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A tal polivalência: interface do conhecimento ou especificidade?
Carlos Cartaxo
Toda ação de banimento merece, vez por outra, um olhar revisionista
como se fosse um retorno a um museu, para que além de naturalmente
vermos, pudéssemos enxergar as peças com outros olhos. É dessa forma que
hoje olho a tão combatida polivalência no ensino de arte. Nesse novo olhar vejo
outra polivalência. O repensar da polivalência no ensino de arte é o mesmo que
repensar o conceito de arte. A concepção de arte como expressão de
representação está sendo ultrapassada velozmente, através de trabalhos que
expressam ironia com o intuito de incomodar e provocar uma revisão dos
conceitos vigentes.
É claro que voltar a falar em polivalência no ensino de arte é se expor à
fogueira da inquisição, porque nas diversas áreas do conhecimento ainda
existe um conceito dogmático de verdade, que se dito como verdadeiro, não
interessa o contexto, tem-se que aceitá-lo como verdadeiro e ponto final!
Resistente a dogmas e embasado na contextualização desse início de século
XXI, levanto o debate para arguir sobre a tal polivalência. A tão rechaçada
polivalência que, embora renegada por muitos pensadores do ensino da
arte, se mantém viva através de expressões artísticas híbridas e tem dado
contribuições para com a qualidade do ensino nessa área.
Não há novidade alguma em afirmamos que a arte é plural porque é
uma expressão humana e o ser humano é plural por natureza. Se arte é o
resultado de uma expressão humana em um determinado contexto, a
polivalência é um procedimento múltiplo que abrange várias áreas.
A polivalência foi excluída, pelo menos teoricamente, do exercício da
arte educação como um mau, uma prática nefasta à educação. Essa rejeição
nos trouxe a figura do especialista. Aquele que conhece apenas uma área de
conhecimento, e por ilação, só pode atuar nela. Só que o ser especialista é um
ser isolado e no contexto pós-moderno em que vivemos, é exigida a ampliação
do conhecimento, uma prática rizomática do saber, o que não comporta esse
tratamento que limita as possibilidades de intercâmbio e intersecção de
conhecimento.
É inegável que o projeto da modernidade instituiu a especialização e
criou um superespecialista (Coelho, 1995:106), o tecnocrata, o político
profissional, o gênio de uma única área do conhecimento, o exímio
conhecedor, o Deus da sabedoria.
Muita gente treme nas bases, fecha a expressão facial e dá às costas só
ao ouvir falar em polivalência no ensino de arte. Eu, felizmente, penso
diferente, e por isso estou fora desse grupo. Condenar a polivalência,
simplesmente, porque defende a especificidade da arte por área, é ter uma
visão estreita das possibilidades que a arte permite e que na prática acontece.
Esse pensamento da formação específica foi defendido pela reforma
educacional brasileira imposto pelo regime militar, seguindo a cartilha norte-
americana do tecnicismo. Esse pensamento tem uma estreita relação com o
projeto da modernidade que instituiu a especialização e, em torno desta, a
figura do superespecialista (Coelho, 1995).
A questão etimológica
Polivalência é uma palavra rica. Sua característica de oferecer diversas
possibilidades de ação a faz plural. Ser polivalente é ser versátil por natureza.
Não obstante sua compreensão óbvia, a questão não é apenas lexical. Sua
significação vai muito além do que se rotulou no universo do ensino da arte. A
questão abordada aqui não se pauta apenas na nomenclatura. A denominação
é uma questão simples de fácil superação e compreensão ou de aceitação. A
problemática reside no fator ideológico. O debate não pode ser uma questão
apenas semântica, até porque o modelo de educação com que se
trabalha pode ser um fator que exige ou não a polivalência no ensino de arte.
Por exemplo: há pintores que trabalham com luz como sendo um elemento
importante na sua obra, assim como há diretores de teatro que também o
fazem. Da mesma forma há escultores que trabalham com cenários
paisagísticos. De maneira que essa intersecção de áreas significa
multiplicidade de conhecimento, que resulta em experimentos e novas opções
de trabalho.
O teatro é um bom caso para avaliarmos o conceito de polivalência.
Recentemente conheci um rapaz que se apresentou como sendo artista de
teatro. Atua como ator e, de forma passageira, como diretor, mas a atividade
que o identifica é a cenografia. Pelas fotos do trabalho do citado rapaz, tive que
reconhecê-lo como um excelente artista plástico. Esse cidadão é um artista
polivalente. Para algumas pessoas é um "louco", para outros um "arrogante",
para mim é simplesmente um artista. Um artista que tem conhecimento e
competência para trabalhar com várias expressões artísticas.
