A tecnologia como um problema para a teoria da educação

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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS FACULDADE DE EDUCAO

TESE DE DOUTORADO

Gildemarks Costa e Silva

A TECNOLOGIA COMO UM PROBLEMA PARA A TEORIA DA EDUCAO

Campinas 2005

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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS FACULDADE DE EDUCAO

TESE DE DOUTORADO

A TECNOLOGIA COMO UM PROBLEMA PARA A TEORIA DA EDUCAOAutor: Gildemarks Costa e Silva Orientador: Slvio Ancizar Sanchez Gamboa Tese de Doutorado apresentada ao Programa de Ps-graduao em Educao da Faculdade de Educao da UNICAMP, como pr-requisito parcial para a obteno do ttulo de Doutor em Educao, por Gildemarks Costa e Silva, sob a Orientao do Professor Dr. Slvio Ancizar Sanchez Gamboa.

COMISSO JULGADORA

______________________________ ______________________________ ______________________________ ______________________________ ______________________________Campinas 2005iii

by Gildemarks Costa e Silva, 2005.

Ficha catalogrfica elaborada pela biblioteca da Faculdade de Educao/UNICAMP

Silva, Gildemarks Costa e Si38t A tecnologia como um problema para a teoria da educao /\c Gildemarks Costa e Silva. -- Campinas, SP: [s.n.], 2005. Orientador : Silvio Ancizar Sanchez Gamboa. Tese (doutorado) Universidade Estadual de Campinas, Faculdade de Educao. 1. Feenberg, Andrew. 2. Teoria crtica. 3. Tecnologia educacional. 4. Tecnologia Filosofia. I. Sanchez Gamboa, Silvio Ancizar. II. Universidade Estadual de Campinas. Faculdade de Educao. III. Ttulo. 05-187-BFE

Keywords : Feenberg, Andrew; Critical theory of technology; Critical theory; Theory of education rea de concentrao : Histria, Filosofia e Educao Titulao : Doutor em Educao Banca examinadora : Prof. Dr. Silvio Ancizar Sanchez Gamboa Prof. Dr. Joo Carlos de Freitas Arriscado Nunes Prof. Dr. Bruno Pucci; Prof. Dr. Ferdinand Rhr Prof. Dr. Ren Jos Trentin Silveira Data da defesa: 05/12/2005

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Aos meus pais. Ao meu irmo. Bel.

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AGRADECIMENTOSAo Professor Dr. Slvio Gamboa, pela amizade, estmulo e orientao deste trabalho de pesquisa;

Ao Professor Dr. Joo Arriscado Nunes, pela acolhida no Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra, bem como pela indicao de leitura dos textos de Feenberg;

Aos Professores Dr. Ren Trentin e Dr. Jos Sanfelice, pelas contribuies e sugestes fornecidas durante a banca de qualificao deste trabalho;

Aos componentes do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra, pela simptica acolhida durante o Estgio de Doutorado (Doutorado Sanduche);

A Nadir, Gi, Dorival e Rita, funcionrios da secretaria da Ps-graduao, por todo o apoio que me deram, bem como pela gentil ajuda no encaminhamento dos procedimentos burocrticos para a defesa;

Aos membros do grupo de pesquisa EPISTEDUC, pelas proveitosas discusses acadmicas;

Aos amigos Lalo, Eduardo Tadeu, Luciana, Simone, Marcelo, Rita Furtado, Teresa, Ernani, Mait e Marquinhos, sempre dispostos a uma boa conversa;

Aos colegas do Departamento de Fundamentos Scio-Filosficos da Educao, pela liberao para os estudos de doutorado;

Aos Professores Doutores Laymert Garcia, Newton Ramos-de-Oliveira, Ferdinand Rhr, Csar Nunes e Joo Francisco, pelas interessantes contribuies para a realizao deste trabalho;vii

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Coordenao de Aperfeioamento de Pessoal de Nvel Superior (CAPES), pelo apoio financeiro concedido durante a realizao do curso de Doutorado (bolsa de estgio de pesquisa para Universidade de Coimbra/Portugal; bolsa PICDTCampinas/SP);

Universidade Estadual de Campinas, especialmente a Faculdade de Educao, pela agradvel acolhida.

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A reduo do problema do progresso tecnolgico aos aspectos exclusivamente tcnicos, engenheirais,

segundo parece ser usual dizer-se agora, exatamente o que convm aos dirigentes dos centros de poder em cada fase histrica, porque os deixa sozinhos, sem concorrentes no campo da criao intelectual.

lvaro Vieira Pinto.

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RESUMOEmbora a tecnologia faa parte atualmente de poderosos processos e modalidades de ao que modelam a existncia humana, ela pouco vista como objeto de anlise terico-crtica por parte da teoria da educao. No campo pedaggico, a crena na noo de neutralidade da tecnologia cada vez mais forte. Considerando que a teoria da educao tem por finalidade o estudo de um projeto de sociedade e das maneiras pelas quais a educao pode contribuir para superar/efetivar tal projeto, a tematizao da relao entre a educao e o fenmeno tecnolgico fundamental. Assim, este trabalho, de natureza terica, tem por objetivo central questionar e compreender a crtica da tecnologia no pensamento de Andrew Feenberg, tendo como horizonte pensar a relao tecnologia e educao. Toma como referncia metodolgica a teoria enquanto reflexo crtica e procura analisar a trilogia de livros na qual Feenberg formula sua teoria crtica da tecnologia. Como concluso, evidencia que a teoria crtica da tecnologia permite, por meio do conceito de ambivalncia, as bases para se aprofundar o dilogo entre moderna tecnologia e educao. Alm disso, conclui pelo necessrio e urgente aprofundamento da condio heurstica no que se refere tematizao tecnologia-educao, pois, s assim, a teoria educacional poder ir alm do conceito de neutralidade da tecnologia que lhe peculiar.

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ABSTRACTAlthough technology is now being part of powerful processes and action modalities that model the human existence, it is not very well seen as an object of theoreticalcritic analysis by education theory. In the pedagogic field, the faith in the notion of technology neutrality is getting stronger. Considering that education theory has the purpose of studying a society project and the ways through which education can contribute to overcome/execute such project, the point concerning the relationship between education and the technological phenomenon is fundamental. Thus, this thesis, of theoretical nature, mainly aims to question and to understand the criticism of technology in accordance to Andrew Feenbergs thought, having as horizon to consider the relationship between technology and education. It takes as methodological reference the theory as critical reflection and it tries to analyze the trilogy of books in which Feenberg formulates his Critical Theory of Technology. It presents the conclusion that Critical Theory of Technology provides, through the ambivalence concept, the bases to deepen the dialogue between modern technology and education. Besides, it concludes a need for some necessary and urgent deep consideration of the heuristic condition, in relation to the field of technology-education, because, only this way, the educational theory can go beyond the its peculiar concept of tehcnology neutrality.

