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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE MINAS GERAIS Programa de Pós-Graduação em Direito A SUSPENSÃO DO JUÍZO EMPÍRICO COMO MÉTODO FUNDAMENTAL DA ÉTICA E DO DIREITO NO PENSAMENTO DE IMMANUEL KANT Aluízio Rodrigues Lana Belo Horizonte 2008

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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE MINAS GERAIS

Programa de Pós-Graduação em Direito

A SUSPENSÃO DO JUÍZO EMPÍRICO COMO MÉTODO

FUNDAMENTAL DA ÉTICA E DO DIREITO NO

PENSAMENTO DE IMMANUEL KANT

Aluízio Rodrigues Lana

Belo Horizonte

2008

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Aluizio Rodrigues Lana

A SUSPENSÃO DO JUÍZO EMPÍRICO COMO MÉTODO

FUNDAMENTAL DA ÉTICA E DO DIREITO NO

PENSAMENTO DE IMMANUEL KANT

Dissertação apresentada ao programa de Pós-

Graduação em Direito da Pontifícia Universidade

Católica de Minas Gerais, como requisito parcial

para a obtenção do título de Mestre em Direito.

Orientador: Prof. Dr. Márcio Antônio de Paiva

Belo Horizonte

2008

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FICHA CATALOGRÁFICA Elaborada pela Biblioteca da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais

Lana, Aluízio Rodrigues L243s A suspensão do juízo empírico como método fundamental da ética e do direito no pensamento de Immanuel Kant. / Aluízio Rodrigues Lana. Belo Horizonte, 2008. 135f. Orientador: Márcio Antônio de Paiva Dissertação (Mestrado) – Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. Programa de Pós-Graduação em Direito. 1. Ética. 2. Direito. 3. Juízo (Lógica) 4. Kant, Immanuel, 1724-1804. I. Paiva, Márcio Antônio de. II. Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. Programa de Pós-Graduação em Direito. III. Título.

CDU: 34:17

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Aluizio Rodrigues Lana

A SUSPENSÃO DO JUÍZO EMPÍRICO COMO MÉTODO FUNDAMENTAL DA

ÉTICA E DO DIREITO NO PENSAMENTO DE IMMANUEL KANT

Dissertação apresentada ao programa de Pós-Graduação em Direito da Pontifícia

Universidade Católica de Minas Gerais, como requisito parcial para a obtenção do

título de Mestre em Direito,

Belo Horizonte, 2008.

____________________________________________________

Prof. Dr. Márcio Antônio de Paiva (Orientador) – PUC Minas

____________________________________________________

Prof. Dr. Alexandre Travessoni Gomes – PUC Minas

____________________________________________________

Prof. Dr. Leonardo Alves Vieira – UFMG

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Dedico este trabalho a

todos aqueles que me apoiaram de

algum modo nesses últimos dois

anos. Em especial, à Magna, ao

Henrique, à Thaís e à minha mãe.

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Agradecimentos

Agradeço muitíssimo ao grande amigo e iluminado mestre Márcio Paiva, cuja

inspiração, ensinamentos, dedicação e amizade tornaram possível este escrito.

Também agradeço ao professor Marcelo Galuppo pelas palavras de estímulo e

apoio que me serviram de motor e confiança no início desta caminhada e me fizeram

compreender que “podemos sempre voltar a ser bons” e que, muitas vezes, somos

“homens que falam javanês”. Agradeço ainda ao amigo Rodrigo pelos embates

filosóficos e pelas críticas que, além de indicarem minhas limitações, me levaram a

insights e aperfeiçoamentos. Também à querida amiga Maria Bueno, que muito me

ajudou na conclusão deste trabalho. E, por fim, ao amigo Gustavo que me

acompanhou nessa jornada.

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“Ficaríamos envergonhados de nossas

melhores ações se o mundo soubesse o que

nos levou a elas.”

François Poitou

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RESUMO

O presente estudo se presta ao exame do método utilizado por Kant na sua

elaboração fundamental da ética e do direito. Busca-se, através de uma análise

pormenorizada da filosofia teórica e da filosofia prática do autor, encontrar o fio

condutor epistemológico essencial à fundamentação ético-jurídica. Este elemento

indispensável encontra-se no procedimento de suspensão do juízo empírico.

Partindo do interesse do autor em delimitar o campo do conhecimento metafísico,

em virtude de sua caracterização como ciência, demonstra-se que o direito e a ética

carecem de uma fundamentação a priori. De fato, Kant mostra que as conclusões

resultantes de juízos baseados na experiência não proporcionam certeza e

evidência, exigidas cientificamente, sendo que essas inferências não somente

possuem exceções, mas também contradições que tornam insegura toda a

pesquisa. Destarte, somente juízos sintéticos a priori podem traduzir conclusões

científicas autênticas e com pretensão de universalidade. Logo, o direito só pode se

basear nesses juízos, o que ocorre quando se parte da idéia de liberdade,

confirmada aprioristicamete pelo autor através do Faktum der Vernunft. Mais do que

uma busca pelos fundamentos primeiros do direito, este estudo prima pela

qualificação de ‘como’ se chegar a essas bases. E, ao final, conclui-se que a

suspensão do juízo é tarefa necessária para a obtenção desses resultados. Por

certo, a ética e o direito são estruturas do mundo vivido, as quais necessitam de

elementos fenomênicos para sua adequação e formulação concreta, na elaboração

e aplicação das leis escritas. Porém, não pode ser ignorado que o sujeito humano

também possui uma natureza inteligível e que esta modifica e, sob certo panorama,

traz uma oposição efetiva às ações desse sujeito. Será visto que o desfecho desse

antagonismo encontra-se justamente na capacidade de se suspender o uso das

faculdades sensíveis para apurar decisões práticas. E que essa tarefa é essencial

tanto à parte metafísica, quanto à parte empírica do direito que, possivelmente, não

existiria sem um conceito inteligível. Em suma, quando se busca nas estruturas

jurídicas a adequação ao ideal do Estado Democrático de Direito, mais importante

do que uma reflexão sobre espelhar a realidade em um modelo, é o ‘pensar’ em

fazer esse modelo e como fazê-lo.

Palavras-Chave: suspensão do juízo, metafísica, ética, direito.

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ZUSAMMENFASSUG

Die hier präsentierte Arbeit hat das Ziel, die von Kant in seiner Grundausarbeitung

der Ethik und des Rechts benutzte Methode zu analysieren. Durch eine

Untersuchung der theoretiker Philosophie und der praktischen Philosophie des

Autors wird es versucht, den Leitungsdraht, der zur sittlichen und juristichen

Fertigung wesentlich ist, zu finden. Dieses unerläßliche Element befindet sich im

Verfahren der Suspendierung der empirischen Urteilen. Vom Interesse des Autors an

der Abgrenzung des Felds der metaphysichen Erkenntniss, wegen ihrer

Charakterizierung als Wissenschaft, zeigt sich, dass das Recht und die Ethik eine a

priori Fertigung brauchen. Tatsächlich zeigt Kant, dass die Schlüsse, die aus auf

Erfahrung gegründete Urteilen gekommend sind, keine Sicherheit und keine Evidenz

verschaffen. Nun, nur a priori synthetische Urteilen können authentische

wissenschaftliche Schlüsse mit einem universalen Anspruch übersetzen. Das Recht

kann nun, nur auf diesen Urteilen gründen. Das passiert, wenn man von der Idee der

Freiheit, von Kant durch das Faktum der Vernunft a priori bestätigt, ausgeht. Mehr als

eine Suche nach den ersten Grundsätze des Rechts zeichnet sich diese Arbeit durch

die Qualifizierung von "wie" man zu diesen Grundsätze kommt. Am Ende komme ich

zu dem Schluss, dass die Suspendierung des Urteils die notwendige Aufgabe zur

Erlangung dieser Ergebnisse ist. Die Ethik und das Recht sind die Strukturen der

Lebenswelt, die Phänomen Elemente für seine conkret Formulierung in der

Erzeugung (und die Anwendung) der schrifltichen Gesetze brauchen. Doch es darf

nicht ignoriert werden, dass das menschliche Subjekt auch eine verständliche Natur

hat. Diese Natur ändert und bringt eine effektive Opposition zu den Taten diser

Subjekt. Es wird gezeigt, dass der Abschluss dieses Antagonismus sich genau darin

befindet, in der Fähigkeit die Benutzung von empirischen Vermögen, um praktischen

Entscheidungen zu bewerten, zu suspendieren. Diese Aufgabe ist dem

metaphysischen Teil und auch dem empirischen Teil des Rechts, das

möglicherweise ohne einen verständlichen Begriff nicht existieren würde, essenziell.

Wenn man in den juristichen Strukturen die Übereinstimmung mit dem Ideal des

demoktratischen Staates des Rechts sucht, ist es wichtiger daran zu denken, das

Modell zu bauen und wie man dieses Modell bauen kann, als über einen Modell, das

die Realität refletiert, nachzudenken.

Stichwörter: Urteilsuspendierung, Metaphysik, Ethik, Rechts.

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ABSTRACT

The present thesis performs the analysis of the method developed by Kant in his

fundamental approach of ethics and right. It seeks, through a detailed study of the

author's theoretical philosophy and his practical philosophy, to find the

epistemological main thread, essential to the ethical-juridical foundation. This vital

element is found on the procedure of the suspension of empiric judgement.

Beginning of the author's interest in limitating the field of the metaphysical

knowledge, due to its science’s character, it is demonstrated that right and ethics lack

of a priori foundation. In a matter of fact, Kant shows that the resulting conclusions of

the judgements based on experience do not provide certainty and evidence,

scientifically demanded, once those inferences not only contain exceptions, but also

contradictions that make all research insecure. Therefore, only a priori synthetic

judgements can turn into authentic scientific conclusions tending to universality.

Thus, the right can only be based on those judgements, and what happens is that

once it is based on the liberty idea, affirmed by the author through another a priori

idea: The Faktum der Vernunft. More than a search for the primitive basis of right,

this thesis excels on measuring ‘how to’ make those bases. And, at the end, we can

conclude that the judgement suspension is a necessary step for obtaining of those

results. It is sure that ethics and right are structures of the living world, which need

phenomena’s elements for in order to provide its adaptation and concrete

formulation, on the development of written laws, and its application in concrete cases.

However, we cannot ignore that the human subject also possesses an intelligible

nature and that this is modifiable and also that, under some perspective, it brings an

effective opposition in the subject's actions. It will be seen that the outbreak of this

antagonism is found exactly on the human capacity to suspend the use of sensitive

faculties to deliver accurate practical decisions. Hence, that task is as essential to the

metaphysical part as it is for the empirical part of right, which possibly would not exist

without an intelligible concept. Summing up, when the juridical structures are to be

adequate to an ideal of the Democratic Right State, more important than an insight

about catching reality into a model, is the thinking on developing that model and how

to do it.

Keywords: judgement suspension, metaphysics, ethics, right.

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Lista de siglas e abreviaturas das obras de Kant mencionadas nas referências

dos textos originais.

Anthropologie – Anthropologie in pragmatischer Hinsicht (Antropologia de um ponto

de vista pragmático).

EF – Zum ewigen Frieden. Ein philosophischer Entwurf. (À paz perpétua. Um projeto

filosófico).

Über - Über den Gemeinspruch: Das mag in der Theorie richtig sein, taugt aber nicht

für die Praxis. (Sobre a expressão corrente: Isto pode ser correto na teoria, mas

nada vale na prática)

Grundlegung – Grundlegung zur Metaphysik der Sitten (Fundamentação da

Metafísica dos costumes).

Untersuchung – Untersuchung über die Deutlichkeit der Grundsätze der natürlichen

Theologie und der Moral (Investigação sobre a evidência dos princípios da teologia

natural e da moral).

Frage – Beantwortung der Frage: Was ist Aufklärung? (Resposta à pergunta: o que

é o esclarecimento?)

KpV – Kritik der praktischen Vernunft (Crítica da razão prática).

KrV-A – Kritik der reinen Vernunft – erster Auflage (Crítica da razão pura – primeira

edição).

KrV-B – Kritik der reinen Vernunft –zweiter Auflage (Crítica da razão pura– segunda

edição).

KU – Kritik der Urteilskraft (Crítica da faculdade do juízo).

MS – Die Metaphysik der Sitten (A Metafísica dos costumes).

Prolegomena – Prolegomena zur einer jeden künftigen Metaphysik, die als

Wissenschaft wird auftreten könen (Prolegômenos a toda Metafísica futura que

possa apresentar-se como ciência).

Vorkritische – Vorkritische Schriften II: 1757-1777 (Escritos pré-críticos)

Mundi – De mundi sensibilis atque intelligibilis forma et principiis. (Forma e princípios

do mundo sensível e do mundo inteligível)

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO .....................................................................................................

CAPÍTULO I – PROLEGÔMENOS À EPISTEMOLOGIA KANTIANA

1. A noção fundamental de Metafísica em Kant ..................................................

2. Fundação epistemológica ................................................................................

3. Exame das faculdades (Vermögen) .................................................................

4. Os limites e possibilidades do conhecimento ..................................................

5. Os limites do conhecimento na Metafísica e a necessidade da crítica ............

6. A suspensão do juízo como instrumento da crítica ..........................................

6.1. Dúvida e suspensão do juízo em Descartes .............................................

6.2. Suspensão do juízo em Kant ....................................................................

6.3. Doutrina do duplo ponto de vista e suspensão do juízo ...........................

7. Noções fundamentais do direito como Metafísica ...........................................

7.1. As duas concepções de direito em Kant e sua conexão com a moral ......

7.2. A origem metafísica do direito em Kant ....................................................

7.3. A interdepêdencia entre direito e moral. Uma quarta opção? ...................

CAPÍTULO II – O MÉTODO KANTIANO E A SUSPENSÃO DO JUÍZO

1. O método analítico-sintético, as Críticas e a suspensão do juízo ....................

2. A regressão aos fundamentos primeiros na Crítica da razão pura ..................

2.1. A dedução dos elementos do conhecimento na Crítica da razão pura .....

2.2. A concepção da Metafísica, o incondicionado e a suspensão do juízo ....

3. A Crítica da razão prática e a composição da moral .......................................

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3.1. A antinomia da liberdade: resultado da suspensão do juízo .....................

3.2. A liberdade e sua demonstração pela lei moral ........................................

3.3. A composição do direito e da moral partir da proposição da liberdade ....

3.4. Os conceitos de bom (das Gute) e mal (das Böse) e o sentimento moral

4. A Fundamentação da Metafísica dos Costumes e a transição da liberdade

ao mundo fenomênico (como postulado) .........................................................

4.1. O conceito vulgar de boa vontade e o filosófico de vontade pura (Wille) .

4.2. A dedução analítica do imperativo categórico ..........................................

4.3. O retorno ao mundo fenomênico e a liberdade como fundamento útimo .

CAPÍTULO III – IMPLICAÇÕES NA ÉTICA E NO DIREITO

1. A dialética permanente entre as leis severas da razão pura e os arrazoados

da experiência ..................................................................................................

2. As soluções da doutrina da virtude para a dicotomia humana ........................

3. O direito como expressão fenomênica da liberdade, postulado elementar do

conceito de sujeito humano .............................................................................

4. A necessidade da fundamentação metafísica e da complementação

empírica na doutrina do direito .........................................................................

5. A teoria do discurso a partir de Kant e o Estado Democrático de Direito ........

6. O problema da fundamentação do direito positivo e o argumento metafísico .

CONSIDERAÇÕES FINAIS .................................................................................

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ....................................................................

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INTRODUÇÃO

Em toda a história das ciências em geral, foi comum entre os pesquisadores a

busca de um método que isentasse o juízo científico de parâmetros que levassem a

dúvidas e contradições, isto com o intuito de obter conclusões dotadas de certeza e

evidência. Na Filosofia, sobretudo com a revolução do método das ciências da

natureza, tal busca assumiu a condição de uma necessidade. De fato, os objetos

desta ciência, pelo fato de transcenderem as condições materiais da experiência,

não se amoldam às condições do método experimental da física, de modo que,

desde o limiar do século XVII, a Filosofia se afigurava com uma defasagem

demonstrativa em relação àquelas outras ciências.

Isso aparece de maneira verdadeiramente grave quando se pensa na

Metafísica, vez que a insistente busca racional pela confirmação da existência de um

ser supremo, da imortalidade da alma e da liberdade, não encontra a mínima

correspondência demonstrativa na Φυσις (physis), seja de forma afirmativa ou

negativa.

Partindo deste problema é que René Descartes (1596-1650) passou a incluir,

em suas investigações, a dúvida como parâmetro de rejeição de conclusões

filosóficas questionáveis, vez que só assim a totalidade da investigação poderia ser

aceita como incontestável. E é através dessa ‘dúvida metódica’ que este autor

evidencia o procedimento de suspensão do juízo como o caminho seguro para uma

criteriosa avaliação científica no campo filosófico. É importante notar que este

procedimento consiste na progressiva e completa exclusão temporária das

faculdades humanas que são sede das questões de dúvida, a saber, a faculdade

dos sentidos e a do entendimento. Isto se torna essencial a uma criteriosa avaliação

filosófica.

Immanuel Kant, frente à meta de concluir os limites e possibilidades do

conhecimento científico, assume certos aspectos da dúvida metódica cartesiana e

emprega o método de suspensão do juízo em sua investigação sobre a possibilidade

científica da Metafísica e, notadamente, na construção de uma ciência que avalia

integralmente o uso prático da razão humana – a Metafísica dos Costumes. Neste

último aspecto, saliente-se, Kant se atém ao uso prático da razão pura que, em sua

perspectiva, é o único campo da Metafísica que pode ser apreciado com a

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possibilidade de reflexos na experiência humana, isto é, no mundo sensível. Estes

reflexos da metafísica estariam situados na possibilidade do agir moral.

Neste contexto, o opus kantiano apresenta uma concepção do direito distinta

das tendências pragmáticas que permeiam o pensamento jurídico hodierno; esta se

mostra extraordinariamente adequada à fundamentação desta instituição dentro das

estruturas jurídicas existentes, notadamente na pretensa construção do Estado

Democrático de Direito. Essa concepção kantiana caracteriza o direito como parte da

Metafísica dos Costumes, fundamentando a noção de justiça na idéia pura da

liberdade, afirmada pela razão prática humana. Isto tudo transporta o direito de um

patamar de fundamentação empírica para um nível de sustentação a priori,

autônomo e racional, o que eleva o direito à condição de ciência do Direito, como

ocorre com as ciências naturais, tornando seu fundamento imune às incertezas e

particularidades dos estudos baseados nas realidades sensíveis.

Deste modo, o presente estudo busca retratar uma visão da ética e do direito

diferentes das tendências de fundamentação utilitaristas. Especialmente tentar-se-á

obter o enfoque metafísico destas últimas, indispensável ao amparo do direito como

elaboração racional que mantém a sociedade e o Estado. Este enfoque, em Kant,

constrói-se através do método denominado ‘transcendental’, cujo aspecto decisivo é

o procedimento da suspensão do juízo empírico.

Para essa proposta, este escrito foi dividido em três estágios. Em um primeiro

momento será feita uma exposição preliminar dos princípios e elementos gerais

necessários à compreensão do caminho percorrido por Kant na elaboração da ética

e do direito, por meio de seu método transcendental e da suspensão do juízo. Por

estes motivos, o primeiro capítulo foi nomeado como ‘prolegômenos à epistemologia

kantiana’, composto peculiarmente por uma exposição sobre a Metafísica, sobre a

suspensão do juízo e de um debate acerca do direito como parte da Metafísica.

Em um segundo momento, segue-se ao exame do método kantiano,

notadamente nas três obras que consagram sistematicamente sua filosofia teórica,

moral e jurídica, tudo com um horizonte último que é o da suspensão do juízo como

meio de abalizamento científico em Filosofia. Será, assim, percorrido o caminho de

‘ida e volta’ do autor à idéia pura da liberdade e seus resultados possíveis – a ética e

o direito metafísicos.

No terceiro e último momento, tentar-se-á desvendar o problema da oposição

entre aquilo que se constrói pelo método de suspensão do juízo e aquilo que o

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mundo sensível nos fornece, o que exigirá um momento teórico complementar, que

em parte é apresentado por Kant, em parte desenvolvido por filósofos apoiados

neste autor. Ao final, busca-se demonstrar que, no Direito, não se pode fugir de uma

fundamentação metafísica como a defendida por Kant e que esta pode nos legar

uma base isenta para o ordenamento jurídico, resolvendo alguns dos principais

problemas de outras argumentações teóricas.

Portanto, o método de trabalho ora adotado revela-se através da análise,

comparação e reflexão da obra de Kant – o que é feito como um todo, na tentativa

de dar unidade aos temas desenvolvidos nos mais de 45 anos de sua produção

bibliográfica. Para tanto recorre-se a estudiosos da obra de Kant, como ponto de

apoio e possibilidade de diálogo. Entrementes, o que se objetiva é a apresentação

de uma perspectiva direta da leitura de Kant, sobremaneira apoiando-se clara e

objetivamente, em seus textos. Isto pode levar diversas questões a um debate

distinto do tradicionalmente aceito pelos kantianos, o que, entretanto, tenta-se

solucionar através da exposição dos argumentos que divergem do ponto-de-vista

porventura apresentado.

Não obstante os objetivos mencionados, este trabalho não se assoberba à

pretensão de esgotar o debate desses temas na obra de Kant, ou de superar seus

argumentos, mesmo por que faltar-se-iam elementos de equiparação com o

momento em que foi produzida sua obra. Entretanto, procura-se deixar uma

contribuição ao meio jurídico, especialmente ao meio jusfilosófico, na medida em

que se tenta uma reconstrução do fundamento racional do Direito, atentando-se para

a importância do método utilizado.

Enfim, para proporcionar o acesso do leitor aos originais dos trechos citados

expressamente no decorrer do trabalho, são oferecidas notas de rodapés com o

respectivo trecho em alemão e a referência de pesquisa na edição da Academia

Prussiana das Ciências1. Esta referência, porém, não se acorda às normas

específicas adotadas nas prescrições da PUC Minas para a publicação de trabalhos

científicos2. Assim sendo, e considerando que a própria PONTIFÍCIA

UNIVERSIDADE CATÓLICA DE MINAS GERAIS (2007, p. 45-46) dispõe sobre a

possibilidade de mudança de critérios no caso da citação de documentos clássicos

1 Königlich Preussischen Akademie der Wissenschaften. Ver referência: Kant (1969). 2 Conforme publicação disposta em PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE MINAS GERAIS (2007).

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(como ora ocorre), optou-se pela adoção dos critérios definidos universalmente para

a citação das obras de Kant, conforme regras da Akademie. Visando tornar mais

compreensível a referência, bem como facilitar a localização dos textos, adota-se o

seguinte critério: na referência segue-se a abreviatura ou sigla da obra em particular

onde se situa a citação (por exemplo, Grundlegung - Grundlegung zur Metaphysik

der Sitten), do volume (por exemplo, B. IV – Band IV), da página (por exemplo, S.

412 – Seite 412) e, entre colchetes, o intervalo de linhas em que se encontra (por

exemplo, S. 412 [9-12] – Seite 412, Linie 9 bis 12). Destarte, a citação (Grundlegung,

B. IV, S. 412[9-12]) significa que o texto expresso refere-se à parte da edição da

Akademie referente à Fundamentação da Metafísica dos Costumes, no volume

quarto, página 412, linhas 9 a 12.

Com tudo isso, não se espera executar um trabalho incontestável ou imune a

críticas ou limitações, mesmo por que essas últimas são inerentes a qualquer feito

humano submetido à provisoriedade dos estudos científicos3. Ademais, as críticas

são permanentemente aceitas, vez que constituem o motor do desenvolvimento do

conhecimento. Deseja-se, outrossim, apresentar o início de um interesse

investigativo que se caracterizou pelo esforço contínuo em fornecer um bom estudo,

cujos aperfeiçoamentos e aprofundamentos decerto surgirão no decorrer dos

trabalhos deste acadêmico.

3 Este é, também, o motivo em se usar constantemente, no decorrer texto, expressões como ‘parece correto que’, ‘talvez seja’, ‘assemelha-se correto’. Em respeito à instabilidade temporal do conhecimento humano.

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CAPÍTULO I

PROLEGÔMENOS À EPISTEMOLOGIA KANTIANA4

1. A noção fundamental de Metafísica em Kant

Pode-se afirmar que a Metafísica é o tema central que incita e rege todo o

pensamento crítico kantiano, de modo que é o seu desenvolvimento que incute e

possibilita a fundamentação da teoria formulada pelo autor, especialmente a parte

dedicada à moral e, conseqüentemente, ao Direito5. Assim, faz-se necessária, no

presente estudo, a análise das questões elementares sobre o assunto, aqui

discutidas de forma contextualizada no pensamento do autor e com atenção ao

próprio entendimento que o mesmo formulou sobre o assunto, de modo a se concluir

como estas questões influíram e determinaram o sistema de sua teoria jurídico-

moral.

Essa noção originária da Metafísica é encontrada desde alguns textos pré-

críticos, entretanto, se apresenta de forma consolidada na Crítica da razão pura

(KANT, 2001), de 1781, e nas obras seguintes, até A Metafísica dos Costumes

(KANT, 2003a), editada em 1797, nos seus últimos anos de vida.

Especialmente, nos Prolegômenos a toda Metafísica futura que queira

apresentar-se como ciência (KANT, 2003c), de 1783, Kant desenvolve

detalhadamente o assunto, introduzindo o meio teórico em que estava inserido

(KANT, 2003c, p. 17), bem como o recorte que utiliza na Crítica da razão pura

(KANT, 2001) e os motivos que determinaram seu direcionamento teórico.

4 Não se objetiva aqui desenvolver sistematicamente toda a formulação histórico conceitual fundamental de Kant sobre a Metafísica e sua fundação na Teoria do Conhecimento, mas apenas fornecer uma propedêutica, qual seja uma disciplina que apresente e desenvolva alguns elementos essenciais necessários às questões epistêmicas que serão abordadas no decorrer do trabalho. Assim, não há a possibilidade de exaurir certas questões que estão presentes na obra de Kant, dado que demandaria uma extensão imprópria ao estudo, motivos pelos quais tal assunto poderá ser desenvolvido em um trabalho futuro. 5 De fato, conforme poderá ser concluído adiante, o próprio direito, para o autor, tem um caráter essencialmente metafísico, o que é notadamente explicitado no título da obra em que desenvolve especificamente o tema: A Metafísica dos Costumes (KANT, 2003a).

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Metafísica, etimologicamente, decorre das palavras gregas µετα (meta), cujo

campo semântico se aproxima de ‘depois de’, ‘além de’ e Φυσις (physis), que se

traduz por natureza, ou seja, tudo que é físico. O sentido da palavra comumente é

atribuído a Aristóteles, apesar de não se constatar o termo em seus escritos.

Entretanto, essa origem pode ser explicada pela maneira com que foi organizada a

apresentação de seus tratados – primeiramente os temas relacionados à ‘Φυσις’

(physis) posteriormente os relacionados à ηθική (ethiké), à πολιτεία (politeia) e a

seus debates em relação aos primeiros princípios e às causas primeiras do ser; logo,

temas situados ‘depois’ da Φυσις (physis), ‘além’ da natureza 6.

Kant herdou da Filosofia Antiga esta concepção de Metafísica como a ciência

que trata dos assuntos de seres não-físicos, imateriais e acerca do propósito e da

origem da existência e dos seres. Contudo, auxiliado especialmente pelo conceito de

causalidade, desenvolveu complexamente o assunto, por um lado atribuindo-lhe

caráter técnico-epistemológico e, por outro, também uma semântica popular, de

tendência comum a todo ser humano. Esse caráter de tendência natural humana da

Metafísica é bem salientado nos Prolegômenos, onde o autor afirma que:

[...] a experiência nunca satisfaz totalmente a razão; ela remete-nos sempre para mais longe na resposta às questões e deixa-nos insatisfeitos relativamente a uma solução completa [...] (KANT, 2003c, p.145) [...] este também é o fim e a utilidade desta disposição natural da nossa razão, que gerou a Metafísica, como seu filho querido [...]7 (KANT, 2003c, p.147)

Esta concepção natural é apresentada em vários outros momentos nas suas

obras e possui ‘duas dimensões’, sendo que a primeira pode ser designada como

‘interesse especulativo’ – uma tendência da natureza da razão que “[...] é levada a

ultrapassar o uso empírico e aventurar-se em um uso puro,”8 (KANT, 2001, p. 634).

6 Para alguns, esta organização teria partido do próprio Aristóteles; para outros, teria sido estabelecida por seu discípulo Andrônico de Rodes (70 AC), editor de suas obras. Perine (2002) explica que tal ordem não seria casual, uma vez que o Estagirita sustenta, em seus tratados, que a alma humana é dotada de uma fragilidade que exige que comece sua educação pelo estudo das coisas imperfeitas e segundas, objeto da física, para só em seguida, passar ao estudo dos seres perfeitos e primeiros, objetos da Metafísica. Sobre o assunto consultar A Metafísica de Aristóteles (PERINE, 2002, p. 11-15), Paidéia (JAEGER, 1986) e Giovanni Reale em Metafísica (ARISTÓTELES, 2001). 7 “[...]denn Erfahrung thut der Vernunft niemals völlig Gnüge; sie weiset uns in Beantwortung der Fragen immer weiter zurück und läßt uns in Ansehung des völligen Aufschlusses derselben unbefriedigt [...]” (Prolegomena, B. IV, S. 351 [30-32]) “[...] und das ist auch der Zweck und Nutzen dieser Naturanlage unserer Vernunft, welche Metaphysik als ihr Lieblingskind ausgeboren hat [...]” (Prolegomena, B. IV, S. 353 [22-24]). 8 “[...]Die Vernunft wird durch einen Hang ihrer Natur getrieben, über den Erfahrungsgebrauch hinaus zu gehen,” (KrV-B, B. III, S. 518 [15-16]).

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18

Esta dimensão relaciona-se à natural especulação sobre a origem e composição do

cosmos, dos seres, sobre a possibilidade de uma causa inicial, um primeiro motor e,

ainda, a essência das coisas.

A segunda dimensão da Metafísica pode ser denominada ‘interesse prático’ e

denota a tendência do homem em buscar uma explicação sobre a origem e

existência de valores morais, ou seja, de concepções da nossa razão que dirigem o

agir de maneira contrária às determinações das leis físicas. Na divisão adotada pelo

autor esta segunda dimensão seria a ‘Metafísica dos Costumes’, que ocupa lugar

privilegiado na obra de Kant, como explica no prefácio da Fundamentação da

Metafísica dos Costumes (KANT, 2004b, p. 25-30).

Neste último campo, destaca-se a intenção do autor ao ressaltar a concepção

comum de Metafísica e transformá-la, através do minucioso e adequado uso da

razão, no conhecimento filosófico indispensável à fundação da Metafísica como

verdadeira ciência. Isto ocorre na Fundamentação da Metafísica dos Costumes

(KANT, 2004b), de 1785, onde o autor, através de uma concepção comum de

Metafísica, denunciada pela noção de ‘boa vontade’, desenvolve o que intitula uma

“Transição do conhecimento moral da razão vulgar para o conhecimento filosófico” 9(KANT, 2004b, p. 31).

Em especial, a idéia desenvolvida neste título assume notável importância

para o presente estudo, vez que Kant não apenas se mostra extremamente

provocado pela concepção comum que o homem tem das questões metafísicas,

como usa a noção vulgar de ‘boa vontade’ como base explicativa para ascender aos

degraus superiores do conhecimento humano – o que será estudado em pormenor

na segunda parte do trabalho.

Assim, Kant percebe que, historicamente, todo ser humano tende a buscar

uma explicação ou pelo menos uma conceituação de um ser supremo; sobre a

existência ou inexistência de uma alma humana substancial e, portanto, imortal; e da

existência de uma causalidade incondicionada da vontade que determine o agir; ou,

pelo menos, a concepção humana de dever, formadora da moral10.

9 “Übergang von der gemeinen Sittlichen Vernunfterkenntniszlig zur philosophischen” (Grundlegung, B. IV, S. 393 [2-4]). 10 Kant denomina estas questões como sendo “[...] três objetos: a liberdade da vontade, a imortalidade da alma e a existência de Deus.” (2001, p. 635). “[...] drei Gegenstände: die Freiheit des Willens, die Unsterblichkeit der Seele und das Dasein Gottes.” (KrV-B, B. III, S. 518 [30-31]).

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Tal natureza se torna mais evidente quando é tratada a questão moral, de

modo que o próprio autor supõe que, mesmo em uma época primitiva, os homens

não poderiam ser indiferentes à questão da justiça (como conceito moral) bem como

podiam os mesmos produzir juízos deontológicos (KANT, 2005a, p. 381).

Isso é facilmente notado, por exemplo, se for pensado o dever de filantropia,

que é usualmente concebido tanto por baldrames teístas quanto por ateus. Neste

passo, em sendo perguntado a um teísta qual o motivo pelo qual ajudar a um

necessitado, dependendo de sua crença possivelmente ele responderia que,

fazendo isto, teria garantido um lugar no ‘paraíso’ ou que seria poupado do inferno;

razões que, convenhamos, não interessam à presente argumentação. Mas, em um

segundo momento, se for questionado a um indivíduo que não crê absolutamente na

existência de Deus em uma vida futura (negando, assim, a possibilidade de duas

das três questões metafísicas) sobre o motivo por que ele deve agir e age na ajuda

a uma pessoa carente, o mesmo certamente terá uma resposta final que direcione

suas razões circularmente ao dever; ou seja: este age moralmente porque deve.

De fato, por que agir corretamente se não se crê que Deus exista ou que haja

algum prêmio ou castigo em uma vida futura?11 A resposta encontra-se, obviamente,

no próprio dever, cuja noção universal e comum incita a curiosidade de Kant sobre

como se dá a determinação da vontade pela moralidade nos seres racionais, uma

vez que, para o autor, pode ser negada a existência de qualquer coisa no mundo

fenomênico, exceto a da lei moral12.

E, dentro do quadro acima exposto, partindo de uma noção ‘popular’ do que

classifica como as três questões fundamentais da Metafísica, em especial, do

conhecimento de uma moral popular, Kant pretende revelar a necessidade e a

universalidade da concepção que a humanidade tem da moralidade. E isto, apesar

de nutrir um especial interesse pela questão da moralidade, anunciado

11 Foram excluídas da presente argumentação outras hipóteses instrumentalistas possíveis para fundamentar tal ação, dado que se encontram ligadas imediatamente à natureza fenomênica, cuja circunstancialidade e particularidade poderia justificar qualquer ação. Poderia também ser afirmado que um indivíduo com tais características e razões não existiria, entretanto, isso não é verdadeiro. 12 “Duas coisas enchem o ânimo de admiração e veneração sempre nova e crescente, quanto mais freqüente e persistentemente a reflexão ocupa-se com elas: o céu estrelado acima de mim e a lei moral em mim. [...] vejo-as ante mim e conecto-as imediatamente com a consciência de minha existência.” (KANT, 2003b, p. 569-571). “Zwei Dinge erfüllen das Gemüth mit immer neuer und zunehmender Bewunderung und Ehrfurcht, je öfter und anhaltender sich das Nachdenken damit beschäftigt: der bestirnte Himmel über mir und das moralische Gesetz in mir. […] ich sehe sie vor mir und verknüpfe sie unmittelbar mit dem Bewußtsein meiner Existenz.” (KpV, B. V, S. 161[33]-162[2]).

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expressamente em diversos de seus textos (KANT, 2001, p. 35; 2005a, p. 291), o

filósofo faz de uma maneira sistemática, analisando minuciosamente cada uma das

três indagações (KANT, 2001), concluindo, ao final, apenas a necessidade de

postulação da liberdade13 (KANT, 2004b; 2003b). Este resultado, à frente, será

utilizado como premissa, tornando possível a pressuposição racional da existência

das outras questões: a existência de Deus (a causa inicial incondicionada –

totalidade das condições) e a existência de uma alma substancial (portanto,

indivisível e imortal) (KANT, 2001) 14.

2. Fundação epistemológica

Em um segundo momento algumas considerações mostram-se imperiosas

sobre as principais influências teóricas no pensamento de Kant para a compreensão

do seu método e do desenvolvimento de algumas concepções pilares de sua

filosofia crítica. Neste passo, ao longo de suas obras, o autor faz diversas

referências a Gottfried Wilhelm Leibniz e a David Hume (KANT, 2003c; 2003b),

sendo que os podemos considerar os autores que mais influenciaram suas teses.

Especificamente, a maior influência destes autores se dá no âmbito da Teoria do

Conhecimento, mais particularmente na questão da pesquisa da natureza da

verdade científica – o que lhe daria fundamentos para qualificar a Metafísica como

uma verdade da razão.

Assim, Kant teve contato com o racionalismo dogmático de Leibniz através

dos ensinamentos de Christian Wolff (KANT, 2001, p. 31), de modo que é importante

a contribuição destes teóricos na concepção e divisão das ‘proposições’ ou ‘juízos’

em analíticos e sintéticos15. Para Leibniz os juízos analíticos são as ‘verdades da

13 Sobretudo na Fundamentação da Metafísica dos Costumes (KANT, 2004b) e na Crítica da razão prática (KANT, 2003b) onde demonstra a liberdade a partir do Faktum der Vernunft – fato da razão 14 Deve-se atentar para o fato de que Kant não prova efetivamente a existência da liberdade no mundo empírico, posto que não há nenhum fato, isto é, nenhum fenômeno na natureza, que corresponda, de forma clara e evidente, à manifestação física da liberdade. Outrossim, o autor ‘postula’ a existência da liberdade e demonstra racionalmente que ela é possível, e que são possíveis os seus reflexos na moralidade humana inserida no mundo empírico. È a partir desta pressuposição e da hipótese de que a liberdade exista, que Kant deduz a existência de Deus e da alma humana, o que não se trata de uma comprovação empírica, mas uma postulação racional. 15 Para uma compreensão específica desta diferenciação, ver Kant (2001, p. 42-45; 2003c, p. 24-30).

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razão’, portanto, as proposições necessárias e universais em que devemos basear

nosso conhecimento, inclusive o metafísico (LEIBNIZ, 1972, p. 16516). Estes juízos

são a priori e, portanto, não se originam e nem necessitam da experiência para sua

apuração; são ‘razão pura’. E, para garantir estes atributos aos juízos analíticos,

Leibniz empregava dois princípios: o princípio da ‘não-contradição’ (LEIBNIZ, 1972,

p. 16617), que determina que qualquer conceito que contenha uma contradição não

manifesta possibilidade, logo, não pode representar a realidade; e o ‘princípio de

razão’ ou ‘da causa eficiente’ (LEIBNIZ, 1972, p. 16618), que afirma que todo fato

verdadeiro tem uma causa, uma razão que o determina e implica que as coisas não

sejam de outro modo. Estes princípios prescreveriam os limites e a possibilidade das

coisas.

Entretanto, Hume contesta a tese defendida por Leibniz, salientando que é

impossível a apuração de uma relação de causalidade a priori, simplesmente através

dos juízos analíticos e de seu método da ‘não-contradição’. Para o autor, a relação

entre causa e efeito não seria razão, mas uma constatação empírica habitual que

leva nossa razão, por indução, a afirmar que existe uma ligação condicional entre

dois fatos consecutivos no tempo. De fato, o mesmo salienta que:

Quando olhamos para os objetos ao nosso redor e consideramos a operação das causas, não somos jamais capazes de identificar, em um caso singular, nenhum poder ou conexão necessária, nenhuma qualidade que ligue o efeito à causa e torne o primeiro uma consequência infalível da segunda. De fato, tudo o que descobrimos é que o efeito realmente se segue à causa. (HUME, 2003, p. 98). [...] Quando dizemos, portanto, que um objeto está ligado a outro, queremos apenas dizer que eles adquiriram uma conexão em nosso pensamento, e dão origem a essa inferência pela qual se tornam provas da existência um do outro; uma conclusão um tanto extraordinária, mas que parece fundada em evidência suficiente. (HUME, 2003, p. 114).

Assim, para Hume, de um fato não se pode apurar o seu efeito, ou sua causa,

de maneira a priori, somente pela razão pura, como se o predicado ‘efeito’ já

estivesse contido no conceito de ‘causa’, o que ocorre com os juízos analíticos.

Ademais, a relação de causalidade não constitui um juízo analítico, mas um juízo

sintético, sendo que a conexão entre sujeito e predicado se realiza através de um

ato do intelecto, o que implica ser necessária a experiência para que ocorra o juízo,

16 Nota correspondente ao § 30 da Monadologia. 17 Nota correspondente ao § 31 da Monadologia. 18 Nota correspondente ao § 32 da Monadologia.

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não podendo afirmar, contudo, como verdade nada que não tenha ocorrido e sido

apresentado aos sentidos19.

Kant compartilha do mesmo entendimento quando argumenta que:

[...] a experiência não concede nunca aos seus juízos uma universalidade verdadeira e rigorosa, mas apenas uma universalidade suposta e comparativa (por indução), de tal modo que, em verdade, antes se deveria dizer: tanto quanto até agora nos foi dado a verificar, não se encontram exceções a esta ou àquela regra. [...] A universalidade empírica é, assim, uma extensão arbitrária da validade, em que se transfere para a totalidade dos casos a validade da maioria [...]20 (KANT, 2001, p. 38).

E estas constatações provocam em Kant um ‘despertar’ para os defeitos das

teorias até então existentes, conforme dizem suas próprias palavras:

Confesso francamente: foi a advertência de David Hume que, há muitos anos, interrompeu o meu sono dogmático e deu às minhas investigações no campo da filosofia especulativa uma orientação inteiramente diversa.21 (KANT, 2003c, p. 17).

De fato, as críticas de Hume levam Kant a notar que, até então, todos os

avanços na Metafísica baseavam-se em fundamentos frágeis e duvidosos, uma vez

que eram formulados apenas através de conceitos pressupostos dos quais se

extraíam juízos analíticos (KANT, 2001, p. 24). Isto determinava, por exemplo, que a

causa primeira das teorias morais tivesse sua realidade considerada previamente

dada, mesmo que não pudesse ser constatada em um fenômeno (o que acontece,

por exemplo, com a teleologia da felicidade22), o que ocorria, umas vezes por

imposição de alguma autoridade, outras por meio de demonstrações feitas por

intermédio de uma lógica enganosa (dialética23).