Organizações do terceiro setor também já romperam com essa noção
limitadora de polivalência. Vejamos a programação do Itaú cultural:
Rádio, dança e teatro: dá para misturar?
Esse foi o desafio que lançamos a artistas de várias origens − músicos,
bailarinos, atores, diretores, poetas e coreógrafos. O resultado é Em Cena
Sonora, nova série da Rádio Itaú Cultural, com programas experimentais que
misturam artes cênicas com peças sonoras.
Com diferentes abordagens, os quatro programas sugerem imagens,
movimentos e encenações que você ouve ou baixa para ouvir onde quiser.
Confira!
Em Cena Sonora é a nova série da Rádio Itaú Cultural, criado pelo
curador Ricardo Carioba, com programas experimentais que misturam artes
cênicas com peças de áudio, voltados para artistas de formação variadas -
músicos, bailarinos, atores, diretores, poetas, coreógrafos. É a produção de
uma paisagem sonora que possibilite diálogos com a dança ou com a
linguagem teatral. Os resultados foram quatro programas que, por diferentes
abordagens, sugerem imagens, movimentos e encenações que você ouve ou
pode baixar para ouvir onde quiser através da página.i
O III Congreso de Educación de las Artes Visuales, organizado pelo
Colégio das principais universidades da Catalúnia, Espanha, para acontecer de
3 a 5 setembro de 2009, tem como tema: Por um diálogo entre as artes, é outro
exemplo de como as expressões artísticas estão em uma reta de sintonia.
Contextualizar é preciso.
Nas diversas fases porque tem passado o capitalismo o termo
polivalência tem tido sentidos e usos diferentes. Por muito tempo ser
polivalente era ser eficiente, conhecedor de muito fazeres, potencial concreto
de informações. Em outro momento, ser polivalente significou ser concentrador.
Em outro, passou a ter a conotação ideológica de ser explorado. Agora,
proponho a contextualização da arte através da concomitância de expressões
para podermos acompanhar a condição pós-moderna a qual estamos
vivenciando nesse início do século XXI.
Na prática estamos saindo do tecnicismo, ou seja, do universo
específico, para o conhecimento plural, ou melhor, polivalente. Possivelmente
voltando ao Sistema de Arte Antigo para ultrapassarmos o Sistema Moderno de
Belas Artes, e então chegarmos a um terceiro sistema que está brotando
(Shiner, 2004).
Esse tecnicismo, que não desgruda da educação, é a orientação para
a especialidade que a modernidade implantou na sociedade com o objetivo de
restringir o conhecimento a poucos, o tornando exclusivo. Há que se pensar
que esse especifismo está intrinsecamente relacionado com a exclusividade do
conhecimento, procedimento moderno muito usado no desenvolvimento
industrial para a produção em série por F. W. Taylor (Linhart, 1983). Esse
caminho também foi adotado por Ford na produção em série de automóveis no
início do século XX. Por muitos anos o técnico especialista foi considerado a
metodologia exemplar simbólica do capitalismo.
Como forma de resistência, a própria arte se encarregou de contestar
esse controle de conhecimento que escravizava o trabalho em torno de uma
única área. No caso, me refiro ao filme "Tempos modernos" de Charles
Chaplin. O próprio Chaplin foi exemplo de um artista polivalente. Foi um grande
ator que conhecia de direção, de literatura, de música, de artes visuais, de
gestão empresarial, de construção. Essa formação polivalente só enriqueceu o
seu trabalho e contribuiu para a consolidação de sua obra. Chaplin identificava
os problemas sociais e os tratava ludicamente através da arte, transitando por
vários campos de conhecimento. Ele viveu e trabalhou em pleno modernismo
no século XX, mas não se rendeu a estratégia moderna da especificidade.
Chaplin foi além do seu mundo e só o foi porque tinha conhecimento plural com
trânsito rizomático por várias áreas do conhecimento.
A polivalência pode ser enfocada por vários ângulos, por exemplo: 1)
Enquanto prática trabalhista; 2) Enquanto ação profissional; 3) E enquanto
domínio de conteúdo.