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SUMRIOINTRODUO 01

CAPTULO 1: DILEMAS DA RELAO TECNOLOGIA E EDUCAO 1.1 Introduo 1.2 O pedago-tecnologismo 1.2.1 Sociedade da informao e educao 1.2.2 Tecnologia e democracia 1.3 A tecno-pesquisa no campo pedaggico 1.3.1 Racionalidade moderna e racionalidade tecnolgica 1.4 O sentimento do sagrado: influncias para o educacional 1.5 Profecia auto-realizadora e totalitarismo ciberntico 1.6 Contexto histrico-social 1.6.1 Um exemplo ilustrativo: o caso da guerra 1.6.2 A relao economia, tecnologia e poltica 1.6.3 O humano no contexto das sociedades tecnolgicas 1.7 Consideraes finais 1.7.1 Abordagem terico-crtica e educao

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CAPTULO 2: INSTRUMENTALISMO, SUBSTANTIVISMO E TEORIA CRTICA 2.1 Introduo 2.2 Problematizao terica: tecnologia, tcnica e progresso 2.2.1 Tecnologia e tcnica 2.2.2 Tecnologia e progresso 2.3 A clivagem tecnofilia-tecnofobia e o problema do tecnocentrismo 2.4 Pressupostos tericos: tcnica, tecnologia e sociedade tecnolgica 2.4.1 Racionalidade tecnolgica e racionalidade poltica 2.4.2 Marcuse e a teoria crtica 2.5 Consideraes finais

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CAPTULO 3: A CRTICA DA TECNOLOGIA NO PENSAMENTO DE 145 FEENBERG 3.1 Introduo 3.2 A crtica da tecnologia e a democracia 3.3 O conceito de tecnologia ambivalente 3.3.1 O exemplo da bicicleta 3.3.2 O exemplo da via expressa em Nova York 3.4 Marcuse-Habermas por Feenberg: exerccio de imaginao 3.5 Macro e micro nos limites da crtica da tecnologia de Feenberg 3.5.1 Essncia da tecnologia 3.5.2 Instrumentalizao primria: funcionalizao 3.5.3 Instrumentalizao secundria 3.6 Consideraes finais 146 146 149 154 156 157 174 187 188 191 200

CAPTULO 4: A TEORIA CRTICA DA TECNOLOGIA E A EDUCAO 4.1 Introduo 4.2 Ambivalncia da tecnologia e o exemplo do computador 4.2.1 O modelo do consumo e o modelo da comunidade 4.3 Ambivalncia da tecnologia e racionalizao democrtica 4.3.1 A experincia com o videotexto 4.3.2 Princpios bsicos do sistema Teletel 4.4 Interfaces entre tecnologia e educao 4.5 Consideraes finais CONCLUSO REFERNCIAS BIBLIOGRAFIA

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INTRODUOA anlise social e a reflexo filosfica observaram, durante um longo perodo, uma reserva no questionamento dessa esfera [tecnologia]. Em particular, a anlise social revelou dificuldades singulares em considerar a tecnologia como uma varivel-chave nos seus esquemas de compreenso, para alm de sua mera insero em contextos sociais mais alargados, ou em proceder a uma ateno crtica sistemtica, contrastando com sua atitude para com outros campos - religioso, econmico, estatal, organizacional etc. (Dilemas da Civilizao Tecnolgica. Herminio Martins).

Nesta pesquisa, de natureza terica, tem-se por objetivo central questionar e compreender a crtica da tecnologia no pensamento do filsofo americano Andrew Lewis Feenberg, tendo como horizonte pensar a relao tecnologia e educao. Procura-se, com isso, contribuir para a superao do problema em especial no campo educacional do tecnocentrismo, que significa a visualizao da tecnologia como um destino e no como uma possibilidade (a cega idolatrao ou a irracional negao do fenmeno tecnolgico). No sem razo, portanto, que a tecnologia, embora seja parte constituinte de poderosos processos e modalidades de ao que modelam a existncia humana (FEENBERG, 1991; MARTINS, 1996, 2003), pouco vista como objeto de anlise terico-crtica por parte das humanidades (FEENBERG, 1991, 2001) e da teoria da educao (CROCHK, 2003). Destaca-se que a crtica da sociedade deveria implicar, tambm, a crtica dos instrumentos tcnicos, considerando-se estes ltimos1

representantes das relaes dos homens com a natureza e dos homens entre si, em determinado momento histrico (CROCHIK, 2003, p. 99). A hiptese central que norteia este trabalho que a teoria crtica da tecnologia de Feenberg propicia as bases para se aprofundar o dilogo entre moderna tecnologia e educao. Alm disso, reafirma-se que a tecnologia pode ser considerada como um elemento chave na compreenso da sociedade moderna e, portanto, a compreenso dela no pode se reduzir dimenso instrumental do fenmeno, o que exige uma abordagem terico-crtica ao problema por parte da teoria da educao. A preocupao com o tema da tecnologia no recente. O fundamental, porm, que, embora alvo de preocupao h alguns anos, a questo da tecnologia ingressa no sculo XXI como tema merecedor de reflexes, contestaes, provocaes; um tema que continua inquietante. O termo provocao no est evidentemente destitudo de sentido nesse contexto, pois s os que esto seguros na defesa de que o atual desenvolvimento tecnolgico no deve ser questionado que se sentem provocados por reflexes que procuram aprofundar os caminhos desse desenvolvimento; e, como nota Heidegger (2001), s os que esto seguros de sua cincia que se sentem incomodados com a reflexo que trilha os caminhos do pensamento livre. De fato, a tecnologia um dos principais problemas tericos e prticos do atual sculo. Da Engenharia Sociologia da Cincia, da Histria Biotecnologia, da Antropologia aos Estudos Sociais da Cincia, da Fsica/Qumica/Matemtica Pedagogia/Psicologia/Economia, passando pelas Cincias da Computao, ecoam questes que envolvem a condio tecnolgica. No s! O tema no se restringe ao universo acadmico e um observador mais estimulado no ter dificuldade de encontrar nas transmisses televisivas, nos jornais, nos mercados, nas praas, nos dilogos do cotidiano, elementos tericos problematizadores da referida temtica. No caso especfico das Cincias Humanas, a tecnologia tem sido temtica recorrente. Para Sterne (2003), se as Cincias Humanas passaram por uma virada hermenutica nos anos 1970 e 1980, ao que parece, a partir das dcadas2

