990), inspirando-se em Foucault, chama de pedagogia ortopédica, onde, muito mais que educar, se pretende corrigir. Práticas voltadas a fazer falar, a se adaptar ao uso de um aparelho auditivo, são exemplos de reabilitação que se estendem para além do espaço da escola e chegam também aos locais de trabalho, onde os surdos devem se adequar às exigências do mercado que busca a eficiência e a lucratividade, dentro de uma lógica de normalização dos sujeitos.

Aproximando-me das práticas das escolas e dos movimentos surdos, pretendo evidenciar as relações entre os diferentes discursos que se inscre­vem enquanto formação discursiva sobre a surdez, os surdos e o trabalho. Nessa tentativa, procuro perceber as compatibilidades e incompatibilida­des, estabelecendo as regularidades que se inscrevem entre os discursos (Fischer, 1995).

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Machado (1982) argumenta que, para Foucault, não interessa se o discurso tem uma lógica interna. O ponto de unidade do discurso, se assim se pode falar, é a dispersão: a regularidade é a dispersão. Para Foucault, a análise do discurso vai em busca de regularidades que estão dentro de uma “nuvem de enunciados”2. Assim, os discursos não se organizam como tra­tados, mas sim em fragmentos, aforismos, máximas, ensaios (Veiga-Neto, 1996b). Como disse o filósofo francês, “os discursos devem ser tratados como práticas descontínuas, que se cruzam por vezes, mas também se ignoram ou se excluem” (Foucault, 1996, p.52).

Interessante, nessa perspectiva, é a ideia de campos discursivos, consti­tuídos a partir de diferentes formações discursivas, por onde a subjetividade vai sendo formada. Como bem explica Popkewitz (1995, p.203):

A importância da ideia de campo discursivo (o que Foucault chama de “região”) está no fato de que ela nos permite focalizar a forma como os discursos histo­ricamente construídos em locais fisicamente diferentes juntam-se para formar uma plataforma a partir da qual a individualidade é definida. A individualidade parece transcender eventos e ancoragens geográficas sociais particulares.

Campos discursivos não dizem respeito a um contexto onde os dis­cursos se efetivam, ou seja, não dizem respeito ao espaço físico onde eles se produzem. Referem-se, sim, aos discursos que determinam regras, que instituem padrões institucionais, que classificam, a partir de um espaço epistemológico particular, onde são formadas subjetividades e onde há desdobramento de poder.

Pensando em diferentes discursos, envolvidos nos campos discursi­vos, onde sujeitos surdos trabalhadores são formados, pretendo apresentar, entre tantos, alguns daqueles que considero estarem em jogo na construção desse campo que se refere à surdez, à educação e ao trabalho. Esses dis­cursos estão ligados, de forma privilegiada, a uma lógica da deficiência a

2 A partir de uma perspectiva foucaultiana, referindo-se à arqueologia, Díaz (1993) en­tende que enunciado é uma palavra, uma frase ou proposição, podendo, no entanto, ser um deles. Não precisa ter verbo e sujeito. Mas não existe solto - está sempre amarrado a outros enunciados. A expressão “nuvem de enunciados” traz a ideia de algo não rígido, porém “flutuando” entre tantos outros enunciados. Popkewtiz (1995), seguindo a mesma perspectiva, diz que o mundo é constituído a partir das práticas discursivas e não discur­sivas, quando se falam delas: não apenas dando-lhes nome, mas falando delas enquanto enunciado (discurso legitimado).

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ser superada, ao sentido libertador do trabalho, levando o sujeito surdo à conquista da autonomia, como também à necessidade, inevitável segundo alguns discursos, de integração dos sujeitos surdos com uma “sociedade ouvinte”. Outros discursos encontram-se envolvidos nesse campo discur­sivo, porém, para fins desse artigo, considero necessária uma delimitação. Esses são discursos que permeiam as práticas institucionais, interferindo em diferentes instâncias da vida das pessoas surdas, incluindo, também, a formação do sujeito trabalhador.