Quando nos referimos à prática trabalhista, a polivalência faz parte de
um momento histórico em que a Educação Artística estava sendo implantada
no Brasil. O trabalho do professor de arte estava em fase de solidificação e os
gestores e empresários da educação, de que o professor de arte deveria atuar
nos vários campos da arte. Esse conveniente, em alguns casos, se dava por
desconhecimento. Em outros, era mera exploração de mão-de-obra, onde um
profissional “animador cultural”.
Enquanto ação profissional o foco da polivalência é para o profissional
de formação multicultural e visão plural. Nesse sentido, esse profissional é
muito bem visto porque é conhecedor de várias expressões artísticas e tem
pluralidade na formação cultural, artística e intelectual.
Quando focada pelo conteúdo, a polivalência se reporta a formação, que
pode ser através de uma habilitação em uma expressão artística, mas com
interface multicultural ou com uma habilitação, mas com foco especifista. Há
também casos de professores que têm mais de uma habilitação ou pós-
graduação em área correlata.
Em qualquer desses casos é cauteloso ter atenção quanto à formação
no que concerne a conhecimento e informação adquiridos que podem conduzir
a figura do gênio individualista que é deveras questionado quando se trata de
trabalhos coletivos, como por exemplo, a aprendizagem na escola (Demo
2009).
Pensando a partir do conhecimento sobre ensino de arte foco os
métodos: 1) comparativo de análise de obra de arte de Edmund Feldman; e 2)
multipropósito de Robert Saunders, citados por Ana Mae Barbosa no seu livro
A imagem no ensino da arte. O método comparativo sugere uma análise
comparativa dos tacos de bilhar da obra Pool Parlor de Jacob Armstead
Lawrence e a possibilidade de se criar um poema a partir das linhas da obra
citada, sendo retiradas as pessoas que estão na composição (Barbosa, 1991:
45). Já o método abordagem multipropósito Saunders sugere quatro categorias
de exercícios para serem realizados para cada reprodução de obra de arte.
Exercício de: 1) ver; 2) aprendizagem; 3) extensões da aula; e 4) produção
artística. No exercício que se estende além das aulas de artes visuais é
sugerido, inclusive, improvisações dramáticas. Tudo isto poderá ser explorado
segundo o autor relacionando-se com unidades de estudo de história da arte,
mas também com estudo de língua, literatura, matemática, geometria, ecologia,
história etc (Barbosa, 1991: 52). Os dois métodos têm uma perspectiva
interdisciplinar. Embora essa tendência possa ser interpretada de forma
negativa, pois coloca a arte como sendo apenas um conteúdo integrador de
outras áreas, me dou o direito de discordar porque vejo de outra maneira, ou
seja, a arte não perde seu caráter de disciplina no contexto curricular pelo fato
de poder ser contextualizada dentro da história da humanidade com
perspectivas multidisciplinares. Ao contrário, como demonstram Katia Regina
Ashton Nunes e Estela Kaufman Fainguelernt no artigo Lygia Clark e o ensino
da matemática em que sugerem a construção de esculturas, cuja experiência
trabalha a emoção, sensibilidade e conceitos geométricos, conforme era o
desejo da artista de possibilitar que o espectador vivenciasse a experiência de
co-autor de suas obrasii.
A revolução do tempo
O nosso tempo exige quebra de paradigmas, dentre eles, o rompimento
de fronteiras do conhecimento. O limite entre um cenógrafo e um artista
plástico está em cada trabalho que é executado. O cenógrafo pode ser um
artista plástico, e este pode ser um cenógrafo. Um xilogravurista pode ser um
cordelista, e os cordelistas, geralmente são xilogravuristas. Essa
polivalência propicia um trânsito harmônico entre a literatura e as artes
plásticas. Essa prática nunca foi um divisor que fortalecesse a descriminação
de conhecimento entre essas áreas.
A necessidade de se trabalhar considerando os eixos transversais é uma
realidade. A condição pós-moderna em que estamos vivendo (Jameson, 1995)
não comporta ações tradicionais de autoritarismo pedagógico, onde o currículo
é imposto como se o conteúdo fosse uma verdade absoluta. No caso de um
trabalho pensado coletivamente e com visão pós-moderna, os professores
precisam de uma formação cultural mais ampla e atualizada (Goodson, 2000).