de 1990 e 2000, talvez elas estejam passando por uma virada tecnolgica. Para Sterne (2003) no h, porm, como fazer uma correlao direta entre as duas perspectivas, uma vez que, atualmente, as administraes das universidades tm muito mais interesse naquilo que denominam de tecnologia do que tinham na questo da hermenutica. De acordo com o autor, sobre o que se denomina tecnologia, as universidades tm criado novas faculdades, departamentos, novas iniciativas de ensino e novos temas de pesquisa. E, nesse contexto, complementa o autor, no so poucos os recursos financeiros para os pesquisadores interessados em determinadas questes da tecnologia ou, mais diretamente, para os pesquisadores interessados em efetuar determinadas aplicaes da tecnologia digital para o campo dos negcios, da pesquisa e das tarefas pedaggicas. Esse universo, aparentemente estimulante, coloca, no entanto, empecilhos para uma consistente pesquisa nas Cincias Humanas sobre questes como as caractersticas da moderna tecnologia, seus efeitos sociais, a relao cincia e tecnologia, a interao tecnologia e progresso, o conceito de ser humano na sociedade tecnolgica e, mais especificamente, a relao tecnologia e educao para mencionar alguns temas. Para Sterne (2003), as condies de financiamento e os interesses dos empresrios educacionais conduzem, muitas vezes, o estudo da tecnologia para temas e abordagens que interessam, especialmente, ao comrcio, ao domnio militar e a outros propsitos administrativos. um processo sutil, o qual Sterne se esfora para esclarecer: como exemplo, ele convida o leitor a considerar o uso e o no-uso da palavra digital como um modificador da palavra tecnologia no discurso acadmico. Para o autor, descries de empregos acadmicos e artigos em jornais tematizam a categoria da tecnologia digital nas suas relaes com a tecnologia. Assim, o autor enfatiza, caso algum esteja preocupado em estudar a tecnologia acaba por ter o seu interesse dirigido para aquilo que novo e digital. Em outro exemplo, o autor conclama ao leitor para considerar a expresso new technologies. Para ele, as to proclamadas novas tecnologias existem h dcadas, portanto, no so to novas assim. Nesse sentido, solicita a comparao entre os computadores pessoais, a idade de ouro do rdio e a idade de ouro da3

televiso, para que se perceba que os computadores pessoais esto disponveis no mercado de consumo tanto quanto os rdios estiveram nas dcadas de 1920 e 1930 e a televiso na dcada de 1950. assim que, para Sterne (2003), referir-se s novas tecnologias dentro da academia pode ser uma forma de trazer diretamente os valores do sistema para dentro da pesquisa acadmica, o que remete a questes socioculturais e de poder. No se aprofunda, de imediato, as questes socioculturais e de poder, mas convm enfatizar que, para Sterne (2003), tambm tem acontecido o inverso: as corporaes que tm grandes interesses na questo da tecnologia se apropriam de discursos que tm origem no universo acadmico. Para ele, o exemplo mais notvel tem sido daquilo que se denomina de online community (STERNE, 2003). De acordo com o autor, pesquisadores tm mostrado largo interesse na questo da comunidade online: O que ela ? Como ela trabalha? No entanto, os mesmos conceitos de comunidade online tm sido utilizado por algumas empresas para vender os seus produtos. Veja-se, por exemplo, os casos da amazon.com e ebay.com que se utilizam desse processo para os seus fins de incremento do fator lucro (STERNE, 2003). Para o autor, algo semelhante se aplica ao conceito de online identity, entre outros. Para alm dos limites e do carter apressado que a apresentao das posies de Sterne (2003) assumiram anteriormente, o essencial que tudo isso evidencia, conforme o autor, que existem muitas foras que estimulam a colocar certas questes para a tecnologia. Tais foras tendem a definir a tecnologia de certa maneira em detrimento de outras formas e a influenciar os termos do debate pblico para os programas de pesquisa. Os problemas de pesquisa podem, por um lado, parecer evidentes, conforme o pesquisador se relacione com a tecnologia como consumidor, leitor de jornais, usurio, investidor etc.; mas tambm pode a questo da tecnologia ser a afirmao de uma autonomia relativa do intelectual frente preocupao dos meios de comunicao, dos empresrios, do lucro, e colocar questes que estes no fazem, no podem fazer, ou no faro. E esta a perspectiva que neste trabalho se analisa: interroga-se a anlise terico-crtica questo da tecnologia4

no pensamento de Feenberg. Quais os principais elementos tericos da teoria crtica da tecnologia? Como ela supera o problema do tecnocentrismo? At que ponto a proposta de Feenberg permite uma abordagem terico-crtica questo da tecnologia? Com base no arcabouo terico proposto pelo autor, como possvel pensar a relao moderna tecnologia e educao? Em sntese: Quais as contribuies da teoria crtica da tecnologia para se pensar a relao tecnologia e educao? provvel que as presses institucionais e econmicas sobre os pesquisadores tenham proporcionado a ausncia de um aprofundamento sistemtico e crtico sobre a questo da tecnologia nos ltimos anos. Com efeito, a tecnologia, que parece ser um dos metarrelatos do Sculo XXI (FEENBERG, 1991), um dos grandes acordos sociais, algo de insero social cada vez maior, contraditoriamente, apresenta-se para parte da academia, dos polticos e do cidado comum como tema no merecedor de reflexo terico-crtica, ou algo que possa sofrer uma abordagem digna dos grandes temas humansticos, ou, at mesmo, algo que possa ser inserido no universo cultural. Em resumo: a tecnologia vista, por muitos, como um destino e no como uma possibilidade. Reflexes como a de Heidegger sobre no a questo do da tcnica, XXI,

contraditoriamente,

parecem

perder

flego

incio

Sculo

especialmente em determinados setores da academia. Heidegger deu tratamento especial questo da tcnica. Muito do seu trabalho consistiu em um questionamento terico desse fenmeno, em especial da questo sobre a essncia da tcnica. No pensamento do autor evidente a necessidade do estudo da essncia da tcnica, principalmente quando demonstra que a essncia dela no se reduz, de forma alguma, ao que tcnico.Por isso nunca faremos a experincia de nosso relacionamento com a essncia da tcnica enquanto concebermos e lidarmos apenas com o que tcnico, enquanto a ele nos moldarmos ou dele nos afastarmos. Haveremos sempre de ficar presos, sem liberdade, tcnica tanto na sua afirmao como na sua negao apaixonada (HEIDEGGER, 2001, p. 11).