A escola de surdos e o trabalho: um tema há muito presente

As escolas de surdos podem ser consideradas um lócus privilegiado de cruzamentos de discursos em relação ao surdo e ao trabalho, e vêm atuando de forma direta no que podemos chamar de formação de surdos trabalhadores. Essa formação não se resume à aquisição de conhecimentos considerados úteis e necessários ao exercício de uma profissão, mas atua diretamente no que se refere a um disciplinamento do sujeito para uma me­lhor adequação às necessidades do mundo do trabalho. Wrigley (1996), em seu livro Politics o f the Deafness, ao fazer uma genealogia das identidades surdas, se refere à educação de surdos centrada, quase que exclusivamente, no treinamento comportamental a fim de produzir surdos aceitáveis para a sociedade “dos que ouvem”.

Verela (1995) apresenta um esboço teórico interessante, na tentativa de compreender as transformações que ocorreram nas instituições educacionais desde o Renascimento, onde a pedagogização dos saberes fez surgir a escola como a entendemos atualmente, e onde o disciplinamento dos saberes acom­panha também um disciplinamento dos corpos. Diz Varela (1995, p.90) que

o Estado, a partir dos postulados da economia política, em relação com o desen­volvimento das forças produtivas e com a necessidade de governar os sujeitos e a população, empreende uma ampla reorganização dos saberes servindo-se de diferen­tes procedimentos. E, assim, frente a saberes plurais, polimorfos, locais, diferentes segundo as regiões, em função dos diferentes espaços e categorias sociais, o Estado, através de suas instituições e agentes legitimados (entre eles, desempenharam um papel destacado os professores) pôs em ação toda uma série de dispositivos com a finalidade de se apropriar dos saberes, de discipliná-los e de pô-los a seu serviço.

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O surgimento da escola moderna e o início da industrialização compar­tilham da organização dos saberes que vão dando sustentação a uma nova ordem nas relações sociais e econômicas. Nas escolas de surdos, podemos encontrar indícios de uma relação entre os objetivos das escolas e as neces­sidades emergentes de sujeitos preparados para ingressar nas fábricas. Um exemplo disso está numa publicação do Instituto Nacional de Jovens Surdos de Paris3, comemorativa aos seus 200 anos de fundação, onde, entre fotos e gravuras, vão sendo contadas situações da rotina vivida por seus alunos. Pude ver, nesses relatos, que a questão do trabalho era um dos objetivos da escola. Nas primeiras páginas da publicação, está o desenho de um brasão, lembrando luzes que se espalham, sob uma base de ramos de oliveira, onde estão inscritas as palavras-chave do Sistema de Ensino de Surdos-Mudos4: religião, fala artificial, língua escrita, arte de desenho, profissões, ginástica, linguagem de ação e moral, todas elas cercando uma outra palavra que está no centro - dactiologia. A presença da palavra profissão dentro do que era considerado sistema de ensino, pode demonstrar o quanto a questão do trabalho não era considerada como algo fora da escola, mas, fazendo parte do seu conjunto de objetivos.

Na mesma publicação, está uma seção intitulada “Corpo e traba­lho”, que trata especificamente do tema do trabalho dentro da instituição. Nela são especificadas as habilidades profissionais a que tinham acesso os alunos surdos do Instituto: encadernação, artes plásticas, confecção, marcenaria, artes gráficas. O sentido da aprendizagem dos ofícios era possibilitar ao aluno surdo uma atividade que evitasse que ele fosse, no futuro, uma carga para a família, para a comunidade, ou para asso­ciações de caridade. Trata-se de um interessante relato da rotina diária dos alunos desde o despertar, pela manhã, até a hora de dormir. Pouco

3 O Instituto Nacional de Jovens Surdos de Paris é considerado pelos historiadores da educação de surdos como a primeira escola pública para surdos, fundada por Abade de 1’Epée no final do século XVIII.4 No original: Système d ’enseignement des Sourds-Muets. Surdo-mudo era o termo utili­zado na época para se referir às pessoas surdas. Essa designação ainda persiste no senso comum. A comunidade surda organizada vem procurando alterar esta designação: eles querem ser chamados de surdos. Para isso, são realizadas campanhas, impressos cartazes no sentido de riscar a palavra “mudo”. Mudo é quem não pode falar: a surdez não inter­fere nos órgãos da fala. Para os surdos, a forma natural de se comunicarem é através do uso da língua de sinais, a partir dela, os surdos se comunicam, interagem, expressam seus sentimentos, suas opiniões.