19 Disto decorre o exemplo comum de que não pode ser afirmado que o sol nascerá no dia seguinte pelo fato de que, até o presente momento, em todos os dias, isto tenha acontecido. 20 “[…] Erfahrung giebt niemals ihren Urtheilen wahre oder strenge, sondern nur angenommene und comparative Allgemeinheit (durch Induction), so daß es eigentlich heißen muß: so viel wir bisher wahrgenommen haben, findet sich von dieser oder jener Regel keine Ausnahme.” [...] “Die empirische Allgemeinheit ist also nur eine willkürliche Steigerung der Gültigkeit von der, welche in den meisten Fällen, zu der, die in allen gilt, […]” (KrV-B, B. III, S. 29[2-6]; [9-11]) 21 “Ich gestehe frei: die Erinnerung des David Hume war eben dasjenige, was mir vor vielen Jahren zuerst den dogmatischen Schlummer unterbrach und meinen Untersuchungen im Felde der speculativen Philosophie eine ganz andre Richtung gab.” (Prolegomena, B. IV, S. 260[6-9]). 22 Por exemplo, na teoria moral Aristotélica, a eudaimonia (εὐδαιµονία) – felicidade ou excelência – é um fim pressuposto para o homem, decorrente de sua natureza. Não há como se deduzir racionalmente a maneira pela qual Aristóteles chegou a este telos (Τέλος). 23 Para Kant, dialética tem o sentido de “lógica da aparência, uma arte sofística de dar um verniz da verdade à ignorância, e até às suas próprias ilusões voluntárias, imitando o método de profundidade que a lógica geral prescreve e utilizando os seus tópicos para embelezar todas as suas alegações

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E assim, Kant se descobre no meio de duas correntes opostas e

conflituosas24 (CAYGILL, 2000, p. 106), por um lado, o racionalismo, com instrução

essencialmente dogmática, insistindo que a razão fornece todo o conhecimento,

antes e independentemente da experiência e que a realidade tem uma estrutura

lógica própria, cujas verdades podem ser intuídas diretamente pela razão. Por outro

lado, o empirismo afirmando que só a experiência fornece o conhecimento, que só

pode versar sobre o acontecido (passado) e é imprevisível, o que conduzia,

fatalmente, ao ceticismo. Em comum, ambas as tendências afirmam que a razão só

me dá juízos analíticos e que a experiência me dá juízos sintéticos.

Contudo, revendo os estudos de Sir Isaac Newton, Kant nota a possibilidade,

na Física, de redução a fórmulas matematicamente exatas (a priori) das leis

fundamentais da natureza. Assim conclui que a natureza – como afirmava Hume – é

constituída por juízos sintéticos e não analíticos. Percebe também que esses juízos

sucedem a priori, como afirmava Leibniz. Esses foram os erros destes autores –

Leibniz, em pensar que os juízos da natureza são analíticos e Hume, em sustentar

que todo juízo sintético é a posteriori.

Para afirmar essa tese, Kant busca na Matemática (até então o ramo do

conhecimento científico dotado de certeza e precisão) a existência desses juízos a

priori sintéticos. Constata, portanto, que vários conceitos matemáticos não contêm

predicados que, no entanto, podem ser afirmados independentemente da

experiência, por um puro exercício da razão, como ocorre na proposição ‘7 + 5 = 12’

(KANT, 2001, p. 46). De fato, como explica o autor, o conceito de 12 não se encontra

de nenhuma maneira contido no conceito dos números ‘7’ e ‘5’ ou de sua reunião.

Ainda, nota o autor que, independentemente de ser pensada na experiência a

vazias.” (KANT, 2001, p. 95). “[...] als die Logik des Scheins. Eine sophistische Kunst, seiner Unwissenheit, ja auch seinen vorsetzlichen Blendwerken den Anstrich der Wahrheit zu geben, daß man die Methode der Gründlichkeit, welche die Logik überhaupt vorschreibt, nachahmte und ihre Topik zu Beschönigung jedes leeren Vorgehens benutzte.” (KrV-B, B. III, S. 81[7-11]; KrV-A, B. IV, S. 54[9-13]). 24 Kant de fato entende sua teoria como uma “via média’ entre estas tendências, nas suas próprias palavras: “A crítica da razão indica aqui a verdadeira via média entre o dogmatismo, que Hume combatia, e o ceticismo que ele, pelo contrário, queria introduzir, uma via média que, muito diferente das outras vias médias que se aconselham a por si mesmo as determinar de certo modo mecanicamente (um pouco de uma, um pouco de outra) sem que ninguém se esclareça sobre uma melhor, pode ser determinada segundo princípios.” (KANT, 2003c, p. 156). “Kritik der Vernunft bezeichnet hier den wahren Mittelweg zwischen dem Dogmatism, den Hume bekämpfte, und dem Scepticism, den er dagegen einführen wollte, einen Mittelweg, der nicht wie andere Mittelwege, die man gleichsam mechanisch (etwas von einem und etwas von dem andern) sich selbst zu bestimmen anräth, und wodurch kein Mensch eines besseren belehrt wird, sondern einen solchen, den man nach Principien genau bestimmen kann.” (Prolegomena, B. IV, S. 360[9-15]).

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reunião representada por este juízo em relação a qualquer objeto, tal proposição

pode ser pensada. Assim, ‘7 + 5 = 12’ é um juízo sintético que é pensado a priori, o

que demonstra a possibilidade destes juízos. Agora, é necessário buscar sob que

condições estes juízos são possíveis, o que determina essa possibilidade, para,

então, o autor poder aplicar os princípios daí obtidos na construção de uma ciência

Metafísica que pretenda caracterizar-se pela certeza e precisão que caracterizam a

Matemática pura.

No início da Crítica da razão pura, Kant (2001, p.50) se empenha justamente

nesta tarefa, concluindo que os juízos sintéticos a priori na Matemática são possíveis

justamente porque sua forma existe previamente constituída no intelecto humano.

Isto torna-se possível graças a duas estruturas que possibilitam a sensibilidade (o

fenômeno) e que, no entanto, não estão condicionadas à ocorrência desta, que são

as noções de espaço25 e tempo26. Desta feita, no intelecto humano acham-se

contidas todas as condições de possibilidade da Matemática, que pode concretizar-

se ou não na experiência; como ocorre com a soma entre 7 e 5, que pode ocorrer ou

não em um fenômeno.

Partindo desses elementos constitutivos da receptividade humana, após uma

análise exaustiva dessas estruturas27, Kant segue, agora, à investigação de como é

possível a Física pura, ou seja, como ocorrem os fenômenos e como são possíveis

suas leis. É certo que “Tudo na natureza age segundo leis”28 (KANT, 2004b, p.51),

as coisas existem e se relacionam segundo leis fixas de causa e efeito, ação e

reação e estas são leis universais. Assim, não bastam as noções a priori de espaço

e tempo para a ocorrência dos fenômenos, sendo que deve haver outras estruturas

a priori no espírito (intelecto) humano que possibilitem que os fenômenos existam de

acordo com esta ordem legislativa natural – a resposta está nos predicativos

aristotélicos, que são, por conseguinte, adotados pelo filósofo com algumas

25 Segundo Kant, espaço é: “[...] a condição de possibilidade dos fenômenos, não uma determinação que dependa deles; é uma representação a priori que fundamenta necessariamente todos os fenômenos externos.” (2001, p. 65). “[...]die Bedingung der Möglichkeit der Erscheinungen und nicht als eine von ihnen abhängende Bestimmung angesehen und ist eine Vorstellung a priori, die nothwendiger Weise äußeren Erscheinungen zum Grunde liegt.” (KrV-B, B. III, S. 53[1-4]; KrV-A, b IV, s. 32[15-18]). 26 Segundo Kant, tempo é: “[...] a condição imediata dos fenômenos internos (da nossa alma) e, por isso mesmo também, mediatamente, dos fenômenos externos.” (2001, p. 73). “eine Bedingung a priori von aller Erscheinung überhaupt und zwar die unmittelbare Bedingung der inneren (unserer Seelen) und eben dadurch mittelbar auch der äußern Erscheinungen.” (KrV-B, b. III, s. 60[20-22]; KrV-A, B. IV, S. 38[10-12]). 27 O que é feito na ‘Estética Transcendental’ (KANT, 2001, p. 61-87) 28 “Ein jedes Ding der Natur wirkt nach Gesetzen” (Grundlegung, B. IV, S. 412[26]).

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modificações (KANT, 2001, p. 111-112) e divididos nas seguintes classes de

elementos nomeados categorias: quantidade, qualidade, relação e modalidade

(KANT, 2001, p. 104; p. 110-111).

Essas categorias ou predicativos (ou conceitos) constituem as estruturas do

intelecto que possibilitam que a natureza exista e que seus fenômenos ocorram

mediante as leis conhecidas; ainda mais, só ocorrem os fenômenos que são

possíveis através dessas categorias, de maneira a que a experiência só aconteça de

acordo com a capacidade do intelecto, ou seja, não se sabe se existem outros

fenômenos possíveis, mas apenas os que são possíveis ao nosso entendimento,

mediante a representação do dado apreendido pela receptividade. Tal afirmação

implica em diversas conclusões que levaram Kant a ser denominado idealista e,

inclusive, comparado aos idealistas clássicos, que tendiam a não admitir a existência

da realidade externa, mas apenas da realidade interna, individual, e que conduz

inevitavelmente a um solipsismo teórico29.

Assim, Kant desenvolve o tema das categorias do entendimento30 nos

capítulos da Crítica da razão pura dedicados à ‘analítica transcendental’ (KANT,

2001, p. 97-293), onde estrutura todo o fundamento intelectual de possibilidade dos

fenômenos externos demonstrando que as leis da natureza só são possíveis por

terem sua forma prevista (previamente existente) no espírito humano, que agrega os

conceitos inicialmente classificados em doze (categorias primitivas), mas que

contêm e permitem incontáveis subdivisões (categorias derivadas) a partir das

iniciais (KANT, 2001, p. 112), cujo conteúdo de tudo pode ser apreendido pela

sensibilidade.

Em um terceiro momento na Crítica da razão pura, (KANT, 2001, p. 295-574)

ele dispõe ainda sobre a ‘dialética da razão pura’, que traduz o exercício do intelecto

sobre as categorias em direção a objetos que ultrapassam a possibilidade da

experiência. Assim, a razão humana continua empregando as categorias

‘infinitamente’ em uma ‘seqüência causal’, o que permite criar objetos que não

podem ser conhecidos (isto é, não podem ter uma correspondência no mundo

sensível) e que, quando pensados, geram o que o autor denomina ‘antinomias da

29 Sobre as conclusões de Kant sobre sua qualificação como idealista, bem como sua visão sobre essa qualificação e os motivos pelos quais o mesmo entendia não se enquadrar nesta classificação teórica, ver Crítica da razão pura (2001, p. 76, 243) e Prolegômenos (2003c, p. 63-64). 30 À frente será esclarecida a concepção de entendimento para Kant como uma das faculdades da alma (do intelecto) humana.

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razão pura’ – proposições contraditórias das quais a nossa razão pode afirmar tanto

a tese quanto a antítese, tornando o raciocínio, assim, inconclusivo e enganoso. São

quatro as antinomias – a primeira, se o mundo, segundo o tempo e o espaço teria

um começo (tese) ou seria infinito (antítese); a segunda, se tudo no mundo é

constituído pelo simples (tese) ou tudo é composto (antítese); a terceira, se há no

mundo uma causalidade da liberdade (tese) ou toda causalidade é a da natureza

(antítese); e a quarta, se na série causal do mundo existe um ser necessário, uma

causa inicial incondicionada (tese) ou se tudo no mundo é mesmo contingente

(antítese) (KANT, 2003c, p. 126-127).

Essas são as idéias da razão pura – conforme já mencionado – a que tende

todo ser racional, idéias estas que, trazidas ao contexto popular, traduzem-se

respectivamente nas perguntas: existe um início do mundo?; a alma humana é uma

unidade e, portanto, imortal?; o ser racional possui liberdade para agir contra as

tendências naturais?; e, Deus existe? Assim, eis-nos de volta aos três problemas

básicos da Metafísica: sobre a existência de Deus, da Liberdade e da Alma.

Como pôde ser percebido, as três tarefas desenvolvidas na Crítica da razão

pura, referentes ao desenvolvimento das atividades produzidas pelo espírito

humano31, correspondem a três faculdades, ou potencialidades do ser racional – a

capacidade de ser afetado pelos fenômenos (sensibilidade), a capacidade de

formular juízos sobre as representações dos fenômenos (entendimento) e a

capacidade de formular juízos transcendentes, ou seja, impossíveis de serem

apreendidos em um fenômeno (razão pura). Esta última potencialidade interessa

especialmente ao presente estudo uma vez que, como já apontado, esta faculdade

restringe-se à capacidade de elaborar a Metafísica, que contém o objetivo ora

postulado: a idéia da liberdade.

Por fim, a partir das influências racionalista-dogmática e empirista-cética no

campo da Metafísica, Kant foi incitado à construção de uma Teoria do Conhecimento

que lhe exigiu uma profunda e cautelosa pesquisa das atividades intelectuais desde

sua origem. E, com isso, descobriu as funções da mente humana, estudando-as

separada e minuciosamente nos limites e possibilidades de sua própria razão

examinadora, chegando à divisão que será tratada a seguir.

31 Kant ainda desenvolve uma quarta tarefa na Crítica da razão pura, que é a criação de um método para orientar a razão no seu uso especulativo; isto é feito na ‘Doutrina transcendental do método’ (KANT, 2001, p. 573-673).

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3. Exame das faculdades (Vermögen)

Como foi mencionado, a partir da investigação de como é formado o

conhecimento no nosso intelecto, Kant acaba adotando uma composição e divisão

da alma humana em faculdades (apesar de não desenvolver especificamente o

assunto), classificadas originariamente em três: a receptividade (Empfänglichkeit), o

entendimento (Verstand) e a razão pura (reinen Vernunft). Estas, por sua vez,

possuem papéis que lhes são próprios e a espécies de pensamento ou

conhecimento específicos, sendo, também, subdivididas de acordo com

determinadas funções, igualmente denominadas faculdades (Vermögen)32 (KANT,

2001, p. 298; 2003c, p.163). Também salienta que, apesar dessa tripartição, o

intelecto humano é constituído de razão (englobando entendimento e razão pura) e

receptividade (KANT, 2001), sendo que caberia uma diferenciação entre a razão no

conhecimento do empírico (entendimento) e a razão no emprego puro das

categorias além da experiência possível (razão pura) (KANT, 2001, p. 558)33.

Entretanto, no presente trabalho consideram-se como primitivas as três faculdades

citadas, visto que o próprio autor torna essencial ao seu método que a razão em sua

função pura seja compreendida como uma potência distinta do entendimento, dado

que seu método requer uma completa exclusão da sensibilidade, como será

demonstrado à frente. Também deve ser salientado que Kant, por diversas vezes,

descreve expressamente uma divisão tripla, como, por exemplo, em Prolegômenos a

32 As três faculdades em pauta possuem subdivisões funcionais que também são chamadas pelo autor de faculdades. Por exemplo, considera a imaginação (Einbildlichkeit) como uma faculdade que faz parte da receptividade. Ainda, faz menção em diversos trechos de suas obras, sobretudo na Crítica da faculdade do juízo (2005), à ‘faculdades superiores e inferiores’ (da razão ou da receptividade) (KANT, 2001, p. 659), o que contudo não contraria o fato de que, originariamente as faculdades são três. 33 O tema da divisão das faculdades do espírito suscita um extenso debate sobre sua dual ou tríplice partição. Entretanto, tal discussão não tem razão de ser uma vez que a própria palavra faculdade, em alemão designa a idéia de capacidade, potência e função, sendo que os dois argumentos disputantes dirigem-se a três funções básicas da alma: a sensível, a da razão no uso sensível e a da razão no uso puro. É o que explica com razão, Caygill: “O segundo sentido de faculdade traduz o termo Vermögen que, por sua vez, é derivado do latim facultas e do grego dynamis. Embora este último fosse usado por muitos filósofos pré-socráticos, com destaque em Empédocles, o seu significado foi definitivamente fixado por Aristóteles na Metafísica. De uma forma geral, atribuiu dois sentidos ao termo: o primeiro referia-se a uma capacidade ou poder para realizar um fim, o outro um potencial para mudar que seria efetivado através de energeia. Essa definição dual de faculdade exerceu enorme influência e permaneceu notavelmente estável ao longo de toda a sua transmissão no aristotelismo medieval. Teve especial destaque na discussão da natureza da alma a qual estava dividida em vários potenciais ou faculdades de ação.” (2000, p. 142).

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toda Metafísica futura que queira apresentar-se como ciência (KANT, 2003c, p.163).

Ainda na Crítica da razão pura ele salienta que “Todo o nosso conhecimento

começa pelos sentidos, daí passa ao entendimento e termina na razão, acima da

qual nada se encontra em nós mais elevado [...]34 (KANT, 2001, p. 298); ainda nesse

mesmo texto, pouco à frente, refere-se à razão e ao entendimento como duas

faculdades distintas, descrevendo-lhes as características (2001, p. 298)35.

Começando pela receptividade, Kant preceitua que é a capacidade do sujeito

“mediante a qual este é afectado [sic] por objetos”36 (2001, p. 67).Também salienta

que:

A faculdade de intuição sensível é propriamente apenas uma simples receptividade que nos torna capazes de ser afetados de certo modo por representações cuja relação recíproca é uma intuição pura do espaço e do tempo (meras formas da nossa sensibilidade), e que se denominam objetos, na medida em que são ligadas e determináveis nessa relação (no espaço e no tempo) segundo leis da unidade da experiência.37 (KANT, 2001, p. 439).

Assim, receptividade (Empfänglichkeit) e sensibilidade (Sinnlichkeit) são

conceitos que, na obra de Kant, misturam-se e designam um mesmo significado38 –

a capacidade do sujeito de ser afetado por objetos e de representá-los em sua

relação interna e externa através de suas formas a priori constituídas – espaço e

tempo (KANT, 2005b, p. 247-261). Imperioso destacar a divisão que o autor adota

em sua obra Antropologia sob um ponto de vista pragmático, para a faculdade da

sensibilidade, em sentido e imaginação, sendo o primeiro a “faculdade de intuição na

presença de um objeto”39 (KANT, 2006, p. 52) e a última, sem a presença do objeto.

34 “Alle unsere Erkenntniß hebt von den Sinnen an, geht von da zum Verstande und endigt bei der Vernunft, über welche nichts Höheres in uns angetroffen wird [...]” (KrV-B, B. III, S. 237[21-23]; KrV-A, B. IV, S. 191[18-20]). 35 Ver também KANT (2001, p. 471, 534, 547, 558, 659). 36 “[…] von Gegenständen afficirt zu warden […]” (KrV-B, B. III, S. 55[12]; KrV-A, B. IV, S. 33[26]). 37 “Das sinnliche Anschauungsvermögen ist eigentlich nur eine Receptivität, auf gewisse Weise mit Vorstellungen afficirt zu werden, deren Verhältniß zu einander eine reine Anschauung des Raumes und der Zeit ist (lauter Formen unserer Sinnlichkeit), und welche, so fern sie in diesem Verhältnisse (dem Raume und der Zeit) nach Gesetzen der Einheit der Erfahrung verknüpft und bestimmbar sind, Gegenstände heißen.” (KrV-B, B. III, S. 340[27-32]). 38 Em Forma e princípios do mundo sensível e do mundo inteligível (KANT, 2005b), Kant define a sensibilidade como “a receptividade de um sujeito, pela qual é possível que o estado representativo dele seja afetado de certo modo pela presença de algum objeto.” (KANT, 2005b, p. 235). “Sensualitas est receptivitas subiecti, per quam possibile est, ut status ipsius repraesentativus obiecti alicuius praesentia certo modo afficiatur.” (Vorkritische, mundi, B. II, S. 329[13-14]). 39 “[...] ist das Vermögen der Anschauung in der Gegenwart des Gegenstandes,” (Antropologie, B. VII, S. 135[21-22]).

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Ainda, o ‘sentido’ é dividido em ‘interno’ e ‘externo’, sendo o primeiro determinado

pela noção a priori de tempo, na representação subjetiva de si mesmo40,

Quanto à segunda faculdade defendida no presente trabalho, Kant considera

que “[...] o entendimento pode ser definido como a faculdade de unificar os

fenômenos mediante regras [...]”41 (KANT, 2001, p. 300). Não obstante esta

afirmação categórica, o autor nos fornece outras definições: ‘faculdade das regras’

(Vermögen der Regeln) (KANT, 2001, p. 299), faculdade produtora de conceitos

(Vermögen erzeuger der Begriffe) (KANT, 2001, p. 298) “um sistema encadeado

segundo leis necessárias”42 (KANT, 2001, p. 535) uma faculdade de julgar (ein

Vermögen zu urteilen) (KANT, 2001, p. 103), a faculdade do conhecimento mediato

do objeto (KANT, 2001, p. 102; 298). Em verdade, todas constituem definições que

cabem pertinentemente ao entendimento, sendo que, em síntese, pode este ser

considerado a ‘faculdade de encadear as representações dadas por meio da

sensibilidade (receptividade), segundo leis necessárias, através das categorias

(conceitos), estabelecendo regras e princípios ao múltiplo dos fenômenos (também

chamado diverso da sensibilidade), produzindo juízos, ou seja, atribuindo predicados

a sujeitos.

Este é um conceito complexo da faculdade em questão que assimila suas

potências e resume bem sua atividade principal, a de conhecer e tornar possível a

experiência. Assim, a tarefa do entendimento é “ligar por conceitos o diverso dos

fenômenos e submetê-lo a leis empíricas”43 (KANT, 2001, p. 547). Ainda, afirma

Caygill, “o entendimento recebe da sensibilidade os materiais da experiência, os

quais processa, então, mediante sua subsunção numa lei.” (2005, p. 113) e atenta

para o fato de que, ademais, cumpre importante função como “legislador da

natureza” (CAYGILL, 2005, p. 113) na medida em que pode proporcionar “[...] aos

fenômenos a sua conformidade às leis e por este meio devem tornar possível a

experiência”44 (KANT, 2001, p. 169).45

40 Sublinhe-se que existe diferença entre ‘sentido interno’ e ‘apercepção interna’, o que é notavelmente explicado por Caygill (2005, 33-34; 287-288). 41 “Der Verstand mag ein Vermögen der Einheit der Erscheinungen vermittelst der Regeln sein, [...]” (KrV-B, B. III, S. 239[27-28]; KrV-A, B. IV, S. 193[25-26]). 42 “ein nach notwendigen Gesetzen zusammenhängendes System wird.” (KrV-B, B. III, S. 428[28-29]; KrV-A, B. IV, S. 193[25-26]) 43 “[…] so wie der Verstand das Mannigfaltige der Erscheinungen durch Begriffe verknüpft und unter empirische Gesetze bringt.” (KrV-B, B. III, S. 439[32-33]) 44 “[…] sondern vielmehr den Erscheinungen ihre Gesetzmäßigkeit verschaffen und eben dadurch Erfahrung möglich machen müssen.” (KrV-A, B. IV, S. 093[2-3])

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Por sua vez, a terceira faculdade – que ora será chamada razão pura (reine

Vernunft)46 – é considerada “a faculdade de unificar as regras do entendimento

mediante princípios”47 (KANT, 2001, p. 300) logo, é a ‘faculdade dos princípios’

(Vermögen der Prinzipien) (KANT, 2001, p. 299), considera ‘a faculdade de derivar o

particular do geral’ (KANT, 2001, p. 535) e, por fim, designa-a ‘a faculdade superior

do conhecimento’ (KANT, 2001, p. 659) cujo exercício opõe-se a tudo que existe de

empírico.

Edson Bini, no seu ‘glossário’ (KANT, 2003a, p. 25-41) constante da tradução

para o português da Metafísica dos Costumes, sustenta que razão pura é “a razão

enquanto considerada detentora dos princípios capazes de permitir a produção do

conhecimento de um objeto de modo exclusivamente a priori, ou seja, sem o

concurso ou a mediação da experiência”. (KANT, 2003a, p. 36). Caygill (2000, p.

271) salienta que, no texto pré-crítico A falsa sutileza das quatro figuras silogísticas

(KANT, 2005b, p. 25-49) Kant apresenta a razão como ‘a faculdade fundamental de

julgar’ que distingue os homens dos animais e, ainda, que na Crítica da razão pura

(KANT, 2001) Kant coloca a razão como responsável para definir o que é apropriado

para os seres humanos.

De todos estes conceitos, cujas citações são inúmeras ao longo do opus

kantiano, nota-se que a razão pura constitui um exercício de síntese distinto do

entendimento, notadamente pelo objeto ao qual confere unidade48. Assim, a

faculdade da razão pura se presta ao emprego das categorias do entendimento

esvaziadas de conteúdo empírico, apenas com os conceitos a priori constituídos. “A

razão conserva para si, unicamente, a totalidade absoluta no uso dos conceitos do

entendimento e procura levar, até ao absolutamente incondicionado, a unidade

45 O entendimento possui, também, certas subdivisões em relação ao seu exercício, que entretanto não serão ora expostos por tratarem de assunto de demasiada amplitude que demandaria um trabalho à parte. Ademais não terá relevância especial para o presente estudo. 46 Note-se que Kant infere ao termo ‘razão’, diferentes significados, como explica Edson Bini (Kant, 2003a, p. 36), que salienta que são atribuídos três sentidos ao termo: um genérico, de tudo aquilo que é a priori; um lato, no sentido de faculdade intelectual que produz todos os princípios do conhecimento puro; e um sentido restrito, de faculdade superior no exercício do pensar, responsável pelos conceitos especiais de alma, mundo e Deus. Logo, por este motivo parece mais correto usar o termo razão pura para designar a faculdade, terceiro dos sentidos acima. 47 “[…] so ist die Vernunft das Vermögen der Einheit der Verstandesregeln unter Principien.” (KrV-B, B. III, S. 239[28-29]; KrV-A, B. IV, S. 193[26-27]). 48 “Tornar sistemática a unidade de todos os atos empíricos possíveis do entendimento é a tarefa da razão,” (KANT, 2001, p. 547). “Die Einheit aller möglichen empirischen Verstandeshandlungen systematisch zu machen, ist ein Geschäfte der Vernunft,” (KrV-B, b III, s. 439[32-33]).

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sintética que é pensada na categoria”49 (KANT, 2001, p. 316); “o conceito

transcendental da razão refere-se sempre apenas à totalidade absoluta na síntese

das condições e só termina no absolutamente incondicionado, ou seja,

incondicionado em todos os sentidos”50 (KANT, 2001, p. 316). Em outras palavras,

“A razão aliada à liberdade é excessiva, procurando explorar o incondicionado,

quebrando todos os limites” (CAYGILL, 2000, p. 271) impostos pela experiência

possível.

Contudo, a realização destas idéias da razão, concebidas pelo

direcionamento à totalidade e ao incondicionado, é “limitada e defeituosa [...] em

limites que é impossível determinar”51 (KANT, 2001, p. 317), portanto, não assume a

condição de princípio constitutivo, mas apenas regulador da razão humana (em

sentido lato), como pode ser observado a seguir:

não é também um princípio constitutivo da razão, servindo para ampliar o conceito de mundo sensível para além de toda experiência possível, mas um princípio que permite prosseguir e alargar a experiência o mais possível, segundo o qual nenhum limite empírico deverá considerar-se com o valor de limite absoluto; é, portanto, um princípio da razão que postula, como regra, o que devemos fazer na regressão, mas não antecipa o que é dado em si no objeto antes de qualquer regressão. Por isso lhe chamo princípio regulador da razão [...]52 (KANT, 2001, p. 448).

Em suma, ao libertar-se das condições da experiência possível, a razão pura

arrisca-se em um campo onde não se pode firmar com segurança (pois falta o solo

proporcionado pelos fenômenos), considerando a alma (a substância essencial; o

elemento indivisível), a liberdade (a causa inicial incondicionada) e Deus (o ser

criador que não foi criado por nada) como se fossem objetos reais da Φυσις (physis),

o que não pode ser dado concretamente em nenhum fato empírico, embora

49 “Jene behält sich allein die absolute Totalität im Gebrauche der Verstandesbegriffe vor und sucht die synthetische Einheit, welche in der Kategorie gedacht wird, bis zum Schlechthin Unbedingten hinauszuführen.” (KrV-B, B. III, S. 253[20-23]; KrV-A, B. IV, S. 207[8-11]). 50 “Nun geht der transscendentale Vernunftbegriff jederzeit nur auf die absolute Totalität in der Synthesis der Bedingungen und endigt niemals als bei dem schlechthin, d. i. in jeder Beziehung Unbedingten.” (KrV-B, B. III, S. 253[15-17]; KrV-A, B. IV, S. 207[3-5]). 51 “[…]Ihre Ausübung ist jederzeit begränzt und mangelhaft, aber unter nicht bestimmbaren Gränzen,” (KrV-B, B. III, S. 254[27-28]; KrV-A, B. IV, S. 208[13-14]). 52 “[...] auch kein constitutives Princip der Vernunft, den Begriff der Sinnenwelt über alle mögliche Erfahrung zu erweitern: sondern ein Grundsatz der größtmöglichen Fortsetzung und Erweiterung der Erfahrung, nach welchem keine empirische Grenze für absolute Grenze gelten muß, also ein Principium der Vernunft, welches als Regel postulirt, was von uns im Regressus geschehen soll, und nicht anticipirt, was im Objecte vor allem Regressus an sich gegeben ist. Daher nenne ich es ein regulatives Princip der Vernunft,[...]” (KrV-B, B. III, S. 349[16-24]).

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proporcione um aprimoramento da razão, especialmente na esfera do agir humano.

E assim,

a razão não cede ao fundamento que é dado empiricamente e não segue a ordem das coisas, tais quais se apresentam no fenômeno, mas com inteira espontaneidade criou para si uma ordem própria, segundo idéias as quais adapta as condições empíricas e segundo as quais considera mesmo necessárias ações que ainda não aconteceram e talvez não venham a acontecer, sobre as quais, porém, a razão supõe que pode ter causalidade; de outra forma não esperaria das suas idéias efeitos alguns sobre a experiência.53 (KANT, 2001, p. 472).

Por fim, a faculdade da razão pura é tratada nesta seção de maneira apenas

elementar, sendo que na seção seguinte serão analisadas as questões específicas

do assunto que melhor concernem ao objeto do presente estudo. Todavia, faz-se

mister retomar a discussão a propósito da distinção kantiana entre razão e

entendimento, sendo fundamental não somente à caracterização e divisão das

matérias que pertencem a cada uma, como ao complemento da fundação do

posicionamento de que as faculdades primárias do intelecto humano se reduzam

realmente a três.

Assim, Kant diz que a faculdade da razão pura

distingue-se propriamente e sobremodo de todas as forças empiricamente condicionadas, porque examina os seus objetos apenas segundo idéias, determinando, a partir daí, o entendimento, o qual, por sua vez, faz um uso empírico dos seus conceitos (sem dúvida também puros).54 (KANT, 2001, p. 471).

Também salienta que

A razão tem, pois, propriamente por objeto, apenas o entendimento e seu emprego conforme a um fim e, tal como o entendimento reúne por conceitos o que há de diverso no objeto, assim também a razão, por sua vez, reúne por intermédio das idéias o diverso dos conceitos, propondo uma certa unidade coletiva, como fim, aos atos do entendimento, o qual, de outra

53 “[…] so giebt die Vernunft nicht demjenigen Grunde, der empirisch gegeben ist, nach und folgt nicht der Ordnung der Dinge, so wie sie sich in der Erscheinung darstellen; sondern macht sich mit völliger Spontaneität eine eigene Ordnung nach Ideen, in die sie die empirischen Bedingungen hinein paßt, und nach denen sie sogar Handlungen für nothwendig erklärt, die doch nicht geschehen sind und vielleicht nicht geschehen werden, von allen aber gleichwohl voraussetzt, daß die Vernunft in Beziehung auf sie Causalität haben könne; denn ohne das würde sie nicht von ihren Ideen Wirkungen in der Erfahrung erwarten.” (KrV-B, B. III, S. 372[3-11]). 54 “[…] vornehmlich wird die letztere ganz eigentlich und vorzüglicher Weise von allen empirisch bedingten Kräften unterschieden, da sie ihre Gegenstände bloß nach Ideen erwägt und den Verstand darnach bestimmt, der denn von seinen (zwar auch reinen) Begriffen einen empirischen Gebrauch macht.” (KrV-B, B. III, S. 371[10-14])

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forma, apenas teria de se ocupar da unidade distributiva.55 (KANT, 2001, p. 534)

Nota-se claramente nos trechos acima que, apesar de a razão pura e o

entendimento fazerem parte da razão em sentido lato, são faculdades

(potencialidades) distintas, do espírito humano. Neste passo, a primeira enseja

unidade às representações oriundas da sensibilidade, possibilitando a experiência (o

fenômeno), enquanto a última o faz nas categorias do entendimento de maneira a

priori, em direção à totalidade ou à infinitude das condições, formulando idéias

puras, de maneira que “O entendimento constitui um objeto para a razão, do mesmo

modo que a sensibilidade para o entendimento.”56 (KANT, 2001, p. 547).

Ademais, ainda poderiam ser citados aqui diversos textos neste sentido,

ciente de que, em toda a obra de Kant, evidente se delineia tal interesse em separar

as faculdades em três classes – entendimento, razão e sensibilidade – o que

acontece, segundo Caygill, com o “fim de caracterizar como é possível ao

entendimento originar seus próprios conceitos puros” (CAYGILL, 2005, p. 112).

4. Os limites e possibilidades do conhecimento

Estruturadas as faculdades do intelecto, bem como discriminadas suas

respectivas funções e áreas de atividade, Kant segue em busca de quais são os

limites do conhecimento humano, o que lhe dará apoio para que entenda as

condições de possibilidade da ciência Metafísica, assim como os limites que a esta

se impõem, na medida em que visa ser tratada como verdade, ou seja, como

conhecimento científico, assim como a Física e a Matemática puras.

No final da Crítica da razão pura o autor chega à conclusão de que “Todo o

interesse da [...] razão (tanto especulativa como prática) concentra-se nas seguintes

55 “Die Vernunft hat also eigentlich nur den Verstand und dessen zweckmäßige Anstellung zum Gegenstande; und wie dieser das Mannigfaltige im Object durch Begriffe vereinigt, so vereinigt jene ihrerseits das Mannigfaltige der Begriffe durch Ideen, indem sie eine gewisse collective Einheit zum Ziele der Verstandeshandlungen setzt, welche sonst nur mit der distributiven Einheit beschäftigt sind.” (KrV-B, B. III, S. 427[26-32]) 56 “Der Verstand macht für die Vernunft eben so einen Gegenstand aus, als die Sinnlichkeit für den Verstand.” (KrV-B, B. III, S. 439[29-30])

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três interrogações: 1. Que posso saber ? 2. Que devo fazer ? 3. Que me é permitido

esperar ?” (KANT, 2001, p. 639)57

A primeira pergunta é respondida na própria Crítica da razão pura, na análise

dos papéis das faculdades cognoscitivas. Assim, os limites do conhecimento se

estabelecem nos lindes da experiência possível. Só pode ser conhecido aquilo que é

realizável no fenômeno, isto é, os objetos que possam ser representados no tempo e

no espaço, de acordo com as leis proporcionadas pelas doze categorias do

entendimento. Por essa afirmação percebe-se que a faculdade da razão pura não

produz conhecimento58 e, uma vez que trata apenas do emprego hiperbólico das

categorias puras do entendimento em função do infinito ou do incondicionado59 rumo

à totalidade das condições, produz ‘idéias puras’, somente ‘pensáveis’, mas de

realidade impossível na experiência humana. Logo, fica estabelecida a diferença

entre o ‘conhecer’ e o ‘pensar’.

Essas conclusões explicam a existência da Matemática e da Física como

ciências, mas implicam uma constatação pessimista – se, por um lado, Hume errou

ao considerar a impossibilidade da imputação de leis à natureza, por outro, estava

certo de que todo o conhecimento necessita da experiência, pelo menos em

possibilidade, para ser produzido. Assim, a questão transcendental capital dos

Prolegômenos – “Como é possível a metafísica enquanto ciência?”60 (KANT, 2003c,

p. 44) – continua sem uma resposta plausível.

É neste momento que Kant percebe que, apesar de todo conhecimento

iniciar-se com a experiência, exigindo a possibilidade de um fenômeno

correspondente, a razão humana não se contenta com o empírico, buscando

57 “Alles Interesse meiner Vernunft (das spekulative sowohl, als das praktische) vereinigt sich in folgenden drei Fragen: 1. Was kann ich wissen? 2. Was soll ich tun? 3. Was darf ich hoffen?” (KrV-B, B. III, S. 522[30-34]) 58 À frente será demonstrado que a razão pura pode influenciar a esfera moral, uma vez que a idéia pura da liberdade é possível. Notadamente, Kant evidencia a possibilidade da lei moral, através da pressuposição do ‘fato da razão’ (Faktum der Vernunft). 59 As próprias noções de totalidade das condições – o infinito e o incondicionado da série causal – não são concebíveis pelo ser humano de maneira concreta. Em verdade, o conceito de ‘infinito’ não significa nada, exceto que um ser humano não pode mais seguir a seqüência causal e, por isso, a interrompe, sob a suposição de que perdure indefinidamente. Por sua vez, o conceito de uma causa inicial incondicionada é também somente uma interrupção repentina da regressão na série causal, sob a suposição de que a causa imaginada seja a primeira. Contudo o ser humano não pode conceber uma causa deste tipo, sem uma causa anterior. Portanto, é a incapacidade da razão humana em vencer a regressão na série de causas que explica a necessidade da criação dos conceitos de infinito e incondicionado. 60 “wie ist Metaphysik als Wissenschaft möglich?” (Prolegomena, B. IV, S. 280[6])

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conhecer objetos cuja realização encontra-se fora da experiência humana (KANT,

2001, p. 36). Assim a razão, no seu uso puro, concebe as idéias, que permanecem

transcendentes à razão especulativa e sem nenhum uso imanente. Mas, apesar de

não possuírem um valor constitutivo do conhecimento, tais idéias são

constantemente recomendadas pela razão, de modo que Kant as explica vendo

nelas um importante valor regulador que serve para efetuar a unidade de leis

empíricas, “a unificação de todos os fins [...] num fim único, a felicidade”61 (KANT,

2001, p. 636).

Assim sendo, a idéia psicológica denota a insuficiência dos conceitos

empíricos e a possibilidade da substância essencial (da alma); a idéia teológica

denuncia a impotência de todo o conhecimento possível da natureza para satisfazer

a razão em suas investigações legítimas e a possibilidade da existência de Deus; e

as idéias cosmológicas demonstram a deficiência da necessidade cega da natureza

– a causalidade natural – conduzindo-a ao conceito de uma causa pela liberdade

(KANT, 2003c, p.159-160). E deste modo:

As idéias transcendentais servem, pois, se não para nos instruir positivamente, pelo menos para eliminar as afirmações audaciosas do materialismo, do naturalismo e do fatalismo, que estreitam o campo da razão, e para criar assim um espaço, fora do domínio da especulação, para as idéias morais;62 (KANT, 2003c, p. 160).63

Por fim, se não se prestam à constituição da experiência e à ampliação do

mundo sensível para além dos limites dos fenômenos, as idéias servem, contudo,

61 “[…] in the teachings of the cleverness the union of all purposes, that are given up us by our inclinations, in which some, the beatitude […]” (KrV-B, B. III, S. 520[4-7]). 62 “So dienen die transscendentale Ideen, wenn gleich nicht dazu, uns positiv zu belehren, doch die freche und das Feld der Vernunft verengende Behauptungen des Materialismus, Naturalismus und Fatalismus aufzuheben und dadurch den moralischen Ideen außer dem Felde der Speculation Raum zu verschaffen;” (Prolegomena, B. IV, S. 363[25-29]). 63 Höffe (2005, p. 146) explica que o desenvolvimento das antinomias, em Kant, tem mais que uma mera importância negativa, no sentido de se saber que não se pode conhecer sobre Deus, sobre a alma e sobre a liberdade. Essa importância está em se demonstrar também que o oposto não pode ser afirmado, isto é, que essas questões não existem, o que leva este Kant a “cortar pela raiz” (KANT, 2001, p. 30) todas as posições que acreditam na refutabilidade – “o materialimo, o fatalismo, o ateísmo, a incredulidade dos espíritos fortes, o fanatismo e a superstição, que se podem tornar nocivos a todos e, por último, também o idealismo e cepticismo, que são sobretudo perigosos para as escolas e dificilmente se propagam no público.” (KANT, 2001, p. 30). “Durch diese kann nun allein dem Materialism, Fatalism, Atheism, dem freigeisterischen Unglauben, der Schwärmerei und Aberglauben, die allgemein schädlich werden können, zuletzt auch dem Idealism und Scepticism, die mehr den Schulen gefährlich sind und schwerlich ins Publicum übergehen können, selbst die Wurzel abgeschnitten werden.” (KrV-B, B. III, S. 21[10-15]).

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para “alargar a experiência o mais possível e segundo o qual nenhum limite empírico

deverá considerar-se como valor de limite absoluto.”64 (KANT, 2001, p.448).

Entretanto, mesmo nesse uso regulador, característico das idéias puras da

razão, faz-se urgente a instituição de regras, as quais Kant designa sob o título de

‘doutrina transcendental do método’ e entende como “a determinação das condições

formais de um sistema completo da razão”65 (KANT, 2001, p 575) no seu uso puro.

Para tanto, no estabelecimento de tal método é necessária uma disciplina, um

cânone e arquitetônica da razão pura66.

5. Os limites do conhecimento na Metafísica e a necessidade da crítica

Em verdade, se o objeto do conhecimento é encontrado no fenômeno, em um

primeiro momento conclui-se que a Metafísica estaria fora dos limites do

conhecimento, logo, não seria possível como ciência, uma vez que não teria

possibilidade de confirmação empírica. Entretanto, constitui-se impróprio tal

raciocínio, uma vez que esta ciência não trata daquilo que é empírico, não podendo,

pois, ter os seus fundamentos orientados pelo material de um meio que lhe é

estranho, sendo que, se seguisse esta metodologia, nunca apresentaria

fundamentos confiáveis. Deste modo, para descobrir as condições em que é

possível a Metafísica, suas fontes deverão ser procuradas na própria origem, ou

seja, na esfera a priori do sujeito humano – na razão pura.

Para tanto, esta ciência tem que ser depurada desses fundamentos que lhe

são estranhos; em outras palavras, deve-se estabelecer um processo de purificação

metodológica67 com o afastamento radical de todas as influências da sensibilidade e

a total subordinação ao cunho da própria razão, isto é, deve-se proceder a uma

64 “Erweiterung der Erfahrung, nach welchem keine empirische Grenze für absolute Grenze gelten muß,” (KrV-B, B. III, S. 349[19-20]). 65 “die Bestimmung der formalen Bedingungen eines vollständigen Systems der reinen Vernunft.” (KrV-B, B. III, S. 465[20-22]). 66 Que entretanto não interessam ser ora discutidos. 67 Esse processo de purificação é realizado justamente através do procedimento de suspensão do juízo, que proporciona o afastamento das incertezas fornecidas pela sensibilidade, com vistas à obtenção de uma resposta ideal, cuja incontestabilidade inspira a condição de modelo para a conduta humana.