No se pretende abordar o conceito de tcnica de Heidegger no momento, antes ilustrar como o tema foi merecedor de reflexo por aquele que 5

considerado um dos principais filsofos do sculo XX. Aproveita-se, contudo, para enfatizar que neste estudo mantm-se como norte a idia acima, ou seja, a defesa de que a compreenso da tcnica no pode se reduzir apenas a percepo instrumental do fenmeno. Saliente-se, ainda, que, para Heidegger, o

questionamento da tcnica est relacionado ao controle da tcnica. Este querer dominar torna-se tanto mais urgente quanto mais a tcnica ameaa escapar ao controle do homem (HEIDEGGER, 2001, p. 12). Ora, at mesmo um olhar mais apressado capaz de perceber que o risco da tcnica escapar ao controle humano permanece premente. Para Feenberg (1991), a questo de saber se os seres humanos devem se submeter a lgica dura da mquina ou se, ao contrrio disso, eles sero capazes de controlar a mquina o conflito que, longe de ser resolvido, clama por reflexo urgente. No h, porm, como negar que a revoluo tecnolgica existe, e, como expe Klinge (2003), as possibilidades de retorno so nulas. De fato, Feenberg (1991, 1995, 2001) aponta com preciso que posies que propem uma sada ahistrica para o problema da tecnologia e fazem apologia a um mundo no tecnolgico no se sustentam. A no existncia da possibilidade de retorno no significa, contudo, a condio de refm do desenvolvimento tecnolgico e de aceitao das escatologias tericas de um progresso contnuo da tecnologia. Neste trabalho, concorda-se com Klinge (2003), para quem as abordagens sobre a tecnologia sofrem, no momento, por excesso de tecnocentrismo (visualizar a tecnologia como um destino e no como possibilidade) e, em conseqncia disso, no encontram o caminho a seguir. O fato que tudo isto evidencia a importncia de fazer uma reflexo que aborde seriamente o fenmeno tecnolgico e suas conseqncias sobre a humanidade (KLINGE, 2003, p. 1). assim que por demais vlido o apelo de Klinge aos pesquisadores do tema: h que procurar colocar as perguntas corretas para encontrar algumas respostas que ajudem a que este desenvolvimento seja realmente para proveito do ser humano e no perca sua natureza e se volte contra o prprio homem (KLINGE, 2003, p. 1).

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O problema da tcnica [...] e de sua relao com a cultura e a Histria no se pe at o sculo XIX (SPENGLER1, 1932, p. 13), embora tenha razes profundas. Como esclarece Klinge (2003), o tema acompanha os seres humanos desde a Antigidade e possvel encontrar em Aristteles, na Metafsica, a referncia ao fato de que o ser humano vive pela arte e o raciocnio (technei kai logismos). Este conceito de techne j foi traduzido como arte, cincia e procedimento, simultaneamente constitui a base a partir da qual se desenvolveram a tcnica e a tecnologia (KLINGE, 2003, p. 2). evidente que, aps 2000 anos, os conceitos no tm o mesmo significado, porm a reflexo aristotlica ilustra que a preocupao com a tecnologia tem um longo percurso. Alis, sobre a relao tcnica-tecnologia, aceita-se, por ora, por razes de clareza uma equivalncia no fundamental da tcnica com a tecnologia, precisando, entretanto, que a tecnologia agrega um componente terico que a tcnica no tem (KLINGE 2003, p. 2). De fato, Klinge (2003) coincide sua anlise com a de Spengler (1932) ao observar que, embora o assunto tcnica aparea integrado a outras reflexes durante sculos, somente no sculo XIX o tema obtm a centralidade que detm no momento. Nesse sculo, a tcnica conquista o status de assunto independente, impe-se como problema social e exige reflexes sobre sua natureza e suas conseqncias para a humanidade. Pouco a pouco comear a constituir um fenmeno singular, isolvel do resto dos fatores da realidade (KLINGE, 2003, p. 2). O autor esclarece que possvel observar, por exemplo, a preocupao com o fenmeno da tcnica na literatura do sculo XIX, com a obra de Johann Wolfgang von Goethe (1749-1832) e, mais fortemente, na segunda metade do sculo XIX, com o gnero literrio denominado de antecipao, com as obras exemplares de Jules Verne (1828-1905) e Herbert George Wells (1866-1946). No mesmo perodo, a filosofia do sculo XIX volta-se para o problema da tecnologia: [...] o filsofo alemo Ernst Kapp (1808-1896) definir o termo filosofia da tcnica. Influenciado pelo pensamento de Hegel e de Ritter, vai desbravando oA aproximao ao pensamento de Spengler (1932) se resume a algumas constataes histricas.1

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caminho desta reflexo (KLINGE, 2003, p. 2). A filosofia atribui tecnologia uma natureza peculiar, a ponto de propor uma vertente terica especfica, a filosofia da tecnologia2, a qual est em processo de consolidao at o presente, sem desconhecer que ela possui seus cnones. A constituio histrica do problema da tecnologia, sem dvida, encontra j no incio do sculo XX o vis polmico e paradoxal que se observa at os dias atuais. No sem razo que, ao refletir sobre a tecnologia nesse sculo, Klinge (2003) o denomina de o paradoxal sculo XX. O desenvolvimento industrial que carrega consigo a polmica e consistente aliana entre cincia e tcnica instalou, efetivamente, a preocupao sobre as conseqncias do

desenvolvimento tecnolgico para o futuro da humanidade. A velocidade com que a aliana descrita se concretizou, bem como suas conseqncias desumanizantes mais imediatas, fizeram eclodir um volume de reflexes sobre o novo fenmeno, a maioria delas, para Klinge (2003), marcadamente pessimistas3. A partir de campos diversos ergueram-se vozes de alarme contra o desenvolvimento que a tcnica estava alcanando e visto como desumanizante (KLINGE, 2003, p. 3). Na literatura, passando pela sociologia at a filosofia, no foram poucos os autores, s vezes de perspectivas tericas dspares, que se voltaram para o fenmeno da tecnologia e suas conseqncias negativas para o seio da sociedade4. Na dcada de sessenta, Klinge (2003) observa o incio de uma virada nessa abordagem negativa da tecnologia. Nessa poca, a reflexo explode e sai dos trilhos prioritrios da literatura, de filosofia e da sociologia, no qual havia-se movido at esse momento (KLINGE, 2003, p. 4). Para o autor, a reflexo agora assume uma matiz popular e v-se consolidar uma perspectiva propriamente tcnica. Entusiasmados pelo desempenho cada vez mais consistente e amplo dos fenmenos tecnolgicos no seio da sociedade, os novos tericos constrem algumas apologias da bondade natural da tecnologia.Compreende-se por filosofia da tecnologia o esforo por parte dos filosfos em abordar a tecnologia como um objeto de reflexo sistemtica (MITCHAM, 1989). 3 As reflexes pessimistas se restringem a momentos especficos. No geral, as reflexes que tomam a tecnologia como fenmeno positivo constituem a tendncia dominante. 4 Para citar alguns autores: Ellul (1968), Heidegger (2001), Marcuse (1967, 1999), McLuhan (1966, 1969), Mumford (1982, 2001), Spengler (1932). 82