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se fala sobre as oficinas. Referências a elas são encontradas apenas nos relatos dos momentos em que os grupos de alunos para lá se dirigiam. O que chama a atenção é o disciplinamento narrado, tanto em relação aos horários, quanto à formalidade de cada atividade. Fica evidenciado que, para além do aprendizado de um ofício, os jovens alunos surdos vinham sendo disciplinados a uma rotina que atendia ao ritmo das fábricas que surgiam na época.

A socióloga dinamarquesa Jonna Widell (1992) faz um relato histó­rico da vida dos surdos da Dinamarca, apresentando uma relação bastante próxima entre a escola e a associação de surdos durante o período de 1866 - 1893, onde o estímulo e envolvimento dos professores era considerado relevante. Os adultos surdos eram estimulados a se tomarem professores da escola e, também, “a escola ainda contribuía de uma grande forma para a integração da comunidade de surdos no mercado de trabalho” (idem, p.23).

Em outro momento do mesmo texto, relatando uma fase da história dos surdos, a qual a autora chama de fase de isolamento, a escola se distingue por ensinar às crianças a fala e a disciplina, consideradas necessárias para a inserção no mercado de trabalho. Está aí, também, um entendimento da surdez enquanto algo a ser reabilitado, sendo esse o discurso hegemônico nas escolas do final do século e ainda presente, mesmo em décadas mais recentes, em diferentes escolas para surdos.

Em nossos dias, encontramos diversos programas de informação e orientação profissional organizados nas escolas de surdos. A realização desse tipo de programa é justificado como “parte integrante do processo de reabilitação, possibilitando a sua (do surdo) plena integração à sociedade” (Strobel, 1995, p.73)5.

O sentido de reabilitação pode ser facilmente encontrado em diferentes projetos direcionados às questões do trabalho nas escolas de surdos. Isso pode ser associado à concepção clínica, já referida anteriormente, e que entende o surdo enquanto sujeito deficiente, a partir da falta de audição, e que, segundo Padden e Humphries (1988), acabam por determinar a forma de interpretar todos os outros aspectos de suas vidas.

5 Programa de Informação e Orientação Profissional. In: STROBEL, K. L; DIAS, S. M.S. Surdez: abordagem geral. Curitiba: APTA, 1995, p.73-77. Essa publicação é distri­buída pela FENEIS.

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É interessante pensar que, se a escola de surdos atende a crianças e jovens que ainda não foram inseridos no mercado de trabalho, é estranho, e até equivocado, falar em reabilitação, como se fosse necessário reparar algo ou alguém que já falhou.

Como atividade diretamente ligada à capacitação para o trabalho, muitas escolas de surdos organizam, dentro de seu próprio espaço físico, a exemplo do INJS, oficinas de aprendizagem de ofícios.

Diferentes escolas da América Latina têm explicitada, entre seus ob­jetivos, a preocupação com a preparação para o trabalho, ou o treinamento profissional. Vários projetos são pensados e executados por essas escolas, encontros e seminários são organizados, procurando alternativas para uma maior eficácia dessas ações.

Em 1993, durante um Seminário sobre a Integração do Surdo6, um dos temas discutidos foi a educação para o trabalho. Dos projetos apresentados durante esse evento, vários desenvolvem atividades de oficinas de treina­mento profissional, com maior frequência em áreas como marcenaria, corte e costura, cabeleireiro e cerâmica, bem como, mas com menor frequência, em áreas como técnico em prótese dentária, técnico eletricista, serigrafia, reparador de calçados. Essas oficinas, na grande maioria, são montadas a partir das possibilidades financeiras para sua manutenção, como também, através da escolha da direção das escolas sobre o que se entende por melhor profissão para os surdos.