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crítica (uma investigação científica) da razão pela própria razão. Nas palavras de

Kant:

É um convite à razão para de novo empreender a mais difícil de suas tarefas, a do conhecimento de si mesma e da constituição de um tribunal que lhe assegure as pretensões legítimas e, em contrapartida, possa condenar-lhe todas as pretensões infundadas. [...] Este tribunal outra coisa não é que a própria Crítica da razão pura.68 (KANT, 2001, p. 5).

De fato, tratando a Metafísica de questões de cuja experiência não se pode

corroborar a possibilidade, sua única viabilidade como conhecimento científico

opera-se através da sujeição ao ‘tribunal da razão’. Como a Metafísica nada mais é

do que a própria razão no seu uso puro, esse empreendimento é uma crítica da

razão por si mesma, uma vez que não pode essa ciência ser fundada em bases

dogmáticas ou em uma pretensiosa doutrina da felicidade, de modo que: “Nada, a

não ser a lucidez de uma crítica rigorosa, mas justa, pode libertar dessa ilusão

dogmática que, pela atração de uma felicidade imaginária retém tantos homens em

teorias e sistemas.”69 (KANT, 2001, p. 369).

Assim, a crítica é necessária e essencial à instauração de uma ciência dotada

de clareza e certeza, crítica esta que se caracteriza como um método dotado de

plena autonomia, em que as investigações não se baseiam em fundamentos de

natureza dogmática, nem em hipóteses que exigem um regresso infinito na cadeia

de fundamentos. Este método puro deve, pois, partir de raízes existentes no próprio

conhecimento buscado, isto é, na própria razão humana.

É certo que, se a fonte do conhecimento reside no sujeito racional, sua

pesquisa deve partir também do próprio sujeito, sendo que, para a Metafísica, esta é

a única maneira de se auferir sua possibilidade sem a necessidade de afirmação de

experiências cuja ocorrência se mostre duvidosa ou impossível70.

68 “und eine Aufforderung an die Vernunft, das beschwerlichste aller ihrer Geschäfte, nämlich das der Selbsterkenntniß, aufs neue zu übernehmen und einen Gerichtshof einzusetzen, der sie bei ihren gerechten Ansprüchen sichere, dagegen aber alle grundlose Anmaßungen nicht durch Machtsprüche, sondern nach ihren ewigen und unwandelbaren Gesetzen abfertigen könne; und dieser ist kein anderer als die Kritik der reinen Vernunft selbst.” (KrV-A, B. IV, S. 9[04-10]). 69 “Nicht als die Nüchternheit einer strengen, aber gerechten Kritik kann von diesem dogmatischen Blendwerke, das so viele durch eingebildete Glückseligkeit unter Theorien und Systemen hinhält,” (KrV-A, B. IV, S. 247[2-5]). 70 De fato não pode ser afirmada categoricamente a experiência nas questões metafísicas, sendo que tudo que se assevera em relação a fatos de tais questões é sempre permeado de obscuridade e contradição.

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Por conseguinte, o conhecimento metafísico deve ser buscado com

‘autonomia epistêmica’, o que significa dizer que seus fundamentos não devem

residir em argumentos que não podem ser afirmados pela própria razão a priori.

Em suma, o método crítico kantiano: “consiste no auto-exame sistemático da

razão a fim de determinar as fontes e o alcance de seus conceitos a priori, e de atuar

como um cânone contra sua inadequada extensão além dos limites da experiência

possível.” (CAYGILL, 2000, p. 230).

Assim, com o foco nessa epistemologia, será demonstrado adiante que o

conhecimento no campo Metafísico tem sua possibilidade realizada na esfera do agir

humano, onde produz o conhecimento moral, através da idéia de liberdade que se

realiza na possibilidade do dever, que é o fato da razão (Faktum der Vernunft) – um

fato a priori, cuja existência, entretanto, é postulada no mundo sensível, e cuja

possibilidade se verifica na própria possibilidade da moralidade.

6. A suspensão do juízo como instrumento da crítica

O método crítico kantiano decorre, também, de uma questão prática dos

estudiosos de sua época. Para o autor, o fato de, até então, as respostas às

questões metafísicas sempre se depararem com contradições inevitáveis, exigia que

fosse construída uma metodologia que proporcionasse ao pensador atingir uma

certeza que, para Kant, poderia se referir tanto ao conhecimento quanto à ignorância

dos objetos,

[...] isto é. Uma decisão quanto aos objetos de suas interrogações ou quanto à capacidade ou incapacidade da razão para formular juízos que se lhes reportem; conseqüentemente, para estender com confiança a nossa razão pura ou para lhe pôr limites seguros e determinados.71 (KANT, 2001, p. 51).

A certeza, pois, configura elemento essencial do método de Kant e, em sua

teoria, não representa apenas um critério de avaliação da verdade e não se constitui

71 “d. i. entweder der Entscheidung über die Gegenstände ihrer Fragen, oder über das Vermögen und Unvermögen der Vernunft in Ansehung ihrer etwas zu urtheilen, also entweder unsere reine Vernunft mit Zuverlässigkeit zu erweitern, oder ihr bestimmte und sichere Schranken zu setzen.” (KrV-B, B. III, S. 41[22-26]).

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apenas pela ausência de dúvida ou contradição (CAYGILL, 2000, p. 56), sendo,

entretanto, importantíssimo fator para a avaliação dos limites e possibilidades do

conhecimento, e pressuposto para a apuração das verdades científicas.

E, de acordo com essas condições, de certeza e averiguação das

possibilidades do conhecimento – sobretudo do metafísico – é que Kant,

influenciado pelo método epistemológico de René Descartes72, descobre que não

poderia fundamentar sua pesquisa em nada que pudesse ser contestado, ou seja,

não podia partir de elementos que contivessem dúvida ou contradição, momento em

que adota na teoria do conhecimento o método de suspensão do juízo.

De fato, isto é questão resultante também de diversos fatores já explicitados,

tal como a necessidade de purificação metodológica e de autonomia epistêmica –

mesmo porque estas duas questões também implicavam a tentativa de saída de um

conjunto de construções teóricas dogmáticas contraditórias que tornavam a

Metafísica um campo instável e inseguro – abarrotado de dúvidas e fundamentos

obscuros.

6.1. Dúvida e suspensão do juízo em Descartes

Conforme explicitado, a notável contribuição de Descartes para a teoria de

Kant é o seu método, em especial, a suspensão das faculdades duvidosas para a

formulação de premissas verdadeiras que pudessem fundamentar as questões

científicas objetivadas. E, assim como Kant, Descartes parte da insatisfação diante

dos métodos de investigação até então utilizados, como se nota a seguir:

Há já algum tempo eu me apercebi de que, desde meus primeiros anos, recebera muitas falsas opiniões como verdadeiras, e de que aquilo que depois eu fundei em princípios tão mal assegurados não podia ser senão mui duvidoso e incerto; de modo que me era necessário tentar seriamente, uma vez em minha vida, desfazer-me de todas as opiniões a que então dera crédito, e começar tudo novamente desde os fundamentos, se quisesse estabelecer algo de firme e de constante nas ciências. (DESCARTES, 1979b, p. 85).

72 Método da instauração da dúvida que é apresentado na obra Discurso do método (DESCARTES, 1979a).

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O autor se opõe, de forma peculiar, à lógica formal que pressupõe

determinadas premissas como verdadeiras, sem demonstrar entrementes sua

correção, de modo que, em sendo estas dotadas de incerteza, todas as conclusões

nelas alicerçadas também o serão (DESCARTES, 1979b). Descartes buscava por

meio da demonstração das questões metafísicas sobre a existência de Deus e da

alma (DESCARTES, 1979b e c), comprovar a evidência da verdade do mundo;

percebeu, neste meio tempo, que não poderia realizar estes objetivos através dos

métodos tradicionais, o que o fez refletir sobre os limites do que poderia conhecer

com certeza (DESCARTES, 1979b). Assim, busca justamente a certeza, clareza e

distinção nas formulações, ou seja, a retidão do conhecimento, o qual deverá se

apresentar digno de cientificidade. Para tanto, é premente um novo método que

possibilite a exclusão de todo argumento que não obedeça a estes requisitos, um

método segundo o qual, partindo da dúvida absoluta, conduzisse à mais absoluta

certeza, um modo de chegar a verdades concretas.

[...] mas, por desejar então ocupar-me somente com a pesquisa da verdade, pensei que era necessário [...] rejeitar como absolutamente falso tudo aquilo em que pudesse imaginar a menor dúvida, a fim de ver se, após isso, não restaria algo em meu crédito, que fosse inteiramente indubitável. (DESCARTES, 1979a, p. 46).

Por conseguinte, na obra de Descartes é implementada a metodologia da

dúvida (dúvida metódica) que, ao contrário da dúvida sistemática (cujo objetivo é

somente duvidar)73 serve como meio de se chegar à certeza; isto é, nesta

metodologia a dúvida adquire a função de norte científico, de critério de

verificabilidade epistemológica, ou seja, de estabelecer os marcos e limites hábeis à

obtenção da verdade, sem a incursão nos erros e evidências ilusórias que ocorriam

usualmente. O autor propõe um novo modelo de construção e acesso seguro à

ciência, tendo como princípio de seu método:

[...] jamais acolher alguma coisa como verdadeira que eu não conhecesse evidentemente como tal; isto é, de evitar cuidadosamente a precipitação e a prevenção, e de nada incluir em meus juízos que não se apresentasse tão clara e tão distintamente a meu espírito, que eu não tivesse nenhuma ocasião de pô-lo em dúvida. (DESCARTES, 1979a, p. 37).

73 “Não imitei os céticos que duvidam apenas por duvidar, e fingem estar sempre indecisos; ao contrário, toda a minha intenção foi chegar a uma certeza, afastar os sedimentos e a areia para chegar à pedra ou ao barro que está embaixo.” (DESCARTES, 1989; p. 99)

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Deve-se ressaltar que não é a dúvida em si que possui valor no método

cartesiano, mas o que posso descobrir através dela, ou seja, o critério

epistemológico utilizado para obter um conhecimento científico dotado de certeza,

que exige que o investigador exclua do seu estudo tudo aquilo que possa trazer

dúvida, de maneira que "[...] o menor motivo de dúvida que [...] nelas encontrar

bastará para [...] levar a rejeitar todas." (DESCARTES, 1979b, p. 85).

Estabelecida sua metodologia, Descartes percebe que os sentidos não são

confiáveis74 e que a ciência que depende de observações sensoriais é suspeita, em

virtude de não se fundar em argumentos que possam ser provados ou cuja certeza

não possa ser apurada. E assim descreve que:

Tudo o que recebi, até presentemente, como o mais verdadeiro e seguro,aprendi-o dos sentidos ou pelos sentidos: ora, experimentei algumas vezes que esses sentidos eram enganosos, e é de prudência nunca se fiar inteiramente em quem já nos enganou uma vez. (DESCARTES, 1979b, p. 85). Assim, porque os nossos sentidos nos enganam às vezes, quis supor não havia coisa alguma que fosse tal como eles nos fazem imaginar. (DESCARTES, 1979a, p. 46).

Obedecendo à metodologia da dúvida, o autor não pressupõe que a

faculdade dos sentidos engane a maioria das vezes, mas considera que, se

enganou uma vez, pode enganar outras, de modo que nunca poderia ser conferida

certeza às conclusões obtidas ante a presença dessa faculdade, cujas conclusões

devem ser descartadas para qualquer conclusão científica.

Nesse contexto, considerando a faculdade dos sentidos uma fonte da qual se

pode duvidar, só resta ao autor promover sua exclusão em suas investigações que,

a partir deste momento, deverão utilizar apenas as premissas que não dependem

desta faculdade. Excluindo os sentidos de sua avaliação, o autor coloca o mundo

entre parênteses e fora de seu pensamento, isto é, são excluídas todas as coisas do

mundo sensível, assim como todo tipo de argumento nele originado para a obtenção

dos princípios científicos que fundamentarão suas investigações; o autor afasta,

suspende os juízos fornecidos pela experiência (pelos sentidos), excluindo-os de

suas argumentações.

74 Explica Descartes em sua obra Meditações que certa vez estava dormindo, no entanto, sonhou estar acordado. Logo, se a imaginação o enganou uma vez, imprimindo-lhe um falso estado de consciência, poderia o enganar outras vezes, o que o leva a crer que o estado de consciência empírica não é confiável. (DESCARTES, 1979b)

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[...] de sorte que é necessário que interrompa e suspenda doravante meu juízo sobre tais pensamentos, e que não mais lhes dê crédito, como faria com as coisas que me parecem evidentemente falsas, se desejo encontrar algo de constante e seguro nas ciências. (DESCARTES, 1979b, p. 88).

E, deste jeito, Descartes desenvolve e fundamenta racionalmente sua

filosofia, confirma a incontestável certeza do ‘cogito’ (DESCARTES, 1979a) e,

através da dúvida metódica bem como suspensão do juízo, estabelece um meio de

depuração do conhecimento científico.

6.2. Suspensão do Juízo em Kant

Em Kant, a questão do método da dúvida e a suspensão do juízo

apresentam-se sob uma orientação dúplice, e um pouco distinta do foco ensejado

por Descartes. A primeira orientação, já delineada no que foi exposto anteriormente

neste estudo, apresenta-se na questão epistemológica, na teoria do conhecimento, e

refere-se à busca da verdade científica, da retidão do conhecimento, que deve ser

dotado de certeza, irrefutabilidade e livre de contradições. Até aqui, há coincidência

com os interesses do método na teoria cartesiana. Contudo, além desses interesses,

é objetivo epistemológico de Kant o estabelecimento dos limites e possibilidades do

conhecimento humano. E mais, neste primeiro momento, em ambos os autores o

método presta-se às questões metafísicas75, como fica claro pela afirmação de Kant

de que sua intenção seria estabelecer as condições em que a Metafísica é possível

como ciência (KANT, 2001; 2003c).

A segunda orientação do método kantiano refere-se à questão da

universalidade. É certo que existem idéias que são incertas em geral e instáveis,

sujeitas à imperfeição dos sentidos; entretanto, algumas possuem nitidez e

estabilidade76, apresentando-se às pessoas de uma mesma maneira,

independentemente da experiência e dos sentidos. A característica destas idéias é a

universalidade, objetivo de Kant quando diz que “[...] a experiência não concede

nunca aos seus juízos uma universalidade verdadeira e rigorosa, mas apenas uma 75 Descartes busca um esquema universal do conhecimento que lhe dê condições de demonstrar os primeiros princípios. 76 Sobre ‘clareza’, ‘evidência’ ‘nitidez’ e ‘estabilidade’ na teoria kantiana, ver os respectivos verbetes em Caygill (2000).

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universalidade suposta e comparativa (por indução)” (KANT, 2001, p. 438). Ora,

essa universalidade – como explicitado anteriormente – é encontrada pelo autor na

Matemática e na Física, momento em que percebe que isto ocorre visto que os

juízos destas ciências são elaborados de maneira a priori. Em verdade, sua

descoberta (percebida em Hume) é de que os juízos da experiência são particulares

e não podem fornecer um conhecimento que não o do caso específico ocorrido;

logo, não podem ser universalizados. Ainda, a universalidade torna-se questão

prioritária quando o autor trata da ciência Metafísica dos Costumes, ocasião em que

a formulação da noção de dever, a partir da idéia de liberdade, faz com que a esfera

da moralidade se torne completamente vinculada à questão da possibilidade de uma

abrangência universal.

Destarte, o afastamento da sensibilidade na teoria de Kant é resultado não

apenas da dúvida metódica em sua relação com a certeza e a constituição da

verdade, como de sua cumulação também com as exigências do princípio de

universalidade; qual seja, são excluídos de sua investigação os argumentos que

possam resultar em dúvida e que carecem de certeza em um âmbito universal (não

em um caso particular). Assim, a verdade científica para Kant é resultante de

universalidade e certeza (incluindo a não-contradição e a irrefutabilidade)77, fatores

que devem estar presentes na Metafísica.

A suspensão do juízo é utilizada em Kant tendo em vista essa dupla

orientação, de modo que o autor, após constatar que os juízos sintéticos da

experiência não ostentam universalidade indubitável, exclui progressivamente as

faculdades intelectuais que necessitam de referência empírica, primeiramente a

sensibilidade (incluindo os sentidos e a própria imaginação) e, em seguida, o

entendimento (entendido como a razão no seu exercício de unidade conceitual da

sensibilidade), usando em suas averiguações somente a faculdade da razão no seu

uso puro (a priori), ou seja, no emprego hiperbólico das categorias.

A elaboração das idéias concebidas por Kant através deste procedimento,

tanto quanto a concepção da ética e do direito, serão explicitadas à frente, onde

melhor serão delineadas as características deste seu método. Entretanto, de

antemão, parece correto afirmar que a suspensão do juízo se instaura em função da

concepção da moral e do direito e se resolve nesses mesmos contextos, isto é, o

77 Sobre ‘verdade’ e ‘certeza’, ver os respectivos verbetes em Caygill (2000).

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método de suspensão do juízo é utilizado visando a construção universalizada, não

contraditória e incontestável do imperativo categórico e do princípio do direito. E

cessa após este momento, quando o seu resultado – estes princípios – deverá ser

ajuizado empiricamente, assumindo um conteúdo material na forma de

mandamentos morais e leis jurídicas.

6.3. Doutrina do duplo ponto de vista e suspensão do juízo

Com vistas à viabilidade do procedimento teórico de suspensão do juízo, Kant

necessita ainda de um enfoque ontológico que denomina doutrina dos dois mundos

(ou doutrina do duplo ponto-de-vista, ou doutrina da dupla perspectiva) (KANT,

2001; 2004b, p. 88). Segundo esta teoria, o ser humano participa de dois mundos:

um mundo sensível e um mundo inteligível. O primeiro é também chamado mundo

fenomênico – onde ocorrem os fenômenos – e corresponde, na estrutura do

intelecto humano, às faculdades que permitem que o sujeito seja afetado e

represente as modificações ocorridas em um possível mundo exterior78. O segundo

mundo – também denominado numênico79 – relaciona-se à atividade pura do

intelecto, excluída a sensibilidade e, por conseguinte, toda a afetação do sujeito

pelas representações dos fenômenos.

Essa dupla perspectiva faz-se necessária e essencial ao método de

suspensão do juízo, já que somente assumindo uma divisão ontológico-contextual,

pode-se atingir o isolamento do mundo intelectual e, assim, como explicitado

anteriormente, excluir o material que é estranho à investigação da Metafísica – os

juízos empíricos. Também essa duplicidade produz efeitos em toda a sistemática

conceitual kantiana que assume sempre aspecto dúplice, sendo que a maioria dos

conceitos desenvolvidos pelo autor admite uma situação em cada um dos mundos,

por exemplo, a vontade (Willensentschluss) existe no plano inteligível como vontade

pura (Wille) e, no plano empírico, como ‘vontade afetada pela sensibilidade’

78 É necessário atentar-se para a noção de fenômeno proposta pelo autor, como “o objeto indeterminado de uma intuição empírica” (KANT, 2001, p. 61). “Der unbestimmte Gegenstand einer empirischen Anschauung heißt Erscheinung.” (KrV-B, B. III, S. 50[4-5]; KrV-A, B. IV, S. 29[23-24]). 79 A palavra numênico tem a mesma raiz do termo grego νοῦς ou νόος – nous – que designa atividade do intelecto, da razão, em oposição aos sentidos materiais.

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(Willkür)80. Notadamente, essa dualidade é que determina todo o dualismo presente

na obra de Kant.

Deve-se ressaltar, ainda, que essa teoria não foi criada por Kant, sendo que

Platão e diversos pensadores já a discutiram e utilizaram. Contudo, naquele autor,

diferentemente do que em outros pensadores, essa separação não ocorre em um

plano externo, mas dentro do próprio sujeito, que produz tanto o númeno quanto o

fenômeno através de suas faculdades intelectuais81. Assim, os dois mundos são

produzidos pelo próprio espírito humano, cuja capacidade racional em associação

com a capacidade receptiva determina duas disposições humanas, respectivamente

a de um ser pensante, que se dá as próprias leis; e a de um animal afetado por

fenômenos (possivelmente externos82) que o impulsionam, muitas vezes, contra sua

legislação racional interna.

Enfim, a suspensão do juízo nessa relação de dualidade de mundos constitui

mais que o afastamento de certas faculdades do intelecto, uma verdadeira

consideração do homem como ser inteligível; vejamos, como um ser que paira sob

um plano superior livre do determinismo externo dos fenômenos e das leis naturais

coroadas pelo entendimento, um ser dominado pela razão pura, cujos limites

excedem a possibilidade de qualquer experiência e unicamente tornam possível a

auto-avaliação de sua atuação e de seu campo de conhecimento.

E é esse conceito, de um ser livre e independente dos impulsos naturais, por

força de sua faculdade racional – o que resulta da suspensão do juízo do mundo

sensível – que possibilita a concepção do direito como instrumento racional do

tratamento dos seres humanos. Isto ocorre através de uma concepção inteligível dos

fundamentos do direito que, assim como a moralidade, nasce da dimensão

metafísica, logo, sem conteúdo material (empírico), todavia com a forma e o

fundamento que devem servir de molde ao direito do mundo empírico – o que

descreve o caráter ideal do direito a priori.

É, pois, indubitável a concepção metafísica do Direito, o que será explicado e

defendido nos tópicos seguintes. 80 Sobre a distinção e o significado dos termos Wille e Willkür, bem como sua importância , ver Feldhaus (2005, p. 74) 81 De fato, segundo o autor, só conhecemos das coisas o que nela colocamos (KANT, 2001, p. 21). 82 Kant, apesar de não negar a existência da realidade externa, defende que sobre ela nada podemos afirmar categoricamente, uma vez que não temos uma intuição direta dos fenômenos, mas apenas representações dos modos como nossos sentidos são individualmente afetados por eles. Segundo o autor, por estas razões, sequer pode ser afirmado se a ‘coisa em si’ (‘Ding an sich’) existe em uma realidade exterior ao sujeito cognitivo.

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7. Noções fundamentais do direito como Metafísica83

Antes da discussão sobre a suspensão do juízo e o método de Kant, para

uma melhor compreensão do papel do direito em sua obra, é importante o estudo de

algumas questões fundamentais da esfera jurídica. Quanto a isto, é essencial a

adoção de um enfoque do Direito como uma idéia metafísica cuja concepção se

processa na razão pura e, portanto, guarda unidade com as outras idéias puras,

especialmente com a idéia da liberdade e da moralidade.

Neste passo, conforme salientam Gomes e Merle (2007, p. 77) no início de

seu ensaio sobre A posição do direito na Filosofia Prática, há tempos os estudiosos

de Kant parecem apresentar uma amnésia em relação à compreensão da ética84 e

do direito como uma construção unitária, tendendo, os filósofos, a ignorarem a

Doutrina do direito (KANT, 2003a) no estudo da ética e os juristas, a relevarem o

papel da Fundamentação da Metafísica dos Costumes (KANT, 2004) e da Crítica da

razão prática (KANT, 2003b) na construção do direito. Essa dupla omissão afirmada

pelos autores parece destacar-se devido à dificuldade dos pesquisadores em

compreender o direito como uma idéia da razão pura, tendo em vista os caracteres

de possibilidade empírica nele compreendidas.

No intuito de esclarecer esta confusão, a seguir será explicada a concepção

de direito de Kant, com ênfase no debate sobre a possível duplicidade de noções

contidas em sua obra. Posteriormente, será procedida uma análise das origens

metafísicas da justiça, em seguida, o exame da relação entre a ética e o direito e sua

83 O texto apresentado neste tópico é parte do trabalho apresentado no XVI Congresso Nacional do CONPEDI (Conselho de Pesquisa e Pós-Graduação em Direito), realizado em Belo Horizonte/MG, entre os dias 15 a 17 de Novembro de 2007, sob o título A natureza metafísica do direito e sua fundamentação a priori na teoria da justiça de Immanuel Kant, encntrando-se publicado nos anais do referido evento (LANA, 2007). 84 Em alguns de seus textos, como por exemplo na Metafísica dos Costumes (2003a), Kant tenta distinguir as palavras ética e moral, salientando que esta última tem uma conotação mais ampla, abrangendo o direito e a ética. Também usa as denominações ‘moral em sentido amplo’ e ‘moral em sentido estrito’ para designar as palavras em questão. Porém, em outras obras, confunde os termos e os utiliza com a mesma semântica. No presente trabalho, não é necessária tal diferenciação, uma vez que só se refere à moral em sentido estrito e seu paralelo com o direito. Ademais, as origens da palavra ‘moral’ referem-se ao latim mos ou mores, cujo significado reporta a ‘hábito, modo de ser, costumes, ordenamento’; e seu correspondente em grego ἦθος ou ἔθος (ethos) - que pode ser entendido como ‘toca, morada (de animais), hábito, costume, caráter’, isto é, etimologicamente têm um campo semântico paralelo, motivo pelo qual parece mais coerente a opção pela equivalência dos termos.

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provável imbricação para, enfim, tentar-se a demonstração da importância de

compreensão do direito como uma idéia a priori da razão.

7.1. As duas concepções de direito em Kant e sua conexão com a moral

Não obstante as posturas mais distintas e discutíveis sobre a concepção que

Kant idealiza do direito, mostram-se mais nítidas, nas obras do autor, bem como

convincentes em seus comentadores, as duas noções que Gomes e Merle (2007)

denominam como sendo: “I. um conceito liberal de direito e II. uma derivação do

direito do imperativo categórico, que conduz a um outro conceito de direito

incompatível com o conceito liberal”. (GOMES; MERLE, 2007, p. 114-115). Para

estes autores o conceito liberal considera “o direito como coexistência das

liberdades externas de acordo com a lei de igualdade de tratamento” (GOMES;

MERLE, 2007, p. 113), enquanto o conceito derivado considera que o direito origina-

se da lei moral, uma vez que provém do mesmo princípio, qual seja, o imperativo

categórico (GOMES; MERLE, 2007, p. 102).

No mesmo sentido, Beckenkamp (2003) defende existir nas obras de Kant

duas concepções correspondentes às descritas por Gomes e Merle (2007), às quais

denomina respectivamente “o direito em sentido estrito como coação externa”

(BECKENKAMP, 2003, p. 165) e o direito em sentido amplo, “como exterioridade da

legislação prática“ (BECKENKAMP, 2003, p. 159). Em relação à primeira noção, que

determinaria o caráter liberal do direito, este comentador parece dar foco principal à

coação externa como instrumento que asseguraria o livre uso do arbítrio em

coexistência à liberdade de todos de acordo com uma lei universal. Enquanto isso,

em relação à segunda concepção de direito, o autor faz a consideração de que tem

caráter categórico e incondicional – como o da lei moral, uma vez que “ele é

decorrente de princípios práticos a priori da razão, e não meramente de uma positiva

à revelia das exigências da razão prática pura.” (BECKENKAMP, 2003, p. 156).

Neste passo, buscando fatores na própria fonte, Kant salienta que o direito

consiste apenas na limitação da liberdade de outrem com a condição de que ela

possa coexistir com a minha liberdade segundo uma lei universal (KANT, 2004b, p.

77); sustenta que a lei universal do direito ordena: “[...]age externamente de modo

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que o livre uso de teu arbítrio possa coexistir com a liberdade de todos de acordo

com uma lei universal.”85 (KANT, 2003a, p. 77). Através dessas transcrições não

parece que, em verdade, Kant tencionou produzir dois conceitos de direito, um

decorrente e o outro independente da moral86. Isso talvez possa ser esclarecido

através do exame da distinção entre direito e moral.

Na Doutrina do direito Kant salienta a diferença entre direito e moral87 da

seguinte maneira:

Toda legislação pode, portanto, ser distinguida com respeito ao motivo [...].Essa legislação que faz de uma ação um dever, e também faz deste dever o motivo, é ética. Porém, a legislação que não inclui o motivo do dever na lei e, assim, admite um motivo distinto da idéia do próprio dever é jurídica.88 (KANT, 2003a, p. 71).

Assim, a diferença entre direito e moral reside especialmente no tipo de

obrigação (Verbindlichkeit) que produzem, isto é, do móbil (Triebfeder) que

estabelecem no sujeito – a moral exige que a ação seja praticada com motivo na lei,

enquanto o direito provoca apenas a ação em conformidade com a lei, não se

questionando o motivo, que pode ser constituído por uma coação externa. Esta é,

também, a diferença entre legalidade e moralidade na explicação do autor (KANT,

2003a, p. 72).

Urge salientar que tanto Gomes e Merle (2007, p. 81) quanto Beckenkamp

(2003, p.155) compartilham desta compreensão da distinção entre a ética (moral

stricto sensu) e o direito, entendimento que leva a crer que ambos possuem um

radical comum, in veritas, tratam do mesmo material deontológico. Entretanto,

diferenciam-se por suas formas de manifestação – a ética manifesta-se

internamente, ordenando que máximas89 de ação sejam praticadas movidas pelo

85 “[...] handle äußerlich so, daß der freie Gebrauch deiner Willkür mit der Freiheit von jedermann nach einem allgemeinen Gesetze zusammen bestehen könne” (MS, B. VI, S. 231[10]) 86 Com maior propriedade deve ser feita uma leitura sistemática dos escritos de Kant considerando sua obra como um todo, um conjunto de escritos cuja separação temporal não retira sua unidade teórica. Gomes e Merle (2007, p. 118-119) afirmam que da Doutrina do direito (KANT, 2003a), onde encontra a formulação do princípio do direito, não pode ser concluído que a noção de direito em Kant é liberal. 87 Sobre o assunto, ver: Distinção entre direito e moral na Metafísica dos Costumes (FELDHAUS, 2003) 88 “Alle Gesetzgebung also [...] kann doch in Ansehung der Triebfedern unterschieden sein. Diejenige, welche eine Handlung zur Pflicht und diese Pflicht zugleich zur Triebfeder macht, ist ethisch. Diejenige aber, welche das Letztere nicht im Gesetze mit einschließt, mithin auch eine andere Triebfeder als die Idee der Pflicht selbst zuläßt, ist juridisch.” (MS, B. VI, S. 218[24])-219[1-6]) 89 Máximas consideram-se o princípio subjetivo do querer (KANT, 2004b,)

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dever, enquanto o direito manifesta-se externamente, independentemente das

máximas, ordenando diretamente as ações que, não sendo praticadas pelo dever,

podem ser movidas por uma ameaça externa que coage o agente. Ou podem não

ocorrer, caso o sujeito aceite a sanção.

Assim, como afirma Beckenkamp (2003, p.157), apontar como especificidade

do direito sua completa separação da moral constitui um mal-entendido, uma vez

que, “Como legislação prática da razão, a legislação jurídica constitui uma instância

da autonomia da vontade, quer dizer, da faculdade de se dar a si mesmo ou a sua

liberdade, uma lei” (BECKENKAMP, 2003, p.157). Este aspecto da comunidade

entre moral e direito será analisado à frente.

Resta expor, enfim, já que direito e moral são distintos – mas com traços em

comum – sobre a dependência supostamente existente entre as mesmas, assunto

bem explicado por Gomes e Merle (2007). Os autores salientam que, a respeito,

existem três teses que explicam a relação: “a tese da independência integral

(defendida por Julius Ebbinghaus), a tese da dependência da dedução do direito

com base na lei moral [...] e a tese da dependência limitada” (GOMES; MERLE,

2007, p. 100). Também, segundo os mesmos, esta terceira tese se mostraria

filologicamente a mais correta, certo que defende a dependência do direito em

relação à moral somente na fundação de sua validade, não contudo para sua

realização e execução, nas quais seria independente.90 Em relação a estas teses,

apesar do grande avanço em demonstrarem interesse pela interpretação sistemática

e unitária da obra de Kant, instaura-se uma pergunta: não estaria faltando uma

quarta tese da interdependência entre moral e direito? Ainda: não será mais correto

afirmar que estes institutos, como idéias resultantes de uma idéia da razão pura – a

liberdade transcendental – são reciprocamente dependentes? (resguardadas, é

claro, suas especificidades).

7.2. A origem metafísica do direito em Kant

O direito em Kant, ao contrário do que grande parte de seus leitores entende,

90 Contudo os autores apontam também que a avaliação sistemática da terceira tese não percebe as conseqüências do fato de o juízo do direito depender da moral (GOMES; MERLE, 2007, p. 100)

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é uma idéia a priori da razão pura prática (reine praktischen Vernunft), e não um

conceito meramente empírico91 de coerção e regulação de liberdades externas

(KANT, 2003a, p. 76). De fato o direito nasce, assim como a moral, de uma dedução

da antinomia da liberdade (Freiheit) que tem sua possibilidade demonstrada pelo

‘fato da razão’ (Faktum der Vernunft) e guarda características que vão permear tanto

o princípio supremo da moralidade quanto o princípio do direito.

Todavia, antes do exame do princípio do direito, devem ser verificados os

elementos da liberdade transcendental que constituem a formulação do princípio

supremo da moralidade92. Segundo Kant, o princípio é único e diz: “Age apenas

segundo uma máxima tal que possas ao mesmo tempo querer que ela se torne em

lei universal” 93 (KANT, 2004b, p. 59). Entretanto, também fornece o autor outras

cinco fórmulas94 (SALGADO, 1995, P. 219) as quais consagra, em cada uma, um

pressuposto da lei moral decorrente da liberdade. A primeira fórmula destaca a

universalidade (Universalisierungs Formel) (KANT, 2004b, p. 59/7495); a segunda

fórmula é a da lei da natureza (Naturgesetz Formel) (KANT, 2004b, p. 59); a terceira,

fórmula da humanidade, ou fim em si (Zweck an sich Formel) (KANT, 2004b, p. 66);

a quarta, fórmula da autonomia ou da vontade legisladora (Autonomie des Wille

Formel) (KANT, 2004b, p. 71); e a quinta, a fórmula do reino dos fins (Reich der

Zwecke Formel) (KANT, 2004b, p. 75)96.

Esmiuçando estas características, a liberdade, como causalidade

incondicionada, detém o caráter de universalidade, uma vez que seu conceito

implica uma causa inicial que traz em si a totalidade das condições. Tem, outrossim,

o mesmo grau de universalidade que as leis da natureza, como a lei da ação e

reação, da atração entre os corpos, dentre outras. Do mesmo modo, por tratar-se de 91 “Como a cabeça de madeira da fábula de Fedro, uma doutrina do direito meramente empírica é uma cabeça possivelmente bela, mas infelizmente falta-lhe cérebro.” (KANT, 2003a, p. 76). “Eine bloß empirische Rechtslehre ist (wie der hölzerne Kopf in Phädrus' Fabel) ein Kopf, der schön sein mag, nur Schade! daß er kein Gehirn hat.” (MS, B. VI, S. 230[6]) 92 Sobre as formulações do imperativo categórico e suas relações ver Kant, a lei moral e a Fundamentação da Metafísica dos Costumes (MARTINS, 2003). Este assunto também será desenvolvido logo à frente. 93 “Handle nur nach der jenigen Maxime, durch die du zugleich wollen kannst, dass sie ein allgemeines Gesetz werde.” (Grundlegung, B. IV, S. 421[6]) 94 Que são, em verdade, cinco formas de se enunciar o princípio supremo que fundamenta a moralidade. 95 Ainda, na Crítica da razão prática é feita formulação compatível com esta fórmula geral (KANT, 2003b, p. 103). 96 É útil lembrar que existe extensa discussão sobre qual seria, em verdade, a quantidade de formulações do imperativo categórico. Aqui não se pressupõe que exista uma quantidade estabelecida de fórmulas mas, que, basicamente, os elementos componentes do princípio moral, derivados da liberdade, são os cinco mencionados.

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uma causalidade incondicionada, não possui uma causa anterior que a produza, de

modo que, na lei moral, não deve ser buscado outro fim que não a liberdade (fim em

si), como totalidade das condições. Ainda, a vontade legisladora (Wille) nada mais é

do que a manifestação da causalidade do ser racional que, fundada apenas na

liberdade, produz as leis com única referência a si mesma (a vontade), que constitui

a liberdade no ser racional. E, enfim, o reino dos fins é a universalização da

causalidade subjetiva racional – liberdade racional – em um reino de fins em si

mesmos, ou seja, em um reino em que cada um configura uma causalidade própria

(o que, segundo o próprio Kant, é um reino somente possível, ou seja, ideal).

Neste passo, Kant formula, na Doutrina do direito, o princípio universal do

direito (die allgemeine Prinzip des Rechts) da seguinte maneira:

Qualquer ação é justa se for capaz de coexistir com a liberdade de todos de acordo com uma lei universal, ou se na sua máxima liberdade de escolha de cada um puder coexistir com a liberdade de todos de acordo com uma lei universal. 97 (KANT, 2003a, p. 76-77).

Do mesmo modo que o princípio da moralidade, o princípio do direito tem

origem na liberdade como causalidade racional. Todavia, ao invés de mencionar

diretamente os pressupostos da liberdade contidos no imperativo moral, menciona

apenas a liberdade como algo que deva ser assegurado externamente através da

universal tutela da liberdade de escolha de cada um, isto é, da vontade pura (Wille)

que, trazida ao mundo fenomênico, sofre influência de móbiles sensíveis,

transformando-se em Willkür – vontade afetada pela sensibilidade ou arbítrio98.

Mas, se ambos os princípios têm origem na liberdade, pergunta-se: por que

assumem aspectos tão diferentes e absorvem os pressupostos da liberdade

transcendental de maneiras distintas? A resposta talvez resida no grau de

participação sensível de cada um dos princípios. Isto é, o imperativo categórico

assume todos os aspectos da liberdade em um caráter ideal. Segundo o próprio

Kant, a lei moral é uma idéia da razão cuja existência pode ser afirmada, mesmo que

jamais ocorra um fato na experiência que a confirme (KANT, 2004b; 2003b, p. 569-

571). A lei moral é demonstrada por um fato da razão, logo, deve unir a possibilidade

97 "Eine jede Handlung ist Recht, die oder nach deren Maxime die Freiheit der Willkür eines jeden mit jedermanns Freiheit nach einem allgemeinen Gesetze zusammen bestehen kann." (MS, B. VI, S. 230[29]) 98 Sobre a distinção e o significado dos termos Wille e Willkür, bem como sua importância, ver Feldhaus (2004, p. 74)

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de uma experiência moral com um dever puro a priori. O juízo sintético a priori da

moralidade reúne uma vontade boa em si com uma vontade afetada pela

sensibilidade, mas apenas como uma idéia reguladora (KANT, 2001, p. 448).

Por outro lado, o direito é uma idéia pura a priori que decorre da idéia

fundamental da liberdade transcendental, mas derivada em acordo com as

condições que essa causalidade encontra no mundo sensível. A idéia mesmo de

direito concebe uma legislação que, no mundo sensível, possibilite, através da

causalidade deste99, que o sujeito aja em conformidade100 com a ação exigida pelo

mundo inteligível, onde vigoram as leis da liberdade. Assim, o juízo sintético a priori

que constitui o princípio do direito reúne duas causalidades de mundos distintos – a

liberdade e as leis da Φυσις (physis).

Em suma, o papel do direito na filosofia de Kant parece ser o de efetivar a

transição para o mundo sensível da causalidade da liberdade101, tornando possível o

princípio supremo da moralidade (constituído no mesmo momento que o jurídico)

com suas proposições – universalidade, natureza, vontade legisladora, fim em si e

reino dos fins. Isto deve ocorrer através das proposições da universalidade, da

vontade legisladora (Wille) submetida a um plano sensível (Willkür) (dois mundos) e

à coação racional102 de um agente, que tornam possível, como fenômeno, a idéia

inteligível de liberdade. Agora, cabe a pergunta: não teria o direito, apesar de uma

idéia da razão pura, o caráter de um princípio constitutivo103?

99 Representada pela idéia de coerção. 100 O direito só obriga, imediatamente, à ação conforme o dever, mas não pelo dever. Entretanto, proporciona a ação pelo dever de forma mediata, através da educação e do hábito nas virtudes (KANT, 2003a) 101 Para defender este ponto de vista é necessário se considerar que o termo Freiheit, na formulação do princípio do direito em A Metafísica dos Costumes (2003a, p. 76-77) significa, de fato, liberdade transcendental, ou seja, a liberdade como causalidade incondicionada. Diante de uma consideração do todo da obra de Kant e do fato de que nessa própria passagem o autor faz referência à liberdade externa como ‘Freiheit der Willkür’, parece correto este entendimento. Entretanto, considerando que a palavra liberdade em outros contextos é dotada da ambigüidade em questão, é possível que haja refutação da tese ora defendida, em favor de uma consideração liberal do direito – estritamente como meio de administração de liberdades externas. Quanto a esta dúvida, fica sob a responsabilidade racional de cada leitor. 102 A coação do direito é também uma idéia legitimada a priori pela razão pura, através do princípio de razão suficiente (relação causa-conseqüência) associado ao princípio de contradição e à idéia de liberdade transcendental. Disso resulta que, no mundo fenomênico, a coação é possível, mas nada garante que será efetiva. 103 Constitutivo no sentido de ampliar a possibilidade da experiência (KANT, 2001, p. 448), à medida que o direito conduz ao mundo sensível a idéia pura de liberdade que, por constituir uma antinomia (raciocínio inconclusivo) a razão humana não poderia conhecer de outro modo. Deve ser salientado que a questão levantada contraria expressamente algumas passagens da obra de Kant, em que é categórico em dizer que as idéias não têm caráter constitutivo, mas apenas regulador (KANT, 2001). Entretanto, ‘para seres cuja razão já saiu da menoridade’ (KANT, 2004a, p. 11-19) não é absurdo

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7.3. A interdepêdencia entre direito e moral. Uma quarta opção?

Voltando à primeira questão formulada, será que o elenco de opções

mencionadas por Gomes e Merle (GOMES; MERLE, 2007, p. 100) não aceita uma

quarta via? Não seria mais correto considerar que tanto a moral quanto o direito

guardam uma relação de dependência recíproca?