O fato que a compreenso da temtica da tecnologia tem sido marcada pelas divergncias sobre seus efeitos positivos e/ou negativos para a sociedade moderna. Distante de um consenso sobre a relao entre tecnologia e sociedade, as reflexes caracterizam-se, at recentemente, pela existncia de duas posies aparentemente antagnicas. O certo que a tecnologia tem uma penetrao cada vez maior no seio da sociedade moderna, de modo que no fcil negar benefcios sociais advindos do desenvolvimento tecnolgico; porm temerrio, para no dizer ingnuo, defender tal desenvolvimento como algo que tem levado a melhoria contnua para o conjunto dos seres vivos do planeta Terra. Apareceram, em decorrncia, os defensores da tecnologia que alguns tm chamado de tecnfilos os quais tomaram posio contra os detratores deste desenvolvimento qualificados de tecnfobos (KLINGE, 2003, p. 1). evidente que a dualidade corre o risco de ser considerada argumentao primria, e os qualificativos postos nos termos acima podem anular as posies intermedirias que compreendem a tecnologia em termos positivos e negativos. No se desconhece posies que, distanciando-se do fogo ardente da condenao e dos refletores, definem a tecnologia como algo que tem seus aspectos positivos e negativos. Na construo deste texto, uma significativa posio intermediria aparecer mais adiante5, inclusive como fonte de anlise. Por ora, aceita-se a dualidade, pois ela carrega a fora para expor o cerne do problema de pesquisa, o tecnocentrismo. Conforme Snow (1995), o dualismo sempre provoca receios, porm justamente por isso que ele interessante. O concreto que, como escreve Klinge (2003), a tecnologia contraditria e ambgua. Tem suas luzes e suas sombras. Klinge (2003) encontra na ambigidade a dificuldade de muitos em refletir adequadamente sobre a tecnologia e conseguir formular um diagnstico consistente sobre o que denomina sociedades tecnificadas. Reconhece, no entanto, que a academia, em especial, inicia a construo de significativos esforos para compreender o tema e no

A referncia teoria crtica da tecnologia, formulada nas obras Questioning Technology (2001), Alternative Modernity: The technical Turn in Philosophy and Social Theory (1995) e Critical Theory of Technology (1991), de Feenberg. 9

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sem motivo a existncia de vrios ensaios, artigos, livros, teses que tomam a tecnologia como foco de anlise. Enfim, no momento o debate tem os seus extremos, e no Brasil a situao no parece ser diferente da de outros pases. Santos (2002), ao refletir sobre as perspectivas que a revoluo micro-eletrnica e a Internet abrem luta pelo socialismo, apresenta, com base nas condies brasileiras, duas posies comuns sobre a relao tecnologia e sociedade: a) de um lado os que acreditam que a tecnologia neutra e est a servio do progresso, cabendo apenas democratiz-la (distribu-la no momento adequado). De certo modo, continua intacto o mito do sculo XIX, segundo o qual o progresso s traz benefcios e bem-estar, cabendo aos democratas lutar pela universalizao (SANTOS, 2002, p. 24); b) na outra perspectiva esto aqueles que parecem atribuir a tecnologia um aspecto por demais negativo, no havendo quase nenhuma perspectiva de mudana nesse mundo tecnologizado em que cincia e tcnica se aliam ao capital para colonizar todas as facetas da existncia humana. No caso especfico da educao, ela ainda no possui um corpus de conhecimentos prprios, estruturados e slidos acerca de sua relao com o fenmeno tecnolgico. Assim, em virtude da no existncia de uma tradio de reflexo sistemtica e crtica sobre a tecnologia no campo educacional que se impe que neste trabalho se concentre, num primeiro momento, por dentro da filosofia da tecnologia para, a partir da, promover o dilogo com o campo pedaggico, estabelecendo, assim, as bases para a constituio, no futuro, de uma consistente tendncia de crtica relao tecnologia-educao. Reconhecese que, no Brasil, existem significativos filsofos da educao, como Dermeval Saviani, Paulo Freire, entre outros. No entanto, a discusso da tecnologia no pensamento desses filsofos tem sido relegada a um segundo plano ou, quando no, ela aparece limitada por esquemas de interpretao de contextos scioeconmicos mais amplos. Na teoria da educao como um todo a reflexo sobre a tecnologia e suas repercusses no seio da sociedade ainda no mereceu a centralidade que o tema impe (GHIRALDELLI JR., 2003). A tecnologia aparece

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sempre tributria de outras reflexes nas obras dos filsofos da educao brasileira, embora a filosofia da tecnologia possua um corpus de conhecimentos sistematizados. Alm da pouca tradio que o tema da tecnologia encontra nas reflexes dos tericos da educao brasileira possvel observar no texto de Ghiraldelli Jr. (2003) duas posies que expressam a abordagem do tema pela teoria da educao. De um lado, h aqueles que tapam o nariz. Para estes, tudo que for relacionado a tecnologia ruim e ter sempre uma repercusso negativa no seio da sociedade. Todos ns [...], no Brasil, tendo ou no lido os frankfurtianos, uma vez que nos interessvamos por educao, olhvamos para qualquer elogio s tcnicas e tecnologias com desconfiana (GHIRALDELLI JR., 2003, p. 1). A outra perspectiva de abordagem da tecnologia a que efetua a opo pela tese da neutralidade da tecnologia: [...] as tecnologias so boas, nascem boas, mas a sociedade acadmica as corrompe (GHIRALDELLI JR., 2003, p. 11). O fato que a compreenso da tecnologia tanto por parte da filosofia da tecnologia quanto por parte da educao tem seus extremos. Alguns observam o futuro com otimismo e vislumbram mais benefcios do que problemas. Outros tm uma visualizao crtica com variados graus de reservas, inclusive alguns com acentuado pessimismo, e at rejeio (KLINGE, 2003, p. 5). Tais pensadores so tecnfilos e tecnfobos, e a tecnologia, nesse universo, acaba por ser compreendida apenas na sua dimenso instrumental; na verdade, ela compreendida como um destino e no como uma possibilidade, o que se traduz na existncia de um problema, o tecnocentrismo. Com efeito, formulaes extremas acerca da tecnologia existem h um certo tempo, porm elas, como se enfatizou, continuam a ser forte clivagem para entender o fenmeno tecnolgico. Tal reflexo compartilhada por Feenberg, para quem as teorias da tecnologia reduzem-se a dois grandes grupos: a) teoria instrumental, que a viso dominante dos atuais governos e suas polticas cientficas; b) teoria substantiva, que atribui um elevado grau de autonomia para a tecnologia.