Existem exemplos de escolhas de oficinas que não levam em conta nem mesmo as possibilidades de exercício futuro de uma profissão que dê condições de sobrevivência aos jovens surdos. Exemplos disso são projetos de escolas de pequenas cidades no interior, onde a média da escolaridade dos alunos surdos não passa das quatro primeiras séries do ensino funda­mental, investindo em cursos de qualificação profissional em informática. Não estou, aqui, me referindo a projetos que se utilizam dos computadores como instrumento pedagógico, mas sim àqueles que têm o objetivo claro de preparar para o trabalho com computadores. Cabe, ainda, assinalar

6 Seminário Internacional de Estimulação Precoce e Integração do Surdo, realizado em São Paulo, entre os dias 24 e 28 de agosto de 1993, promovido pela Christoffel Blindenmission (CBM), entidade alemã que financia projetos de educação para surdos e cegos em várias partes do mundo e que contou com a participação de 21 entidades ligadas à educação de surdos na América Latina e Caribe.

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que cursos ligados à informática foram implantados em uma época de crescente interesse por computadores, onde grandes empresas e bancos necessitavam de mão de obra específica para a digitação. Por outro lado, assistimos, atualmente, a uma mudança nesse quadro, onde a cada dia são dispensados grupos de jovens digitadores, devido aos avanços nessa área, onde os autosserviços vêm tomando conta do mercado.

Importante assinalar que essas escolhas de atividades profissionais são, em grande parte, motivadas pela crença de muitos pais e educadores de que a informática, por exemplo, é a atividade ideal para os surdos. Outros projetos privilegiam ofícios que não exigem escolaridade mais avançada, mas que possibilitam um trabalho mais individual, sem a necessidade de contato freqüente com o público7.

Nos exemplos até aqui apresentados, quero assinalar o quanto as escolhas realizadas pelas escolas, tanto nas oficinas quanto em cursos pro­fissionalizantes, levam em conta o que os grupos de pessoas consideram adequado para os surdos: há uma quase unanimidade entre educadores de surdos em reconhecerem certas atividades como áreas naturais para os surdos, como, por exemplo, a informática, o desenho, a marcenaria, pois consideram essas atividades que exigem atenção, concentração - atributos divulgados como próprios das pessoas surdas.

Serviços como a orientação profissional e o encaminhamento para o emprego se organizam cada vez com maior frequência nas escolas de surdos. Profissionais como assistentes sociais, psicólogos, orientadores educacionais, ocupam esse espaço, desenvolvendo as mais variadas ativi­dades desde palestras, entrevistas, visitas, e até mesmo utilizando testes psicológicos para medir aptidões.

O compromisso assumido por essas escolas em garantir ao seu aluno surdo um emprego, comprovando a eficiência do processo educacional, leva as mesmas a se constituírem, poderíamos dizer, em agências de emprego. Alunos surdos e seus familiares vão até esses profissionais na certeza de

7 Tanto em contatos formais, quanto informais com professores das escolas de surdos, a referência a atividades profissionais, em sua maioria, vinha acompanhada desses requi­sitos. Considero oportuno assinalar que grande parte das escolas de surdos da América Latina proporciona escolaridade de séries iniciais (correspondendo às quatro primeiras séries no sistema brasileiro). Os surdos que pretendem continuar os estudos inserem-se em escolas em regime de integração, recebendo atendimento paralelo em entidades com programas de reforço escolar e de preparação para o trabalho.

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os mesmos atenderem satisfatoriamente seus anseios por um emprego e a possível independência financeira. Wrigley (1996) argumenta que surdez e pobreza se conectam de forma muito imediata. As dificuldades, vividas por grande parte das famílias, ligadas à falta de emprego, ao subemprego e à pobreza, resultam em um difícil acesso à informação adequada e aos processos de tomada de decisão, fazendo com que alunos surdos e fami­liares procurem, nas escolas e nos movimentos de surdos, apoio e auxílio. A legitimidade dessas práticas encontra seu respaldo no “conhecimento científico” que, se supõe, têm esses profissionais sobre a surdez e, também, sobre os mecanismos de inserção social.