Primeiramente, parece que os comentadores de Kant não acatam, em geral,

esta tese, pelo fato de considerarem que o direito origina-se da moral e, mais

especialmente que o princípio universal do direito, deduz-se do imperativo

categórico. No entanto, conforme comentado, parece mais correto afirmar não que o

direito seja derivado da moral, mas sim que tem origem comum com a mesma, na

idéia a priori da razão sobre a causalidade incondicionada da liberdade. Pelo

explicitado nota-se que o princípio do direito deriva-se antes da liberdade que do

princípio moral, caso contrário, o próprio Kant talvez tivesse citado a fórmula do

imperativo categórico no princípio do direito, ao invés de invocar a coexistência das

liberdades de todos. Isso não é difícil de ser deduzido da leitura da obra kantiana,

que chega a consolidar que a doutrina do direito e a doutrina da virtude não se

diferenciam pelos seus deveres, mas pela legislação que liga o dever a móbiles

diferentes (KANT, 2003a, p. 73). Ora, o objeto das duas doutrinas é o mesmo dever,

a origem de ambas é liberdade transcendental; a diferença de fato encontra-se no

meio que usam para possibilitar o objeto: no caso da lei moral, a causalidade é a

própria liberdade (na vontade); no caso do direito é a causalidade natural (razão

estratégica) utilizada para possibilitar que a liberdade (interna e externa) do outro

sujeito não seja delimitada. Fica claro que direito e moral se parecem, como ‘gêmeos

univitelinos’, gerados por uma mesma célula original – a liberdade transcendental.

Em verdade, essa concepção de uma origem comum é necessária para que

seja pensada a quarta opção de que direito e moral dependem mutuamente. A

começar pela dependência do direito, torna-se clara, conforme explicitam ambas as

obras mencionadas (GOMES; MERLE, 2007; BECKENKAMP, 2003). Parece

pensar que Kant poderia ter concluído desta maneira. Note-se, ainda que, conforme menciona Salgado, “Kant demonstra o insucesso da razão ao tentar um vôo tão alto, na dialética da razão pura. Com isso prepara o uso correto da razão pura, na forma meramente regulativa, no caso da razão teorética, e inteiramente constitutiva no caso da razão prática.” (grifo nosso) (SALGADO, 1995, p. 113)

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inquestionável que o direito necessite, para sua existência104, do fundamento de

possibilidade do dever moral interno. O direito existe em função de proporcionar um

mundo fenomênico que tem, como modelo, um ‘ideal’ reino dos fins, isto é, através

de seu princípio e de sua faculdade de coação externa, visa proporcionar

externamente uma comunidade que não delimite a capacidade racional de cada

sujeito agir mediante a lei universal consoante sua própria vontade, explicitada pelo

imperativo categórico e se tornar, assim, um fim em si mesmo. Afinal, através da

delimitação da ‘liberdade externa’ de cada um o direito busca a ilimitação de suas

liberdades internas, o que comprova um ideal da razão, evidentemente.

Ainda, ao contrário do que se encontra consignado em Gomes e Merle (2007,

p. 101), não parece correto, tendo em vista a explicação acima, que o direito, em sua

execução, perca a sua ligação de dependência com a moralidade. Mais do que isto,

não parece correto que, mesmo no caso da coação e do agir apenas conforme o

dever, o direito – bem como o seu instrumento de causalidade natural (a coação) –

percam de vista a moral como o objeto a ser estimulado. E, mesmo que o estímulo

não seja possível do ponto-de-vista do sujeito que age por força da coação, não

parece viável excluir do foco do direito esta meta, pelo menos da visão

intersubjetiva, visto que o direito continua sendo o instrumento que contém e se

dirige ao ideal do reino dos fins.

Por outro lado, a moral afigura-se dependente do direito à medida que tem

sua realização no ser humano que, por ser tanto númeno quanto fenômeno, está

condicionada à existência de um mecanismo externo que lhe dê garantia105. Mais

que isso, a moral tem o direito como sua forma exteriorizada106, ou seja, enquanto a

moral representa a liberdade no plano inteligível subjetivo, o direito contém a

liberdade em manifestação no plano sensível, de forma a que a possibilidade prática

104 Aqui se considera como causa de existência tanto a fundamentação de validade quanto o juízo do direito, que se encontram distintos na explicação de Gomes e Merle (2007, p. 100) 105 Um importante escrito de Kant que atesta a dependência entre direito e razão é Resposta à pergunta o que é iluminismo (2004a), onde o autor defende radicalmente que as legislações não devem impedir os homens de saírem de sua menoridade, isto é: “a incapacidade de se servir do entendimento sem a orientação de outrem.” (KANT, 2004a, p.11). Mais do que isto, o direito precisa proporcionar ao homem a possibilidade de valer-se de sua própria razão, o que, evidentemente, inclui o uso prático da razão – a ética. “Unmündigkeit ist das Unvermögen, sich seines Verstandes ohne Leitung eines anderen zu bedienen.” (Frage, B. VIII, S. 35[2-3]). 106 A tese do direito como “exterioridade da legislação prática” é defendida por Beckenkamp (2003, p. 159-160), e concorda em parte com a perspectiva que é ora defendida. Difere-se à medida que considera o direito uma forma de exteriorização decorrente da lei moral, enquanto o panorama do presente trabalho considera o direito a forma de exterioridade da liberdade. Deste modo, a moral é a liberdade na perspectiva do sujeito inteligível e o direito é a liberdade no sujeito participante de dois mundos.

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da moral dependa do direito, que coloca a liberdade no plano da intersubjetividade.

Isto parece de incontestável e necessária dependência, em sendo pensada a

fórmula do reino dos fins como essencial à moral e a sua universalidade a priori.

Deste modo, a perspectiva Metafísica do direito não apenas torna o mesmo

conectado com a moral. Demonstra que ambos campos têm mútua influência, por se

originarem da idéia pura da liberdade da qual decorrem e na qual se espelham, de

modo que seguem os mesmos princípios, especialmente o da completa

universalidade em conjugação com o da não-contradição.

Portanto, nos capítulos seguintes, quando se for tratar da formulação da

moral proposta por Kant, pressupõe-se que o direito siga a mesma em um

paralelismo, de modo que, moral e direito assumam a mesma forma de concepção.

Enfim, após o debate empreendido neste capítulo, pôde ser concluído que

Kant, ao partir da intenção de alcançar o grau máximo de certeza no conhecimento

metafísico, conseguiu determinar os limites e possibilidades de todo o conhecimento

científico, sendo que, através do método de suspensão do juízo, pôde compreender

a moral e o direito como co-originários de uma idéia metafísica. Como se operou a

construção destas partes da filosofia prática, isto é, qual foi o método utilizado pelo

autor, bem como sua relação com o procedimento de suspensão do juízo e as

estruturas conceituais criadas dentro de seu procedimento será o objeto do capítulo

a seguir.

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Capítulo II

O MÉTODO KANTIANO E A SUSPENSÃO DO JUÍZO

1. O método analítico-sintético, as Críticas e a suspensão do juízo

Concluídas as explanações propedêuticas, segue-se agora ao debate do

método empreendido por Kant – com ênfase no procedimento de suspensão

gradativa do juízo empírico e a culminação na concepção ideal da moral e do direito

– o que parece atender de maneira mais adequada às exigências propostas pelo

modelo do Estado Democrático de Direito, seguido pelo ordenamento jurídico

brasileiro107.

Para tanto, será adotado o entendimento desenvolvido por Loparić, em sua

obra A semântica transcendental de Kant (2000), na defesa de que Kant “articulou

sua pesquisa transcendental em concordância com o método combinado de análise

e síntese108” (LOPARIĆ, 2000, p. 78). Assim, assumir-se-á esta compreensão em

consonância aos argumentos e demonstrações de Loparić e ainda, demonstrar-se-á

que este método é adotado por Kant de maneira separada, usando na Crítica da

razão pura o procedimento analítico e na Crítica da razão prática o sintético,

107 Isto é especialmente relevante para a linha de pesquisa do presente estudo: Fundamentos Filosóficos do Conceito de Justiça e sua Aplicação na Concepção do Estado Democrático de Direito. 108 Kant atenta nos Prolegômenos para o risco de confundir o significado de método analítico ou sintético com o de proposições analíticas ou sintéticas; contra isso salienta que “O método analítico, enquanto oposto ao método sintético, é inteiramente diverso de um conjunto de proposições analíticas: significa apenas que se parte do que se procura, como se fosse dado, e se vai até as condições sob as quais unicamente é possível. Neste método de ensino, empregam-se muitas vezes apenas proposições sintéticas; a análise matemática é disso um exemplo.” (KANT, 2003c, p. 40). “Analytische Methode, sofern sie der synthetischen entgegengesetzt ist, ist ganz was anderes als ein Inbegriff analytischer Sätze: sie bedeutet nur, daß man von dem, was gesucht wird, als ob es gegeben sei, ausgeht und zu den Bedingungen aufsteigt, unter denen es allein möglich. In dieser Lehrart bedient man sich öfters lauter synthetischer Sätze, wie die mathematische Analysis davon ein Beispiel giebt;” (Prolegomena, B. IV, S. 276). E ainda: “O nome de analítica designa também uma parte principal da lógica e é então a lógica da verdade, por oposição à dialética, sem que verdadeiramente se considere que os conhecimentos a ela pertencentes sejam analíticos ou sintéticos.” (KANT, 2003c, p. 40-41). “Noch kommt der Name Analytik auch als ein Haupttheil der Logik vor, und da ist es die Logik der Wahrheit und wird der Dialektik entgegengesetzt, ohne eigentlich darauf zu sehen, ob die zu jener gehörige Erkenntnisse analytisch oder synthetisch seien.” (Prolegomena, B. IV, S. 276).

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caminhos que o autor cumula com a suspensão do juízo para, enfim, conceber a

ética e o direito109.

Este método, como salienta Loparić (2000, p. 33) é anunciado no trabalho de

Kant desde os escritos pré-críticos, como, por exemplo, em Investigação sobre a

distinção dos princípios de teologia natural e da moral, onde atribui a insegurança e

a incerteza dos argumentos da Metafísica à deficiência dos métodos até então

adotados (KANT, 2005b, p. 103-104). Explica, também, Loparić (2000, p. 34) que

Kant defende a adoção do método matemático, introduzido por Newton na ciência

da natureza, como “o autêntico método da metafísica” (Die ächte Methode der

Metaphysik) (KANT, 2005b, p. 119), que consiste em três regras: primeiramente, são

adotadas certas experiências; em segundo lugar, devem ser buscadas regras que,

consideradas premissas, possam resultar as experiências adotadas; e, por último,

empregam-se estas regras na construção de experiências outras mais complicadas

(LOPARIĆ, 2000, p. 34).

Assim, deve-se proceder:

Do mesmo modo na metafísica: procurai, por uma experiência interior segura, isto é, por uma consciência imediata evidente [ein unmittelbares augenscheinliches Bewustsein], aquelas notas características certamente residem no conceito de uma qualidade universal qualquer, e mesmo que não conheçais toda a essência da coisa, podeis vos servir seguramente daquelas notas características, para deduzir muito na coisa a partir delas.110 (KANT, 2005b, p. 119-120).

É através desse paralelo entre a Matemática e a Metafísica que Kant constrói

suas obras concordante ao método combinado de análise e síntese, que pode ser

descrito da seguinte maneira: “De acordo com Newton e Kant, o método nos

prescreve separar algo dado (um conceito, um objeto etc.), ascender na direção de

suas condições e, depois disso, descer ao dado e a outras possíveis situações

109 A perspectiva que será defendida não contraria a tese desenvolvida por Loparić (2000), porém, introduz um enfoque adicional que não é tratado em sua obra e que pode ser objeto de refutação, caso o leitor tenda previamente a não admitir a possibilidade de ampliação dos horizontes, tanto da interpretação de Kant, quanto da releitura feita por Loparić. Entretanto, seguindo a própria lição dada por este autor, deve ser considerado que “a ousadia [...] é uma qualidade sem a qual não se pode progredir na filosofia” (LOPARIĆ, 1990, p. 32), motivo pelo qual este estudo empreende o risco científico de apresentar uma leitura própria, risco este legitimado pela possibilidade real de compreensão e sucesso das argumentações que contém. Isso será demonstrado a seguir. 110 “Eben so in der Metaphysik: suchet durch sichere innere Erfahrung, d. i. ein unmittelbares augenscheinliches Bewußtsein, diejenige Merkmale auf, die gewiß im Begriffe von irgend einer allgemeinen Beschaffenheit liegen, und ob ihr gleich das ganze Wesen der Sache nicht kennet, so könnt ihr euch doch derselben sicher bedienen, um vieles in dem Dinge daraus herzuleiten.” (Vorkritische, Untersuchung, B. II, S. 286[16-21]).

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concretas.” (LOPARIĆ, 2000, p. 35). Loparić ainda explica que “Em ambas as

descrições, os pontos iniciais e as operações envolvidas estão um tanto

indeterminadas” (LOPARIĆ, 2000, p. 35), sendo que “Nenhuma delas requer [...] que

a síntese esteja baseada em uma coisa certa ou conhecida” (LOPARIĆ, 2000, p.

35).111 O próprio Kant chega a descrever o método analítico como um método

oposto ao sintético, e que parte do objeto procurado, como se fosse dado, e vai até

as condições sob as quais unicamente é possível (2003c, p. 40).

Ainda segundo Loparić, a análise ou transformação segue um caminho que

parte de um ponto inicial, através de um procedimento que culmina com a resolução.

O ponto inicial pode versar em dois tipos, ou uma premissa dada (uma proposição

suposta como verdadeira), ou ainda uma hipótese (cuja realidade é apenas possível)

(LOPARIĆ, 2000, p. 37). No primeiro caso, o procedimento será denominado

construção e fornecerá como resolução as condições de possibilidade da premissa

dada. No segundo caso, o procedimento será denominado determinação e produzirá

na solução o objeto válido (possível) para a hipótese inicial, sob o procedimento

utilizado.

Na Crítica da razão pura Kant (2001), se vale destas duas matizes da análise.

Primeiramente o autor parte da hipótese ‘é possível o conhecimento?’ entabulando

deduções e construções através dos elementos contidos na hipótese112

(procedimento) e concluindo na resolução que ‘o conhecimento é possível sob as

condições deduzidas na transformação113 (análise). Por outro lado, parte-se da

premissa dada (suposta como verdadeira) de que ‘o conhecimento é possível’ e

segue à decomposição das faculdades do conhecimento, à dedução de seus

elementos e suas funções, terminando na resolução com a determinação das

condições limitadoras dos elementos do intelecto humano; isto é, as condições em

que a premissa suposta como verdadeira (o conhecimento) é possível. Desse modo,

Kant empreende o caminho reverso, pela síntese, em relação a estes argumentos,

111 Não há espaço neste estudo para a análise das nuances pertinentes ao método em questão, de modo que será exposta a elaboração analítico-sintética de Kant com a pressuposição de que são claros os conceitos expendidos. Portanto, caso necessário, poderá ser consultado em Loparić, que faz uma exposição completa e fundamentada do tema em A semântica transcendental de Kant, particularmente no “Capítulo 2 – Métodos filosóficos kantianos” (2000, p. 33-78). Em especial, é exposto de maneira clara um rol de conclusões sobre análise e síntese nas páginas 43 e 44 de Loparić (2000). 112 O faz na “Analítica trancendental” (KANT,2001) na dedução dos elementos do conhecimento, isto é, Kant estrutura o intelecto humano, através dos predicados contidos no conceito de conhecimento possível. 113 O que inclui a possibilidade de confirmação em um fenômeno correspondente.

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retornando aos respectivos pontos de partida e obtendo a técnica chamada ‘reductio

ad absurdum’ (redução ao absurdo)114.

De fato, como explicita Loparić (2000), a obra de Kant, em especial a Crítica

da razão pura (KANT, 2001), é permeada de argumentos que seguem esse duplo

vetor do método analítico-sintético. Todavia, considerando as Críticas como uma

unidade, notadamente a Crítica da razão pura (KANT, 2001) e a Crítica da razão

prática (KANT, 2003b), parece que esse norte metodológico vai além da simples

utilização em alguns argumentos, afigurando-se uma essencialidade integral de um

procedimento que ocorre paralelamente a todo o sistema metafísico-moral erigido

pelo filósofo de Königsberg.

O que ora se defende é que, dentro da fundamentação metafísica do direito e

da moral, ocorre apenas um movimento de análise e síntese, aquele na Crítica da

razão pura (KANT, 2001) e este na Crítica da razão prática (KANT, 2003b)115. Isso é

confirmado por Kant nesta última obra, quando explica comparativamente o ponto de

partida, o caminho e a conclusão de ambas as obras (KANT, 2003b, p. 313-319).

O procedimento pode ser explicado do seguinte modo: no objeto principal da

Crítica da razão pura (2001) Kant parte de uma premissa dada e de constatação

empírica – o conhecimento é possível – e, mediante sua análise, desenvolve as suas

condições – basicamente as condições de tempo, espaço e as categorias do

entendimento, concluindo com as proposições do conhecimento dado como

possível. O procedimento reverso também se processa, com a confirmação de que

as proposições obtidas na resolução da síntese têm confirmação e resultam na

premissa dada. Através da síntese também se consegue ampliar o resultado da

análise concluindo pela possibilidade de sua aplicação a toda realidade empírica,

isto é, conclui-se que os objetos da experiência só são possíveis dentro das

condições desenvolvidas na análise, que pode ser gestada satisfatoriamente com

qualquer objeto obtido da experiência. Isso é expressamente confirmado por Kant

nos Prolegômenos:

Devem, por conseguinte [os prolegômenos], fundar-se em alguma coisa que já se conhece seguramente, a partir da qual se possa partir com confiança e

114 A redução ao absurdo visa à confirmação de uma premissa através do princípio da não contradição. 115 Não se contestam as análises e sínteses que ocorrem na Crítica da razão pura (KANT, 2001). Contudo, defende-se que, para a fundamentação jurídico-moral, é utilizada essencialmente uma análise combinada a uma síntese, como será visto.

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subir até às fontes que ainda não se conhecem e cuja descoberta nos explicará não só o que se sabia, mas ao mesmo tempo nos fará ver um conjunto de muitos conhecimentos, todos provenientes das mesmas fontes. O procedimento metódico dos prolegômenos, sobretudo dos que devem preparar para uma metafísica futura, será, pois, analítico.116 (KANT, 2003c, p. 36).

Ante o sucesso do procedimento descrito, Kant passa a considerar como

verdadeiros (ou pelo menos como dados) todos os passos a seguir, sendo que, em

seqüência, vai se valer deles para a dedução da Metafísica. Contudo, o autor se

depara com um problema: o fato de a Metafísica, em princípio, não possuir um

objeto de constatação empírica. Isso faz com que, na segunda análise, o ponto de

partida não possa ser um dado empírico, uma vez que, deduzindo as proposições

metafísicas, estas não teriam correspondentes ao final da síntese117, e a prova

estaria, deste modo, comprometida. Neste momento, Kant lança mão da suspensão

do juízo, excluindo de seu ponto inicial aquilo que lhe foi fornecido pela conexão

empírica. Isso exige a exclusão da própria premissa (que é empírica), que o autor

substitui pelo procedimento118 da primeira análise, cuja autenticidade já tivera sido

verificada.

Destarte, a segunda análise que interessa na Crítica da razão pura (2001)

não tem como ponto de partida um objeto da experiência, mas um procedimento

cuja certeza foi apurada anteriormente na formulação do conhecimento físico. Este

procedimento referido é o de construção das categorias do entendimento, que agora

serão analisadas através de um outro procedimento distinto – de decomposição de

seus conceitos, perpassando a série de causalidades em direção à totalidade das

condições, que estaria contida nos próprios conceitos. Através dessa análise são

alcançadas as proposições contraditórias que Kant denomina antinomias e,

conforme explicação anterior, possuem uma tese e uma antítese cuja solução não é

possível à razão. Assim, o resultado dessa análise não fornece proposições corretas

ou falsas, mas apenas hipóteses; portanto, asserções inconclusivas, momento em

116 “Sie müssen sich also auf etwas stützen, was man schon als zuverlässig kennt, von da man mit Zutrauen ausgehen und zu den Quellen aufsteigen kann, die man noch nicht kennt, und deren Entdeckung uns nicht allein das, was man wußte, erklären, sondern zugleich einen Umfang vieler Erkenntnisse, die insgesammt aus den nämlichen Quellen entspringen, darstellen wird. Das methodische Verfahren der Prolegomenen, vornehmlich derer, die zu einer künftigen Metaphysik vorbereiten sollen, wird also analytisch sein.” (Prolegomena, B. IV, S. 274[37]-275[1-7]) 117 Não sendo possível, assim, a reductio ad absurdum. 118 Isso é possível no método analítico, quando não se tem uma premissa válida, mas se tem um procedimento válido, conforme atesta Loparić (2000). Isto determina o procedimentalismo da moral kantiana.

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que o autor termina a Crítica da razão pura, com a explicação de que essas

hipóteses opostas – apesar de não instruírem sobre a verdade – possibilitam uma

ampliação dos horizontes do conhecimento, intermédio de seu valor regulador.

Posteriormente Kant vai desenvolver a Crítica da razão prática (KANT,

2003b), partindo das proposições obtidas na análise das questões metafísicas, em

especial a noção de liberdade como causalidade incondicionada e, através do

procedimento de síntese (composição), vai construir a idéia de moralidade.

Entretanto, como explicado, a análise teve seu ponto de partida na suspensão do

juízo, o que levou a que a transformação não fosse reversível a um objeto, mas

apenas a um procedimento. E, descobrindo a moralidade como manifestação da

liberdade possível empiricamente, eis que surge o problema da necessidade de

determinação de uma premissa que satisfaça o ponto de partida inicial da análise em

suspensão. Esta premissa deve ser pressuposta e é denominada fato da razão

(Faktum der Vernunft). Conforme se verá a seguir, o ‘fato da razão’ é a própria idéia

de liberdade como determinação da vontade humana, ou, em outras palavras, a

própria moralidade, como possibilidade no intelecto humano.

Assim, da decomposição do conceito do fato a priori da razão, através do

procedimento comum do conhecimento humano, Kant obtém a idéia de liberdade. E,

através da composição da idéia de liberdade, obtém a idéia de moralidade119. Isto

determina e demonstra a idéia de liberdade, de acordo com um procedimento a priori

(procedimento metafísico). Entretanto, todas as deduções do método ainda se

encontram em suspensão do juízo, logo, apenas no plano inteligível. Isto se torna

um dilema quando consideramos que não é o homem um ser somente inteligível e

que, para o conhecimento completo destas conclusões, forçosa se impõe a

demonstração de sua possibilidade fenomênica.

Ainda, outro problema: a combinação de análise e síntese pode precisar a

realidade de um objeto através da reductio ad absurdum somente quando é

relacionada a um fato empírico, cuja realidade é dada120, mas quando relacionada a

um fato a priori de realidade fenomênica desconhecida, limita-se a um círculo vicioso

de retorno contínuo ao ponto inicial do método; isto é, o fundamento do argumento

119 E do direito, que, conforme foi explicitado, tem sua origem paralelamente à idéia de moralidade, em decorrência da idéia de liberdade. 120 Quando a análise tem relação com um objeto empírico, não há razão em se negar a sua realidade, mesmo porque o homem é um ser que vive no mundo empírico. Duvidar da realidade dos fenômenos externos seria o auto-extermínio teórico do ser racional, cuja existência sem o mundo vivido, sem o mundo fenomênico, se não for impossível é, ao menos, desconhecida.

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é, ao mesmo tempo, a conclusão dele próprio e nenhum dos elementos tem

confirmação possível na experiência.

Para resolver tal impasse, Kant vai lançar mão de duas estratégias:

primeiramente, considera o círculo vicioso como situado em uma dupla perspectiva,

o que o transforma em um ‘espiral’. Segundo este enfoque, a lei moral (Faktum der

Vernunft) estaria situada no plano da vontade afetada pela sensibilidade (Willkür),

pertencente ao mundo sensível, enquanto a liberdade (Freiheit) determinaria uma

vontade pura (Wille) pertencente ao mundo inteligível (KANT, 2004b, p. 89-90).

Sobre isto haverá explicação mais detalhada adiante.

O segundo meio que Kant usa para resolver o problema do circulo vicioso

coaduna com a exposição anterior e constitui-se pela introdução da noção popular

de boa vontade que o autor faz na Fundamentação da Metafísica dos Costumes

(KANT, 2004b, p. 31-32). Essa concepção de boa vontade traduz algo que todo ser

racional compreende empiricamente como uma vontade boa incondicionalmente e,

deste modo, seria a postulação empírica de que o fato da razão (Faktum der

Vernunft) exista ou, em outras palavras, que lei moral seja concebida pelo ser

racional também na perspectiva de uma vontade afetada pela sensibilidade (Willkür).

Com as explicações desenvolvidas, agora é possível demonstrar o enfoque

que se apresenta necessário à compreensão sistemática da teoria jurídico-moral121

de Kant, a saber, o de que Crítica da razão pura (KANT, 2001) e Crítica da razão

prática (KANT, 2003b) constituem uma única e mesma obra122 que obedece, no

campo da moral (em sentido amplo) um mesmo método de análise e síntese,

dependente do procedimento de suspensão do juízo. É certo que Kant afirma

expressamente em To Marcus Herz, february, 21, 1772 (KANT, 1986, p. 70-76) que

sua intenção era a de escrever uma única crítica. Este é também o entendimento de

Valério Rhoden na introdução à edição brasileira da Crítica da razão prática, onde

explica que Kant tinha a intenção de, em uma única obra, desenvolver a razão

especulativa e razão prática (KANT, 2003b, p. IX-X). Fica também evidente no

121 Deve ser salientado que a expressão jurídico-moral, em Kant, não é incorreta, uma vez que, na própria Metafísica dos Costumes (KANT, 2003a) o autor declara a ética (moral em sentido estrito) e o direito como componentes da moral em sentido amplo. 122 Não se ignora, aqui, o valor da Crítica da faculdade do juízo (KANT, 2005a), que segundo expressa o próprio Kant, é a terceira parte da Crítica, que deveria ser uma unidade. Entretanto, em relação à fundamentação jurídico-moral baseada na liberdade, parece correto dizer que o procedimento metodológico é desenvolvido de maneira completa nas duas primeiras críticas.

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trecho seguinte, em que o autor demonstra que a razão pura funciona como uma

unidade:

Aquele que pôde convencer-se das proposições que ocorrem na analítica deleitar-se-á com tais comparações; pois elas com razão nos propiciam a expectativa de poderem talvez um dia levar à perspiciência da unidade de toda a faculdade da razão pura (tanto da faculdade teórica como da prática) e deduzir tudo de um só princípio, o que é a inevitável necessidade da razão humana, que somente encontra plena satisfação numa unidade completamente sistemática dos seus conhecimentos.123 (KANT, 2003b, p. 319).

Quanto ao procedimento adotado nas obras em questão, Kant esclarece que

Ora, a razão prática tem como fundamento a mesma faculdade de conhecer que a razão especulativa, na medida em que ambas são razão pura. Portanto a diferença da forma sistemática de uma em relação à da outra terá de ser determinada pela comparação de ambas, com a indicação do respectivo fundamento. A analítica da razão teórica pura ocupava-se com o conhecimento dos objetos que possam ser dados ao entendimento, e tinha de começar pela intuição, por conseguinte (por que esta é sempre sensível) pela sensibilidade, e a partir daí pela primeira vez avançar até conceitos (dos objetos desta intuição), e só após o tratamento de ambos era-lhe permitido terminar nas proposições fundamentais. Contrariamente, por que a razão prática não se ocupa com objetos para conhecê-los mas com sua própria faculdade de (conforme ao seu conhecimento) torná-los efetivos, isto é, tem a ver com uma vontade que é uma causalidade na medida em que a razão contém o fundamento determinante desta, já que ela, conseqüentemente, não pode indicar nenhum objeto da intuição mas (porque o conceito da causalidade contém sempre a referência a uma lei que determina a existência do múltiplo na relação de um com outro) enquanto razão prática pode indicar somente uma lei da intuição: assim uma crítica da Analítica da razão prática pura, na medida em que esta deve ser uma razão prática (que é o problema propriamente dito), tem que começar da possibilidade de proposições fundamentais práticas a priori. Unicamente a partir daí ela podia avançar a conceitos dos objetos de uma razão prática, isto é, aos de absolutamente bom e mau, para pela primeira vez fornecê-los em acordo com aquelas proposições fundamentais (pois esses, enquanto bom e mal, não podem ser dados antes daqueles princípios por nenhuma faculdade de conhecer), e somente então o último capítulo, concernente à relação da razão prática pura com a sensibilidade e a sua influência necessária (cognoscível a priori) sobre a mesma, isto é, concernente ao sentimento moral, podia encerrar essa parte. Assim, pois, a Analítica da razão pura prática dividiu bem analogicamente à da teórica o âmbito completo de todas as condições de seu uso, porém em ordem inversa. A analítica da razão pura teórica foi dividida em Estética transcendental e Lógica transcendental, a da razão prática, inversamente,

123 “Demjenigen, der sich von den in der Analytik vorkommenden Sätzen hat überzeugen können, werden solche Vergleichungen Vergnügen machen; denn sie veranlassen mit Recht die Erwartung, es vielleicht dereinst bis zur Einsicht der Einheit des ganzen reinen Vernunftvermögens (des theoretischen sowohl als praktischen) bringen und alles aus einem Princip ableiten zu können; welches das unvermeidliche Bedürfniß der menschlichen Vernunft ist, die nur in einer vollständig systematischen Einheit ihrer Erkenntnisse völlige Zufriedenheit findet.” (KpV, B. V, S. 90[37]-91[1-7]).

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em Lógica e Estética da razão prática pura (se me for permitido, simplesmente por razões de analogia, utilizar aqui essas denominações, afora isso inadequadas). A Lógica, por sua vez, foi dividida lá em Analítica dos conceitos e Analítica das proposições fundamentais e aqui, em Analítica das proposições fundamentais e Analítica dos conceitos. A Estética tinha lá duas partes, devido ao duplo modo de intuição sensível; aqui a sensibilidade de modo algum será considerada como capacidade de intuição mas simplesmente como sentimento (que pode ser um fundamento subjetivo da apetência), e em relação a ele a razão prática pura não permite nenhuma divisão ulterior.124 (KANT, 2003b, p. 313-317).

Assim, na Crítica da razão pura (KANT, 2001), Kant parte de uma análise

(regressão) às proposições fundamentais, partindo da sensibilidade em suas formas

puras – tempo e espaço – e concluindo pelas proposições sintéticas a priori. Já na

Crítica da razão prática (KANT, 2003b), o autor faz o caminho contrário e, através do

procedimento sintético (progressão), parte das proposições sintéticas a priori,

especialmente o princípio da moralidade e faz a composição dos elementos da razão

prática terminando com sua aplicação na sensibilidade.125

124 “Nun hat praktische Vernunft mit der speculativen so fern einerlei Erkenntnißvermögen zum Grunde, als beide reine Vernunft sind. Also wird der Unterschied der systematischen Form der einen von der anderen durch Vergleichung beider bestimmt und Grund davon angegeben werden müssen. Die Analytik der reinen theoretischen Vernunft hatte es mit dem Erkenntnisse der Gegenstände, die dem Verstande gegeben werden mögen, zu thun und mußte also von der Anschauung, mithin (weil diese jederzeit sinnlich ist) von der Sinnlichkeit anfangen, von da aber allererst zu Begriffen (der Gegenstände dieser Anschauung) fortschreiten und durfte nur nach beider Voranschickung mit Grundsätzen endigen. Dagegen, weil praktische Vernunft es nicht mit Gegenständen, sie zu erkennen, sondern mit ihrem eigenen Vermögen, jene (der Erkenntniß derselben gemäß) wirklich zu machen, d. i. es mit einem Willen zu thun hat, welcher eine Causalität ist, so fern Vernunft den Bestimmungsgrund derselben enthält, da sie folglich kein Object der Anschauung, sondern (weil der Begriff der Causalität jederzeit die Beziehung auf ein Gesetz enthält, welches die Existenz des Mannigfaltigen im Verhältnisse zu einander bestimmt) als praktische Vernunft nur ein Gesetz derselben anzugeben hat: so muß eine Kritik der Analytik derselben, so fern sie eine praktische Vernunft sein soll (welches die eigentliche Aufgabe ist), von der Möglichkeit praktischer Grundsätze a priori anfangen. Von da konnte sie allein zu Begriffen der Gegenstände einer praktischen Vernunft, nämlich denen des schlechthin Guten und Bösen, fortgehen, um sie jenen Grundsätzen gemäß allererst zu geben (denn diese sind vor jenen Principien als Gutes und Böses durch gar kein Erkenntnißvermögen zu geben möglich), und nur alsdann konnte allererst das letzte Hauptstück, nämlich das von dem Verhältnisse der reinen praktischen Vernunft zur Sinnlichkeit und ihrem nothwendigen, a priori zu erkennenden Einflusse auf dieselbe, d. i. vom moralischen Gefühle, den Theil beschließen. So theilte denn die Analytik der praktischen reinen Vernunft ganz analogisch mit der theoretischen den ganzen Umfang aller Bedingungen ihres Gebrauchs, aber in umgekehrter Ordnung. Die Analytik der theoretischen reinen Vernunft wurde in transscendentale Ästhetik und transscendentale Logik eingetheilt, die der praktischen umgekehrt in Logik und Ästhetik der reinen praktischen Vernunft (wenn es mir erlaubt ist, diese sonst gar nicht angemessene Benennungen blos der Analogie wegen hier zu gebrauchen), die Logik wiederum dort in die Analytik der Begriffe und die der Grundsätze, hier in die der Grundsätze und Begriffe. Die Ästhetik hatte dort noch zwei Theile wegen der doppelten Art einer sinnlichen Anschauung; hier wird die Sinnlichkeit gar nicht als Anschauungsfähigkeit, sondern blos als Gefühl (das ein subjectiver Grund des Begehrens sein kann) betrachtet, und in Ansehung dessen verstattet die reine praktische Vernunft keine weitere Eintheilung.” (KpV, B. V, S. 89[15-35]-90[1-22]). 125 Sobre esta dupla fundamentação, Heidegger (1954) explica que ocorre na dedução transcendental na Crítica da razão pura. Segundo o autor, existiriam duas vias pelas quais Kant comprova a

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Para tanto, na análise, Kant promove progressivamente a exclusão das

faculdades que têm uso empírico. A começar pela própria receptividade

(sensibilidade e imaginação), posteriormente excluindo a razão no seu uso empírico

(entendimento), ficando exclusivamente a razão no seu uso puro, ou seja, no

emprego hiperbólico das categorias rumo à totalidade das condições. A partir daqui

toda a crítica de Kant é feita em estado de suspensão do juízo, até que, na síntese

moral o autor recomeça progressivamente a reinserção da sensibilidade e, com ela,

da experiência.

Enfim, deve ser salientado que tal caminho, de ascendência e descendência

rumo às proposições a priori, é também seguido na Fundamentação da Metafísica

dos Costumes, onde o autor parte de uma noção empírica da moralidade – a noção

de boa vontade ascende às condições dessa boa vontade, concebendo o imperativo

categórico e, posteriormente, volta à sensibilidade, quando demonstra que uma

vontade pura no ser humano se torna uma vontade também afetada por móbiles

empíricos – heteronomia – o que determina ‘O limite extremo de toda a filosofia

prática’ (KANT, 2004b, p. 92) constituído por uma permanente dialética existente

entre as leis severas da razão pura e os arrazoados da experiência (KANT, 2004b).

Essas e outras deduções e estruturas conceituais das obras de Kant serão

alinhados detalhadamente a seguir.

2. A regressão aos fundamentos primeiros na Crítica da razão pura

Como foi explicado na seção anterior, na Crítica da razão pura (KANT, 2001)

Kant procede, através do método analítico, a uma regressão aos fundamentos

primeiros do conhecimento, isto é, através da análise dos elementos constitutivos do

conhecimento, o autor elabora as proposições que o regem. Por outro lado, através

do mesmo procedimento, descobre a possibilidade da elaboração de questões

metafísicas que, entretanto, tornam-se limitadas por não possuírem um objeto

possível empiricamente, logo, não podendo ser conhecidas pelo ser humano. Na

decomposição dos elementos do conhecimento, Kant parte em busca da afirmação

possibilidade do conhecimento metafísico. Ver “§ 17. Las dos vias de la deducción trascendental” (HEIDEGGER, 1954, p. 69-76)

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da possibilidade dos juízos sintéticos a priori, o que confirmaria a própria

possibilidade da metafísica como ciência. E, em posse das cautelas exigidas pelo

rigorismo do método crítico, o autor só pode empreender sua pesquisa libertando

progressivamente sua análise dos elementos a posteriori, que fariam que seus juízos

continuassem demandando a confirmação empírica para avaliação da verdade.

É assim que Kant procede à suspensão do juízo em sua análise das questões

metafísicas, como elemento necessário do método transcendental, visando garantir

a pureza e independência das conclusões sobre as questões relativas a esta ciência

que, por não possuir um objeto físico, necessita de confirmação126 por argumentos a

priori.

2.1. A dedução127 dos elementos do conhecimento na Crítica da razão pura

A ‘introdução’ da Crítica da razão pura (KANT, 2001), inserida por Kant em

sua segunda edição, em 1787, inicia-se com a afirmação da única fonte de

conhecimento da qual se tinha segurança antes da instauração do ‘tribunal da razão’

– a experiência – eis que:

Não resta dúvida de que todo o nosso conhecimento começa pela experiência; efectivamente (sic), que outra coisa poderia despertar e pôr em acção (sic) a nossa capacidade de conhecer senão os objetos que afectam (sic) os sentidos e que, por um lado, originam por si mesmos as representações e, por outro lado, põem em movimento a nossa faculdade intelectual e levam-na a compará-las, ligá-las ou separá-las, transformando

126 O que aqui pode ser considerado ‘prova por meio da síntese’. 127 Nota para a distinção entre a dedução transcendental e dedução metafísica, descritas em Loparić (2000). Segundo Kant “Na dedução metafísica foi posta em evidência em geral a origem a priori das categorias, pela sua completa concordância com as funções lógicas universais do pensamento; e na dedução transcendental, foi exposta a possibilidade dessas categorias como conhecimento a priori dos objetos de uma intuição em geral (§§ 20 e 21)”(KANT, 2001, p. 161). “In der metaphysischen Deduction wurde der Ursprung der Kategorien a priori überhaupt durch ihre völlige Zusammentreffung mit den allgemeinen logischen Functionen des Denkens dargethan, in der transscendentalen aber die Möglichkeit derselben als Erkenntnisse a priori von Gegenständen einer Anschauung überhaupt (§ 20, 21) dargestellt.” (KrV-B, B. III, S. 124[14-18]). Logo, parece correto dizer que a dedução transcendental relaciona-se com a decomposição metódica cujo objetivo é o estabelecimento de um método seguro para o conhecimento. Por sua vez, a dedução metafísica constituiria a análise no sentido de descoberta e demonstração das categorias, o que parece ser estendido às questões metafísicas. Estas últimas devem ser procedidas de acordo com a análise transcendental, o que termina, na Crítica da razão pura (2001), com a demonstração das antinomias. Isto é confirmado em Heidegger (1954). Ver também Gomes (2004, p. 96), Caygill (2000, p. 91-92) e Höffe (2005, p. 86-87; 92-93).

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assim a matéria bruta das impressões sensíveis num conhecimento que denomina experiência? Assim, na ordem do tempo, nenhum conhecimento precede em nós a experiência e é com esta que todo o conhecimento tem o seu início. (KANT, 2001, p.36).128

Parece ser este o principal motivo pelo qual o autor tenha se preocupado em

começar sua epistemologia a partir da faculdade da receptividade. De fato, conforme

afirma Gomes (2004, p. 97-98), a ciência, na época de Kant, já era dotada de

segurança suficiente para ser considerada como ‘verdade’. E, apesar de observar

que as ciências, especialmente a Física, não se baseiam na experiência129 – pois

são dotadas de universalidade, percebe que ao menos dependem da experiência,

uma vez que seus objetos necessitam de possibilidade empírica (GOMES, 2004).

Mas, se o interesse é viabilizar a inauguração de uma ciência metafísica,

como fazer com a impossibilidade empírica (física) de seus objetos, fator impeditivo

da consideração destes como objetos de conhecimento? A resposta está em

descobrir em como se processa o conhecimento; deve-se decompor (analisar) o

conhecimento, deduzindo130 seus elementos no intuito de se obter as proposições

mais primárias sobre sua constituição.

Assim, Kant parte da experiência pelo fato de que o conhecimento humano

começa quando da percepção dos fenômenos externos. Contudo, mesmo na teoria

do conhecimento, ao partir desse lastro o autor se dirige, gradualmente, até

prescindir do auxílio de seu suporte131, caminhando paripassu em direção à

128 “Daß alle unsere Erkenntniß mit der Erfahrung anfange, daran ist gar kein Zweifel; denn wodurch sollte das Erkenntnißvermögen sonst zur Ausübung erweckt werden, geschähe es nicht durch Gegenstände, die unsere Sinne rühren und theils von selbst Vorstellungen bewirken, theils unsere Verstandesthätigkeit in Bewegung bringen, diese zu vergleichen, sie zu verknüpfen oder zu trennen, und so den rohen Stoff sinnlicher Eindrücke zu einer Erkenntniß der Gegenstände zu verarbeiten, die Erfahrung heißt? Der Zeit nach geht also keine Erkenntniß in uns vor der Erfahrung vorher, und mit dieser fängt alle an.” (KrV-B, B. III, S. 27[5-13]). 129 De fato, assim como acontece na matemática, a física tem a possibilidade de confirmação empírica de seus objetos. Entretanto, seus juízos somente adquirem a qualificação de universais a partir do momento em que são pensados intelectualmente, se transformando em juízos sintéticos a priori. Portanto, o procedimento de suspensão do juízo empírico também se apresenta nestes outros campos científicos, haja vista que suas leis somente são assim consideradas quando destacadas das condições empíricas contingentes. Por certo, como podem ser afirmadas, por exemplo, as leis de gravitação universal, se não é possível ao cientista observar a integralidade dos movimentos da totalidade dos corpos celestes? A resposta se encontra evidente no fato de que o estudioso intelectualiza os dados que obtem da realidade, suspendendo os juízos empíricos e dando prosseguimento ao seu raciocínio de acordo com juízos exclusivamente produzidos a priori. 130 Deduzir para Kant tem o sentido de prova argumentativa, demonstração fundamental incontestável. Conferir em Caygill (2000, p. 91-92). 131 Uma vez que a experiência só pode nos fornecer juízos particulares e contingentes, mas nunca necessários e universais (KANT, 2001, p. 37-39).

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utilização da razão em seu uso puro, na formulação de juízos a priori, estando

suspenso132 o uso de todos os juízos que a experiência forneceu.