Essa realidade exige que o professor seja pesquisador e tenha tráfego em
diversas áreas do conhecimento sem, necessariamente, ser especialista em
todas elas. Nesse sentido faz-se necessário uma mudança epistemológica. O
sujeito educado ficou investido de uma nova classe de poder, o de governar a
si mesmo (Popkewitz, 2000: 68). Isso corresponde ao sujeito se perceber
enquanto tal, o que significa o sujeito governando a si mesmo. O mesmo pode-
se dizer quanto ao professor que sempre foi definido pelo ensino quando
deveria sê-lo pela aprendizagem. Afinal, o professor é quem mais sabe
aprender, logo, é o mais indicado para contribuir para que outros também
aprendam bem (Demo, 2009). O professor no lugar de ser um reprodutor deve
ser um autor, para isso a pesquisa é o caminho, inclusive para trabalhar com
experiências múltiplas de expressões artísticas.
Encontros e desencontros
A tão contestada polivalência tem outras vertentes que precisam ser
focadas. A performance é uma delas. De fato, a performance se enquadra
em que gênero artístico? Entra no conteúdo de artes visuais, de teatro, de
dança? A música pode ser performance? E o circo é performance? Mas, o circo
não está contemplado no ensino de arte. Então não é arte? Que arte deve
estar na escola? O que o aluno aprende quando realiza uma atividade
performática? Essas perguntas precisam ter respostas precisas para que a
performance enquanto prática pedagógica contribua na construção do
conhecimento.
A arte é uma área híbrida. De modo que permite revisões, mudanças e
quebras de paradigmas. Assistindo ao vídeo Será que é humano, encontramos
possibilidades para bons debates. O que nos é mostrado, dependendo do
ponto de vista, pode ser vídeo, teatro, dança, performance, enfim é um trabalho
visual que transcende rótulos acadêmicos. Logo, me colocando no papel do
leitor admiro a obra pelo que ela é, jamais por uma classificação que limite as
possibilidades artísticas. Esse trabalho pode ser mostrado na escola
possibilitando atividades didáticas que independem da habilitação do professor.
Como esse vídeo está disponível no Youtubeiii qualquer escola ou pessoa pode
trabalhá-lo, basta ter um computador conectado à internet.
As novas tecnologias, que não são tão novas assim, mas é uma
realidade, possibilitam novas alfabetizações, o que significa dizer que podemos
trabalham através do virtual com várias expressões artísticas sem o limite
epistemológico de uma ou outra forma de arte.
Consideração final
O importante nessa revisão do conceito de polivalência é que sejamos
críticos no sentido mais amplo possível. Se há resistência em aceitar a
denominação polivalência que se busque outro nome, que seja hibridismo,
concomitância, interface, multiculturalidade, etc. A questão é: as expressões
artísticas não acontecem, nem são criadas isoladamente, logo também não
devem ser tratadas pedagogicamente dessa forma. .
Bibliografia
Livros
BARBOSA, Ana Mae. A imagem no ensino da arte. São Paulo: Perspectiva; Porto
Alegre: Fundação IOCHP, 1991.
COELHO, Teixeira. Moderno Pós-moderno. São Paulo: Iluminuras, 1995.
DEMO, Pedro. Educação hoje : “novas” tecnologias, pressões e oportunidades. São
Paulo: Atlas, 2009.
GOODSON, Igor F. El cambio e el currículum. Barcelona: Octaedro, 2000.
JAMESON, Frederic. As marcas do visível. Rio de Janeiro: Graal. 1995.
LINHART. Robert. Lenin, os camponeses, Taylor. Rio de Janeiro: Marco Zero, 1983.
POPKEWITZ, S. Thoma e BRENNAN, Marie. (2000) El desafío de Foucault : discurso,
conocimiento y poder en la educación. Barcelona: Pomares-Corredor.
SHINER, Larry. (2004) La invención del arte: una historia cultural. Barcelona: Paidós.
Artigos
NUNES, Katia R. Ashton. FAINGUELERNT, Estela Kaufman. Lygia Clark e o ensino
de matemática. Revista Pátio. Ano XII, Nº 47, Agosto/Outubro de 2008. Porto Alegre:
Artmed. P. 32 – 34.
Sítios da internet
http://www.itaucultural.org.br/bcodeaudio2/64458_64459.mp3
http://www.youtube.com/user/carmenarrabal
i HTTP://www.itaucultural.org.br/bcodeaudio2764458_64459.mp3 ii NUNES, Katia R. Ashton. FAINGUELERNT, Estela Kaufman. Lygia Clark e o ensino de matemática. Revista Pátio. Ano XII, Nº 47, Agosto/Outubro de 2008. Porto Alegre: Artmed. P. 32 – 34. iii http://www.youtube.com/user/carmenarrabal