Vimos, assim, que a questão do trabalho vem perpassando os espaços escolares desde a constituição da escola moderna. Nas últimas décadas, isso se mostrou cada vez mais evidente, principalmente nas décadas de 60 e 70 do século passado, quando a teoria do capital humano “colocou de forma precisa a unidirecional a relação entre educação e desenvolvimento econômico no contexto histórico do capitalismo” (Gentili, 1995, p. 193). A promessa de que através da educação se conseguiria ascender a um lugar de trabalho alimentou diferentes projetos educacionais.

Vivemos, atualmente, uma transformação desse discurso integrador. Gentili (1997) desenvolve uma argumentação sobre “a desintegração da promessa integradora”, onde a lógica do pleno emprego vem sendo substituída, nesses tempos neoliberais, pela lógica da “empregabilidade”, a partir do desenvolvimento das competências individuais. A escola de surdos, inserida nesse contexto, vê, à sua frente, desafios relacionados a seus objetivos e também à operacionalização de seu projeto pedagógico.

Associações e clubes de surdos promovendo ações ligadas ao mundo do trabalho: o surdo se narrando enquanto trabalhador

A maioria da comunidade surda consistia de trabalhadores especializados, e era característico do período que o objetivo de associação surda fosse semelhante ao objetivo das associações de trabalhadores. (...) Além disso, pretendiam encon­trar emprego para trabalhadores especializados que estivessem desempregados (Widell, 1992, p.21).

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A citação anterior refere-se ao relato que a socióloga dinamarquesa faz sobre as fases históricas da cultura surda, mais especificamente, ao surgimento das associações de surdos no período entre 1866 e 1893. No texto, são várias as referências aos objetivos e realizações dessas associa­ções, sendo que, entre ações de lazer, recreação e assistência, também a preocupação com o trabalho era privilegiada. A autora, inclusive, se refere à primeira associação de seu país como sendo formada a partir do encontro de artesãos, motivados por iniciativas semelhantes ocorridas em outros países.

Os registros encontrados fazem referência à situação dos surdos da época. Grande parte desses sujeitos se constituíam em mão de obra mal escolarizada, ocorrendo exploração por parte das indústrias. As associações, então, tinham um papel fundamental no treinamento desses surdos, como também nas negociações, no sentido de conquistas legais de garantia à educação e ao trabalho.

Widell segue seu relato, dizendo que nas primeiras décadas desse século “é graças à socialização terciária na associação dos surdos-mudos que a comunidade surda aprendeu a ascender socialmente no emprego. Era na associação que as soluções para problemas como afrontas, sindicatos, operários, etc. eram discutidos” (1992, p.36).

A preocupação com o trabalho esteve sempre associada com a possi­bilidade de independência, de autonomia das pessoas surdas. Nas últimas décadas, principalmente após o Ano Internacional dos Deficientes, promo­vido pela ONU, no ano de 1981, a questão do trabalho foi inserida num discurso de conquista de cidadania.

As associações de surdos, juntamente com o movimento de pessoas portadoras de deficiência8 (cegos, deficientes físicos, mentais) iniciaram campanhas intensas no sentido de propagar os direitos dos cidadãos com

8 O tem o Pessoas Portadoras de Deficiência (PPD) é utilizado pela grande maioria de as­sociações de cegos, deficientes físicos, deficientes mentais, como também pelos surdos. Se­tores ligados à educação, como secretarias de governos estaduais e municipais, bem como o Ministério da Educação utilizam o termo “pessoas com necessidades especiais”. Por ocasião da II Conferência Estadual de Assistência Social do Rio Grande do Sul, realizada entre os dias 16 e 18 de outubro de 1995, em Porto Alegre, RS, houve calorosa discussão em relação ao tem o a ser utilizado nas diretrizes da Assistência Social do Estado. O representante de uma das Associações de Cegos reivindicou o tem o PPD, uma vez que, segundo ele, neces­sidades educativas especiais todas crianças e adolescentes necessitariam, escapando, assim, do tem o as especificidades dos cegos, surdos, paraplégicos. Utilizo, então, nessa proposta, a fom a como esse sujeito se nomeou, a ele e aos que ele representava naquele evento.