A análise (dedução) envereda pelo caminho de entrada do diverso da

experiência no sujeito: a sensibilidade em suas duas formas puras de intuição –

espaço e tempo (GOMES, 2004, p. 98) (KANT, 2001, p. 61-87; 2003c, p. 47-64;).

Nas palavras de Kant, “O espaço é uma representação necessária, a priori, que

fundamenta todas as intuições externas.”133 (2001, p. 64), é a “condição de

possibilidade dos fenômenos, não uma determinação que dependa deles; é uma

representação a priori que fundamenta necessariamente todos os fenômenos

externos”134 (2001, p. 65). Ainda, nas letras do autor, “O tempo é uma representação

necessária que constitui o fundamento de todas as intuições.”135 (2001, p. 70), é

“uma forma pura da intuição sensível”136 (2001, p. 71), “a condição imediata dos

fenômenos internos (da nossa alma) e, por isso mesmo também, mediatamente, dos

fenômenos externos.”137 (2001, p. 73). Ressalta Gomes que espaço e tempo são

formas métricas instaladas no sujeito (2004, p. 98138), logo, através da influência do

fenômeno sobre a sensibilidade humana, tempo e espaço delimitariam,

determinariam e propiciariam forma e dinâmica sobre o dado, criando uma imagem

virtual139 subjetiva e individual do objeto, cuja realidade e correspondência com a

sua imagem não podemos afirmar nem negar140.

Através dessas formas puras de intuição podem ocorrer duas espécies de

juízos sintéticos: o empírico, que é o que ocorre na experiência comum quando, por

132 O termo ‘suspenso’ é bem empregado, uma vez que é de fato excluída completa e temporariamente a experiência, que será reintegrada gradualmente em um segundo momento. Mesmo porque, o juízo sintético a priori precisa ser possível em um fenômeno, o que só pode ser percebido ou imaginado com a reintegração do mundo sensível. 133 “Der Raum ist eine nothwendige Vorstellung a priori, die allen äußeren Anschauungen zum Grunde liegt.” (KrV-B, B. III, S. 52[30-31]). 134 “Er [der Raum] wird also als die Bedingung der Möglichkeit der Erscheinungen und nicht als eine von ihnen abhängende Bestimmung angesehen und ist eine Vorstellung a priori, die nothwendiger Weise äußeren Erscheinungen zum Grunde liegt.” (KrV-B, B. III, S. 52[33]-53[1-4]). 135 “Die Zeit ist eine nothwendige Vorstellung, die allen Anschauungen zum Grunde liegt.” (KrV-B, B. III, S. 57[27-28]). 136 “Die Zeit ist […] eine reine Form der sinnlichen Anschauung.” (KrV-B, B. III, S. 58[15-16]). 137 “[…]so ist die Zeit eine Bedingung a priori von aller Erscheinung überhaupt und zwar die unmittelbare Bedingung der inneren (unserer Seelen) und eben dadurch mittelbar auch der äußern Erscheinungen.” (KrV-B, B. III, S. 60[20-22]). 138 Atribui esta afirmação a José Henrique dos Santos, entretanto não fornece referência. 139 Pode-se dar à palavra virtual, no presente contexto, o sentido filosófico de ‘aquilo que possui as condições essenciais à sua realização’. 140 A coisa em si (Ding an sich) não pode ser conhecida, mas apenas a maneira como os sentidos do sujeito são afetados pelo fenômeno, que também não se sabe se causado por ela. Disso pode ser afirmado que sequer sabemos se a coisa em si realmente existe. Esta afirmação se estende a tudo que se considera realidade externa (GOMES, 2004, p. 99).

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exemplo, atribuímos o predicado do peso a um corpo, ou a qualidade da cor a um

determinado objeto, através das informações que as percepções fornecem; mas

também podem ocorrer juízos sintéticos a priori, como no caso da matemática, em

que pode definir que da soma entre 5 e 7 resulta 12, o que entretanto pode ocorrer

sem a percepção de determinado número de objetos sendo somados. Esta última

espécie de juízos ocorre por construção de conceitos, visto que as próprias formas a

priori da intuição já proporcionam a métrica necessária a este procedimento. Aqui,

Kant ainda não despreza o juízo empírico, contudo manifesta pleno interesse de

fazê-lo, visto que a experiência não fornece a necessidade e universalidade

característicos da Matemática, motivos pelos quais demonstra pleno interesse nos

juízos sintéticos a priori (KANT, 2001; 2003c).

Após a entrada do diverso da sensibilidade no sujeito, o objeto precisa ser pensado, ou seja, submetido à razão. A razão em sua função cognitiva, isto é, reguladora do diverso que vem da sensibilidade, recebe a denominação de entendimento. Este entendimento tem determinadas categorias que são definidas como formas puras ou condições lógico-transcendentais. São condições lógico-transcendentais por tornarem possível o conhecimento. Embora não sejam elas sozinhas o conhecimento, como sem elas não há conhecimento, podem ser denominadas transcendentais. São a priori, pois independem da experiência, e transcendentes por não terem correspondente na experiência. (GOMES, 2004, p. 99).

Assim Kant procede, segundo Höffe (2005), primeiramente a uma dedução

metafísica, na qual vai derivar as categorias das formas de juízo da Lógica formal

(HÖFFE, 2005, p. 86-87). Posteriormente, procede a uma dedução transcendental,

onde vai descobrir a maneira como as categorias a priori podem referir-se a objetos

da experiência. Ainda, segundo Höffe, “Mediante uma recondução (análise

regressiva) das categorias à sua origem, a dedução transcendental demonstra que

sem as categorias não são possíveis os objetos e, por conseguinte, nenhuma

experiência.” (HÖFFE, 2005, p.93).

Através das categorias, Kant consegue explicar a possibilidade da física

newtoniana que absorve fórmulas matemáticas para explicar a natureza. Em outros

termos, nosso intelecto, dentro da trajetória do conhecimento, insiste em ver leis em

toda parte pela natureza (além das leis matemáticas, cuja construção ocorre a

priori), projetando as relações existentes nas categorias em todo o dado apreendido

pela sensibilidade.

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Aqui também Kant apresenta a suspensão do juízo empírico para suas

formulações, agora, em um grau mais avançado que no desenvolvimento da estética

transcendental. De fato, o autor deduz as categorias das funções dos juízos

esvaziadas de conteúdo, o que faz com que o mesmo primeiramente tenha de

conceber e nomear cada categoria, para apenas posteriormente determinar, na

dedução transcendental, como é possível aplicar cada uma delas a objetos

possíveis empiricamente. Contudo, apesar do apriorismo demonstrado, ainda

persiste a necessidade de ligação dos conceitos com a sensibilidade nesta instância

que, conforme explicado, denomina-se entendimento.

2.2. A concepção da Metafísica, o incondicionado e a suspensão do juízo

Após a dedução completa das categorias primitivas do entendimento, Kant

tem por satisfeita a questão do qual partira inicialmente – sobre os limites e

condições de possibilidade do conhecimento em geral e do científico. De fato, tanto

analítica como sinteticamente, deriva a confirmação das premissas e proposições

que se faziam necessárias a tal empreitada. Contudo, ainda falta uma questão – a

da possibilidade da metafísica como conhecimento em geral e científico. Neste

momento começa a análise desta espécie de conhecimento que, como explicitado

no primeiro capítulo, teve ares de verdade na filosofia clássica e no racionalismo

dogmático, até as fortes refutações do empirismo que puseram em xeque os

debates metafísicos.

E é na Crítica da razão pura (KANT, 2001) que Kant começa por atribuir à

metafísica seu caráter de ‘aparência de verdade’, dando ao procedimento analítico

que lhe é próprio a nomenclatura de ‘dialética transcendental’, ou ‘lógica das

aparências’ (HÖFFE, 2005). Kant teria constatado com certeza metodológica que o

conhecimento tem seus lindes estabelecidos pela possibilidade empírica, sendo que,

como as questões metafísicas não poderiam ter esta confirmação de possibilidade, o

procedimento de análise de suas questões não poderia partir de premissas dadas

pela experiência. Entretanto, certo é que mesmo a metafísica se concebe pela razão

pura, motivo pelo qual o procedimento comprovado como válido para a dedução dos

elementos do conhecimento mostra-se legítimo também para a análise da razão no

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campo da metafísica. É assim que Kant parte das categorias, que são conceitos a

priori141 instalados na razão, (considerada como entendimento) no desenvolvimento

puro de seu conteúdo.

Aqui Kant opera a suspensão completa do juízo, dado que as categorias são

tomadas esvaziadas do material que pode receber da sensibilidade. Segundo Höffe

(2005), a mesma unidade que as categorias dão ao diverso da sensibilidade,

transformando seu material indeterminado em representações, a razão pura dá ao

entendimento, tentando levar o conhecimento conceitual das categorias à unidade

suprema (HÖFFE, 2005, p. 142). A razão “leva os conceitos unificadores do

entendimento, por sua vez a uma unidade” (HÖFFE, 2005, p. 142) cuja condição à

qual estaria subordinada não é mais condicionada a nenhuma anterior – a idéia do

incondicionado, que leva o entendimento a um ‘completo acordo consigo próprio’

(KANT, 2001, p. 302).

Ainda as idéias transcendentais resultantes desta unidade da razão pura “se

refere[m] a um conhecimento do qual todo o conhecimento empírico é apenas uma

parte [...] e embora a experiência efectiva nunca atinja por completo esse

conhecimento, sempre todavia pertence a ele”142 (KANT, 2001, p. 307). “A metafísica

se funda no interesse da razão em procurar para o condicionado o incondicionado”

(HÖFFE, 2005, p. 141). Incondicionado quer dizer que, na análise de cada classe de

categoria, a razão humana segue a série causal até o momento em que se

interrompe e tenta conceber a totalidade das condições da experiência, ou a idéia de

uma seqüência causal infinita, ou a idéia de uma causa inicial sem causa anterior143.

Nesta orientação se dirige a quatro proposições antagônicas, que Kant denomina

antinomias. Dessas antinomias se concluem três idéias puras cuja realidade e

inexistência não podem ser afirmadas pela razão:

o incondicionado como unidade absoluta do sujeito pensante, objeto da psicologia racional; o incondicionado como totalidade das coisas e condições no espaço e no tempo, o objeto da cosmologia transcendental; e,

141 As categorias fazem parte do procedimento adotado por Kant na análise do conhecimento. 142 “[...] daß er sich nicht innerhalb der Erfahrung wolle beschränken lassen, weil er eine Erkenntniß betrifft, von der jede empirische nur ein Theil ist [...], bis dahin zwar keine wirkliche Erfahrung jemals völlig zureicht, aber doch jederzeit dazu gehörig ist.” (KrV-B, B. III, S. 244[23-28]). 143 Höffe salienta que “As idéias cosmológicas do incondicionado (a completude absoluta dos fenômenos em seu quádruplo aspecto) podem ser concebidas de dois modos: (A) como o último elemento da seqüência de fenômenos e (B) como o todo da seqüência, de modo que os elementos da seqüência são condicionados e somente à própria seqüência infinita é incondicionada.” (HÖFFE, 2005, p. 153).

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enfim, o incondicionado como a unidade absoluta da condição de todos os objetos do pensar em geral, isto é, um ser absolutamente supremo, Deus, como objeto da teologia natural. (HÖFFE, 2005, p. 143).

Estas idéias, como explicitadas no início, não têm função constitutiva de modo

que não podem possibilitar nem ampliar a experiência. Entretanto, têm um valor

regulador, já que procuram propiciar uma unidade ao material empírico, fornecendo

à experiência um direcionamento, um rumo a uma totalidade incondicionada

somente ideal, que o horizonte humano não pode alcançar. Ainda, a idéia da

liberdade produz a regulação no campo do agir humano, através das noções de

ética e direito, que constituem, no mundo dos fenômenos, a postulação empírica de

uma idéia reguladora, em princípio, inalcançável, mas racionalmente possível144.

A noção de regulação contida nas idéias puras é descrita por Kant como um

princípio da razão que determina como regra o procedimento de regressão, porém,

sem antecipar o objeto contido no final desta, isto é, sem fornecer uma previsão do

resultado que será obtido ao final da regressão (KANT, 2001, p. 448). Em outros

termos, as idéias puras da razão não podem ser consideradas objetos, mas como

procedimentos cujo direcionamento pode ordenar o caminho do ser humano no

mundo da vida. Esta regulação não constitui algo dado empiricamente, entretanto,

pode formar um horizonte de situação do sujeito no mundo sensível145.

Analogicamente, pode se afirmar que as idéias da razão pura configuram um objeto

ao qual se dirige, contudo, sem garantias de ser alcançado, a ponto de o caminho

seguido tornar-se mais importante que o próprio objetivo. 146

144 Parece que o próprio sentido ideal e inalcançável da ética e do direito em Kant decorre dessa compreensão de que as idéias metafísicas têm apenas caráter regulador, ou seja, de um horizonte inalcançável que, contudo, mostra o norte, o caminho que deve ser seguido. A própria noção de reino dos fins (Reich der Zwecke), muito criticada por sua idealidade inatingível, é expressamente caracterizada pelo autor como uma idéia ‘somente possível’ (KANT, 2004b). Entretanto, conforme confirma SALGADO (1995, p. 113) no campo prático, a idéia da liberdade assume a função constitutiva, uma vez que amplia a possibilidade da experiência, trazendo para o mundo sensível uma causalidade inicial incondicionada, diferente da causalidade natural. 145 Como, por exemplo, a idéia de Deus (isto é, de um ser supremo, criador e causa inicial de todas as coisas) não dá ao ser humano o conhecimento de um objeto (de um ser), mas proporciona um caminho (através do regresso causal) que concede ao indivíduo a direção desse ser, que não se sabe se algum dia poderá ser atingido. Nada garante também, que este caminho é falso e/ou que Deus não exista. A função que é descrita neste exemplo é utilizada na religião cuja própria origem do termo latino – religare – determina sua conceituação como meio de religação com um ser superior, um ser supremo, além da física. 146 Isso é compatível com a teoria aristotélica das virtudes, onde o telos (Τέλος) – a eudaimonia (εὐδαιµονία) – não é de fato conhecido materialmente pelo homem. Assim, este pode somente conhecer as virtudes e as seguir como caminho para algo que, em verdade, não se sabe se será

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Como pode ser percebido, a própria noção de caminho e procedimento

remetem claramente à noção de ação, motivo que determina a conclusão de Kant de

que o valor das idéias puras encontra-se no campo prático. Possivelmente este é o

motivo do direcionamento da metafísica kantiana à filosofia prática (moral e direito).

Porque, sem o contexto prático humano, as idéias puras da razão não são nada

mais que asserções contraditórias inconclusivas e irrelevantes, cuja solução sequer

despertaria um interesse qualquer.147

3. A Crítica da razão prática e a composição da moral

Seguindo a ordem proposta inicialmente, ora serão debatidos os elementos

desenvolvidos na Crítica da razão prática (2003b), na conformidade com o

procedimento usado por Kant que, neste momento, parte da concepção de liberdade

transcendental obtida como resultado da análise procedimental148 metafísica e de

sua conseqüente proposição – o imperativo categórico, como o princípio e fórmula

da liberdade no sujeito, seguindo-se o processo de síntese da moralidade sob as

condições do procedimento (as categorias) – com a construção dos conceitos de

bem e mal (categorias morais), e enfim, a finalização da composição (síntese) da

liberdade sob a sensibilidade.

Como foi explicado, neste segundo momento de seu projeto crítico Kant toma

o caminho contrário do adotado na Crítica da razão pura (2001), fazendo agora a

composição da moral através da progressão a partir da proposição obtida na análise.

Para isto, Kant necessita restaurar progressivamente o juízo empírico em suas

investigações, uma vez que seu objetivo é uma fundamentação da moralidade149

alcançado, o que apenas poderá ser sabido no final de uma vida virtuosa. Sobre o assunto, ver Macintyre (2001). 147 E, por este mesmo motivo, é suprimido deste estudo o debate aos pormenores de cada uma das antinomias, sendo que o assunto será discutido a seguir no campo em que resulta em frutos – o campo prático – cuja utilidade determina a formulação dos objetos que interessam ao trabalho: a moral e o direito. 148 Procedimental, pois parte não de uma premissa dada, mas de um procedimento dado, a saber o procedimento e as estruturas necessários ao conhecimento, resultantes da análise em busca das condições de possibilidade deste. 149 De fato, está contido na Crítica da razão pura (2001) um interesse moral que subjaz o objeto imediato da obra – a descoberta dos limites e possibilidades do conhecimento em geral e do metafísico. Este interesse está contido na própria confirmação da idéia de liberdade, que tornaria

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isenta de fatores contraditórios e de elementos que possibilitem a refutação de suas

conclusões.

Desta maneira, o processo de investigação das condições de possibilidade da

metafísica começa em um estado de plena suspensão do juízo, cujo avanço gradual

acontece no procedimento de investigação das condições de possibilidade do

conhecimento. Logo, caso Kant não houvesse reimplementado o juízo

gradualmente, na fase da composição a partir da liberdade, sua conclusão teria sido

circular, isto é, teria voltado ao ponto de partida – o procedimento descoberto para o

conhecimento150. É assim que, suspendendo a suspensão do juízo, o autor

explica a moralidade no mundo dos fenômenos e faz a transição da idéia de

liberdade inteligível como uma possibilidade para o mundo sensível, ampliando, por

conseguinte, a possibilidade da experiência humana, bem como a do conhecimento.

Frise-se que a maioria dos trabalhos de estudiosos da área do direito sobre o

assunto têm início pela explicação sobre o imperativo categórico e a construção da

moral kantiana para, somente ao final, explicar a idéia de liberdade e sua ligação

com a moral.151 Isto se deve a uma avaliação que privilegia a Fundamentação da

Metafísica dos Costumes (KANT, 2004b). Contudo, no presente estudo, a regalia

volta-se para a ordem sistemática do pensamento de Kant, colocando a Crítica da

razão prática (KANT, 2003b) após a Crítica da razão pura (KANT, 2003b), contexto

em que será desenvolvida a conclusão da existência da lei moral a partir da noção

de liberdade e não o contrário152. Este caminho é o que possibilita a fundamentação

do direito paralelamente à da ética e que, posteriormente, vai oportunizar à

Fundamentação da Metafísica dos Costumes (KANT, 2004b) cumprir o seu papel de

alicerce da Metafísica dos Costumes (KANT, 2003a).

possível a demonstração de todas as questões metafísicas e na própria noção de regulação conferida por Kant às idéias puras, vez que, como afirmado anteriormente, estas só adquirem contexto e utilidade no campo prático, ou seja, no direcionamento da conduta humana. 150 Isto demonstraria somente que não existe contradição em seus argumentos, mas não possibilitaria a ampliação do conhecimento, objetivo do método analítico-sintético. 151 Isto ocorre, por exemplo, em Gomes (2004), em Salgado (1995) e em Heck (2000). 152 Apesar de a lei moral ser o fundamento de demonstração da liberdade.

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3.1. A antinomia da liberdade: resultado da suspensão do juízo

A idéia de liberdade, conforme explicitado, surge do interesse da razão em

procurar para o condicionado, o incondicionado153. Isto é, ao buscar uma causa para

as manifestações empíricas e para esta causa sua condição anterior, na linha

ascendente da série de condições, a razão culmina na concepção de uma causa

que, por sua vez, não se encontra condicionada a nenhuma anterior. Esta

representa o começo da série e, em si, contém toda experiência, de maneira que

possui a propriedade de dar início a qualquer acontecimento empírico, seja por

intermédio de condições a ela subordinadas, seja diretamente sob o fato

naturalístico154. Esta talvez venha a ser a mais apropriada descrição para o que

representa a idéia de liberdade no opus kantiano (conceito positivo de liberdade),

sendo que, dessa concepção decorrem diversas conseqüências, das quais destaca-

se aqui o conceito de liberdade como autonomia (conceito negativo de liberdade).

Mas Höffe (2005, p. 151) adverte que, nesse impulso de completude inerente

à razão, ela justamente fracassa, sendo que Kant vai demonstrar como isto ocorre

apresentando a prova das afirmações contrapostas (antinomias) com igual

profundidade, de modo que este conflito apareça como inevitavelmente necessário

(HÖFFE, 2005, p. 152). Assim, a antinomia da liberdade se refere à oposição entre

liberdade e determinação (HÖFFE, 2005, p. 152), que no ser racional levam a um

aspecto de ambigüidade do sujeito, que contém em seu conceito ambas as

propriedades. Esta ambigüidade é verificada no próprio estudo das antinomias que

153 Para Salgado (1995, p. 228), mais do que decorrente da razão, a liberdade é algo imanente à própria razão, o que leva a crer que não se encontra em um plano inacessível ao ser humano, mas nas suas próprias mãos, considerado como ser racional. 154 Rodrigues (1988) atenta para o fato de que o conceito de liberdade implica uma causalidade que não está submetida às condições de espaço e tempo. Explica que a liberdade “não seria uma causa condicionada às condições temporais, isto é, uma causa fenomênica. A liberdade seria pois uma causa pertencente ao mundo das coisas em si, causa esta que atuaria sobre o mundo dos fenômenos, mas sem pertencer a ele.” (RODRIGUES, 1988, p. 128). Esta perspectiva da liberdade fora das condições de espaço e tempo esclarece de maneira surpreendente a definição de liberdade como ‘faculdade de iniciar por si um acontecimento’, vez que demonstra claramente que algo que não esteja submetido à condição de sucessão temporal e de inércia/deslocamento espacial, só pode ser compreendido como algo por si só inicial. Apesar disso, fica a dificuldade de compreender como algo desta natureza pode se tornar uma condição, o que entretanto parece ser explicado quando esta causalidade inicial é colocada no mudo fenomênico, sem, contudo, submetê-la às condições espacio-temporais.

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leva à compreensão da categoria155 de duas maneiras: “(A) como o último elemento

da seqüência de fenômenos e (B) como o todo da seqüência, de modo que os

elementos da seqüência são condicionados e somente a própria seqüência infinita é

incondicionada” (HÖFFE, 2005, p. 152). No caso da liberdade, a idéia decorre da

busca de unidade na categoria da relação sendo que, por um lado, a tese sustenta

que “para o que acontece no mundo pode haver uma causa que não tenha por sua

vez outra causa e é, portanto, causalidade por liberdade” (HÖFFE, 2005, p. 157),

mas, por outro lado, a antítese garante que “não há causalidade por liberdade, mas

tudo o que acontece segue meramente leis da natureza” (HÖFFE, 2005, p. 157).156

No resultado da comparação dessa oposição Kant conclui que, no âmbito

especulativo, não se pode afirmar a liberdade, entretanto, não pode, também, negar-

se a possibilidade de sua existência. Mais ainda, segundo Höffe (2005, p. 155), o

autor apresenta uma terceira possibilidade que é mostrada na crítica transcendental

– o idealismo transcendental ou formal – isto é, as idéias da razão especulativa, em

princípio, não têm um caráter de constituição na experiência, mas apenas de

regulação. Entretanto, inquestionável a concepção da idéia de liberdade, sendo que,

através da especulação, resta ainda um problema: constituindo o ser racional tanto a

idéia de determinação pela natureza quanto a de liberdade, considerando

inquestionável que existe uma determinação natural, não seria possível uma

conciliação desta com a idéia de liberdade? Ainda: não seria possível afirmar a

realidade da liberdade, não apenas como idéia reguladora, mas também como

constitutiva de uma determinada classe de fenômenos?

Kant parece responder positivamente a estas questões (2001, p. 406),

quando trata de um campo específico – o moral. Destarte, afigura-se como possível

a afirmação da liberdade no aspecto prático do ser racional. De fato, para se afirmar

isto são necessárias duas considerações: a do ser racional como participante de

dois mundos e a colocação do sujeito como co-autor do mundo empírico.

155 Vale lembrar que cada antinomia decorre da tentativa da razão de dar unidade a cada uma das quatro classes de categorias do entendimento. 156 “TESE. A causalidade segundo as leis da natureza não é a única de onde podem ser derivados os fenômenos do mundo no seu conjunto. Há ainda uma causalidade pela liberdade que é necessário admitir para os explicar.” (KANT, 2001, p. 406). “Die Causalität nach Gesetzen der Natur ist nicht die einzige, aus welcher die Erscheinungen der Welt insgesammt abgeleitet werden können. Es ist noch eine Causalität durch Freiheit zu Erklärung derselben anzunehmen nothwendig.” (KrV-B, B. III, S. 308[4-7]). “ANTÍTESE. Não há liberdade, mas tudo no mundo acontece unicamente em virtude das leis da natureza.” (KANT, 2001, p. 407). “Es ist keine Freiheit, sondern alles in der Welt geschieht lediglich nach Gesetzen der Natur.” (KrV-B, B. III, S. 309[4-5]).

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Primeiramente, a dupla perspectiva é essencial para haver a separação e

convivência pacífica entre as duas espécies de causalidade, de maneira que deve

ser concebida a liberdade como algo incontestavelmente existente no mundo

inteligível e que não altere diretamente as coisas do mundo sensível157. Em segundo

lugar, é necessário aceitar o sujeito como modificador dos fenômenos,

independentemente desta modificação ser movida por uma causa natural ou uma

causa pela liberdade. Quanto a isso, se for aceito que o sujeito pode ser uma

condição intermediária (condicionada) da série causal naturalística, devemos aceitar

a afirmação de que ele modifica o mundo. Se for pensado que este mesmo sujeito

pode modificar o mundo por um ato originado em seu próprio ser, pensamos

necessariamente a liberdade. De fato, se a razão é que formula a idéia de uma

unidade empírica das condições, traduzida em uma causa inicial incondicionada

possível e se esta mesma razão encontra-se em um ser que participa do mundo

empírico como membro da série causal natural, pode-se afirmar que este ser pode

caracterizar-se tanto como meio quanto como a própria causa bastante de um

fenômeno158. Logo, fica demonstrada a possibilidade da ambigüidade entre natureza

e liberdade no conceito ontológico kantiano.

Agora, se é possível teoricamente a existência dessa contradição em um ser,

pergunta-se – como a mesma é resolvida ou, ao menos, levada a um equilíbrio, de

modo a que natureza e liberdade convivam pacificamente? Essa resposta parece ser

impossível, em Kant, em vista de que o que caracteriza a vontade do ser humano é

justamente a tensão entre o efeito natural causado pelas inclinações e a

determinação da liberdade originada pela razão prática159. Quanto a isso, pode ser

dito que a natureza se entende proprietária e possuidora de todos os fenômenos de

maneira que pensa dominar toda experiência empírica. Assim, só não entra em

conflito com a liberdade160 quando esta ordena o mesmo que determina a inclinação

dos sentidos. Por outro lado, a liberdade possui seu campo próprio, sendo que não

157 E se altera, não se pode afirmar, exceto como possibilidade. De fato, é possível a liberdade como unidade empírica, ou seja, como causa inicial de toda a experiência, mas isso não é certo e nem demonstrável, exceto sob o ponto de vista prático. 158 Isto é um fato que dependerá da vontade do sujeito que, no ser humano, conforme explica Kant na Fundamentação da Metafísica dos Costumes (2004b), não é uma vontade determinada somente pela liberdade, mas também pelas inclinações da sensibilidade. 159 Kant denomina isso na Fundamentação da Metafísica dos Costumes (2004b) como ‘a eterna dialética entre as leis severas da razão pura e os arrazoados da experiência’. 160 Vale a pena antentar para o fato de que este conflito ocorre no âmbito da vontade (Willkür) humana.

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possui interesse em alguns fenômenos que, independentemente da maneira como

ocorram, não são de interesse da razão e acabam sendo determinados pela

natureza161. Esse embate entre natureza e liberdade, como será concluído, resolve-

se no direito162.

Por fim, quanto à primeira pergunta colocada – da possibilidade da liberdade

como idéia constitutiva no mundo fenomênico, parece clara a resposta de Kant:

Aqui elas [as idéias puras] se tornam imanentes e constitutivas, enquanto elas são fundamentos da possibilidade de tornar efetivo o objeto necessário da razão prática pura (o sumo bem), uma vez que sem isso elas são transcendentes e são princípios meramente regulativos da razão especulativa, que não lhe impõem admitir um novo objeto para além da experiência mas somente aproximar-se da completude de seu uso na experiência.163 (KANT, 2003b, p. 483).

Ora, neste momento parece claro que Kant entende que as idéias da razão

pura, sobretudo a idéia de liberdade, assumem o caráter constitutivo, à medida que

possibilitam a realização do conceito de bem no mundo fenomênico. Este conceito

de bem nada mais é do que uma construção do entendimento (uma categoria)

decorrente da lei moral, de sorte que a liberdade constitui uma categoria no

entendimento que possibilita a existência fenomênica de algo inconcebível na

natureza por si só – a lei moral fruto da mesma liberdade transcendental.

3.2. A liberdade e sua demonstração pela lei moral

Se, como idéia necessária da razão pura especulativa, a liberdade tem a sua

possibilidade inquestionável, resta uma última questão: como pode ser demonstrada

sua possibilidade no mundo empírico? Kant resolve esse problema na Crítica da

161 Esse campo de desinteresse da razão pura é descrito na Metafísica dos Costumes como moralmente indiferente “(indifferens, adiaphoron, res merae facultatis)” (KANT, 2003a, p. 66) ou diáfora moral. 162 Pelo menos formalmente, isto é, como uma idéia direcionadora (reguladora) da conduta humana que, entretanto, assume forma constitutiva ao possibilitar a instauração da liberdade inteligível no mundo sensível. 163 “Hier werden sie immanent und constitutiv, indem sie Gründe der Möglichkeit sind, das nothwendige Object der reinen praktischen Vernunft (das höchste Gut) wirklich zu machen, da sie ohne dies transscendent und blos regulative Principien der speculativen Vernunft sind, die ihr nicht ein neues Object über die Erfahrung hinaus anzunehmen, sondern nur ihren Gebrauch in der Erfahrung der Vollständigkeit zu näheren auferlegen.” (KpV, B. V, S. 135[27-33]).

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razão prática (2003b) através do fato da razão (Faktum der Vernunft) que explica ser

a consciência da lei fundamental da moralidade, um fato inegável, descoberto

sempre que se desmembra o juízo que os homens proferem sobre a conformidade

de suas ações a leis, em condições em que possa ser submetida a máxima de sua

vontade também a inclinações (KANT, 2003b, p. 107). Ainda, vale atentar para a

advertência de que este fato não é um fato empírico, nem apreendido por espécie

alguma de intuição, mas um fato a priori, decorrente do conhecimento imediato da lei

moral quando o sujeito toma consciência de sua vontade, antes mesmo de qualquer

fenômeno ou de qualquer influência de uma inclinação sobre a sua vontade164

(KANT, 2003b, p. 107).

Neste momento, a Crítica da razão prática (2003b) emite uma informação que

põe em dúvida a tese ora defendida – segundo o autor, a liberdade não é

pressuposta, mas deduzida do fato da razão, ou seja, da possibilidade indubitável de

existência da lei moral. Destarte, esta afirmação colocaria em xeque também a

exposição do Faktum der Vernunft consignada na Fundamentação da Metafísica dos

Costumes (2004b), onde a lei moral decorre necessariamente da idéia de liberdade

contida na razão pura. Este debate é tratado em pormenor por Pavão (2004) em

artigo intitulado Liberdade e fato da razão em Kant (PAVÃO, 2004), no qual ele

defende que existe realmente uma contradição no raciocínio de Kant quando

constrói as duas obras, sendo que chega a concluir, inclusive, que o filósofo de

Königsberg, assolado por um enfraquecimento senil, teria cometido erros e seguido,

na Crítica da razão prática (KANT, 2003b), um caminho diverso do que se utiliza na

Fundamentação da Metafísica dos Costumes (KANT, 2004b) e também com o intuito

de corrigir seus erros anteriores.

Contudo, é pretensão deveras ingrata querer apontar contradições na extensa

obra do autor antes mesmo de se tentar interpretar de uma maneira abrangente e

conciliatória sua notável e complexa construção conceitual165. Quanto a isso parece

164 Segundo Pavão (2004,p. 125) o fato da razão pode der descrito por dois significados: o de ser a consciência da lei moral e o de ser a própria lei moral. Na Fundamentação da Metafísica dos Costumes (2004b), Kant explica o fato da razão através de um fato de constatação empírica – a noção vulgar de boa vontade. Pode ser afirmado, também, que o Faktum é uma formulação necessária (pressuposição) que decorre do método analítico-sintético aliado à suspensão do juízo, enquanto a noção vulgar de boa vontade é o resultado empírico possível daquele fato. 165 Não se supõe aqui, que Kant não tenha cometido erros em sua tese, mas que o tempo empenhado na descoberta dos desacertos do autor seria melhor empreendido na tentativa de descobrir o que pode ser acrescentado na apreciação de sua extensa contribuição filosófica. Isto ampliaria os horizontes da leitura de Kant, ao invés de restringi-los.

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mais coerente dizer que ambas as implicações encontram-se corretas, em seus

contextos particulares. Sobre isso, como Kant parte, na Crítica da razão prática

(2003b), do ponto de chegada de sua análise da Crítica da razão pura (2001), ou

seja, da idéia de liberdade obtida por um procedimento em que o juízo empírico

encontra-se suspenso, o autor faz uma previsão do resultado que vai encontrar no

final da síntese naquela obra, que é a moralidade como uma manifestação factual do

ser racional. Assim, para a conclusão de sua síntese, Kant não pode partir de uma

premissa cuja fundamentação analítica restringe-se a um procedimento, caso em

que suas conclusões nada forneceriam para o homem participante de dois mundos,

mas apenas para um ser somente inteligível. Para o reconhecimento da

possibilidade da liberdade é essencial que se forneça um dado que possibilite sua

transição em conclusões fenomênicas possíveis, qual seja a noção a priori que se

tem da moralidade, algo que se apresenta à razão como um fato numênico.

Para a compreensão do assunto, é necessário observar duas questões,

desenvolvidas também no texto de Pavão (2004). A primeira se relaciona ao sentido

do termo ‘fato’, que poderia significar tanto com o sentido de verdade (fato

veritativo), quanto com o sentido de acontecimento (fato como acontecimento).

Quanto a isso, parece correta a compreensão de que Kant considera o fato da razão

em ambos os sentidos, tendo a moralidade como algo veritativo e que acontece

indubitavelmente a priori. De fato, assim se expressa Kant:

Se, porém, se perguntar que é então propriamente a moralidade pura, na qual tem de testar como metal de ensaio o conteúdo moral de cada ação, tenho de confessar que somente filósofos podem tornar duvidosa a decisão sobre essa questão; pois na razão humana comum ela está há tempo decidida, em verdade não por fórmulas gerais abstratas mas pelo uso costumeiro, quase como a diferença entre a mão direita e a mão esquerda.166 (KANT, 2003b, p. 547).

Ora, se os filósofos ostentam alguma dúvida sobre a existência da lei moral,

com o ser racional em geral isto não ocorre, para quem esta tem caráter tão

indubitável quanto a destreza das mãos. Em outras palavras, a concepção a priori da

166 “Wenn man aber frägt, was denn eigentlich die reine Sittlichkeit ist, an der als dem Probemetall man jeder Handlung moralischen Gehalt prüfen müsse, so muß ich gestehen, daß nur Philosophen die Entscheidung dieser Frage zweifelhaft machen können; denn in der gemeinen Menschenvernunft ist sie, zwar nicht durch abgezogene allgemeine Formeln, aber doch durch den gewöhnlichen Gebrauch, gleichsam als der Unterschied zwischen der rechten und der linken Hand, längst entschieden.” (KpV, B. V, S. 155[12-18]).

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moralidade é, para a razão pura, tão indubitável quanto qualquer noção empírica,

para a razão afetada pela sensíbilidade.

A segunda questão é também apresentada no texto de Pavão (2004) como a

diferenciação entre ratio essendi e ratio congnoscendi na relação entre a lei moral e

a liberdade167. Sobre isso Kant deixa claro com suas palavras:

Para que não se imagine encontrar aqui inconseqüências, quando agora denomino a liberdade condição da lei moral e depois, no tratado, afirmo que a lei moral seja a condição sob a qual primeiramente podemos tornar-nos conscientes da liberdade, quero apenas lembrar que a liberdade é sem dúvida a ratio essendi da lei moral, mas que a lei moral é a ratio cognoscendi da liberdade. Pois, se a lei moral não fosse pensada antes claramente na nossa razão, jamais nos consideraríamos autorizados a admitir algo como a liberdade (ainda que esta não se contradiga). Mas, se não existisse liberdade alguma, a lei moral não seria de modo algum encontrável em nós.168 (KANT, 2003b, p. 7).

Destarte, fica evidente que a intenção de Kant não é de formular uma

fundamentação dúplice e questionável para a proposição que usa como ponto de

partida para a filosofia prática (a liberdade), mas estabelecer um ponto de

correspondência fenomênica possível (a moralidade); o que proporcionará a

confirmação da possibilidade de a liberdade transcendental causar efeitos na

realidade empírica, através de sua influência a priori na vontade humana. Deve-se

destacar o fato de que isto é uma mera demonstração de possibilidade. Portanto,

não se pode dizer que haja um objeto factual na realidade empírica que constitua, de

forma indubitável, prova d existência empírica da liberdade. A única afirmação que

pode ser feita é a de que a liberdade é possível em razão de uma dedução a priori.

Assim, a liberdade é a razão de ser da lei moral, isto é, a lei moral é uma

conseqüência, uma criação da liberdade, criação esta, que tem a possibilidade de

existir no mundo empírico. Por outro lado, descobrindo a moralidade como algo

inquestionável à razão humana (de inquestionável possibilidade) – um fato inteligível

167 Sobre o assunto, ver também Zingano (1989, p. 21-23) 168 “Damit man hier nicht Inconsequenzen anzutreffen wähne, wenn ich jetzt die Freiheit die Bedingung des moralischen Gesetzes nenne und in der Abhandlung nachher behaupte, daß das moralische Gesetz die Bedingung sei, unter der wir uns allererst der Freiheit bewußt werden können, so will ich nur erinnern, daß die Freiheit allerdings die ratio essendi des moralischen Gesetzes, das moralische Gesetz aber die ratio cognoscendi der Freiheit sei. Denn wäre nicht das moralische Gesetz in unserer Vernunft eher deutlich gedacht, so würden wir uns niemals berechtigt halten, so etwas, als Freiheit ist (ob diese gleich sich nicht widerspricht), anzunehmen. Wäre aber keine Freiheit, so würde das moralische Gesetz in uns gar nicht anzutreffen sein.” (KpV, B. V, S. 155[12-18]).

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– esta serve como meio de afirmação da possibilidade da liberdade inteligível no

mundo sensível.

Em suma, não parece haver contradição ou incoerência na afirmação de Kant

sobre a lei moral como condição da liberdade, levando-se me conta que o autor quis

apenas explicitar que a lei moral é o possível reflexo da liberdade no mundo

empírico. No mundo inteligível não se pode afirmar se a liberdade existe ou não,

conforme nos demonstra a lógica das antinomias; contudo, no mundo sensível,

pode-se corroborar que a liberdade é possível, porque percebe-se que a lei moral

postula sua necessidade. A própria idéia de liberdade a priori só pode ser afirmada

mediante a certeza da possibilidade da lei moral, caso contrário, só existiria como

uma antinomia situada no mundo das idéias.

3.3. A composição do direito e da moral a partir da proposição da liberdade

Como foi debatido anteriormente, direito e moral têm uma raiz comum, qual

seja a idéia de liberdade como causalidade incondicionada, isto é, os princípios

constitutivos de ambos são proposições a priori decorrentes da liberdade e que

abrangem, em seus respectivos conceitos, as características desta espécie de

causalidade, como filhos que carregam, em seus genótipos, as combinações

genéticas do pai.

Esta analogia serve ainda para uma afirmação adicional – quando não

conhecemos o pai, podemos descrevê-lo por características de seus filhos, de

maneira que nos aproximamos de uma idéia de como aquele seria na realidade. Isto

é o que acontece com direito e moralidade169 em relação à liberdade. Na Crítica da

razão pura (KANT, 2001) Kant descobre a possibilidade da liberdade, que, contudo

não pode ser conhecida em si. Já na Crítica da razão prática (KANT, 2003b) o autor

explica justamente que esta liberdade pode ser conhecida pelas características da

moralidade (e do direito). Essa afirmação coaduna com o debate sobre se é a lei

moral que fundamenta a liberdade ou o contrário. De fato, a liberdade é algo

169 Deve ser notado que na Crítica da razão prática (2003b) Kant não trata especificamente do direito, contudo, no presente estudo ambos são tratados em conjunto, pois se supõe a existência de um paralelismo na origem dos mesmos, como foi explicado no final do primeiro capítulo.

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desconhecido que produz um filho – a lei moral – do qual constitui a ratio esssendi –

razão de ser. Este filho (juntamente com seu irmão – o direito) possui características

que revelam como é o seu pai – a liberdade – de modo que vem a ser o meio que o

a criatura racional possui para conhecê-la – ratio cognoscendi170. Isto parece,

também, solucionar a discussão sobre a mudança do referencial utilizado por Kant

na Fundamentação da Metafísica dos Costumes (KANT, 2003b) e na Crítica da

razão prática (KANT, 2003b), de modo que, não há que se falar em fato da razão,

exceto na viabilização do conhecimento da liberdade.

De volta ao tema da liberdade ‘criadora’, as características por ela legadas à

moralidade são a universalidade; a entrada no mundo sensível como lei da natureza

(como início de uma série causal natural); a posse em si da totalidade das condições

empíricas, o que implica que todo o fim existente na natureza se dirige à própria

liberdade; a autonomia como causa inicial de eventos sob as condições de tempo e

espaço, uma vez que se encontra antes da sucessão temporal; e, por fim, nas suas

conseqüências, a tendência constante ao retorno à totalidade, como tentativa de

chegar a uma unidade empírica, que, sob o ponto de vista dos fenômenos, seria

somente imaginável171. Quanto a esta tese, apesar de não haver menção expressa a

essa concordância dos princípios do imperativo categórico com o que se

caracterizaria a idéia de liberdade transcendental, parece unânime, entre os

estudiosos de Kant, a afirmação de Salgado de que “A liberdade é, pois, a condição

do agir moral, no âmbito da razão prática, como a intuição é a condição do conhecer,

no âmbito da razão teórica.” (SALGADO, 1995, p. 216)172.