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De acordo com Feenberg, a teoria instrumental considera que a tecnologia est subserviente a valores estabelecidos em outras esferas sociais, por exemplo, cultura e poltica, enquanto que a teoria substantiva compreende a prpria tecnologia como uma fora autnoma capaz de se sobrepor s diferentes formas de valores, anulando-os. Considerando a importncia de sua posio para este trabalho, aprofundase j nesta Introduo um pouco mais a posio do autor. Para Feenberg (1991, 1995, 2001), as teorias sobre a tecnologia podem ser diferenciadas conforme as suas respostas a duas questes bsicas: a) a tecnologia neutra ou carregada de valores? b) Pode o impacto da tecnologia ser humanamente controlado, ou ela opera de acordo com sua prpria lgica autnoma? Ou seja, a humanidade capaz de guiar o sentido histrico no qual a tecnologia est nos levando? A teoria instrumental oferece a viso mais amplamente aceita da tecnologia. Ela est baseada na idia senso comum de que tecnologias so ferramentas prontas para servir aos propsitos de seus usurios (FEENBERG6, 1991, p. 5). Para os tericos dessa viso a tecnologia neutra, o que significa, de acordo com Feenberg (1991), pelo menos quatro aspectos:

a) tecnologia como instrumentalidade pura, ou seja, ela indiferente a variedade de fins nos quais ela pode ser empregada. A neutralidade da tecnologia meramente exemplo especial da neutralidade dos meios instrumentais, que so apenas eventualmente relacionados aos valores substantivos que eles servem (FEENBERG, 1991, p. 5);

b) tecnologia como neutra politicamente, ou seja, ela indiferente a questo poltica, especialmente na sociedade moderna; fica descartada sua relao com projetos sociais sejam capitalistas ou socialistas. Um martelo um martelo, uma turbina uma turbina, e tais ferramentas so teis em qualquer contexto social (FEENBERG, 1991, p. 6);

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Sempre que aparecer texto cuja bibliografia referenciada em lngua estrangeira, a responsabilidade da traduo do autor desta tese. 12

c) tecnologia como racional e de verdade universal, ou seja, a tecnologia tem sua neutralidade atribuda a seu suposto carter racional e, como conseqncia, portadora de uma verdade universal. As proposies causais verificveis em que ela est baseada no so nem socialmente nem politicamente relativas, como as idias cientficas, mantm status cognitivo em todo contexto social concebvel (FEENBERG, 1991, p. 6);

d) Sua universalidade tambm significa que os mesmos padres de medida podem ser aplicados a ela em diferentes cenrios (FEENBERG, 1991, p. 6). Assim, pressupe-se que a tecnologia pode incrementar a produtividade em diferentes regies, pases e culturas. A tecnologia neutra porque permanece essencialmente sob as mesmas normas de eficincia em todo e qualquer contexto (FEENBERG, 1991, p. 6).

A teoria substantiva da tecnologia aceita por uma pequena minoria de pensadores, conforme explica Feenberg (1991). [Eles] argumentam que a tecnologia constitui um novo sistema cultural, que reestrutura todo o mundo social como um objeto de controle (FEENBERG, 1991, p. 7). E mais: esse sistema caracterizado por uma dinmica expansiva que ultimamente alcana todos os enclaves pr-tecnolgicos e molda toda a vida social. A instrumentalizao total , no obstante, um destino do qual no h maneira de escapar que no seja retrocedendo (FEENBERG, 1991, p. 7). At aqui, enfatizou-se a existncia de dois grandes modelos de abordagem terica da tecnologia (tecnofilia/instrumentalismo; tecnofobia/substantivismo). Tais modelos, trabalhados como extremos, induzem idia de que as duas teorias so antagnicas. De fato, h diferenas significativas entre elas, como se viu. No entanto, conforme Feenberg (1991, 1995, 2001), Bourg (1998) e Klinge (2003) entre outros autores - elas, em certa medida, coincidem-se e fazem parte de um mesmo problema, o tecnocentrismo. Essa a posio de Klinge na citao a seguir, a qual, embora longa, justifica-se a transcrio dela em virtude da sua importncia para este trabalho:13

as duas posies mencionadas sejam a instrumental ou a substantiva correm o risco de outorgar tecnologia um lugar de protagonista decisivo na anlise da sociedade e da cultura. De fato, muitos autores tm incorrido neste equvoco, esta uma caracterstica daqueles que somente vem benefcios na tecnologia tecnfilos e, inclusive, sugerem, direta ou indiretamente, um certo determinismo tecnolgico. Todavia, este vcio no cultivado apenas pelos tecnfilos. Pode tambm contagiar a aqueles que se aproximam das novas tecnologias e seus efeitos, como de fato parece estar sucedendo com no poucos. Como nos primeiros, a perspectiva dos tecnfobos coloca a tecnologia no centro de tudo, outorgando-lhe um rol determinante na vida do ser humano e sua cultura, o que nos parece excessivo. Ambas dirigem seu olhar para a utopia tecnolgica, uns para rejeit-la e outros para acelerar sua chegada. Em ambos casos a utopia tecnolgica termina sendo o tema focal, desde o qual se redefine todo o universo humano (KLINGE, 2003, p. 6).

A posio de Klinge sobre a tecnologia se aproxima da anlise de Feenberg (1991), quando, para este, a tecnologia surge, nas teorias instrumentais e teorias substantivas, como um destino. Para Feenberg (1991), embora as teorias instrumentais e substantivas tenham diferenas, elas se aproximam na atitude diante do fenmeno da tecnologia, qual seja: uma atitude de pegar ou largar. O que significa que:de um lado, se a tecnologia uma mera instrumentalidade, indiferente aos valores, ento seu design no est em questo no debate poltico, apenas a extenso e a eficincia de sua aplicao. De outro lado, se a tecnologia o veculo de uma cultura de dominao, ento ns estamos condenados a seguir seus avanos em direo a distopia ou regressar a um modo mais primitivo de vida. Em nenhum dos casos, ns podemos mud-la: em ambas teorias, a tecnologia o destino (FEENBERG, 1991, p. 8).