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deficiência: direitos a atendimentos qualificados, à educação, ao lazer, à profissionalização, ao emprego.

As ações reivindicatórias por leis que garantem o acesso ao traba­lho são prioridades das associações, e isso ocorre de forma intensiva em diferentes países. No Brasil, são conquistas desses movimentos a Lei de Reserva de Mercado (Constituição Federal, art.37, inciso VIII) e a Instrução Normativa n.5 de 30/08/91 do Ministério do Trabalho e da Previdência, que institui o programa de treinamento profissional junto às empresas. Essa Instrução Normativa refere-se ao trabalho para pessoas portadoras de deficiência que oferece, nas indústrias, atividades com fins terapêuticos, de reabilitação, e que ocorre sob a tutela de entidades que tenham o objetivo de assistir o deficiente.

Essas leis partem de uma concepção de sujeito a partir de sua deficiência, e as ações daí efetivadas remetem à reabilitação e à normalização. Esse é um ponto que considero importante na discussão sobre a educação dos surdos e o trabalho, uma vez que encontramos, tanto nas escolas, quanto nas associa­ções, discursos que procuram demonstrar as competências, a eficiência das pessoas surdas. Discursos como esses são inseridos numa lógica neoliberal e, utilizados por esses grupos, reinscrevem-se na lógica da deficiência.

Padden (1993)9, em entrevista para uma revista, fala sobre as reações das pessoas surdas ao termo descapacitado ou deficiente. Segundo ela, esse termo tem uma finalidade política nos Estados Unidos, significando dinheiro de fundos para apoiar as pessoas surdas. Fundos para que as pes­soas tenham acesso a telefone, canais de TV, etc. Assim, o termo passa a ter uma conotação útil e desejada. Porém, quando o caso é referir-se à língua de sinais e à cultura das pessoas surdas, há uma compreensão equivocada no uso desse termo.

Também encontramos elementos para essa discussão em Wrigley (1996), onde o autor comenta as incertezas entre os líderes surdos sobre as estratégias no uso de termos que os identificam como incapacitados. A tensão entre esses diferentes termos é uma constante nos pronunciamentos encontrados em documentos, reportagens e materiais de divulgação vei­culados pelas associações de surdos em nosso país. E muito comum o uso

9 Entrevista dada por Carol Padden ao WFD News (Magazine o f the World Federation o f the D eaf — Março 1993 - p.5-8).

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do termo deficiente com a letra d riscada, evidenciando uma tentativa de mudança de concepção. Mesmo fazendo referência a uma visão binárias, onde um elemento tem sua comprovação a partir da existência/convivên­cia com outro termo opositor que definiria a norma. Skliar (1997b, p.263) propõe o abandono das grandes narrativas e dos contrastes binários na educação de surdos.

A questão das oposições binárias na educação dos surdos - normalidade/anorma­lidade, surdo/ouvinte, maioria (ouvinte)/minoria (surda), oralidade/gestualidade, etc. - aparece entretanto hoje como um dos fatores de risco mais nocivos na aná­lise da realidade educacional relativa aos surdos e cujo enraizamento ideológico parece tão inevitável como isuperável.