Esse entendimento, mais do que afirmar uma dependência da moral em

relação à liberdade, parece também implicar que aquela advém desta, de maneira

que talvez seja correto corroborar que a lei moral é a própria liberdade

manifestando-se no ser racional. E essa liberdade toma a forma do imperativo

categórico justamente por ser o humano participante de dois mundos (SALGADO,

1995, p. 214), por ter, o sujeito, uma vontade (Wille) que, na verdade, manifesta-se

afetada pela sensibilidade (Willkür), daí movida também por instintos e inclinações. 170 Diante desta afirmação, parece fazer sentido a tese de que a liberdade é constitutiva da experiência. Neste caso, é melhor afirmar que a lei moral tem caráter constitutivo, pois amplia a possibilidade da experiência, trazendo ao conhecimento humano uma idéia cuja possibilidade fenomênica era, até então, inexistente. 171 Como se percebe, as características legadas pela liberdade à moralidade correspondem precisamente às cinco formulações possíveis do imperativo categórico.. 172 Isso também é afirmado em Pavão (2004) Höffe (2005), Gomes (2004) e Heck (2000), dentre outros autores.

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Enfim, a lei moral, em sua forma – o imperativo categórico – só se torna possível em

vista de a liberdade existir em um ser que pode ser movido também pela natureza,

logo, existe como dever, caso contrário constituiria apenas um ser – uma fórmula

descritiva – do que acontece necessariamente (SALGADO, 1995, p. 216).

O direito também segue a mesma fonte – a liberdade – de modo que implica a

mesma dependência desta idéia que reflete suas características no conceito

daquele. Além das implicações na formação do princípio do direito, deve ser notada

a própria implicação de universalidade e igualdade contidas na noção de justiça.

Quanto a isto, acentua Salgado que “A idéia de justiça, ao contrário de ser tão só um

conceito do direito limitado ao ‘governo da atividade externa do homem’, e por isso

separarda da moral, está presente nas três fórmulas do imperativo categórico”

(SALGADO, 1995, p. 218).

Assim o direito cumpre um papel ideal de instauração da liberdade no mundo

empírico, fazendo através da causalidade natural, por meio da coação. Salgado

chega a questionar se poderia o indivíduo realizar plenamente o ‘universal da lei

moral’ através da criação conjunta de “leis que fossem ditames da razão ou da

vontade não alterada pelas inclinações ou móbiles sensíveis” (SALGADO, 1995, p.

221). Parece que a resposta de Kant seria negativa, se considerados os exemplos

do mundo empírico. Entretanto, inequívoco supor ou ponderar que o direito segue o

exemplo da lei moral que possui uma natureza arquetípica, ou seja, que constitui

algo do mundo inteligível cujo esboço pertença ao mundo sensível (KANT, 2003b, p.

145). Esta idéia de um direito e de uma moralidade plenamente eficazes – apesar de

possíveis na experiência comum – de fato não ocorrem, ainda que devam sempre

ser buscados pelos sujeitos racionais.

Por fim, deve-se observar que o procedimento que leva Kant à formulação do

imperativo categórico e o princípio do direito se constitui daquele método de análise

anteriormente descrito, de modo a que constituam o culminar do método de

suspensão do juízo. A liberdade é concebida especulativamente pela razão humana

com a suspensão do juízo empírico. O imperativo categórico e o princípio do direito

são concebidos a partir dessa liberdade em suspensão. De fato, correto afirmar ser

necessária a pressuposição da liberdade para a dedução da lei moral. A própria

relação entre os princípios do imperativo categórico e a idéia de liberdade conduzem

a que, necessariamente, precisemos conceber a mesma antes de verificar a lei

moral. Quanto a isto, ocorrem-nos como uma contradição ao que se explicou

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anteriormente proporcionada, de que a lei moral é a razão de conhecer (ratio

cognoscendi) da liberdade.

Entretanto, ora deve se asseverar que a liberdade é conhecida como uma

idéia inteligível que possui algumas características ontológicas. Do que foi afirmado,

importante frisar, é que ‘a maneira de se consolidar a possibilidade da liberdade no

mundo sensível é a moralidade’. A liberdade como uma idéia que é fruto da

especulação racional levada aos máximos limites por um processo de suspensão do

juízo é concebida como um postulado possível no âmbito da razão pura. Contudo,

para a compreensão de sua postulação no mundo empírico173, se faz necessário

buscar a lei moral e o direito174, uma vez que são criações racionais puras

decorrentes da idéia de liberdade que, contudo, o ser humano postula uma

realização empírica.

Concluindo, a própria possibilidade da metafísica como ciência e de suas

outras questões – Deus e a imortalidade – dependem dessa demonstração da

liberdade que, conforme pôde ser percebido, afigura-se como satisfatória em

Kant175.

3.4. Os conceitos de bom (das Gute) e mal (das Böse) e o sentimento moral

Após a demonstração das proposições fundamentais da razão prática pura 176

Kant segue a síntese metódica a partir do seu postulado177 prático – a liberdade –

alcançado com a análise na Crítica da razão pura (2001). O passo seguinte é o de

determinar um objeto da razão prática pura, que pode ser entendido por um conceito

representado como um efeito possível da liberdade (KANT, 2003b, p. 195). Para o

autor, estes objetos são os conceitos de bom (das Gute) e mal (das Böse).

Por bom “entende-se um objeto necessário da faculdade da apetição” (KANT,

2003b, p. 197) e por mal “da faculdade da aversão, ambos, porém, de acordo 173 Vale relembrar que, para Kant, o ato de conhecimento exige a possibilidade de constatação empírica de modo que, só constitui conhecimento aquilo que é possível como fenômeno. 174 Que, conforme observa Salgado (1995), são inseparáveis. 175 Apesar de haver a possibilidade de certas oposições teóricas, conforme exemplifica Salgado (1995), em relação ao fato da razão. 176 Ou razão pura prática. Sobre a suposta diferença das expressões ver Pavão (2004, p. 101-102). 177 Sobre o sentido do termo ‘postulado’ em Kant, ver Caygill (2000, p. 254-255) e ainda, o próprio Kant (2003b, p. 435).

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comum do princípio da razão.”178 (KANT, 2003b, p. 195). De fato, o que Kant tenta

fazer é esclarecer os conceitos de ‘bom’ e ‘mal’ pela oposição entre os conceitos de

‘bem estar’ (Wohl) e ’mal estar’ (Weh ou Übel). Explica o autor que estes últimos

conceitos sempre significam somente uma referência ao nosso estado de agrado

(Annehmlichkeit) ou desagrado (Unannehmlichkeit), de prazer ou de dor, de maneira

que um objeto é considerado bom ou ruim na medida em que ele afeta a

sensibilidade de uma pessoa e produz um sentimento de prazer ou desprazer

(KANT, 2003b, p. 205). “Mas o Gute ou Böse <bom ou mal> significa sempre uma

referência à vontade, na medida em que esta é determinada pela lei da razão a fazer

algo de seu objeto;”179 (KANT, 2003b, p. 205).

Assim, os conceitos de bom e mal não são algo determinado antes da lei

moral, mas a partir desta, que é o seu fundamento e o meio pelo qual estes podem

ser formulados (KANT, 2003b, p. 215)180.

Kant aplica estes conceitos à tábua das categorias do entendimento,

formulando uma ‘tábua das categorias da liberdade’, que constituiria em uma relação

de categorias do entendimento decorrentes da idéia de liberdade, que se processa

através das categorias ‘bom’ e ‘mal’ (KANT, 2003b, p. 229). Essa tábua significa a

passagem da liberdade, como causalidade inteligível à lei moral aplicável

empiricamente de maneira possível através dos conceitos racionais de ‘bom’ e ‘mal’.

Aponte-se que este momento significa o início da reversão da suspensão do

juízo, vez que Kant restaura o entendimento através da aplicação das categorias

‘bom’ e ‘mal’ deduzidas a partir da idéia de liberdade e da lei moral, de modo que,

assim como as categorias primárias do entendimento possibilitam a ocorrência da

experiência física, as categorias do entendimento em relação à liberdade

possibilitarão a ocorrência da experiência prática – qual seja, a existência da lei

moral como um fenômeno empírico. O entendimento é, assim, a faculdade

mediadora que transpõe a idéia pura da lei moral a uma lei aplicável no mundo

sensível, lei esta que Kant denomina tipo (Typus) da lei moral (2003b, p. 239).

178 “Denn durch das erstere versteht man einen nothwendigen Gegenstand des Begehrungs, durch das zweite des Verabscheuungsvermögens, beides aber nach einem Princip der Vernunft.” (KpV, B. V, S. 58[7-9]). 179 “Das Gute oder Böse bedeutet aber jederzeit eine Beziehung auf den Willen, so fern dieser durchs Vernunftgesetz bestimmt wird, sich etwas zu seinem Objecte zu machen;” (KpV, B. V, S. 60[13-16]). 180 Aqui se situa o problema da investigação moral filosófica que, equivocadamente, partia do conceito de ‘bom’ para a dedução da moralidade. Kant faz o caminho contrário, chegando, neste momento, ao conceito de bom derivado da lei moral fundada na liberdade (KANT, 2003b, p. 219-221).

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Este fenômeno da moralidade dar-se-á, ainda, por outra forma na

sensibilidade – a consciência. Segundo afirma Rodrigues,

É preciso frisar que a consciência não é algo adquirido mas sim a própria razão prática mostrando ao homem o seu dever – aprovando-o conforme o seu agir. Cabe a ela esclarecer o entendimento sobre o que é ou não um dever, mas quando a pessoa chega à ação, a consciência fala inevitavelmente. (RODRIGUES, 1988, p. 130).

Ainda segundo a autora, essa consciência determinaria, através de sua

aprovação ou condenação, uma sensação de prazer ou de dor que constituiria o

sentimento moral (RODRIGUES,1988, p. 130). Isto é confirmado em diversas

passagens da Crítica da razão prática (2003b) como, por exemplo, quando Kant

afirma que “a lei moral enquanto fundamento determinante da vontade [...] tem de

provocar um sentimento que pode denominar-se dor [...]”181 (2003b, p. 253)182.

Kant acrescenta que a lei moral produz, também, o sentimento de respeito

produzido por um fundamento intelectual; “esse sentimento é o único que

conhecemos de modo inteiramente a priori e de cuja necessidade podemos ter

perspiciência.”183 (KANT, 2003b, p. 255). “Logo, a lei moral é também

subjetivamente um fundamento determinante de respeito”184 (KANT, 2003b, p. 259)

à medida que humilha a nossa autoconsciência em função da determinação de

nossa vontade conforme o mandamento da razão pela liberdade185.

Mas esse efeito de sentimento na determinação da vontade pela lei moral,

apesar de constituir o efeito da moralidade possível no mundo sensível, nada mais é

do que uma sub-repção oriunda da determinação da vontade pela lei moral que se

apresenta ao ser racional como um sentimento de prazer ou de dor na obediência ou

infração da lei da liberdade (KANT, 2003b, p. 415).

Enfim, desta maneira Kant retorna à sensibilidade após o ato de suspender o

juízo, trazendo consigo o conceito puro de liberdade que, gradualmente, em um

retorno à sensibilidade, vai resultar na concepção dos elementos que irão constituir

as condições de possibilidade da moralidade no mundo sensível, sendo essenciais

181 “[…]daß das moralische Gesetz als Bestimmungsgrund des Willens dadurch, daß es allen unseren Neigungen Eintrag thut, ein Gefühl bewirken müsse, welches Schmerz genannt werden kann,[…]” (KpV, B. V, S. 73[3-5]). 182 Ver ainda Kant (2003b, p. 347) 183 “[…] und dieses Gefühl ist das einzige, welches wir völlig a priori erkennen, und dessen Nothwendigkeit wir einsehen können.” (KpV, B. V, S. 73[35-37]). 184 “Also ist das moralische Gesetz auch subjectiv ein Grund der Achtung.” (KpV, B. V, S. 74[29-30]). 185 Sobre o respeito e o sentimento moral, ver também Kant (2003b, p. 265-269).

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os elementos ora fornecidos na demonstração da possibilidade da própria lei moral

no mundo fenomênico, fundamento de reconhecimento da postulação da liberdade –

que, por sua vez, configura também o fundamento de constituição, a ratio essendi do

direito.

4. A Fundamentação da Metafísica dos Costumes e a transição da liberdade ao

mundo fenomênico (como postulado)

Logo no começo da Fundamentação da Metafísica dos Costumes (KANT,

2004b), no parágrafo de conclusão de seu prefácio, Kant explica de modo

perceptível o método que pretende seguir:

O método que adoptei [sic] neste escrito é o que creio mais conveniente, uma vez que se queira percorrer o caminho analiticamente, do conhecimento vulgar para a determinação do princípio supremo desse conhecimento, e em seguida, em sentido inverso, sinteticamente, do exame deste princípio e de suas fontes para o conhecimento vulgar onde se encontra a sua aplicação.186 (KANT, 2004b, p. 30).

Esta citação corrobora com o entendimento ora defendido, de que na

Fundamentação da Metafísica dos Costumes (KANT, 2004b) Kant elabora seu

método analítico-sintético de maneira completa, assim como introduz e retira a

suspensão do juízo. Isto decorre graças à eficiência demonstrativa deste método e

por motivos didáticos, vez que, no contexto da obra em questão, a sua explanação

científica parte de um campo estranho ao campo epistemológico (filosófico) – o

campo do saber empírico.

Não obstante as diversas teorias sobre a distinção entre a Fundamentação da

Metafísica dos Costumes (KANT, 2004b) e a Crítica da razão prática (KANT, 2003b),

dentre as quais pode ser citada a tese descrita por Pavão (2004)187, parece mais

correto que a diferença se encontra na questão epistêmica e não na matéria

186 “Ich habe meine Methode in dieser Schrift so genommen, wie ich glaube, daß sie die schicklichste sei, wenn man vom gemeinen Erkenntnisse zur Bestimmung des obersten Princips desselben analytisch und wiederum zurück von der Prüfung dieses Princips und den Quellen desselben zur gemeinen Erkenntniß, darin sein Gebrauch angetroffen wird, synthetisch den Weg nehmen will.” (Grundlegung, B. IV, S. 392[17-22]). 187 Pavão (2004, p. 108) adota o entendimento de que Kant, na Crítica da razão prática (2003b), revê o argumento da Fundamentação da Metafísica dos Costumes (KANT, 2004b).

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argumentativa desenvolvida nos textos. Entretanto, não se pode descartar o

interesse argumentativo expresso por Kant que declara – enquanto na Crítica da

razão prática (KANT, 2003b) deseja seguir o mesmo objetivo da Crítica da razão

pura (KANT, 2001), qual seja, o de verificar os limites e possibilidade do uso da

faculdade da razão prática pura188, na Fundamentação da Metafísica dos Costumes

(KANT, 2004b) seu interesse é a demonstração do princípio supremo da moralidade,

o imperativo categórico (KANT, 2004b, p. 29).

Neste passo, em relação à questão metodológica, na Crítica da razão pura

(KANT, 2001) Kant segue o procedimento analítico em relação às idéias metafísicas,

chegando ao postulado da liberdade em uma situação de completa suspensão do

juízo empírico. Em seguida, na Crítica da razão prática (KANT, 2003b) o autor segue

o procedimento sintético a partir da idéia de liberdade, deduzindo seus elementos de

acordo com as faculdades do intelecto humano até a aplicação da faculdade pura

prática da razão, de acordo com a sensibilidade visto, em uma restauração gradativa

do juízo, que se supunha suspenso.

Na Fundamentação da Metafísica dos Costumes (KANT, 2004b) o autor parte

da sensibilidade em uma análise que decompõe os elementos de um conhecimento

empírico – a noção vulgar de boa vontade – elaborando, assim, uma filosofia moral

popular189; partindo desta, Kant ascende através do método analítico às suas

condições a priori, procedendo, assim, à necessária suspensão dos juízos

empíricos, de modo a que possa chegar a conclusões racionais independentemente

da experiência comum. Neste contexto alcança os conceitos de ‘liberdade’, ‘vontade

pura’ (Wille), ‘autonomia’, culminando com a formulação do imperativo categórico – o

princípio supremo da moralidade, que deve informar uma Metafísica dos Costumes a

ser elaborada em tempos por vir. Oportunamente, Kant implementa uma rede

conceitual que torna imperiosa a continuidade de sua dedução fundamental, motivo

pelo qual procede à síntese (composição) a partir do imperativo categórico,

restaurando o juízo empírico e elaborando conceitos como o de ‘heteronomia’, o de

‘vontade afetada pela sensibilidade’ (Willkür), preparando o terreno para a

elaboração da Crítica da razão prática (KANT, 2003b) que, apesar de independente

188 Obviamente que o interesse da Crítica da razão pura (2001) não se refere à razão prática pura, mas à razão especulativa pura. Supõe-se aqui o paralelismo entre as obras (PAVÃO, 2004) 189 Nome dado pelo autor à filosofia que se baseia em conhecimentos de exemplos empíricos (KANT, 2004b, p. 45).

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da Fundamentação da Metafísica dos Costumes (KANT, 2004b), desenvolve

conceitos cuja elaboração decorreu, previamente, nesta última obra.

Assim, caso possa se fazer uma distinção do objeto central das duas obras,

mais correto parece creditar que, na Crítica da razão prática (KANT, 2003b) é a

liberdade, enquanto na Fundamentação da Metafísica dos Costumes (KANT, 2004b)

é o princípio supremo da moralidade, decorrente da liberdade – o imperativo

categórico.

4.1. O conceito vulgar de boa vontade e o filosófico de vontade pura (Wille)

Conforme explicado, na Fundamentação da Metafísica dos Costumes (KANT,

2004b), Kant parte da sensibilidade para empreender sua análise, sendo que o

elemento inicial de seu procedimento é a noção vulgar de boa vontade. Salienta o

autor que “Neste mundo, e até também fora dele, nada é possível pensar que possa

ser considerado como bom sem limitação, a não ser uma só coisa: uma boa

vontade.”190 (KANT, 2004b, p. 31). Explica que nenhuma virtude considerada pelo

ser humano tem valor sem a consideração de uma boa vontade, sendo esta o

pressuposto para qualquer virtude.

Sobre esta boa vontade, ela tem um valor absoluto, sendo que não requer,

para sua avaliação, qualquer coisa que lhe seja exterior, como alguma utilidade e

isso é atestado pela própria razão vulgar, o que Kant demonstra através de

exemplos. Destaque-se o segundo exemplo, em que um homem assolado por

desgraças e infelicidades em sua vida, a despeito de sua própria inclinação, resiste

em tirar a própria vida (KANT, 2004b, p. 36). Aqui é inquestionável a existência de

uma boa vontade, qual seja a determinação do desígnio deste homem apenas pelo

respeito ao que deve fazer, independentemente das esperanças de infelicidade e

dor que lhe induziriam ao suicídio. Esta boa vontade caracteriza-se como uma

vontade determinada por um mandamento da razão pura prática191, o que produz

não apenas uma vontade boa como meio para qualquer fim; em verdade, uma

190 “Es ist überall nichts in der Welt, ja überhaupt auch außer derselben zu denken möglich, was ohne Einschränkung für gut könnte gehalten werden, als allein ein guter Wille.” (Grundlegung, B. IV, S. 393[5-7]). 191 Razão que dirige o agir anteriormente à qualquer experiência.

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vontade boa em si mesma (KANT, 2004b, p. 34). Esse conceito de boa vontade já

reside no bom senso natural (KANT, 2004b, p. 35) de cada ser humano e vai

determinar o conceito de vontade pura (Wille), que constitui a vontade como

princípio determinante da ação do sujeito, dirigida apenas racionalmente, isto é,

apenas pela noção do dever, sem influência das inclinações.

Aqui atinge o autor o conceito de dever que explica ser “a necessidade de

uma ação por respeito à lei”192 (KANT, 2004b, p. 38), isto é, este conceito inclui em

si a noção de vontade boa (ou vontade pura) (KANT, 2004b, p. 35), pois implica a

necessidade de determinação da ação somente pela prescrição da razão prática

pura.

Cabe, pois, a pergunta: mas, que lei é esta que determina a vontade? Kant

esmiúça que, tendo ele destituído da vontade todos os estímulos que lhe são

externos (motivo pelo qual a denomina vontade pura), o que resta para a

determinação desta lei é “a conformidade a uma lei universal das acções [sic] em

geral que possa servir de único princípio à vontade”193 (KANT, 2004b, p. 39); chega

assim ao primeiro delineamento da lei moral “devo proceder sempre de maneira que

eu possa querer também que a minha máxima se torne uma lei universal.”194 (KANT,

2004b, p. 39)

Em suma, o autor parte de uma noção empírica esclarecida por meio de

exemplos e segue à formulação de proposições, em suspensão do juízo, o que faz

através da exclusão de todos os possíveis móbiles empíricos da vontade, concluindo

com o conceito de uma vontade pura e do dever e delineando a lei que a razão pura

prática prescreve a esta vontade. Essa lei possui uma determinação inicial

necessária que é a universalidade, o que exige que a máxima determinante da ação

não deva trazer qualquer contradição.

Assim é que Kant conclui – na tentativa de esclarecer sobre esta lei que

determina a ação humana em independência dos fatores externos, de utilidade ou

agradabilidade – que a razão humana revela a necessidade de se enveredar pela

filosofia, em busca de respostas. Ainda, o impulso que leva à Metafísica dos

Costumes parte justamente da tentativa de solucionar a oposição constante entre o

192 “Pflicht ist die Nothwendigkeit einer Handlung aus Achtung fürs Gesetz.” (Grundlegung, B. IV, S. 400[18-19]). 193 “[…] so bleibt nichts als die allgemeine Gesetzmäßigkeit der Handlungen überhaupt übrig, welche allein dem Willen zum Princip dienen soll, […]” (Grundlegung, B. IV, S. 402[5-7]). 194 “d. i. ich soll niemals anders verfahren als so, daß ich auch wollen könne, meine Maxime solle ein allgemeines Gesetz werden.” (Grundlegung, B. IV, S. 402[7-9]).

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que a razão prescreve como instrumento para fins externos e a determinação

necessária e universal de um fim interno e circular – antes, o próprio dever.

4.2. A dedução analítica do Imperativo Categórico

A segunda seção da Fundamentação da Metafísica dos Costumes (KANT,

2004b) se instala no momento em que Kant trata da transição do esboço filosófico

construído na primeira seção com base na razão vulgar, para o conhecimento

filosófico-científico. Para tanto o autor precisará transformar sua base empírica em

um fundamento a priori, isto é, Kant vai se valer do método de suspensão do juízo

para decompor os elementos da premissa de que partira sua investigação – a

incontestabilidade da existência da moralidade, evidenciada pela noção empírica de

boa vontade195.

De fato, afirma o autor que a filosofia moral popular padece de um grave

problema – por basear-se em princípios empíricos encontra-se limitada a estes,

sendo que, como não pode ser provado empiricamente se existe algum caso de

ação por dever (ação moral)196, esta filosofia se inviabiliza como ciência. É assim

que caberá ao autor trazer a noção de vontade pura (vontade boa em si), obtida

através de sua análise da noção de boa vontade empírica, ao mundo inteligível, o

que o faz – repita-se – através da suspensão do juízo que determina a permanência

apenas da parte a priori daquilo que se deduziu na primeira seção197.

Com efeito, Kant salienta que, “quando se fala de valor moral, não é das

acções [sic] visíveis que se trata, mas dos seus princípios íntimos que não se

195 Sobre este ponto de partida da análise e seu grau de certeza, fica patente na página 82 da Fundamentação da Metafísica dos Costumes (KANT, 2004b, p. 82). 196 Este fato não contraria a certeza de Kant da existência da noção de boa vontade, ou seja, da moralidade. Apenas deve ser observado que essa idéia existe como concepção do ser racional e isso é irrefutável. Apesar de várias pessoas se valerem do pretexto moral para congratularem suas ações, não é possível ao ser humano se certificar se, em um caso particular, a ação foi por dever (a ação foi moral), uma vez que a intuição que este ser possui é apenas indireta (dos fenômenos) e não uma intuição da coisa em si. Assim, Kant defende que a moralidade existe como idéia e como compreensão humana (conhecimento pelo entendimento) sem que, contudo, possa ser demonstrada em uma experiência em particular. Estes são apenas traços gerais desse debate, que demandaria um trabalho a parte para uma explicação mais detalhada. 197 De fato Kant não considera a filosofia moral popular, obtida através da análise da razão vulgar, de todo imprestável, mas apenas aqueles seus princípios empíricos, filtrando o suporte que necessita para sua segunda análise através da suspensão do juízo que permite a permanência apenas dos princípios a priori.

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vêem”198 (KANT, 2004b, p. 46). E, “Na realidade, é absolutamente impossível

encontrar na experiência, com perfeita certeza, um único caso em que a máxima de

uma ação, de resto conforme ao dever, se tenha baseado puramente em motivos

morais e na representação do dever”199 (KANT, 2004b, p. 46). Por estes mesmos

motivos é que o autor vai ascender às condições a priori da moralidade, vez que,

mesmo que o fenômeno ocorra conforme a moral, não é possível se concluir com

absoluta certeza se aconteceu por causa da moralidade (por dever) ou pela

causalidade natural (movido pelas inclinações da sensibilidade).

Logo, o autor propõe o desenvolvimento de uma Metafísica dos Costumes até

para o julgamento moral do Santo Evangelho (KANT, 2004b, p. 47), ciência esta

que, contudo, deve ser precedida de uma fundamentação que se situa na transição

cometida na análise da segunda seção da Fundamentação da Metafísica dos

Costumes (KANT, 2004b).

Explica Kant200 que “Tudo na natureza age segundo leis.” (KANT, 2004b, p.

51)201. Mas “Só um ser racional tem a capacidade de agir mediante a representação

das leis, isto é, segundo princípios, ou: só ele tem uma vontade.” (KANT, 2004b, p.

51)202. Esta vontade, segundo o autor, é a faculdade de escolher somente aquilo que

determina a razão, independentemente da inclinação, isto é, uma vontade pura203.

Entretanto, se por um lado o ser racional é inevitavelmente movido por sua razão

pura, no caso do homem, por ele participar também da natureza, sofre em sua

‘faculdade da escolha’ (faculdade do querer) a influência das leis desta. Assim, a

vontade humana, mais do que uma vontade pura (Wille), é uma vontade afetada

198 “wenn vom moralischen Werthe die Rede ist, es nicht auf die Handlungen ankommt, die man sieht, sondern auf jene innere Principien derselben, die man nicht sieht.” (Grundlegung, B. IV, S. 407[14-16]). 199 “In der That ist es schlechterdings unmöglich, durch Erfahrung einen einzigen Fall mit völliger Gewißheit auszumachen, da die Maxime einer sonst pflichtmäßigen Handlung lediglich auf moralischen Gründen und auf der Vorstellung seiner Pflicht beruht habe.” (Grundlegung, B. IV, S. 407[1-4]). 200 As explanações seguintes constituem apenas parte da construção conceitual fundamental de Kant na Fundamentação da Metafísica dos Costumes (KANT, 2004b), o que é feito em traços gerais, mais uma vez, por apreço à concisão e à objetividade exigidas no presente estudo. 201 “Ein jedes Ding der Natur wirkt nach Gesetzen.” (Grundlegung, B. IV, S. 412[26]). 202 “Nur ein vernünftiges Wesen hat das Vermögen, nach der Vorstellung der Gesetze, d. i. nach Principien, zu handeln, oder einen Willen.” (Grundlegung, B. IV, S. 412[26-28]). 203 Nota para o texto original, ora traduzido acima, que se refere-se a todo tempo àquilo que traduzimos por vontade pura, ou seja, a palavra Wille. No trecho que está sendo discutido o autor usa constantemente esta palavra, e não a palavra Willkür, que designa a vontade não apenas motivada (Bewegungsgrund) pela razão pura, mas também impulsionada (Triebfeder) pelos móbiles sensíveis (razão instrumental).

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pela sensibilidade (Willkür), que permanece entre a força dessas duas

determinações – lei natural e lei da razão (lei da causalidade pela liberdade).

Num ser em que só existe a vontade pura, ou seja, num ser somente racional,

a própria vontade coincide com a lei prática, de modo que esta constitui algo que

não pode acontecer de outro modo, podendo, pois, ser exprimido pelo verbo ‘ser’.

Entretanto, no ser humano, dada a oposição de móbiles sensíveis, a lei da razão se

procesa como uma necessitação204 (Nötigung) (uma necessidade proveniente de

uma causalidade) que se expressa no verbo ‘dever’ (sollen). Essa necessitação

(Nötigung) acontece por intermédio de um mandamento da razão à vontade cuja

fórmula se denomina imperativo e, de maneira categórica (imperativo categórico),

uma vez que não ordena algo como bom para um determinado fim (imperativo

hipotético), mas algo que é bom em si mesmo; ou, nas palavras de Kant, ordena

“uma acção [sic][...] necessária por si mesma, sem relação com qualquer outra

finalidade.”205 (KANT, 2004b, p. 52)

A partir deste momento, Kant vai deduzir os princípios e confeccionar as

fórmulas do imperativo categórico, dando a partida pela universalidade –

característica esta decorrente da própria situação de inexistência de condições

limitativas para esta legislação (KANT, 2004b, p. 58). Segundo ele, não existindo

condições que limitam a lei moral, esta deve espraiar-se na universalidade de sua

expressão de modo que não se contradiga, isto é, a universalização da conduta

descrita na lei não deve restringir seu próprio enunciado. Intelectualmente deve ser

possível a existência universal da conduta devida. Como esta legislação decorrente

do imperativo categórico – apesar de inteligível – é dirigida às ações humanas, ou

seja, ao mundo físico, esta forma de universalidade deve assumir, em sua fórmula

mandamental, a condição de lei da natureza. Ou seja, de uma lei que age no mundo

fenomênico como age a lei da gravidade, da inércia, da ação e reação etc.

204 No presente estudo se adota a tradução de ‘Nötigung’ por ‘necessitação’ e não por ‘obrigação’. De fato, a referida palavra traduz melhor a relação de uma necessidade, uma vez que refere-se à causalidade que se dá na razão humana. Por exemplo, quando se fala em o que seria a lei da gravidade, é mais apropriado descrevê-la como uma necessidade e não como uma obrigação. Também, a lei da liberdade, como uma causalidade, é algo necessário por si só, não algo obrigatório, como se houvesse a necessidade de uma determinação externa para sua realização. Este parece ser, também, o entendimento de Valério Rohden, que traduz a Crítica da razão prática (2003b) neste mesmo sentido, equiparando ‘Verbindlichkeit’ a ‘obrigação’. Conferir em Kant (2003b, p. 108-109). 205 “Der kategorische Imperativ würde der sein, welcher eine Handlung als für sich selbst, ohne Beziehung auf einen andern Zweck, als objective nothwendig vorstellte.” (Grundlegung, B. IV, S. 414[15-17]).

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Ainda, se existe uma causalidade tal que determine as ações sem um fim

exterior e, portanto, contém em si a causa e a finalidade do próprio acontecimento,

essa causalidade constitui, em si mesma, um fim para todas as coisas. E se a

mesma causalidade é atributo existencial da vontade de um ser racional, conclui-se

que esse ser existe como um fim em si mesmo, não como um meio para o uso

arbitrário desta ou daquela vontade (KANT, 2004b, p. 65). Esta vontade

característica do ser racional, como fim em si e dententora da causalidade

incondicionada (a liberdade) legisla no mundo dos fenômenos, de maneira que,

independentemente da influência das inclinações, formula para si mesma sua

própria lei do agir, qual seja, aquilo que prescreve a razão pura prática206.

Enfim, trazendo os princípios descritos ao mundo dos fenômenos, eis que

surge uma necessidade comunitária, qual seja, a de agir de modo que considere a si

e aos outros sujeitos como fins em si mesmos, possuidores de vontades

legisladoras, de maneira universal, na natureza, em direção à realização de um reino

de sujeitos ‘fins em si mesmos’. Este reino dos fins, atenta Kant, é somente possível

(uma possibilidade empírica), visto que se situa apenas no mundo inteligível. Não

deixa de ser uma idéia a ser seguida, entretanto, sua realização empírica não se

pode constatar de maneira real.

Enfim, importante enfatizar o paralelo que faz Kant entre os conceitos de

autonomia e heteronomia. “Autonomia da vontade é aquela sua propriedade graças

à qual ela é para si mesma sua lei (independentemente da natureza dos objetos do

querer)”207 (KANT, 2004b, p. 77). A autonomia da vontade é, portanto, a capacidade

de autolegislação prática do ser racional que se dirige independentemente dos fins

propostos pela natureza (apetites e inclinações). Configura, por isso, fundamento da

dignidade da natureza humana (KANT, 2004b, p. 73), vez que o valor do ser racional

e de suas ações não tem um preço, isto é, não encontra equivalente na natureza,

além de estar acima de qualquer determinação externa que possa tentar dirigir a

vontade. Enfim, a autonomia é o princípio da vontade humana, fonte de todos os

valores legítimos da moralidade.

206 O próprio conceito de vontade se explica como “a faculdade de se determinar a si mesmo a agir em conformidade com a representação de certas leis.” (KANT, 2004b, p. 64). “Der Wille wird als ein Vermögen gedacht, der Vorstellung gewisser Gesetze gemäß sich selbst zum Handeln zu bestimmen.” (Grundlegung, B. IV, S. 440[16-18]). 207 “Autonomie des Willens ist die Beschaffenheit des Willens, dadurch derselbe ihm selbst (unabhängig von aller Beschaffenheit der Gegenstände des Wollens) ein Gesetz ist.” (Grundlegung, B. IV, S. 440[16-18]).

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Por outro lado, a heteronomia é descrita como o resultado de:

Quando a vontade busca a lei, que deve determiná-la, em qualquer outro ponto que não seja aptidão de suas máximas para a sua própria legislação universal, quando, portanto, passando além de si mesma, busca essa lei na natureza de qualquer dos seus objetos, (KANT, 2004b, p. 78).208

Essa determinação da vontade é fonte de todos os princípios ilegítimos da

moralidade, já que desrespeita a natureza racional humana209 reduzindo-a a um

mero determinismo animal, como se o ser humano não dispusesse de qualquer

racionalidade, deixando-se seguir apenas por seus instintos (apetites e inclinações

da sensibilidade), como um cão, por exemplo, ou qualquer outro animal que se lhe

assemelhe.

Assim, Kant reserva a continuidade de seu desenvolvimento conceitual para

uma futura Metafísica dos Costumes (KANT, 2004b, p. 59), quando poderá

desenvolver mais enfaticamente os conceitos inerentes a esta ciência,

fundamentada que é de maneira preparatória através da decomposição

transcendental (a priori, ou seja, em suspensão do juízo) do conceito vulgar de boa

vontade, procedimento que culmina na concepção do imperativo categórico210.

208 “Wenn der Wille irgend worin anders, als in der Tauglichkeit seiner Maximen zu seiner eigenen allgemeinen Gesetzgebung, mithin, wenn er, indem er über sich selbst hinausgeht, in der Beschaffenheit irgend eines seiner Objecte das Gesetz sucht, das ihn bestimmen soll, so kommt jederzeit Heteronomie heraus.” (Grundlegung, B. IV, S. 440[16-18]). 209 Apesar de haver certa divergência sobre se pode ser aferida uma ‘natureza humana’ em Kant, reserva-se aqui o direito de fazer essa referência, que é garantida ao contexto mencionado pela seguinte passagem: “Autonomia é pois o fundamento da dignidade da natureza humana e de toda a natureza racional.” (KANT, 2004b, p. 73). “Autonomie ist also der Grund der Würde der menschlichen und jeder vernünftigen Natur.” (Grundlegung, B. IV, S. 436[06-07]). Parece mais correto traduzir o trecho do seguinte modo: ’autonomia é pois o fundamento da dignidade da humanidade e de toda natureza racional’. Isto leva a crer que, se a construção kantiana tenta fugir à determinação de uma natureza humana, como defendem alguns autores, é, porém, incontestável que o autor permite que seja feita tal referência, que no trecho citado é expressa – vernünftigen Natur – e que pode levar a crer, inclusive, na existência de uma ‘teleologia da razão’ em Kant (o que seria, certamente combatido por argumentos contrários). De fato, se a razão possui o atributo de determinar os fins das ações e se ela é, através da faculdade do querer – a vontade – um fim em si mesma, não parece incorreto dizer que o telos (Τέλος) em Kant é a própria razão. (Fala ainda em natureza humana em 2004b, p. 84-85, dentre outras passagens) 210 Ou seja, como afirma nos Prolegômenos (2003c, p. 42-43), parte de algo dado e procura suas condições (o que é feito na análise na primeira e segunda seções da Fundamentação da Metafísica dos Costumes [KANT, 2004b]), para, em seguida partir dessas condições e determinar as conclusões (o que será feito de maneira sucinta na terceira seção [KANT, 2004b] e de maneira pormenorizada na Crítica da razão prática [KANT, 2003b]).

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4.3. O retorno ao mundo fenomênico e a liberdade como a fundamento último

Kant da início à parte sintética da Fundamentação da Metafísica dos

Costumes (KANT, 2004b) partindo do conceito de liberdade, sendo que esta seria

indispensável à compreensão da vontade como autonomia. É assim que o autor

concebe a conceituação de liberdade, partindo do conceito de vontade (SALGADO,

1995, p. 234) utilizando o conceito negativo de liberdade como “pura negatividade ou

desvinculação total de toda lei da natureza” (SALGADO, 1995, p. 235), isto é, a

independência da vontade racional em relação às determinações da sensibilidade

(KANT, 2004b, p. 83). Nomeia-o de conceito negativo aproveintando-se que sua

expressão implica justamente aquilo que a liberdade não é, ou seja, que a

liberdade não é a dependência ou determinação da vontade humana pelos

estímulos externos ao sujeito.

Após este conceito o autor enuncia ainda um conceito positivo, a saber:

autonomia, autolegislação ou autodeterminação (SALGADO, 1995, p. 234), conceito

este que coincide com o desenvolvido na filosofia teórica, diga-se, o de uma

causalidade inicial incondicionada que tem, por si, as condições necessárias para

inaugurar a um evento naturalístico. No contexto prático, o conceito positivo é

traduzido como “a propriedade da vontade de ser lei para si mesma [...]”211 (KANT,

2004b, p. 83-84), ou seja, esta definição explica exatamente o que a liberdade é,

positivamente (afirmativamente).

A partir disso, conclui-se que, para a existência do próprio imperativo

categórico, faz-se necessária a liberdade como característica inerente à vontade

racional212. Entretanto surge um dilema: como se pode demonstrar essa liberdade,

sendo já sabido que isto é impossível na filosofia teórica, notadamente pela

211 “[…] die Eigenschaft des Willens, sich selbst ein Gesetz zu sein […]” (Grundlegung, B. IV, S. 447[1-2]). 212 “Como ser racional e, portanto, pertencente ao mundo inteligível, o homem não pode pensar nunca a causalidade da sua própria vontade senão sob a idéia de liberdade, pois que independência das causas determinantes do mundo sensível (independência que a razão tem sempre de atribuir-se) é liberdade.” (KANT, 2004b, p. 89). “Als ein vernünftiges, mithin zur intelligibelen Welt gehöriges Wesen kann der Mensch die Causalität seines eigenen Willens niemals anders als unter der Idee der Freiheit denken; denn Unabhängigkeit von den bestimmenden Ursachen der Sinnenwelt (dergleichen die Vernunft jederzeit sich selbst beilegen muß) ist Freiheit.” (Grundlegung, B. IV, S. 452[31-35]). Sobre isso, ainda vale destacar que constitui a resposta de Kant à pergunta ‘Como é possível o imperativo categórico?’ (KANT, 2004b, p. 97), ou seja, é possível mediante a idéia de liberdade, único pressuposto do qual este depende (KANT, 2004b, p. 97).

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inexistência de confirmação através das experiências humanas? Kant afirma que

esta idéia tem que ser pressuposta e só pode ser provada como “pertencente à

actividade [sic] dos seres racionais em geral, e dotados de uma vontade”213 (KANT,

2004b, p. 85).

É neste momento que se constata um círculo vicioso na argumentação

kantiana, de modo que a liberdade é explicada pela moralidade dos seres racionais

em geral e a moralidade, por sua vez, explicada pela liberdade214 que atribui à

vontade a capacidade de autolegislação (PAVÃO, 2004).215

Este problema se resolve parcialmente através da transformação do círculo

vicioso em um espiral, isto é, se o ser humano participa de dois mundos – um

sensível e um inteligível – cada afirmativa fundamental deve estar em um desses

pontos de vista, de modo que:

[...] quando nos pensamos livres, nos transpomos para o mundo inteligível como seus membros e reconhecemos a autonomia da vontade, juntamente com a sua conseqüência – a moralidade; mas, quando nos pensamos como obrigados, consideramo-nos como pertencentes ao mundo sensível e, contudo, ao mesmo tempo também ao mundo inteligível.216 (KANT, 2004b, p. 90).

Entretanto, no nível da fundamentação, ainda resta outro dilema – se a

doutrina de Kant parte do pressuposto de que a razão pura pode ser prática (o que

lhe fornece a premissa de que a moralidade existe nos seres racionais em geral),

‘como a razão pura pode ser prática?’ A resposta se encontra no final da

fundamentação e constitui justamente o que o autor denomina como ‘o limite

extremo de toda a filosofia prática’. Outrossim, arriscar a responder tal pergunta é

213 “[…] sondern man muß sie als zur Thätigkeit vernünftiger und mit einem Willen begabter Wesen überhaupt gehörig beweisen.” (Grundlegung, B. IV, S. 448[2-4]). 214 Segundo alguns autores, como Pavão (2004), mais do que explicadas uma pela outra, moralidade e liberdade constituiriam uma sinonímia na obra de Kant. Entretanto, Beckenkamp (1996) resolve este problema explicando que liberdade e moralidade “[...] seriam efetivamente idênticas se a liberdade implicasse a lei moral da mesma maneira que esta implica aquela, o que, no entanto, não é o caso.” (BECKENKAMP, 1996, p. 118). E completa descrevendo o mesmo argumento que já foi acima desenvolvido de que “a liberdade é a ratio essendi da lei moral, sem a qual esta não poderia se dar. Mas se a liberdade implica a lei moral, ela o fará de outro modo, pois a lei moral não é, por sua vez, ratio essendi da liberdade. Neste sentido, então, a lei moral não é uma condição de possibilidade da vontade livre. (BECKENKAMP, 1996, p. 119). 215 Conforme explicitado, esta fundamentação da liberdade na existência da moralidade é denominada na Crítica da razão prática (2003b) como o ‘fato da razão’ (Faktum der Vernunft). 216 “Denn jetzt sehen wir, daß, wenn wir uns als frei denken, so versetzen wir uns als Glieder in die Verstandeswelt und erkennen die Autonomie des Willens sammt ihrer Folge, der Moralität; denken wir uns aber als verpflichtet, so betrachten wir uns als zur Sinnenwelt und doch zugleich zur Verstandeswelt gehörig.” (Grundlegung, B. IV, S. 453[11-15]).