Seja para os instrumentalistas (tecnfilos), seja para os substantivistas (tecnfobos), a tecnologia aparece determinando os rumos dos seres humanos, ou seja, o mundo uma nave na qual no existem chances de reorientao de sua direo. A posio tecnocntrica (o tecnocentrismo) se transforma em problema na medida em que a sua existncia impede a real compreenso do fenmeno da tecnologia e de sua repercusso no seio da sociedade e da educao. O problema do tecnocentrismo, ao no colocar a questo da tecnologia em termos adequados,

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necessita ser superado: a correta aproximao ao assunto deve rejeitar as posies inspiradas por esta perspectiva tecnocntrica e buscar colocar a tecnologia em um marco mais amplo, no mbito humano [...] (KLINGE, 2003, p. 6). Para Klinge (2003), a superao do problema do tecnocentrismo no fcil, pois, na medida em que a tecnologia fica mais complexa, ela aumenta o seu poder de seduo. Apoiando-se na referncia que o escritor Arthur Clarke faz da relao entre tecnologia e magia, Klinge (2003) argumenta que a tecnologia no pode se constituir como um novo deus, pois ela fruto da inteligncia humana e deve ser vista dessa forma. Ora, no demais lembrar que, como obra dos seres humanos, carrega, portanto, os limites e possibilidades desse mesmo ser. Se os seres humanos foram capazes de criar um determinado modelo tecnolgico, eles tambm tm a capacidade de reorient-lo, refaz-lo ou anul-lo. Para Feenberg (1991, 1995, 2001), a tecnologia tem que ser inserida no universo cultural e necessrio saber quais so as possibilidades que os seres humanos possuem para intervir nesse universo cada vez mais tecnologizado: devem os seres humanos se submeter lgica spera da maquinaria ou pode a tecnologia ser melhor desenhada para servir aos seus criadores? (FEENBERG, 1991). Defende-se, ento, que a teoria crtica da tecnologia pode, ao tomar como mvel tal questo, ultrapassar as posies unilaterais das teorias instrumentais (tecnofilia) e teorias substantivas (tecnofobia) e, ao mesmo tempo, superar o problema do tecnocentrismo com a sua conseqente posio de que a tecnologia um destino. Por isso, ela tomada como objeto de anlise nesta tese. Como a tecnologia quase um fenmeno formativo no mundo atual (FEENBERG, 1991; MARTINS, 2003; KLINGE, 2003, entre outros), ela impe aos que compem a teoria da educao a necessidade urgente de refletir sobre os seus efeitos e suas possibilidades. A citao a seguir por demais interessante a esse respeito:se a racionalidade tecnolgica, que estrutura e d suporte sociedade atual nos setores da produo, pervade cada vez mais e 15

irreversivelmente o cotidiano das pessoas, as relaes sociais, e, entre elas, as relaes educacionais; se nesse processo imperativo leva consigo sua lgica funcional e intervm internamente nas aes e reaes das pessoas; como desenvolver, ento, uma reflexo terica e possibilitar formas de interveno poltico-pedaggica que estejam, ao mesmo tempo, abertas para a importncia essencial da tcnica em todos os setores da vida humana no mundo contemporneo; que ajude a formao de personalidades resistentes racionalizao instrumental progressiva das esferas da vida, em particular da educao; que promova um novo esprito e maneira de ser em relao tcnica um novo ethos perante o furor compulsivo do esprito tecnolgico? (PUCCI, 2003, p. 15). [grifo nosso].

Assim, alia-se o questionamento de Pucci (2003) s indagaes anteriores e se prope, para a educao, a tecnologia como um elemento chave para os seus esquemas de compreenso da realidade moderna. Antes de continuar, torna-se necessrio definir os termos. A tecnologia, neste texto, compreendida como uma totalidade de instrumentos, dispositivos e invenes que fazem parte de uma sociedade, era da mquina: [...] assim, ao mesmo tempo, uma forma de organizar e perpetuar (ou modificar) as relaes sociais, uma manifestao do pensamento e dos padres de comportamento dominantes, um instrumento de controle e dominao (MARCUSE, 1999, p. 73). Conforme esse conceito, a tcnica (aparato tcnico da indstria, transportes, comunicao) corresponde apenas a uma parte da tecnologia, a qual tem que ser vista como um processo social muito mais amplo (MARCUSE, 1999). Neste trabalho, a educao compreendida como uma atividade, um fenmeno social, cuja meta envolve um movimento de transformao interna de uma condio de saber a outra condio de saber mais elevada, ou ainda, compreenso do outro, de si mesmo, da realidade, da cultura acumulada, do seu presente (CHAU, 2003). E mais: a educao inseparvel do processo de formao humana, permanente (CHAU, 2003), e ainda deve proporcionar aos educandos a capacidade de compreenso e interveno na sociedade. Conseqentemente, por teoria da educao se define o processo de (re)pensar de modo normativo e projetivo a atividade educativa em referncia ao contexto social no qual ela se insere.

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O fato que, neste texto, alm de assumir como argumento a noo de meio tcnico, efetua-se a defesa da teoria da educao, mais especificamente aceita-se o conceito de teoria crtica da educao, conforme formulao de Schmied-Kowarzik (1988). Para Schmied-Kowarzik (1988), a teoria crtica da educao tem como tarefa primeira superar o problema dos modismos educacionais, ou seja, a adeso a-crtica da educao a reflexes oriundas em outras reas do conhecimento. Porm, isso no deve ser tomado como a no necessidade de dilogo entre educao e demais reas do conhecimento, ao contrrio, a afirmao da teoria da educao, que toma como o cerne a educao, vista como a possibilidade de estabelecer as bases para o dilogo entre a educao e demais campos do conhecimento que podem trazer significativas contribuies para o pensamento pedaggico. Da que, para Schmied-Kowarzik (1988), a reflexo da educao deve tambm olhar para si mesma, para sua prpria produo; e, ao visualizar a si mesma, em confronto com novas questes, dialogar com os demais campos do conhecimento. Para o autor, a construo de uma teoria crtica da educao pode contribuir significativamente para uma melhoria da qualidade das prticas pedaggicas. A posio de Schmied-Kowarzik (1988) na sua totalidade no incorporada neste trabalho; a sua concretizao da proposta de fundamentao da Pedagogia no assumida aqui, porm aceita a sua defesa de uma teoria crtica da educao, a qual deve ser de natureza crtica e propositiva. Por um lado, para ser crtica, a teoria da educao precisa considerar os determinantes histrico-sociais do fenmeno educacional, o qual, por isso mesmo, no pode ser concebido sem as relaes que lhe constituem e lhe do sentido; alm disso, no basta a teoria da educao analisar criticamente a realidade educacional, ela precisa aliar a essa compreenso um sentido de transformao dessa mesma realidade, em outras palavras, precisa estabelecer perspectivas de transformao do contexto que analisa.