Poderíamos incluir, ainda, a oposição eficiente/deficiente que, nas relações de trabalho, apresentam-se enquanto discursividade predominante. Ao procurar riscar a letra d, acaba-se por restituir, ou mesmo reinscrever, o discurso hegemônico da deficiência. Dentro dessa argumentação, Davis10 (apud Silva, 1997) e também Wrigley (1996) fazem referência a uma dis­tinção comum na língua inglesa aos termos surdo (fato físico da surdez) e Surdo (surdos enquanto grupo cultural e comunidade lingüística). Davis (apud Silva, 1997, p.9), embora reconhecendo essa distinção como estra­tégia política, ressalta que “paradoxalmente, ao admitir que, afinal, existe um núcleo físico que pode ser separado de sua definição social e cultural, essa operação acaba por restituir aos discursos dominantes sobre a surdez parte de sua eficácia retórica” . A eficácia desses discursos dominantes está na normalização, no controle, no que Skliar (1997b, p.259) denomina de ouvintismo dos surdos a partir das práticas pedagógicas.

Quero argumentar aqui que não existe o discurso dos ouvintes, po­derosos, contrapondo-se ao discurso de surdos. Tanto nas escolas quanto nos movimentos surdos, percebemos falas e práticas relacionadas a uma deficiência a ser superada, sendo que um dos momentos privilegiados para isso é o ambiente de trabalho.

10 O livro Enforcing normalcy: disability, deafness and the body (Nova York, Verso, 1995), escrito por Lennard J. Davis, é utilizado nessa proposta a partir do artigo “A política e a epistemologia da normalização do corpo, de Tomaz Tadeu da Silva, publicado na Revista ESPAÇO, INES/RJ.

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Num cartaz distribuído pela Federação Nacional de Educação e Inte­gração dos Surdos FENEIS, há uma chamada nesses termos: “Procuram-se empresários que exijam dedicação e eficiência”. Entre desenhos de surdos desempenhando funções de digitadores e de operadores de máquina de xérox, está o seguinte texto:

O trabalho é o principal meio de integração do homem na sociedade. É através deste que o indivíduo comprova sua capacidade igualitária de produção. Com os convênios firmados pela Federação Nacional de Educação e Integração de Surdos (FENEIS), o surdo vem conquistando um espaço maior e demonstrando seu potencial em várias áreas, aumentando assim o interesse das grandes em­presas. LUCRE INVESTINDO NO SEU PESSOAL.

As práticas das escolas e dos movimentos surdos, no sentido de enca­minhamentos ao trabalho, muitas vezes se aproximam de uma tutela. Uma instituição, um grupo, toma para si o encargo de “lutar por” condições de reconhecimento da competência dos surdos, dizendo o que ele é. Em uma reportagem sob o título “Surdos x mercado de trabalho” está dito que “esse trabalho realizado pela FENEIS faz com que muitas empresas passem a ver o surdo como uma pessoa capaz de trabalhar, produzir, enfim, ser útil à sociedade” (Braga, 1992, p.4).

Muitas associações de surdos somam esforços com entidades repre­sentativas de pessoas portadoras de deficiência tais como cegos, paraplé­gicos, entre outros. Realizam ações conjuntas junto aos governos e aos empresários, procurando a garantia de seus direitos. Dentro do registro das “deficiências eficientes” encontramos uma carta aberta aos empresários de Campo Grande, MS, divulgada pela Secretaria de Educação daquele estado em conjunto com um centro de atendimento aos surdos, cuja diretora, na ocasião, era uma professora surda.

E normal que você empresário sinta algumas dúvidas em dar emprego a uma pessoa portadora de deficiência. Talvez nunca tenha pensado nisso.Mas isso pode ser uma vantagem. Porque ele possui a motivação, dedicação e força de vontade necessárias para aprender uma profissão.Acreditar nas capacidades profissionais de uma pessoa portadora de deficiência é dar-lhe a oportunidade de as poder comprovar.

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A Secretaria de Educação desenvolve um projeto de integração do portador de deficiência no mercado de trabalho, o qual visa ao treinamento dentro da Empresa, nas atividades compatíveis às suas habilidades e interesses.Para a realização deste projeto, é firmado um convênio entre Secretaria de Es­tado (sic) de Educação e o empresário, onde compete à Secretaria de Estado de Educaçâo/CEADA o encaminhamento, a supervisão e o fornecimento dos meios necessários à aprendizagem e à realização do trabalho.