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exceder os limites da razão humana, algo equiparado a tentar explicar como é

possível a liberdade (KANT, 2004b, p. 95).

[...] como uma razão pura possa ser prática – explicar isto, eis o de que toda razão humana é absolutamente incapaz; e todo esforço e todo o trabalho que se empreguem para buscar a explicação disto serão perdidos. [...] Pois aqui abandono eu o princípio filosófico da explicação, e não tenho nenhum outro.217 (KANT, 20047b, p. 98).

Em suma, é assim que o autor conclui a parte sintética da obra em questão,

ao partir do resultado de sua análise – o imperativo categórico – do qual deduz a

moralidade humana, usando aquele como elemento de transição da idéia de

liberdade a priori, como um postulado, ao mundo fenomênico, através da gradual

reposição do juízo empírico em suas deduções, o que termina com a concepção de

um sentimento possível decorrente do respeito pela idéia a priori da lei moral (KANT,

2004b, p. 96-97), e mediante a constatação da existência de uma eterna dialética

entre as leis severas da razão pura e os arrazoados da experiência – uma

concorrência de forças resultante de juízos decorrentes de uma proposição moral

pura em uma vontade afetada também pela sensibilidade.

Este conflito acaba por evidenciar, em oposição à ilimitada tendência

especulativa da razão, um outro campo em que a filosofia prática também vê suas

respostas serem delimitadas – a dimensão da experiência do mundo empírico, em

que a teoria e o ideal se vêem freqüente e contraditoriamente confirmados e

rejeitados.

Essa dimensão fenomênica, no campo da moralidade, dá-se, de fato, na

oposição entre os efeitos empíricos dos mandamentos da razão e as tendências

impulsionadas pelos sentidos. Kant tenta a sua solução desta dicotomia, em parte,

de acordo com os próprios instrumentos naturais que o homem denomina virtudes.

Entretanto, neste mundo vivido, surge também uma manifestação racional pura que

se propõe, de forma notável, a resolver a contradição humana. Essa manifestação

constitui o direito que, ironicamente, é uma construção metafísica (do mundo

inteligível), mas cuja finalidade decorre em ordenar o campo prático do mundo

empírico.

217 “[...] wie reine Vernunft praktisch sein könne, das zu erklären, dazu ist alle menschliche Vernunft gänzlich unvermögend, und alle Mühe und Arbeit, hievon Erklärung zu suchen, ist verloren. [...] Denn da verlasse ich den philosophischen Erklärungsgrund und habe keinen anderen.” (Grundlegung, B. IV, S. 461[32-35] 462[1]).

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É assim que o direito objetiva instaurar no mundo sensível um reino de fins

em si, de garantir a liberdade e a moralidade, o que, em conjunto com a razão

discursiva, leva à construção de um ideal atualmente retratado no modelo do Estado

Democrático de Direito, cuja realização postula pela totalidade da reflexão racional

humana acerca de uma noção a priori de seus acordos de convivência.

Através desta linha de pensamento tentar-se-á mostrar, no último capítulo,

que o melhor meio de fundamentação e até mesmo de explicação do fenômeno

político-jurídico humano encontra-se em uma teoria que contenha, em si, base

metafísica.

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CAPÍTULO III

IMPLICAÇÕES NA ÉTICA E NO DIREITO

1. A dialética permanente entre as leis severas da razão pura e os arrazoados

da experiência

Conforme foi elucidado, a construção da moralidade em Kant põe em xeque

um problema cuja solução, em um primeiro momento, parece ficar em suspenso, em

suas obras. O autor denuncia este problema no final da primeira seção da

Fundamentação da Metafísica dos Costumes (2004b) descrevendo-o da seguinte

maneira:

O homem sente em si mesmo um forte contrapeso contra todos os mandamentos do dever que a razão lhe representa como tão dignos de respeito: são as suas necessidades e inclinações, cuja total satisfação ele resume sob o nome de felicidade. Ora, a razão impõe as suas prescrições, sem nada aliás prometer às inclinações, irremitentemente, e também como que com desprezo e menoscabo daquelas pretensões tão tumultuosas e aparentemente tão justificadas (e que se não querem deixar eliminar por nenhuma ordem). Daqui nasce uma dialética natural, quer dizer, uma tendência para opor arrazoados e subtilezas às leis severas do dever, para pôr em dúvida sua validade, ou pelo menos a sua pureza e seu rigor, e para as fazer mais conformes, se possível, aos nossos desejos e inclinações, isto é, no fundo, para corrompê-las e despojá-las de toda a sua dignidade, o que a própria razão prática vulgar acabará por condenar.218 (KANT, 2004b, p. 42-43).

Esta dialética surge da própria distinção explicitada pelo autor entre um

mundo sensível e um mundo inteligível, dos quais o ser humano participaria (KANT,

218 “Der Mensch fühlt in sich selbst ein mächtiges Gegengewicht gegen alle Gebote der Pflicht, die ihm die Vernunft so hochachtungswürdig vorstellt, an seinen Bedürfnissen und Neigungen, deren ganze Befriedigung er unter dem Namen der Glückseligkeit zusammenfaßt. Nun gebietet die Vernunft, ohne doch dabei den Neigungen etwas zu verheißen, unnachlaßlich, mithin gleichsam mit Zurücksetzung und Nichtachtung jener so ungestümen und dabei so billig scheinenden Ansprüche (die sich durch kein Gebot wollen aufheben lassen) ihre Vorschriften. Hieraus entspringt aber eine natürliche Dialektik, d. i. ein Hang, wider jene strenge Gesetze der Pflicht zu vernünfteln und ihre Gültigkeit, wenigstens ihre Reinigkeit und Strenge in Zweifel zu ziehen und sie wo möglich unsern Wünschen und Neigungen angemessener zu machen, d. i. sie im Grunde zu verderben und um ihre ganze Würde zu bringen, welches denn doch selbst die gemeine praktische Vernunft am Ende nicht gut heißen kann.” (Grundlegung, B. IV, S. 405[5-19]).

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2004b, p. 88), obedecendo, por conseguinte, às respectivas leis de cada um. Neste

sentido, pareceria correto dizer que a humanidade está fadada a perecer numa

eterna esquizofrenia, entre dois mundos determinados por duas causalidades

distintas que legislam, de maneira antagônica, as ações de um mesmo ser.

Entretanto, a dicotomia ‘leis da liberdade’ e ‘leis da natureza’ faz parte do

próprio conceito de ser humano e é ‘irrenunciável’, de modo que “Há pois que supor

que entre liberdade e necessidade natural dessas mesmas ações humanas se não

encontra nenhuma verdadeira contradição; pois não se pode renunciar nem ao

conceito da natureza nem ao da liberdade.”219 (KANT, 2004b, p. 92-93).

De fato, Kant deixa claro que esta contradição é aparente na Crítica da

faculdade do Juízo (2005a) quando diz que:

A razão e o entendimento possuem por isso duas legislações diferentes num e mesmo território da experiência, sem que seja permitido a uma interferir na outra. Na verdade, o conceito da natureza tem tão pouca influência sobre a legislação mediante o conceito de liberdade, quão pouco este perturba a legislação da natureza. A Crítica da razão pura demonstrou a possibilidade de pensar, ao menos sem contradição, a convivência de ambas as legislações e das faculdades que lhes pertencem no mesmo sujeito, na medida em que eliminou as objeções que aí se levantavam, pela descoberta nelas da aparência dialética.220 (KANT, 2005a, p. 19).

Assim, não existiria entre estes domínios uma contradição das suas

legislações, mas uma limitação nos seus efeitos, que se apresentam no mundo

sensível, isto é, haveria uma certa tensão entre moralidade e causalidade natural

apenas na sua forma fenomênica, no modo de manifestação na sensibilidade221.

219 “Diese muß also wohl voraussetzen: daß kein wahrer Widerspruch zwischen Freiheit und Naturnothwendigkeit ebenderselben menschlichen Handlungen angetroffen werde, denn sie kann eben so wenig den Begriff der Natur, als den der Freiheit aufgeben.” (Grundlegung, B. IV, S. 456[3-6]). 220 “Verstand und Vernunft haben also zwei verschiedene Gesetzgebungen auf einem und demselben Boden der Erfahrung, ohne daß eine der anderen Eintrag thun darf. Denn so wenig der Naturbegriff auf die Gesetzgebung durch den Freiheitsbegriff Einfluß hat, eben so wenig stört dieser die Gesetzgebung der Natur. - Die Möglichkeit, das Zusammenbestehen beider Gesetzgebungen und der dazu gehörigen Vermögen in demselben Subject sich wenigstens ohne Widerspruch zu denken, bewies die Kritik der reinen Vernunft, indem sie die Einwürfe dawider durch Aufdeckung des dialektischen Scheins in denselben vernichtete.” (KU, B. V, S. 175[5-13]). 221 Para maior clareza em relação à questão da contradição, nota Kant que: “Uma das várias contradições supostas em toda esta distinção entre a causalidade da natureza e a causalidade mediante a liberdade ocasiona a censura: quando eu falo de obstáculos que a natureza coloca à causalidade segundo leis da liberdade (leis morais) ou da sua promoção através dessa liberdade, admito todavia uma influência da primeira sobre a última. Mas, se se quiser compreender o que dissemos, tal equívoco é fácil de evitar. A resistência e a promoção não é entre a natureza e a liberdade, mas sim entre a primeira como fenômeno e os efeitos da última como fenômenos no mundo sensível; e mesmo a causalidade da liberdade (da razão pura e prática) é a causalidade de uma causa da natureza subordinada àquela (do sujeito como ser humano, por conseguinte considerado como fenômeno), de cuja determinação o inteligível, que é pensado segundo a

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Entretanto, no mundo sensível, continua aparente a disputa pela titularidade

da determinação da vontade entre aquilo que conduz o ser humano pelos sentidos

(os apetites e inclinações) através de promessas de prazer e satisfação e aquilo que

determina a lei moral a priori como fim terminal222.

A solução para esta disputa estaria no ‘pensar’, no mais estrito sentido dado

por Kant à palavra. ‘Pensar’, no sentido de um exercício completo e puro da razão,

em suspensão dos dados que os sentidos fornecem e da maneira que estes nos

movem o ‘agir’. Neste passo, o indivíduo deve ‘pensar’ em como ajuizar as coisas,

relevando, ao menos por um momento, o que acontece ou não na experiência

comum. É assim que só no pensar o sujeito humano foge a essa dialética e encontra

sua verdadeira identidade223. Sua identidade individual e subjetiva que, num

universo de seres pensantes, revela a ‘identidade da humanidade’ – universal,

comum e intersubjetiva.

É neste sentido que o autor se adianta ao dizer que:

Assim se desenvolve insensivelmente na razão prática vulgar, quando se cultiva uma dialética que a obriga a buscar ajuda na filosofia, como lhe acontece no uso teórico; e tanto a primeira como a segunda não poderão achar repouso em parte alguma, a não ser numa crítica completa da nossa razão.224 (KANT, 2004b, p. 43).

Kant quer proferir justamente que é através da filosofia transcendental (do

pensar metódico) que o ser humano pode escapar dessa dialética, isto é, ele deve,

liberdade, contém o fundamento de um modo afinal inexplicável (precisamente o mesmo acontece com aquilo que constitui o substrato supra-sensível da natureza).”(KANT, 2005a, p. 39). “Einer von den verschiedenen vermeinten Widersprüchen in dieser gänzlichen Unterscheidung der Naturcausalität von der durch Freiheit ist der, da man ihr den Vorwurf macht: daß, wenn ich von Hindernissen, die die Natur der Causalität nach Freiheitsgesetzen (den moralischen) legt, oder ihre Beförderung durch dieselbe rede, ich doch der ersteren auf die letztere einen Einfluß einräume. Aber wenn [Seitenumbruch] man das Gesagte nur verstehen will, so ist die Mißdeutung sehr leicht zu Verhüten. Der Widerstand, oder die Beförderung ist nicht zwischen der Natur und der Freiheit, sondern der ersteren als Erscheinung und den Wirkungen der letztern als Erscheinungen in der Sinnenwelt; und selbst die Causalität der Freiheit (der reinen und praktischen Vernunft) ist die Causalität einer jener untergeordneten Naturursache (des Subjects, als Mensch, folglich als Erscheinung betrachtet), von deren Bestimmung das Intelligible, welches unter der Freiheit gedacht wird, auf eine übrigens (eben so wie eben dasselbe, was das übersinnliche Substrat der Natur ausmacht) unerklärliche Art den Grund enthält.” (KU, B. V, S. 175[5-13]). 222 Sobre o fim terminal, ver nota do tradutor em Kant (2005a, p. 39). 223 Uma herança do pensamento de Descartes, o juízo: cogito ergo sum – penso, por isso sou. 224 “Also entspinnt sich eben sowohl in der praktischen gemeinen Vernunft, wenn sie sich cultivirt, unvermerkt eine Dialektik, welche sie nöthigt, in der Philosophie hülfe zu suchen, als es ihr im theoretischen Gebrauche widerfährt, und die erstere wird daher wohl eben so wenig als die andere irgendwo sonst, als in einer vollständigen Kritik unserer Vernunft Ruhe finden.” (Grundlegung, B. IV, S. 405[30-35]).

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através do procedimento de suspensão do juízo225, conceber o seu agir de maneira

a priori, o que somente é possível uma vez que o mundo inteligível contém as

formas226 e princípios227 do mundo sensível (KANT, 2005b, p. 219). Com efeito, é a

suspensão do mundo sensível que permite ao ser humano conceber a contradição

entre os efeitos da lei natural e os da liberdade e prescrever uma resposta.

Assim, pois, não existe entre liberdade e natureza uma contradição, mas uma

tensão entre os efeitos de suas leis que, sob o ponto de vista do ser humano

(participante dos dois mundos), tem sua solução garantida no âmbito da razão pura

prática, que ordena de maneira categórica no mundo fenomênico aquilo que os

apetites e inclinações não podem satisfazer.

2. As soluções da Doutrina da virtude para a dicotomia humana

É desse conflito, de um sujeito que se percebe situado em um mundo de

fenômenos resultantes das leis da liberdade e das leis físicas que, para Kant, surge

a idéia de virtude.

Virtude é a força das máximas de um ser humano no cumprimento de seu dever. Força de qualquer tipo pode ser reconhecida somente pelos obstáculos que pode superar, e, no caso da virtude, esses obstáculos são inclinações naturais que podem entrar em conflito com a resolução moral do ser humano.228 (KANT, 2003a, p. 238).

225 Aqui surge uma conclusão, ao menos em princípio, tautológica – a dialética entre leis da razão e arrazoados da experiência surge justamente no momento em que Kant faz a transição do idealismo para o fenômeno. Todavia, para a solução do problema é necessário que se suspenda o juízo empírico, passando novamente ao mundo ideal, quando, então de posse de um juízo a priori, lhe é permitido aplicar este ao mundo empírico. Isto, na verdade, faz parte do procedimento kantiano e é o motivo pelo qual, anteriormente no trabalho, o retorno à sensibilidade é referido como ‘suspensão da suspensão do juízo’, ou seja, a abstenção da suspensão do juízo é apenas temporária, sendo sempre novamente utilizada antes da formulação dos juízos a posteriori. 226 Que são as noções a priori de espaço e de tempo (KANT, 2001). 227 Que são as categorias a priori do entendimento (KANT, 2001). 228 “Tugend ist die Stärke der Maxime des Menschen in Befolgung seiner Pflicht. - Alle Stärke wird nur durch Hindernisse erkannt, die sie überwältigen kann; bei der Tugend aber sind diese die Naturneigungen, welche mit dem sittlichen Vorsatz in Streit kommen können, […]” (MS, B. VI, S.394[15-18]).

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É assim, a virtude, uma auto-coerção (auto-constrangimento)229 do sujeito em

direção à moralidade, ou seja, uma restrição de si mesmo de acordo com um

princípio de liberdade interior, em oposição aos estímulos externos que determinam

que uma ação seja contrária aos princípios da moralidade. Desta maneira, quanto

mais forte a promessa da inclinação contra o cumprimento do dever, maior será a

medida da virtude, de modo que esta se configura, também, um parâmetro de

descrição da moralidade no mundo sensível.

Em verdade, o importante da virtude é que, como reflexo de um conflito que

ocorre no mundo dos fenômenos, pode, também, ser estimulada através de

mecanismos situados neste mundo, de modo que se transforma, ao final da Doutrina

da virtude (KANT, 2003a), em verdadeiro instrumento de promoção da moralidade,

isto é, a partir do momento em que apresenta meios de solução do conflito entre os

efeitos das leis morais e os das leis físicas230.

É certo que, na realidade empírica, nem sempre a razão pura prática é o que

dirige o agir do ser humano – bom lembrar – facilmente seduzido pelo interesse dos

móbiles sensíveis. O sujeito concebe aprioristicamente o dever, que lhe é dado, no

âmbito da razão, por meio da noção de lei moral (do imperativo categórico); no

âmbito do entendimento, através das noções de bem e mal; e no âmbito da

sensibilidade, por vias do sentimento moral (causado pelas noções de respeito e de

consciência moral). Contudo, essas influências não bastam para que, no mundo dos

fenômenos, as ações ocorram conforme ordena a liberdade do ser racional que,

inúmeras vezes, age apenas conforme ordena a lei da natureza – como um animal

irracional.

Para isso se faz necessária a filosofia prática, ciência que Kant desenvolve

sob o nome de ‘Metafísica dos Costumes’ e que possui duas partes: uma, doutrina

do direito e outra, doutrina da virtude. Esta última, após sua parte metafísica encerra

uma parte empírica, considerando-se que, nas condições reais do mundo empírico,

229 Nas palavras de Kant, na tradução brasileira: auto-constrangimento (KANT, 2003a, p. 238). Deve ser salientado que a expressão auto-coerção, segundo a linha de raciocínio do autor, constituiria, em princípio, uma contradição, uma vez que o conceito de coerção exige que esta seja feita por um terceiro, ou seja, através de um estímulo externo. Entretanto, isso é plenamente cabível se for suspendido o juízo, quando é concebido um ser inteligível distinto de um ser sensível e assim, uma obrigação deste (agente sensível) por aquele (coator inteligível). O mesmo argumento é usado por Kant quando explica a possibilidade de um dever para consigo mesmo (que é um dever de virtude). (KANT, 2003a, p. 259-260) 230 Vale reforçar que tal conflito, no mundo inteligível é somente aparente; no entanto, no mundo sensível o mesmo ocorre através da oposição de fenômenos contraditórios.

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o idealismo transcendental não basta. De modo que, além da concepção a priori do

dever, o sujeito humano precisa também do hábito e da educação nas virtudes.

De fato, Kant afirma que a virtude, “enquanto faculdade (facultas) de superar

todos os impulsos sensíveis em oposição, [...] como força (robur), é algo que ele [o

ser humano] precisa adquirir.” (KANT, 2003a, p. 241) E a maneira de se adquirir

seria a ampliação do “incentivo moral (o pensamento da lei), tanto contemplando a

dignidade da pura lei racional em nós (contemplatione) quanto praticando a virtude

(exercitio)”231 (KANT, 2003a, p. 241). Destarte, a moral já presente em todo ser

racional deve ser ensinada e estimulada, de modo a se transformar em virtude, ou

seja, em uma ‘força’ empírica para o enfrentamento da oposição oportunizada pelos

móbiles sensíveis. Kant denomina esta parte da Doutrina da virtude (KANT, 2003a)

como ‘doutrina dos métodos da ética’ (KANT, 2003a, p. 319), e se constitui através

da catequese (ensino ético) e da ascese moral (hábito).

De fato, logo no início dessa doutrina dos métodos, Kant explica que a virtude

não é algo inato232, sendo que o fato de precisar ser ensinada se enfatiza mesmo

como conseqüência disto. “O próprio conceito de virtude já tem como implícito que a

virtude precisa ser adquirida (não é inata)”233 (KANT, 2003a, p. 319). E o ensino

ético deve caminhar através do método denominado erotético, cujo exercício

consiste em questionar o aluno se ele já sabe dos conceitos de deveres (KANT,

2003a, p. 254). Este método de questionamento divide-se em outros dois – o

método catequético, em que se dirigem as questões à memória do aluno; e método

dialogal, em que as perguntas são dirigidas à própria razão do aluno234. Portanto,

Kant adota expressamente, como complementação de sua doutrina da virtude, parte

essencial da concepção da filosofia grega sobre o ensino das virtudes.

Por fim, a complementação da moralidade, após a educação nas virtudes,

ainda demanda que se desenvolva um ‘cultivo da virtude’ que Kant denomina

‘ascese ética’ (KANT, 2003a, p. 327). Esta consiste numa prática “vigorosa, animada

231 “Denn obgleich das Vermögen (facultas) der Überwindung aller sinnlich entgegenwirkenden Antriebe seiner Freiheit halber schlechthin vorausgesetzt werden kann und muß: so ist doch dieses Vermögen als Stärke (robur) etwas, was erworben werden muß, dadurch daß die moralische Triebfeder (die Vorstellung des Gesetzes) durch Betrachtung (contemplatione) der würde des reinen Vernunftgesetzes in uns, zugleich aber auch durch Übung (exercitio) erhoben wird.” (MS, B. VI, S.397[12-19]). 232 Como ocorre em Aristóteles. 233 “Daß Tugend erworben werden müsse (nicht angeboren sei),[…]” (MS, B. VI, S. 477[5]). 234 Este último método corresponde à maiêutica, utilizada por Sócrates e nos Diálogos de Platão, e se caracteriza pela ‘paturição de idéias’ a partir de perguntas e respostas articuladas dentro de um determinado contexto. Sobre isto, ver Jaeger (1986).

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e denodada da virtude” (KANT, 2003a, p. 327), tomando como seu marco “o dito

estóico: acostuma-te a tolerar os infortúnios da vida que podem ocorrer e a

prescindir de seus prazeres supérfluos”235 (KANT, 2003a, p. 327). Essa “ginástica

ética” (ethische Gymnastik) (KANT, 2003a, p. 328) constitui, nada menos, que o

‘hábito’ explicitado pela filosofia aristotélica como elemento indispensável à

aquisição das virtudes236.

Quanto a isso, parece correto afirmar que Kant admita a possibilidade de

complementação de sua teoria à medida que propõe a utilização de elementos da

filosofia antiga, após a transição da moralidade para o mundo fenomênico. Seguindo

a parte pura de sua Metafísica dos Costumes, o autor adota o sistema pensado por

Aristóteles para a gênese das virtudes no sujeito humano ao salientar a necessidade

da educação para sua aquisição (o que se assemelha às virtudes dianoéticas de

Aristóteles237) e a necessidade do cultivo de um hábito nas virtudes (o que parece

corresponder às virtudes éticas238). Contudo, cabe salientar que esta tese é

questionada por alguns estudiosos de Kant, uma vez que este autor freqüentemente

expressa nos seus textos o repúdio a uma ética baseada na eudaimonia

(εὐδαιµονία) e na elaboração empírica da virtude (KANT, 2003a, p. 222).

235 “Die Cultur der Tugend, d. i. die moralische Ascetik, hat in Ansehung des Princips der rüstigen, muthigen und wackeren Tugendübung den Wahlspruch der Stoiker: gewöhne dich die zufälligen Lebensübel zu ertragen und die eben so überflüssigen Ergötzlichkeiten zu entbehren (assuesce incommodis et desuesce commoditatibus vitae).” (MS, B. VI, S. 484[30-34]). 236 Tal debate enseja a questão: seria cabível a φρόνησις (phrónesis – prudência, sabedoria prática) – na teoria moral Kantiana? A resposta, em Kant, obedece o mesmo argumento explicitado para a questão da possibilidade da ética aristotélica na complementação de sua teoria. Podem ser encontrados, por exemplo, na Introdução da Crítica da faculdade do juízo (KANT, 2005a) indícios claros de que o autor não aceitaria nenhuma espécie de prudência na formulação transcendental da lei moral (KANT, 2005a, p. 17). Porém, em uma visão integral da teoria de Kant, a phrónesis é perfeitamente compatível com o conjunto de sua obra, o que fica patente no final da Metafísica dos Costumes (KANT, 2003a). Assim, é verossímil que, primeiramente, se dá a determinação da lei moral na razão humana, antes de qualquer experiência e independentemente de qualquer referência da sensibilidade. Mas em um segundo momento, diante da resistência que se apresenta no mundo fenomênico aos efeitos da moralidade a priori é necessário que a mesma se apresente como um sentido, uma força – as virtudes – que devem ser ensinadas e cultivadas pelo hábito e que, na situação prática particular, tornam necessária uma capacidade de julgamento empírico do agir virtuoso (agir moral) que pode ser identificada pela idéia de phrónesis descrita em Aristóteles. Sobre isto, comprova Kant ao dizer que “A ética [...] inevitavelmente leva a questões que requerem julgamento para decidir-se como uma máxima tem que ser aplicada em casos particulares e, de fato, de uma tal forma que o julgamento fornece uma outra máxima.” (KANT, 2003a, p. 253). “Die Ethik hingegen führt wegen des Spielraums, den sie ihren unvollkommenen Pflichten verstattet, unvermeidlich dahin, zu Fragen, welche die Urtheilskraft auffordern auszumachen, wie eine Maxime in besonderen Fällen anzuwenden sei und zwar so: daß diese wiederum eine (untergeordnete) Maxime an die Hand gebe [...]” (MS, B. VI, S. 411[10-14]). 237 Que se adquirem através da educação, do ensino. 238 Que se adquirem através do hábito, do costume.

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Todavia, afigura-se razoável diante das questões apresentadas no final da

Doutrina da virtude (KANT, 2003a), que a intenção de Kant era apenas criar uma

fundamentação autônoma e satisfatória (coerente e sem contradições e lacunas)

para a moralidade (e, conseqüentemente, para o direito) sendo que o autor deixou,

no trabalho que teria começado, abertura para uma ampliação dos horizontes de sua

teoria, o que, obviamente, exige respeito, adequação e coerência ao fundamento

lançado – constituído pela teoria do conhecimento e pela teoria moral pura239.

Esta semente lançada por Kant decerto germinou, produzindo árvore e frutos

que, na atualidade, podem ser identificados, por exemplo, na filosofia de Jürgen

Habermas (2003), que dispõe a teoria kantiana (sobretudo a questão do princípio de

universalização) na “roda do discurso” (GOMES; MERLE, 2007, p. 56). Note-se que

Habermas faz esta ‘complementação’240 com tal eficiência que, atualmente, não

raras vezes seu trabalho é referido como verdadeira ‘panacéia’ dos problemas de

fundamentação éticos e jurídicos, sobretudo no pensamento de pesquisadores do

direito. Entretanto, para o estudo mais restrito dessa possibilidade apontada é

indispensável a restrição do assunto ao objeto específico do presente trabalho – o

direito.

3. O direito como expressão fenomênica da liberdade, postulado elementar do

conceito de sujeito humano.

Debatido o problema da oposição entre os efeitos fenomênicos da lei moral e

os da lei natural, foram apresentadas duas possíveis soluções: a primeira, sob um

ponto-de-vista a priori, através da filosofia pura (metafísica), e a segunda, através de

elementos da filosofia prática aristotélica, que examina o agente moral como inserido

em um mundo empírico de inter-relações – elementos estes, apresentados com

239 Isso pode ser percebido em várias passagens de suas obras, notadamente, no Prefácio da Fundamentação da Metafísica dos Costumes (KANT, 2004b) em que o autor explica que as ciências em geral têm uma parte pura e uma empírica. No caso da Moral, o autor assume sua dedicação à parte pura – a Metafísica dos Costumes – entretanto, não tira o valor de ciências empíricas que discutiriam o mesmo tema, como a Sociologia, a Psicologia e Antropologia (ver Antropologia de um ponto de vista pragmático [KANT, 2006]). 240 Obviamente que a palavra complementação, aqui, não tem contexto pejorativo no sentido de menoscabar o trabalho do brilhante autor, mas é apenas uma referência ao fato de que as bases de sua teoria discursiva se encontram na criação do filósofo de Königsberg.

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vistas à complementação daqueles fundamentos apriorísticos através da instauração

e do cultivo da moralidade no campo fenomênico, sob a atribuição de ‘virtudes’.

Entretanto, ainda resta uma solução para o dilema do enfrentamento entre

agir ou não moralmente241, uma solução que se caracteriza, diferentemente das

outras apresentadas, por uma afetação dúplice, isto é, existe no âmbito dos dois

mundos – sensível e inteligível – e possui elementos tanto da causalidade natural

quanto da causalidade livre. Esta solução representa o direito.

De fato, o direito possui uma forma inteligível no seu fundamento e

formulação, que se chocam de maneira a priori e formal (objetiva) a ponto de se

assemelhar, por vezes ao próprio imperativo categórico. Seu princípio, porém,

destaca-se de modo distinto do princípio moral, no momento em que se vale da

própria lei natural, como possibilidade, para a realização dos pressupostos da

liberdade. É assim que se procede à apresentação sensível do direito, em sua

concepção metafísica, isto é, na concepção transcendental (a priori) de um objeto

empírico possível que, através de uma determinação lógica, proporcione uma

manipulação do agir, por uma lei natural – manipulação também considerada

somente possibilidade. Essa manipulação é a coerção, indicada por Kant como o

elemento caracterizador do direito242 (KANT, 2003a).

Assim, pode se confirmar que o direito constitui a manipulação racional do

sujeito, através das leis da natureza – coerção possível e suposta através da noção

de causa-efeito – visando a viabilização da idéia de liberdade (transcendental) no

mundo empírico243. Portanto, o direito é o que faz o ser humano – como membro de

um mundo fenomênico – ser livre neste mesmo mundo, o que sugere a conclusão de

que só existe liberdade num estado de direito, mas nunca em um estado de

natureza244.

O homem é um ser contraditório. Congrega em si toda a possibilidade da

realidade externa, através das condições intelectuais de tempo e espaço e mais toda

a possibilidade da instauração de leis na natureza (leis externas), por meio das

categorias do entendimento. Entretanto, possui também em sua razão uma espécie

de causalidade diferente que não se encontra sob as condições espácio-temporais.

241 Em suma, estes seriam, respectivamente, os efeitos fenomênicos da lei moral e da lei natural, em um caso particular da experiência. 242 Caracterizador no sentido de o elemento que distingue a moral do direito. 243 Por isso é ora defendido que a liberdade enunciada no princípio do direito simplesmente como Freiheit é a liberdade transcendental e não a liberdade empírica. 244 Conclusão encerrada por Kant na Metafísica dos Costumes (2003a).

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E, ainda, estabelece uma ‘série de condições’ própria e não condicionada à

causalidade natural, oriunda das leis de seu próprio entendimento.

A fórmula moral proporciona a transição dessa causalidade incondicionada no

sujeito diretamente em sua vontade (sujeito interno). O direito, por sua vez, traz esta

causalidade-liberdade para o sujeito como produtor do próprio fenômeno, sabendo-

se que o força externamente a agir, também externamente, conforme a liberdade

interna ordena. Portanto, parece correto concluir que o direito é o fenômeno possível

da liberdade. Em palavras outras, o direito é a manifestação, uma construção

fenomênica da idéia pura de liberdade.

Somente o homem livre tem a capacidade de construir o direito, isto é, de

produzir no mundo sensível um fenômeno que constitui a própria idéia pura a priori

da liberdade, em sua manifestação comunitária de regulação das ações de seres

livres, fins em si próprios.

Neste contexto, pode-se afirmar que Deus tem o caráter santo. No conceito

kantiano de Deus, Sua vontade é uma vontade somente pura, que não sofre a

afetação dos sentidos. Deus sequer participa do mundo fenomênico, sendo puro

númeno, um ser apenas inteligível. Por isso, conclui-se inevitavelmente que Deus é

o ser moral por excelência. Para Deus não há a possibilidade de agir contrariamente

à lei moral, uma vez que este ser não possui causa nenhuma que o levaria a isto. A

propósito, se Deus não participa do mundo dos fenômenos, Ele sequer pode ‘agir’,

uma vez que este conceito só é possível como fenômeno externo. É assim que pode

ser inferido, também, que o conceito de Deus implica uma essência inteligível, de

‘pura razão pura’.

Por outro lado, os animais que podem ser observados no mundo dos

fenômenos têm sua vontade determinada somente pela sensibilidade. Eles agem e

transitam no mundo dos fenômenos apenas de acordo com o que os seus apetites e

inclinações lhes ordenam – comem quando os sentidos lhes acusam necessidade

de alimento, reproduzem-se de acordo com a conjunção de fatores de sua espécie,

descansam quando seus organismos se sentem fatigados e fogem para a toca

quando se apercebem do perigo. Não podem agir por determinação da moralidade,

uma vez que o que os move em sua vontade é o instinto natural – a causalidade

natural, sendo que, se seus atos se acordam a alguma idéia de moralidade, tal fato

lhe pode ser atribuído apenas por mera coincidência. No conceito de ‘animal’,

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essencial e indiscutível paira a noção somente de natureza, de causa natural, de

puro instinto.

Entretanto, no conceito de ser humano encontram-se contidas as duas

noções acima – a de racionalidade e a de natureza. É impossível se pensar um ser

humano sem lembrar sua característica animal e sua característica racional. Nas

palavras de Kant, a expressão ‘o ser humano é um ser racional e animal’ pode ser

tratada como um juízo analítico, pois a idéia de humano implica estes dois

predicados.

Disto tudo resulta que a natureza humana245 não é a de ser moral, ou a de ser

um animal instintivo, mas a de ser as duas coisas simultaneamente – um animal

sensível determinado por sua razão. Neste sentido, talvez não seja correta a

compreensão de que, para Kant, a essência do humano seja a moralidade, mas a de

que a essência do ser humano seja o direito.

Pois a idéia do direito é o que retrata com plena fidelidade a condição humana

de um ser racional (inteligível) cuja existência se consolida no mundo sensível, no

mundo fenomênico, que é o mundo da vida (Lebenswelt). Um ser movido tanto pela

razão quanto pelos instintos, que vive em uma comunidade (um reino – Reich) de

seres da mesma espécie e que formula a idéia de um ordenamento que, através da

coação destes instintos permita que cada um possa manifestar sua própria liberdade

interna e, mais do que isso, através dessa mesma coação, tenta limitar as ações que

prejudicam a liberdade de outros seres.

Desta maneira, o direito não pode ser pensado para Deus, uma vez que este,

por não ser influenciado pela causalidade natural, não pode ser movido por algo

diferente da noção a priori de dever, ou seja, por algo diferente da prescrição

racional. Também, o direito não poderia existir para o ser santo dado que, para que

tal ocorra, seria necessário que este se relacionasse com outros deuses, o que

racionalmente não pode ser afirmado como verdadeiro (isto contraria o conceito

metafísico de um ser supremo). Logo, o conceito de Deus – na forma concebida pela

razão humana em sua tendência especulativa – não permite a participação em uma

comunidade, motivo pelo qual este sequer pode ser o sujeito de um direito246.

245 Como dito em nota anterior, é passível de atrozes críticas falar em natureza humana na obra de Kant. Todavia, para o desenvolvimento deste debate, é assumido o risco. 246 Isto, contudo, pode ser pensado se, hipoteticamente, se considerar que Deus possua uma intuição intelectual e que se relacionaria com os seres humanos. Entretanto, a própria argumentação kantiana vai contra esta tese, uma vez que isso não pode ser objeto do conhecimento humano.

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Por sua vez os animais não formulam também o direito, pois não possuem a

liberdade como causalidade determinante de sua vontade. Portanto, só agem

mediante aquilo que a natureza se lhes condiciona.

Ora, só o ser humano é capaz de conceber o direito. E mais – só o ser

humano é capaz de conhecer o direito, o que faz à medida que tenta concretizá-lo

na elaboração de leis escritas que prescrevam a conduta-dever, e na criação de

instituições que detenham força suficiente para garantir o implemento da coação em

um âmbito universal.

Em suma, todo homem concebe o certo e o errado, o bom e o mal, o dever e

o não dever, tudo isto racionalmente e a priori. No entanto, nem sempre ele tem

força para, no mundo dos fenômenos, fazer com que o certo o bom e o dever

ocorram. Destarte, aprioristicamente, o homem também concebe o instrumento que

pode usar para que isto aconteça – o direito – de modo que, de forma ideal, este é o

elemento que caracteriza e/ou distingue o sujeito humano247.

E, por fim, o direito é o que dá equilíbrio à dialética entre as leis severas da

razão pura e os arrazoados da experiência. O direito é o único meio de controle da

oposição entre os efeitos da lei moral racional e os efeitos da natureza sobre os

sentidos humanos. Enquanto inexistente o direito, se for pensada a situação

hipotética de estado de natureza, não pode ser afirmada a prevalência dos efeitos

de uma das esferas, sendo incorreto até se afirmar que o ser humano tenderia à

animalidade, instaurando um estado de guerra.

De fato, se pudesse ser vislumbrada uma situação sem o direito, nada

impediria que existissem certos grupos de pessoas com tendência a agir moralmente

em qualquer caso; entretanto, a situação de insegurança social não apenas

impediria a concepção de certos modelos e instituições humanas como inibiria sua

evolução, talvez, quem sabe, levando à sua própria extinção. O direito é o que dá

força ao homem no seu embate com a natureza e na implementação da moralidade.

247 Não se pretende utilizar a magistral teoria do filósofo de Königsberg para fins ‘moralistas’, na tentativa de propor uma moral rígida, inescusável e implacável ou um direito formalista, legalista e exegético, mas apenas demonstrar que o homem tem um ideal comum nestas áreas, que está situado em um plano puro. Este ideal, deve ser utilizado na medida máxima possível para que seja feita uma comunidade, uma sociedade e um Estado melhores, em que os homens sejam mais conforme sua natureza, seu telos, (reservada a possível impropriedade destes termos), um estado em que o humano busca um grau ideal de excelência, o que só poderá ocorrer, acima de tudo, onde houver o direito. E não pode ser esquecido que, no mundo dos fenômenos, o direito se aproximará mais do direito ideal, quanto mais tiver o auxílio da moralidade, sendo que estes dependem um do outro.

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4. A necessidade da fundamentação metafísica e da complementação empírica

na doutrina do direito

Dentro de sua teoria do direito, Kant separa o direito empírico do direito a

priori, denominando este de metafísico e aquele como “aplicação empírica dos

direitos”. (empirische Rechtspraxis) (KANT, 2003a, p. 52). Em sua crítica salienta

que o direito empírico não alcança a universalidade desejada, pois se baseia na

apreensão humana da experiência, cuja representação tende à interpretação

particular de certos casos, o que permitiria ser pensada sempre uma exceção àquela

regra que almeja a universalidade. Portanto, o fundamento do direito não deve se

encontrar em uma avaliação empírica, mas, inevitavelmente, na Metafísica.

Verdadeiramente, a própria existência do direito depende de o mesmo ser

compreendido em sua noção metafísica, vez que esta é que provê a possibilidade

de seus fundamentos. Por conseguinte, isto depende da verificação da possibilidade

de juízos sintéticos a priori sobre o direito, assim como a moralidade dependia da

confirmação dos juízos sintéticos a priori morais (KANT, 2003a, p. 96). Isso é

demonstrado pelo filósofo de Königsberg, que afirma “Todas as proposições sobre o

direito são proposições a priori, uma vez que são leis da razão (dictamina

rationis)”248 (KANT, 2003a, p. 96). Ademais, são proposições sintéticas que unem

uma qualidade jurídica a um sujeito que pode não estar exercendo este juízo na

experiência, em determinado momento e, mesmo assim, continua como titular do

respectivo direito.

Um bom exemplo invocado por Kant é o direito à posse. A proposição jurídica

referida reúne o conceito de posse física (ocupação) com o conceito do sujeito desse

direito, abstraindo as condições de espaço e tempo, de modo que, não se vê

necessidade na ocupação empírica permanente do bem possuído, tão-somente sua

posse intelectual (numênica). Aqui, pode se entabular uma diferenciação – enquanto

o juízo descrito pela posse numênica é sintético, o descrito pela posse empírica é

apenas analítico, vez que o predicado ‘ocupação’ já está contido no seu conceito. E

é por estas razões que a posse empírica não garante o direito do possuidor no

momento em que este se descuida do objeto, enquanto a posse inteligível obriga

248 “Alle Rechtssätze sind Sätze a priori, denn sie sind Vernunftgesetze (dictamina rationis).” (MS, B. VI, S. 249[34-35]).

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todos a imaginarem que, mesmo não estando nas mãos do sujeito, este é o seu

possuidor (KANT, 2003a, p. 96-98). O que quer dizer: o direito à posse só se torna

legítimo e efetivo a partir do momento em que é considerado em seu caráter a priori

e metafísico. E, bem como o direito de posse, todo o ordenamento jurídico necessita

de uma fundação metafísica249.

Nesse passo, o direito válido, ou seja, compreendido em sua forma

metafísica, exige que seja gestado em uma fase de suspensão do juízo, ou seja,

independentemente das condições de espaço e tempo, o que, contudo, não impede

que esse mesmo direito seja posteriormente aplicado na experiência. De fato Kant

assim justifica:

a razão prática exige de mim, por força de sua lei do direito, que eu aplique o meu ou teu [os conceitos de direito] aos objetos, não de acordo com condições sensíveis, mas as abstraindo, visto que tem a ver com uma determinação de escolha de acordo com leis da liberdade e também de mim exige que pense na posse deles dessa forma250 (KANT, 2003a, p. 98-99)

Ora, desse texto podem ser compreendidas duas questões importantes. A

primeira consiste no fato de que a suspensão do juízo é o método adequado e

necessário para a concepção do direito livre, ou seja, o direito no sentido metafísico

decorrente da idéia pura da liberdade como causalidade incondicionada251 –

transcendental – e que, portanto, guarda conexão e interdependência com a

moralidade, sobretudo no sentido de postularem pela instauração da liberdade

interna no mundo dos fenômenos. A segunda questão decorre dessa descrição e, a

saber, é a comprovação da tese defendida neste estudo de que a própria liberdade

referida no princípio do direito não é a simples liberdade externa, mas a liberdade

interna, cujo conceito é necessário à elaboração apriorística de direitos válidos de

249 O mesmo argumento desenvolvido para a posse – como um direito inteligível – é usado por Kant para explicar outras situações jurídicas, como as obrigações dos contratos em geral e até a idéia do contrato social de Hobbes, que é um conceito a priori, anterior à experiência, pensado como uma necessidade natural humana que motiva a criação do direito e da sociedade civil, no intuito de que a segurança e garantias sejam permanentes e não provisórias como supostamente ocorre no estado de natureza (KANT, 2003a, 154-155). 250 “Nun will die praktische Vernunft durch ihr Rechtsgesetz, daß ich das Mein und Dein in der Anwendung auf Gegenstände nicht nach sinnlichen Bedingungen, sondern abgesehen von denselben, weil es eine Bestimmung der Willkür nach Freiheitsgesetzen betrifft, auch den Besitz desselben denke [...].” (MS, B. VI, S. 253[15-20]). 251 a propriedade de, por si só, dar início a um evento da natureza.

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acordo com universalidade e autolegislação num reino de seres igualmente

legisladores252.

Obviamente que isto é feito através da regulação de liberdades externas

através de uma coerção somente possível, segundo leis de causalidade natural. No

entanto, o que se deseja evidenciar é o fato de que o dever contido na lei jurídica

possui uma formulação a priori, o que, inclusive, faz com que, de certo modo, o

dever de direito assuma um correspondente dever ético, uma vez que há uma

coincidência dos resultados naturalísticos pretendidos, a saber – a ação moral e a

ação jurídica253.

Assim, o direito necessita da suspensão do juízo para a formulação de sua

parte metafísica que constitui a fundamentação e a criação da idéia de um

ordenamento jurídico em geral constituído, segundo a classificação kantiana, por um

direito privado e por um direito público, cada qual com suas respectivas

subdivisões254. Entretanto, o direito, após a suspensão do juízo, retorna ao mundo

fenomênico de modo que postula por uma manifestação que, em geral, resultará na

formação de leis escritas ou consagradas pela práxis dos seus aplicadores. Esta

forma deve seguir aquela noção concebida e fundamentada a priori, conquanto sofra

uma dificuldade parecida com a da moralidade ao transitar para o mundo sensível –

o problema da oposição entre os efeitos da lei a priori com as leis da sensibilidade e

o da dificuldade de elaboração do juízo prático sobre a prescrição pura. Quanto a

este tema, seu debate não pode ser pormenorizado nas obras de Kant por falta de

252 Segundo Kant, a função do direito (dentro de um contexto estatal) pode ser descrita como “Ordenar uma multidão de seres racionais que, para a sua conservação, exigem conjuntamente leis universais, às quais, porém, cada um é inclinado no seu interior a eximir-se, e estabelecer a sua constituição de um modo tal que estes, embora opondo-se uns aos outros nas suas disposições privadas, se contêm no entanto reciprocamente, de modo que o resultado da sua conduta pública é o mesmo que se não tivessem essas disposições más.” (KANT, 2004a, p. 147). “Eine Menge von vernünftigen Wesen, die insgesammt allgemeine Gesetze für ihre Erhaltung verlangen, deren jedes aber ingeheim sich davon auszunehmen geneigt ist, so zu ordnen und ihre Verfassung einzurichten, daß, obgleich sie in ihren Privatgesinnungen einander entgegen streben, diese einander doch so aufhalten, daß in ihrem öffentlichen Verhalten der Erfolg eben derselbe ist, als ob sie keine solche böse Gesinnungen hätten.” (EF, B. VIII, S. 366[17-23]). 253 Não se pretende, aqui, refutar a diferenciação kantiana entre os deveres éticos e os de direito, que é clara – estes ordenam ações, enquanto aqueles obrigam a adoção de máximas na vontade, isto é, a adoção de motivos. Contudo, se quer demonstrar que, no mundo dos fenômenos, quando o homem age, seja por moral ou por direito, o faz da mesma maneira, pois o resultado de ambas as esferas na natureza é o mesmo, uma vez que ambos originam-se e objetivam a liberdade transcendental, obviamente que a moral através de uma ordem interna e o direito através de uma ordem externa-interna (obrigação na liberdade externa para a liberdade interna). 254 Não se defende ou se discute, aqui, se a classificação de Kant seria adequada, seja para a sua época, seja para os nossos dias. Parece correto dizer que a mesma não apresenta completude, o que, contudo, não importa a este trabalho.

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um desenvolvimento específico. Parece que o autor, todavia, lega indícios de uma

solução da qual poderia ter se utilizado, caso tivesse vivido mais. Essa solução

provavelmente seria uma teoria acerca da formulação discursiva da lei jurídica em

sua concepção e aplicação empírica.

Kant, em passagens de várias de suas obras, faz menção à questão da

formulação discursiva de conceitos, seja na construção da moralidade, em refutação

à validade deste procedimento (KANT, 2003b, p. 539), seja em conceitos filosóficos

da natureza (KANT, 2003c, p. 67; 71). Ou, ainda, na universalização do juízo de

gosto (KANT, 2005a, p. 130-131; 136-138). Mas é certo que esta tese mostra-se

apenas como uma simulação possível, supondo-se que o autor é lúcido sobre o fato

de que desenvolve apenas a parte Metafísica dos Costumes e que a moralidade,

assim como o direito – em suas formas metafísicas – não acatam uma formulação

discursiva que, por fazer parte do mundo empírico, deixa de comportar a totalidade

dos casos. Ou seja, a universalidade absoluta255. Entretanto, claro que a formulação

metafísica não basta, notadamente ao direito.

O raciocínio proposto, em relação ao direito, parte da seguinte afirmação - a

natureza (lei natural) prescreve como causalidade ao homem fugir da dor e buscar o

prazer. Entretanto cada homem é afetado de um modo pelos sentidos, sendo que os

critérios e os efeitos para avaliar o prazer e a dor só poderão ser afirmados mediante

o que ocorre em uma maioria relativa dos casos. É o que acontece com tudo que é

baseado na experiência (sensibilidade); não se pode obter universalidade, mas

apenas uma avaliação de maioria dos casos, logo, toda a formulação baseada na

experiência só pode ser discursiva.

Portanto, se o direito procura promover a realização da liberdade

transcendental através de bases de prêmio e castigo, ou seja, proporcionando, por

causas naturais, o prazer ou a dor, a satisfação ou o sofrimento, não poderá se valer

aqui somente daquilo que o intelecto concebe a priori, mas vai necessitar de um

critério fornecido pela experiência. Logo, para a formulação do direito com base na

coerção inexorável um critério discursivo, presumindo-se que a própria avaliação do

255 Isto é, pelo fato de o juízo obtido em um consenso discursivo ter presentes algumas condições afirmadas através da experiência, além de condições subjetivas e particulares de avaliação empírica (através dos sentidos individuais), o juízo moral, em sua fundamentação metafísica, não pode depender de elementos discursivos, uma vez que a universalidade restaria prejudicada. No entanto, essa questão é possível em um horizonte moral pós-metafísico.

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que é a ameaça de dor imprimida pela lei como pena não é algo com perfeita

universalidade.

Ainda, também isso se aplica a tudo aquilo que é concebido a priori, mas que

requer a informação da sensibilidade para a sua perfeita aplicação, o que sugere a

presença de um senso de adequação em Kant, necessário à aplicação da lei jurídica

ao caso particular. Um exemplo bastante explícito desta adequação encontra-se na

‘doutrina dos elementos da ética’ (KANT, 2003a) onde o autor explica que, se

alguém se mutilar para vender uma parte do corpo ou para obter uma vida fácil é

dotado de ilicitude, o mesmo não ocorre em casos de amputação de um órgão sem

vida ou enfermo para a garantia da vida de quem quer que seja, ou como o caso de

cortar o próprio cabelo (KANT, 2003a, p. 265).

Assim, apesar de os deveres éticos e os jurídicos serem concebidos a priori,

necessitam de contextualização quando passam à experiência, sendo que podem se

tornar imprecisos e até terem aplicação diversa em casos particulares distintos. Isso

é confirmado por Gomes em seu artigo Kant e o pós-positivismo no direito (GOMES;

MERLE, 2007, p. 153-180), onde ele conclui não apenas que existe um senso

indeterminado de adequação em Kant, mas que este é determinado e fornecido pelo

próprio princípio de universalização (GOMES; MERLE, 2007, p. 176), que está

presente tanto no princípio da moral quanto no do direito. A demonstração desta

tese, segundo Gomes, é explicitada em vários textos em Kant, no entanto, destaca a

Introdução da Metafísica dos Costumes como a principal prova do senso de

adequação do filósofo de Königsberg, quando este autor explica a possibilidade de

existência de conflitos entre fundamentos de obrigação, os mesmos só podendo ser

decididos em um caso concreto (GOMES; MERLE, 2007, 173- 176).

Por fim, parece indiscutível que a teoria de Kant, se já não prevê uma

abertura para uma teoria que lhe dê continuidade no mundo sensível, pelo menos

induz a que isso ocorra, uma vez que o pesquisador do direito se depara com a

necessidade de transição daquilo que é feito em teoria, para o mundo real, para a

prática256. E é assim que Kant prepara a fundamentação e a concepção inteligível

(em suspensão) da moral e do direito, entretanto, não desenvolvendo de maneira

completa sua atuação no mundo sensível, com a possibilidade concreta de

aplicação aos casos particulares (tanto que seus exemplos não são bem

256 Segundo Gomes e Merle (2007), a teoria de Kant já possui essa dupla perspectiva.

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compreendidos por alguns estudiosos). Neste momento é que podemos pensar na

teoria discursiva de Habermas (2003) como uma possibilidade de re-elaboração da

doutrina kantiana no mundo empírico257.

5. A teoria do discurso a partir de Kant e o Estado Democrático de Direito

Como salientam Gomes e Merle, a teoria habermasiana258, através de

instrumentos fornecidos pelo avanço das teorias lingüísticas, extrai o caráter

monológico de formulação do princípio de universalização kantiano, trazendo-o para

a ‘roda do discurso’, o que propicia a formulação dialógica daquilo que Kant

pressupõe ser concebido igual e individualmente por todo ser racional – a

moralidade (GOMES; MERLE, 2007, p. 56).

Quanto a isso, note-se, Kant afirma que, antes de qualquer experiência, todo

ser racional conhece a lei moral (e o direito259). Entretanto, no mundo fenomênico

esta compreensão é afetada pelos sentidos que movem a vontade em uma direção

distinta. Logo, o que a teoria do discurso parece propiciar é o resgate da noção

original de dever, dada a priori na razão humana, através do estabelecimento de um

diálogo dirigido a este fim, consagrado pelo consenso ao qual os debatedores

pretendem chegar e na certa o farão.

Assim como a teoria de Kant, em Habermas este consenso tem caráter ideal,

seu discurso sendo construído em condições apenas racionalmente pensadas, que

deveriam ocorrer com a igual participação de todos os envolvidos e atingidos pela

situação debatida e – sem influências externas – o que resultaria na formulação de

um consenso unânime ao final, decorrente do pleno entendimento mútuo entre os

argumentos concorrentes (HABERMAS, 2003, p. 142-144).

257 Apesar de alguns autores, como Gomes e Merle (2007) entenderem que esta teoria também tem caráter ideal, o que parece ser um entendimento apropriado. 258 Deve ser salientado que a teoria de Jürgen Habermas não é objeto do presente trabalho. Os comentários tecidos nesta seção têm em vista apenas o fornecimento pelo autor de elementos que caracterizem a fundamentação contemporânea do direito para fazer frente a elementos da teoria kantiana da justiça. Neste intuito, os comentários ora serão restritos à formulação do princípio do discurso, e não à obra integral de Habermas, notadamente por não caber tal pesquisa em poucas linhas. Assim, não se pretende exaurir o debate desta teoria, mas apenas apontar questões relevantes ao estudo. 259 Do fato de todo ser racional conceber o direito decorre o princípio jurídico de que nenhum indivíduo pode se escusar ao cumprimento da lei jurídica sob a alegação de desconhecê-la.

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Cabe evidenciar que Habermas parte do conceito kantiano de razão prática -

a razão humana em sua capacidade de pensar e raciocinar enquanto voltada para o

agir. Contudo, diferentemente de Kant, que analisava a razão prática a partir do

sujeito individual racional, Habermas dirige seus estudos ao contexto coletivo, social

e comunitário empíricos, o que é algo postulado desde a própria teoria de Kant, cuja

investigação individualista acaba por se reportar ao caráter social da razão, quando,

na moralidade, concebe o reino dos fins260.

Neste passo, Habermas analisa três contextos para a razão prática, quais

sejam, o pragmático, o ético e o moral. O plano pragmático envolve a concepção do

agir direcionado a fins possíveis, desejados pelo indivíduo independentemente de

seu conteúdo moral. Este contexto pragmático – parece cabível dizer – corresponde

aos imperativos de destreza kantianos (KANT, 2004b), como, por exemplo, o juízo:

age de um modo ‘X’ se o que desejas é preservar a saúde. Já o plano ético,

segundo Habermas, envolve o conteúdo moral, entretanto, está inserido em um

contexto de valores apreendidos historicamente, no direcionamento do agir, tendo

em vista não somente o bem individual, mas o coletivo261 (HABERMAS, 2003, p.

206-207). Por fim, a dimensão da moral pode ser identificada com a idéia de moral

kantiana, que ocorre internamente ao sujeito (intelectualmente), na determinação da

vontade pela razão, que é, em todo ser humano, o princípio do universal e do

necessário.

Por conseguinte, a principal herança kantiana recebida por Habermas é o

princípio de universalização decorrente da moralidade (razão prática) que, em sua

teoria, constitui não somente o princípio fundamental da moral, mas também o

princípio que orienta a formulação discursiva do direito, de modo a que as normas

morais e jurídicas devam poder ser aceitas por todos os indivíduos envolvidos na

situação em que serão aplicadas e de maneira universal.

Assim como em Kant, em Habermas o princípio da universalidade é o eixo em

torno do qual giram todas as reflexões. Entretanto, este autor associa aquele

princípio com conceitos da filosofia da linguagem, o que resulta na formulação do

princípio do discurso, que rege toda a esfera do agir comunicativo, incluindo moral,

ética, direito e até o campo pragmático descrito em suas obras. Para o autor, na

260 De fato, Habermas faz ‘Sociologia e Antropologia dos Costumes’, o que Kant anunciou que deveria ser feito a partir de sua partir de sua ‘Metafísica dos Costumes’. 261 Não parece incorreto dizer que o termo ‘ética’ para Habermas corresponde, em parte, aos ‘imperativos de prudência’ para Kant (KANT, 2004b).

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dimensão do agir, só é legítimo aquilo que pode ser aceito sem coação por todos os

interessados ou atingidos (HABERMAS, 2003, p. 138-195).

Contudo, guardadas as semelhanças e divergências entre os autores, parece

correto afirmar que a principal contribuição da teoria de Habermas262, dentro do

contexto do direito, é a ampliação da teoria de Kant a um horizonte que a mesma

não atinge263, devido ao fato de ter este autor se reservado ao campo metafísico.

Este horizonte é o de uma fundamentação complementar para a parte empírica do

direito, notadamente no processo de produção e aplicação legislativos que,

atualmente, geram o debatido modelo do Estado Democrático de Direito.

De fato, a obra de Habermas, em relação ao Direito, propõe uma redefinição

da racionalidade jurídica, através da adequação à comunicação social humana, logo,

a razão prática sai do plano individual e, através do debate interpessoal, passa ao

plano social, onde o direito é construído. Assim, considerando a orientação final dos

seus estudos264, Habermas sustenta, de maneira co-originária265, a existência da

moral e do direito a partir do princípio do discurso, que é abstrato e neutro em

relação àqueles (2003, p. 142; 158). O princípio do discurso é tal que: “D: São

válidas as normas de ação às quais todos os possíveis atingidos poderiam dar o seu

assentimento, na qualidade de participantes de discursos racionais.” (HABERMAS,

2003, p. 142; 158).

Portanto, eis-nos frente a condições para a obtenção de um consenso ideal

em que os integrantes do discurso tenham iguais oportunidades de participação,

através da possibilidade de apresentação de interpretações, objeções, argumentos,

262 Ao menos na perspectiva do presente trabalho. 263 Apesar de, conforme foi afirmado, Kant deixar explícito que esta ampliação de seus estudos era necessária, como o faz em A Metafísica dos Costumes, no final da ‘doutrina da virtude’ (KANT, 2003a). 264 Em que o autor produz o que denomina ‘teoria do discurso’, e não ‘ética do discurso’. Sobre isto ver Gomes e Merle (2007, p. 65). 265 Habermas sustenta que “tanto as regras morais como as jurídicas diferenciam-se da eticidade tradicional, colocando-se como dois tipos diferentes de normas de ação, que surgem lado a lado, completando-se.” (2003, p. 139). Assim, moral e direito para Habermas se originam do princípio do discurso, que por sua vez decorre do princípio de universalização associado ao procedimento comunicativo. Neste estudo é defendida a co-originariedade, em Kant, entre direito e moral, entretanto, considera-se que estes decorrem da idéia pura de liberdade. Ora, se for inserido o princípio do discurso nesse elenco, considerando que o princípio de universalização é algo decorrente e característico da liberdade transcendental, pode ser concluído que os princípios de moral, direito e discurso são todos originados da idéia de liberdade. Assim, não seria correta a colocação habermasiana da dependência entre direito e moral a partir do discurso, mas sim da interdependência entre essas três dimensões, que, sob os argumentos deste mesmo autor, são todos frutos da razão prática e das regras de causalidade que partem da idéia de liberdade. Em princípio, parece correta esta tese que, contudo, demandaria a articulação de outros argumentos dentro da obra de Habermas, o que, porém, não pode ora ser feito.

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além da inexistência de qualquer espécie de coação, excetuando-se o

convencimento recíproco através de argumentos racionais que, em obtido o

consenso, o argumento vencedor poderá ser aceito por todos. Ainda, segundo

Gomes, “Nessa situação ideal, os participantes estão excluídos das limitações

espaciais e temporais” (GOMES; MERLE, 2007, p. 64).266

Nessas condições comunicativas, o direito resulta na instituição do Estado

Democrático de Direito, o que acontece a partir do princípio do discurso em relação

aos seguintes princípios derivados, inerentes a este modelo:

[...] (a) o princípio da soberania popular [...] (b) o princípio da ampla garantia legal do indivíduo, proporcionada através de uma justiça independente; (c) os princípios da legalidade da administração e do controle judicial e parlamentar da administração; (d) o princípio da separação entre estado e sociedade[...] (HABERMAS, 2003, p.212-213)

266 Apesar das críticas de Habermas à fundamentação metafísica do direito (2003, p. 169), a situação ideal perpetrada no seu princípio do discurso contradiz, pelo menos em parte, esta crítica. Isto fica patente quando se considera o trecho acima transcrito, de Gomes e Merle, que afirma a própria exclusão do sujeito das condições fenomenais de espaço e tempo, na concepção da situação ideal do discurso. De fato, isso parece conduzir imediatamente a duas conclusões: a primeira, de que Habermas, apesar de negar a base metafísica em sua teoria, acaba por se firmar nos mesmos argumentos que rejeita, uma vez que o princípio do discurso é uma situação racional, inteligível, a priori, cuja realidade fenomênica não somente é inexistente, mas tem realidade muito distante das verdadeiras condições dos discursos empíricos hodiernos. Contra tal conclusão, levantar-se-ão argumentos que salientam que, apesar de ideal, a tese habermasiana parte de fundamentos pós-metafísicos (HABERMAS, 2003, p. 139), isto é, o autor constrói seu princípio a partir de elementos racionais da Sociologia e da Antropologia, que são ciências com suporte fundamentalmente empírico e não metafísico. Quanto a isso, parece correto tanto o argumento quanto a crítica, portanto, a conclusão ficará sob a responsabilidade do leitor. A segunda conclusão pertine ao objeto do presente trabalho qual seja a questão da suspensão do juízo. Quanto a isto, parece que também se encontra presente na formulação do princípio do discurso de Habermas, o que é deveras evidente se for pensado que o autor começa sua formulação a partir da experiência comunitária comunicativa humana, entretanto não se restringe a esta, construindo racionalmente a melhor situação, a situação ideal em que a razão prática, no âmbito social, formularia os juízos sobre o agir moral, sobre o direito, bem como sobre a forma como estes podem ser construídos de maneira válida e legítima, a saber sob um ponto de vista democrático. Obviamente que quando o autor faz tal empreitada, não se baseia em dados da experiência, mas em questões racionais concebidas sobre um fenômeno lingüístico possível, lançando mão de categorias do entendimento não concebidas por Kant – as referentes à razão comunicativa. Enfim, uma conclusão parece incontestável – a de que tanto a teoria do discurso, quanto o modelo do Estado Democrático de Direito são somente ideais. São idéias da razão que, se não coincidem inteiramente com as três idéias metafísicas de Kant, pelo menor partilham da mesma função – a de serem arquétipos reguladores do agir humano, isto é, são modelos (natureza arquetípica) para serem seguidos o quanto mais próximo possível do ideal, que é, no entanto, inatingível (apesar de possível. É de se pensar, aqui, na cena de um cão correndo atrás do próprio rabo). Nas palavras de Gomes e Merle “a situação ideal do discurso possui força de uma idéia reguladora: além de servir como guia para discursos empíricos , ela torna possível criticar os resultados nele obtidos. Só podemos buscar [...] um discurso empírico mais próximo das condições ideais. E após participar de um discurso empírico podemos criticar o consenso nele obtido porque temos as condições ideais como modelo.” (2003, p. 69).

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Estes princípios se reúnem para a instauração da idéia de que o Estado

Democrático de Direito deve ter como fim último a auto-organização política

autônoma de uma comunidade, regida por um ordenamento jurídico, instituído e

dirigido a cidadãos livres e iguais (HABERMAS, 2003, p. 220). Neste sentido, direitos

humanos e soberania do povo constituem a forma de justificação da parte empírica

do direito, sendo, aqueles, resultado da autodeterminação moral e esta, um produto

da auto-realização ética comunitária (HABERMAS, 2003, p. 133)267.

Assim, o princípio da democracia determina que “todo poder político parte do

povo” (HABERMAS, 2003, p. 173) e que o mecanismo correto para a produção de

um direito legítimo é a reunião do princípio do discurso e da forma jurídica

(HABERMAS, 2003, p. 158). A partir dessas conclusões, deve ser considerado que a

legitimidade do direito está na possibilidade de assentimento racional de suas

normas por parte de todos os atingidos (HABERMAS, 2003, p. 138) ou, em outras

palavras, “Na fundamentação de normas jurídicas é preciso usar a razão prática em

toda sua extensão” (HABERMAS, 2003, p. 196), sobretudo na esfera intersubjetiva,

através do desenvolvimento da linguagem com foco na teoria do discurso, que deve

servir como um modelo cuja realidade é somente possível268.

Segundo Gomes e Merle este modelo é o mais adequado à realidade em que

vivemos (2007, p. 56). Entretanto, emerge o seguinte questionamento: a obra de

Kant já não fornece estes princípios e fundamentos? Através do direito e da moral

formulados a partir da idéia de liberdade não pode ser fundamentado o direito como

o dos dias de hoje? Parece correto dizer que a resposta para ambas as perguntas é

afirmativa.

De fato, Kant deixa várias pistas disto. No texto Sobre a expressão corrente:

isto pode ser correto na teoria, mas nada vale na prática (KANT, 2004a), o autor

chega a debater especificamente temas como a liberdade civil (KANT, 2004a, p. 75),

a igualdade perante a lei (KANT, 2004a, p. 76-77) e até sobre a democracia, à qual

se refere como “A independência (sibisufficientia) de um membro da comunidade

267 Pode ser percebido que, entretanto, esta fundamentação empírica depende do amparo de conceitos cuja legitimação se dá no plano metafísico, através do desenvolvimento da noção kantiana de liberdade transcendental. 268 Assim como a lei moral em Kant. Ironicamente, a moderna teoria habermasiana cobre o plano empírico da moralidade e do direito, entretanto, em suas bases, necessita da fundamentação metafísica; e ainda, mesmo constituindo uma elaboração pós-metafísica, só consegue cumprir um papel racional sem contradição quando considerada em um plano ideal, cuja existência, é certo, está longe da realidade de qualquer Estado do mundo atual.

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como cidadão, isto é, como colegislador.”269 (KANT, 2004a, p. 80). Oferece,

inclusive, um conceito de Constituição à qual denomina a “lei fundamental”

(Grundgesetz) (KANT, 2004a, p. 80) que só pode ser instituída pelo poder que

emana do povo (“vontade geral [unida] do povo”270 [KANT, 2004a, p. 80]). Também

menciona o conceito de cidadão como o eleitor (KANT, 2004a, p. 80) o processo de

democracia representativa e a ‘regra da maioria’ (KANT, 2004a, p. 82), tudo isso

como parte do processo de instituição do Estado de Direito (Estado Civil) (KANT,

2004a, p. 77-78).

Ainda, em A paz perpétua (KANT, 2004a) Kant chega a teorizar sobre a

concepção de uma constituição de uma forma democrática (KANT, 2004a, p. 127-

129) e em A Metafísica dos Costumes (KANT, 2003a) explica que “Por felicidade do

Estado entende-se [...] a condição na qual sua constituição se conforma o mais

plenamente aos princípios do direito [...]”271 (KANT, 2003a, p. 160) – novamente o

Estado de Direito.

É certo que, estudando-se diretamente a obra kantiana, descobre-se ser

infundado qualquer comentário que tenha em vista a negação da existência de um

Estado de Direito sob uma perspectiva democrática em Kant, e que, mesmo sem os

instrumentos descobertos pela ciência da linguagem na atualidade, o autor

consegue dar lugar a uma fundamentação coerente para o direito, bem como uma

prescrição da forma de instituição do poder político-legislativo. Como já exposto

anteriormente, em suas obras ocorrem indícios, inclusive, de que concebia a

questão discursiva necessária, obviamente apenas como um esboço do que se tem

hoje.

Estas conclusões, no entanto, não excluem o incalculável valor da teoria do

agir comunicativo272 na atualidade, bem como o fato de que seu fundamento é

269 “Die Selbstständigkeit ( sibisufficientia ) eines Gliedes des gemeinen Wesens als Bürgers, d. i. als Mitgesetzgebers.” (Über, B. VIII, S. 294 [3-4]). 270 “[…] das nur aus dem allgemeinen (vereinigten) Volkswillen entspringen kann […]”(Über, B. VIII, S. 295 [10-11]). 271 “In ihrer Vereinigung besteht das Heil des Staats (salus reipublicae suprema lex est); worunter man nicht das Wohl der Staatsbürger und ihre Glückseligkeit verstehen muß; denn die kann vielleicht (wie auch Rousseau behauptet) im Naturzustande, oder auch unter einer despotischen Regierung viel behaglicher und erwünschter ausfallen: sondern den Zustand der größten Übereinstimmung der Verfassung mit Rechtsprincipien versteht, als nach welchem zu streben uns die Vernunft durch einen kategorischen Imperativ verbindlich macht.” (MS, B. VI, S. 318 [6-14]). 272 Dentre as contribuições de Habermas não pode ser esquecida a questão da adequação introduzida no princípio de universalização através do princípio do discurso. Primeiramente, o autor declara a necessidade de um princípio de adequação nos discursos de aplicação do direito (HABERMAS, 2003, p. 144), o que, em certos casos exige o exame de casos particulares

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essencial à complementação (GOMES; MERLE, 2007, p. 63273) das sementes

fundamentais lançadas por Kant. Evidentemente que esta integração não pode ser

explanada nas curtas linhas deste trabalho.

É certo que, conforme o concluído, tanto a teoria de Kant quanto a de

Habermas valem como idéias, como modelos reguladores da conduta humana e da

fundamentação das ciências práticas. Acrescente-se: a teoria de Kant pode ser, de

certo modo, carente de uma dedução empírica e talvez de explicações mais claras

sobre a aplicação da moral e do direito aos casos particulares e sobre suas

adequações ao mundo fenomênico; porém, como pôde ser observado, no nível da

fundamentação racional a teoria de Kant é irretocável, resolvendo, inclusive,

problemas de fundamentação de autores posteriores à sua época. Tentar-se-á

demonstrar essa questão a seguir, também em linhas gerais.

6. O problema da fundamentação do direito positivo e o argumento

metafísico274

Como mencionado anteriormente, a construção metafísica do direito, gerada

no opus kantiano, proporciona coerentes argumentos para a solução de problemas

de ordem pragmática surgidos diante do exame da fundamentação de

ordenamentos jurídicos concretos. Dada a proposta de concisão deste estudo, será

ora examinado somente o problema denominado ‘regresso infinito da

“previsivelmente típicos” (HABERMAS, 2003, p. 203) para a descoberta da possibilidade do assentimento discursivo. Entretanto, parece correto dizer que a própria abertura empírica do princípio do discurso proporciona um princípio de adequação próprio. Neste passo, o autor declara que os “discursos de fundamentação e aplicação [do direito] precisam abrir-se também para o uso pragmático e, especialmente, para o uso ético-político da razão prática.“ (HABERMAS, 2003, p. 194). Considerando, por exemplo, a perspectiva pragmática no princípio do discurso, o participante que entra em um debate visa necessariamente a obtenção de algum consenso que proporcione um seu interesse. Quando surge um impedimento à obtenção do consenso, devido ao afastamento do debate das condições ideais, a própria razão pragmática tende a produzir meios para a solução do desequilíbrio e, logo, à obtenção do consenso desejado. Esta adequação está contida no próprio princípio do discurso que se não atinge suas condições ideais, evidentemente, busca se aproximar sempre ao máximo delas. 273 Para os autores a teoria de Kant poderia, inclusive, ser considerada dualista, uma vez que o direito constituiria, na obra deste autor, a passagem da parte ideal à parte não ideal de sua tese. 274 O texto apresentado neste tópico, assim como foi explicado na nota nº 48, é parte de trabalho apresentado no XVI Congresso Nacional do CONPEDI, conforme consta da nota e das referências bibliográficas (LANA, 2007).

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fundamentação do direito’, cujo debate é brilhantemente suscitado por Kirste (2003)

em seu trabalho Constituição como início do direito positivo.

A tese deste autor afirma, de maneira sucinta, que a norma fundamental dos

ordenamentos jurídicos, em geral, trazem em si um ideal de autodeterminação

individual e social. Esta autodeterminação exige uma disposição histórico-temporal

que proporcione simetria entre o passado e o futuro do estabelecimento da ordem

jurídica, o que, segundo o autor, “acontece raramente e é, então, frágil” (KIRSTE,

2003, p. 44). Como solução, o autor tenta estabelecer, no lugar desta

autodeterminação, a determinação através de uma norma que, por meio de

“preâmbulos” (KIRSTE, 2003, p. 49) absorve as determinações do passado e,

através de “regulamentações vinculantes”, resolve as incertezas do futuro (KIRSTE,

2003, p. 44). Isso porém não soluciona o problema da simetria, visto que passado e

futuro continuam sem equivalência e, além disso, cria outro problema, o do infinito

regresso no fundamento de validade normativo, assim descrito nas palavras do

autor:

A validade de uma norma depende de sua concordância com uma norma de competência e da correspondente norma de procedimento. Isso acontece igualmente com as próprias regras de modificação. Assim, essa necessidade normativa demandaria para cada norma jurídica uma norma de modificação, aí incluída a própria regra de modificação como norma jurídica. Expresso em termos temporais: se o estabelecimento de uma assimetria temporal (“temporalização do direito”) exige o estabelecimento prévio de outra assimetria temporal para valer como direito, então não haveria início do direito e, por isso, não haveria, absolutamente, o direito. Já que existe o direito, contudo, tem que haver um início. Esse é o problema que as constituições têm que resolver. (KIRSTE, 2003, p. 49)

No decorrer do texto, Kirste busca argumentos das mais diversas fontes para

a tentativa de solução do problema, como a questão dos ‘preâmbulos’, a suposição

de um καιρός (kairós) consubstanciado no ato constituinte, ou de uma άρχή (arché)

e até mesmo o pronunciamento de uma invocatio Dei ou nominatio Dei para o

projeto constitucional.275 Contra esses argumentos, demonstra a existência de

“aporias e paradoxos” (KIRSTE, p. 43) que os limitam ou invalidam. Entrementes,

apesar de sopesar todos os argumentos acima, Kirste não consigna a proposta

metafísica de Kant nem uma possível contradição que pudesse conter numa teoria

dessa natureza.

275 Estes debates, dada a extensão, não têm viabilidade de discussão no presente estudo.

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De fato, parece correta a perspectiva de que a obra de Kant pode solucionar

essas questões fundamentais do direito, uma vez que seus argumentos são

coerentes e obtidos através de um método dotado de evidência, certeza e clareza276.

Visando à demonstração dessa possibilidade, primeiramente deve ser salientada a

possível solução do problema da determinação. Em Kant, o direito tem sua origem a

priori e, conforme explicitado anteriormente, decorre da idéia de liberdade que é uma

espécie de causalidade e, por isso, acolhe em si a característica da autolegislação.

Isto resulta, no plano inteligível, na vontade pura e no plano sensível, no direito

como meio de proporcionar a coexistência destas liberdades. Em Kant, a

autodeterminação é propriedade essencial do sujeito que, em sociedade, passa a

produzir suas leis, através de um procedimento discursivo espelhado em uma

situação ideal277.

Em relação à questão da assimetria temporal, na fundamentação kantiana a

mesma não ocorre, em sendo a concepção do direito, transcendental, isto é, não

existem as condições de espaço e tempo na formulação do princípio fundamental do

direito, logo, nem o passado ou futuro da fundação sensível do direito merecem ser

considerados.

Enfim, o problema do regresso infinito do fundamento em Kant também é, em

tese, resolvido pela idéia da liberdade. De fato, acima da legislação escrita, o sujeito

concebe o direito, que se funda no seu princípio universal, deduzido da liberdade.

Essa idéia, cuja realidade Kant percebe na lei moral, determina que o ser racional

tenha uma causalidade própria que o faz, além de agir mediante a representação

das leis, se dar a sua própria lei - autolegislação.

Neste meio tempo este argumento leva a um equívoco, que é a necessária

tendência pela busca do conhecimento da natureza dessa causalidade. Assim

sendo, poder-se-ia argumentar, Kant concede um fundamento inicial para o direito,

cujas propriedades são demonstradas. Entretanto, não fornece nenhuma informação

276 De fato, a proposta inicial de Kant é a investigação dos limites e possibilidades do conhecimento, o que o leva a elaborar o método crítico, caracterizado pela autonomia epistêmica. 277 Conforme anteriormente explicitado, alguns estudiosos de Kant admitem que a situação do discurso já se encontra pressuposta na obra deste autor, apesar de o mesmo não a desenvolver teoricamente. Esse é o caso de Gomes (2004). Sobre isto pode ser dito que somente é possível, em Kant, se for considerada a questão da suspensão do juízo, de modo que, tanto na concepção da moral, quanto do direito, Kant pressupõe um diálogo do sujeito consigo mesmo em relação a terceiras pessoas. Neste passo, o diálogo seria travado entre o homem como sujeito somente inteligível e o homem como sujeito racional afetado pela sensibilidade. Entretanto esse diálogo interno não possibilita, em um primeiro momento, a participação dos terceiros, sendo que a responsabilidade pelo outro é individual e subjetiva.

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sobre a origem ou a possível natureza dessa causalidade, deixando, assim, o

problema do infinito regresso sem solução.

Contudo, parece satisfatória a explicação de que a liberdade, como conceito

metafísico do qual se origina o direito, seja uma idéia da qual temos que nos

contentar em conhecer apenas os seus caracteres. A epistemologia kantiana leva à

conclusão de que nada pode ser conhecido acima da possibilidade da liberdade, que

é um plano que ultrapassa os limites da razão humana. Assim, como idéia

decorrente da idéia de liberdade, o direito tem, pois, um valor regulador das ações

humanas, não ampliando o que pode ser conhecido pela experiência, mas

possibilitando o máximo conhecimento desta. Por outro lado, adentrando também na

conclusão, o direito tem um valor constitutivo na medida em que amplia o

conhecimento fenomênico, trazendo ao mundo sensível uma idéia que se constitui

como somente inteligível, o que, contudo, não acontece em todos os casos, pois

que, em sua produção, nem sempre o direito é formulado de acordo com leis

universais.

Por conseguinte, sobre o direito – assim como sobre a ética – só podemos

conhecer sua possibilidade de existência prática no mundo dos fenômenos. Porém,

sua fundamentação não pode ultrapassar a idéia de liberdade. Em suma, a

fundamentação metafísica do direito em Kant, se não resolve o problema da

regressão infinita, ao menos deixa vislumbrar os limites e possibilidades sob os

quais o ser racional pode se arriscar nessa tentativa.

E, apropriando-se das palavras de Gomes e Merle: “para responder à objeção

daqueles que afirmam não ter a teoria de Kant resolvido adequadamente todos os

problemas que ela própria identifica, podemos formular a seguinte pergunta: mas,

quem os resolve?” (GOMES; MERLE , P. 178)

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

Mais importante que a chegada é o caminho. Na filosofia aristotélica o

caminho era tão importante quanto o fim. O Τέλος (telos), somente era discernido

através do caminho correto (as virtudes). Com o advento da modernidade e com a

tendência constante à eficiência e ao pragmatismo, as teorias jurídicas passaram a

avaliar o direito como um fim dado, para o qual se deve buscar o caminho numa

estrita relação de fim-meio. No entanto, o instrumentalismo não resolve todos os

problemas que decorrem da razão, sobretudo quando se trata de um meio tão

humano quanto o direito.

Kant não se satisfez com a ordem de pensamento racional dogmática, o que

o levou a pensar, antes dos seus objetos – a moral e o direito – o caminho correto

para estudá-los. Assim, criou um método baseado em sistematicidade e

racionalidade e com preocupação permanente de definir as possibilidades e

limitações do conhecimento obtido na investigação.

O presente trabalho buscou, mediante um exame diligente das obras de Kant,

pôr em evidência esse caminho, esse procedimento metodológico, com o intuito de,

antes de definir a ética ou o direito, conhecer a maneira como fazê-lo. E partindo da

proposta kantiana de ‘suspender o juízo’, buscou trilhar nos debates o mesmo

percurso que este autor fez para desaguar no que representa a ética e o direito para

o ser racional. Assim, foi feita uma análise detalhada de como se formula o

pensamento metafísico através da suspensão das faculdades de uso empírico,

culminando com uma formulação racional pura do direito, fundamentado e

decorrente da idéia de liberdade.

Em uma primeira ocasião, foram expostos os traços fundamentais da

Metafísica de Kant, a origem de seu método, bem como esclarecimentos sobre a

tarefa de se suspender o juízo. Para tanto, debateu-se sobre as faculdades do

sujeito humano, bem como sobre seus papéis na construção do conhecimento. Com

isso, concluiu-se que a suspensão do juízo é o principal instrumento do método

transcendental, indispensável à realização da ‘crítica’ – entendida como a ‘sujeição

da razão ao tribunal da razão’. Por certo que é este o único método capaz de

evidenciar os limites e possibilidades do conhecimento humano, viabilizando a

certeza das conclusões filosóficas e, sobretudo, daquilo que não é dado pela

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experiência. Assim, constatou-se que, dentro da noção fundamental do direito, faz-

se indubitável a base metafísica, peculiarmente na delimitação de sua origem e na

sua caracterização como elemento do humano. Essa raiz comum na Metafísica faz

com que direito e moral guardem características em comum, o que leva os dois

contextos a uma interdependência recíproca.

Definido o pano de fundo para a teoria da justiça kantiana, foi apreciado o

método usado pelo autor na concepção da liberdade e, a partir desta, a construção

da moral e do direito, tudo com foco na questão da suspensão do juízo.

Demonstrou-se que Kant segue o método combinado de análise e síntese,

anteriormente utilizado por Sir Isaac Newton nas investigações da Matemática. No

contexto da Metafísica dos Costumes, defendeu-se que o autor faz uma análise na

Crítica da razão pura, regredindo aos fundamentos primeiros do conhecimento e que

seus resultados são utilizados, em um segundo momento, na Crítica da razão

prática, onde se elabora uma síntese, uma composição da ética e do direito a partir

da idéia pura da liberdade. Sob a perspectiva de alicerçamento de sua teoria, ainda

pôde ser visto que a Fundamentação da Metafísica dos Costumes procurou

identificar o elemento fenomênico que corresponderia ao efeito empírico possível da

moralidade – anteriormente constatada como fato a priori da razão pura – o que

atestaria sua possibilidade no mundo sensível, assim como evidenciaria a

possibilidade da liberdade como postulado das ações do ser racional no mundo dos

fenômenos. Para tanto, em relação ao método, nessa obra Kant fez o movimento de

análise e síntese de maneira completa, partindo da noção vulgar de boa vontade em

direção à liberdade e retornando rumo à moralidade como a manifestação da

liberdade na vontade, expressa através do imperativo categórico. Encerra o tema

com os resultados no mundo sensível, especialmente a questão da eterna dialética

entre as leis severas da razão pura e os arrazoados da experiência.

Neste ponto, foi encontrada a base de impulso para as principais conclusões

do trabalho. Ficou claro que, no nível de fundamentação e de origem do direito, sua

base é essencialmente metafísica. Entretanto, diante da oposição daqueles

direcionamentos da sensibilidade ao que se manifesta como um dever inteligível,

tornou-se imperativa uma seqüência ao direito pensado a priori de modo que, no

âmbito de elaboração do ordenamento jurídico, é exigida, ainda, a consideração de

elementos empíricos, peculiarmente dos que ressaltem o caráter educativo e

costumeiro da ética e do direito. Nisso, foi demonstrado, também, que o direito é

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parte essencial da caracterização humana; e que, mais do que a ética, evidencia o

ser humano como o ser participante dos dois mundos – sensível e inteligível – e que

possui a faculdade prática de dirigir suas ações independentemente de seus

instintos animais dando, assim, início a uma seqüência de acontecimentos naturais

cuja responsabilidade é individual e subjetiva.

O homem é um ser livre. E o homem é um ser que vive em sociedade. Logo,

o homem é um ser do direito. Nesta asserção, ambas as premissas são dotadas de

certeza. E, na filosofia prática, o juízo resultante é indubitável pois, mais que um

instrumento de regulação de liberdades externas o direito é, em Kant, a própria

evidência da natureza racional humana. É a evidência da possibilidade da liberdade

transcendental de cada individuo e o meio de preservação das liberdades subjetivas

de todos, inclusive na dimensão da moralidade.

Enfim, estando corretas estas implicações, agora o direito pode ser pensado

sob o panorama pós-metafísico, o que a teoria habermasiana do discurso,

evidentemente que com suas limitações, tenta fazer magistralmente. É desta

maneira que se constrói o modelo do Estado Democrático de Direito, através de uma

essencial fundamentação metafísica complementada pelo que Kant denomina ‘a

parte empírica’ da teoria dos costumes.

De fato, resta correto que o direito tem uma parte empírica e uma metafísica e

que uma não perdura sem a outra pelo fato de o homem ser um cidadão de dois

mundos. Em suma, pode ser afirmado – parodiando Kant – que o direito empírico

sem o metafísico não passa de uma ‘intuição cega’; e, por sua vez, o direito puro

sem o material da sensibilidade não passa de um conceito vazio.

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