Poderíamos, a partir desse texto, pensar que o empresário que participa desse programa tem todas as garantias de receber em sua empresa um tra­balhador eficiente, a partir das intervenções de instituições especializadas para esse fim. Assim, através de programas como esse, sob certa orientação, é possível transformar a deficiência em competência.

Walkerdine (1995), explicitando o pensamento de Foucault acerca da regulação dos sujeitos, se refere à abordagem científica em relação ao raciocínio das crianças, falando sobre as estratégias de governo no sentido de transformação dos desvios em características desejáveis.

Isto é parte central da modema estratégia de govemo na qual um cidadão gover- nável, obediente e cumpridor das leis deve ser produzido por técnicas que não ne­cessariamente técnicas de supressão direta, mas que transformam as características desejáveis em normais e naturais. Todos os desvios destas normas aparecem, pois, como patologias medicalizáveis a serem corrigidas (Walkerdine, 1995, p.210).

Os empresários não precisam se preocupar com o desvio, com a de­ficiência, uma vez que o programa faz o acompanhamento, a supervisão e o fornecimento dos meios necessários à aprendizagem e à realização do trabalho (Mato Grosso, s/d, p. 1). O programa incorpora-se às “tecnologias” no sentido da regulação e da produção de uma “verdade” sobre um surdo adequado às exigências do mercado de trabalho.

Considerações finais

O tema da surdez vem, ao longo da história, sendo explicado, funda­mentalmente, por médicos, linguistas, psicólogos, a partir de uma lógica que o enquadra numa questão médica, terapêutica: surdez enquanto falta e deficiência. A educação dos surdos, por muito tempo ligada a essa matriz

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particular do saber, vem se desenvolvendo através de diferentes projetos educacionais que se inscrevem numa tentativa de normalização/ouvintiza- ção dos sujeitos surdos.

Compreendo, como Wrigley (1996, p.20) que a surdez é um proble­ma epistemológico, entendendo epistemologia11 em seu sentido político, nas suas relações de saber/poder envolvidos nos discursos que falam dos sujeitos surdos. Ao falar, principalmente a partir de um registro privilegia­do (modelo médico, por exemplo), ocorrem “exclusões de uma forma de conhecimento, de uma modalidade de comunicação e de uma identidade social e humana”. Pensar a surdez sob o foco da epistemologia requer um descentramento do sujeito surdo, passando a perguntar sobre as práticas discursivas e não discursivas que constituem esse sujeito. Essas práticas se dão no espaços das escolas, como também junto aos movimentos surdos.

Segundo Popkewitz (apud Silva 1994) e Veiga-Neto (1995), os discursos, ordenados de uma certa maneira, moldam o mundo de tal forma que não há sentido fora desse registro. Numa perspectiva pós-estruturalista, “todo saber é colocado sob suspeita, todo saber é visto como relação social” (Silva, 1997).

Esse texto não tem a pretensão de enquadrar as escolas e os movimentos surdos dentro e uma escala de valor entre o certo e o errado. Eles não estão em julgamento. Também não se trata de buscar o discurso verdadeiro sobre a surdez e os surdos. Se há algum mérito na presente proposição, espero que seja, simplesmente, a possibilidade de “mexer” com as essencialidades que vêm naturalizando um sujeito surdo trabalhador. Os discursos resultantes desse olhar investigativo será apenas mais um entre tantos discursos, porém tentando ver de outros lugares, ensaiando outras possibilidades de se pensar sobre esses sujeitos surdos inseridos no campo do trabalho.

Referências

BRAGA, A. Surdos x mercado de trabalho. Desafio de hoje. fev. 1992, p.4.

11 Epistemologia é utilizado nesse artigo, a partir do entendimento dado por Popkewitz (1995, p.207): “numa epistemologia social (um descentramento do sujeito) não consiste em eliminar as práticas de mudança social, mas em desafiar as convenções nas quais essas práticas ocorrem, em tomar problemático o sujeito que tem sido tão central à pesquisa modema e a seus efeitos regulatórios”.

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