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No que se refere a abordagem metodolgica da pesquisa, ela permeada pela perspectiva defendida por Mayorga (1990) a qual prev que o trabalho terico s pode se exercer no domnio de uma reflexo crtica. [...] O conceito de crtica utilizado nestas reflexes enfatiza que [...] as elaboraes tericas esto determinadas por fraturas, ambigidades e contradies internas (MAYORGA, 1990, p 10). Nesse caso, sustenta Mayorga (1990), no h teoria absolutamente verdadeira e, por isso, o trabalho da crtica a reflexo do pensamento sobre si mesmo pode visualizar problemas no explorados e ampliar a verdade a partir das rupturas e fissuras dos pensamentos existentes. Trata-se de uma lgica que ataca a reificao dos conceitos e rechaa de imediato aquela percepo equivocada do conhecimento cientfico como simples aplicao de modelos universais a situaes particulares (MAYORGA, 1990). Como enfatiza o autor, uma espcie de propedutica que tem por finalidade pensar determinados problemas de forma a evidenci-los, sem cair, ao mesmo tempo, na distoro da reduo ideolgica. Nesse contexto, ento, a reflexo proposta concretizada com base em referncias de natureza terico-histrica, num primeiro momento, para, na parte seguinte, concentrar-se nos textos da filosofia da tecnologia. Analisa-se a obra de um dos expoentes da filosofia da tecnologia americana que tem penetrao no Brasil, o professor Andrew Feenberg. Considera-se Feenberg como uma alternativa, alm de sua presena terica no contexto brasileiro, pelo fato de que ele formula uma proposta de teoria crtica da tecnologia, cuja meta apontar para um conceito ampliado de tecnologia. Entre os vrios textos de Feenberg, utilizase, de forma especial, a trilogia de livros na qual o autor formula sua teoria crtica da tecnologia, uma vez que a se apresenta uma viso geral da sua posio terica. necessrio ressaltar que, na anlise dos trs livros mencionados, identifica-se os argumentos centrais da crtica da tecnologia no pensamento do autor; observa-se que conceitos o autor utiliza e como ele articula tais conceitos s situaes da sociedade moderna na sua relao com o fenmeno tecnolgico. Nesse aprofundamento terico, identifica-se os conceitos centrais, para, na18

seqncia, visualizar como pode a relao educao-tecnologia ser pensada nesse contexto. Andrew Lewis Feenberg professor de filosofia da Universidade do Estado de San Diego (EUA) e tambm tem desenvolvido atividades junto Universidade Simon Fraser, no Canad. Foi orientando de Herbert Marcuse e autor de vrios textos, em especial de uma trilogia de livros em que toma a tecnologia como tema central: Critical Theory of Technology (1991); Alternative Modernity: the technical turn in philosophy and social theory (1995); Questioning technology (2001). essa trilogia que se toma como fonte para compreender a teoria crtica da tecnologia que o autor formula. Nesses livros, o autor tem como meta central apontar para uma aproximao crtica ao tema da tecnologia na modernidade. Parte de suas obras tem sido traduzidas para diversas lnguas, e alguns dos seus textos tm sido alvo de traduo para a lngua portuguesa. Membros do grupo de Pesquisa Teoria Crtica e Educao, da UNIMEP, por exemplo, tm realizado algumas tradues de artigos de Feenberg7. Assim, o autor tem tido uma aceitao em alguns setores da academia brasileira, tendo sido convidado para participar do Colquio Internacional Teoria Crtica e Educao, realizado em Piracicaba/SP, Brasil, no ano de 20048. Por fim, saliente-se que o autor, ao se voltar para o estudo sistemtico da tecnologia, alm de se filiar tradio da teoria crtica, procura articular parte de suas reflexes acerca da tecnologia questo da educao. Embora, esses nexos iniciais meream aprofundamentos. A teoria crtica da tecnologia de Feenberg procura superar a filosofia do ou isto, ou aquilo. Essa abordagem filosfica, para Kellner (2003d), tem marcado a filosofia e, especialmente, a filosofia da educao. De acordo com Kellner, tornase necessrio avanar o debate sobre posies unilaterais para uma teoria mais ampla que supera os extremos e, ao mesmo tempo, seja capaz de formular uma posio mais inclusiva e positiva, indicando como a tecnologia pode ser usada para a emancipao dos indivduos.

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A referncia ao Professor Dr. Newton Ramos-de-Oliveira. Feenberg no pode comparecer ao referido evento.

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A teoria crtica da tecnologia vem sendo desenvolvida por alguns autores, tais como Kellner (2003d), Feenberg (1991, 1995, 2001). Para alm das posies de tais autores, tal perspectiva dialtica considera significativamente algumas das reflexes de Marx e, especialmente, de autores neo-marxistas, tais como os da Escola de Frankfurt. No caso de Feenberg, a influncia do pensamento de Marcuse parece ser marcante. Sobre a forma como a teoria crtica da tecnologia aparece em Feenberg, Kellner enfatiza que o pensamento do autor fornece uma importante apresentao das vrias posies do debate acerca da tecnologia, capitalismo e socialismo; alm disso, corresponde a uma brilhante aplicao da tradio da teoria crtica a tais temas (KELLNER, 19919). Tambm comentando a teoria de Feenberg, Winner (1991) argumenta que ela lcida e provocativa; para ele, Feenberg explora a complexa interpenetrao de tecnologia, economia e cultura. Alm disso, a teoria crtica da tecnologia sugere criativas maneiras para controlar o julgamento da tecnologia e produzir uma sociedade humana e justa. Sobre a trilogia de livros de Feenberg, escreve Veak (2000, p. 227):Em sua trilogia de livros sobre a filosofia da tecnologia, Andrew Feenberg [...] estabeleceu uma das mais sofisticadas teorias da relao tecnologia/sociedade. [...] Feenberg demonstra vigorosamente as deficincias das teorias tradicionais sobre a tecnologia, que caracterizam a tecnologia como neutra, ou como um tipo de fora autnoma, determinista e homogeneizadora que atua sobre a sociedade. Feenberg, de acordo com Don Ihde, afirma que a tecnologia no pode nunca ser removida do seu contexto, e, portanto, no pode nunca ser neutra. O design tecnolgico inerentemente poltico. Consequentemente, a coao observada na escolha do design no alguma essncia da tecnologia, mas pode ser explicada pelo controle hegemnico do processo de design por atores privilegiados. Ele sugere que uma poltica democrtica radical de tecnologia pode contrariar esta hegemonia e abrir espao para que a modernidade seja governada a partir de dentro. O processo de escolha do design deve ser libertado atravs do que ele chama de racionalizao democrtica, onde os atores subjugados interferem no processo de design tecnolgico para moldar a tecnologia de acordo com os seus prprios fins.

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Estes comentrios de Kellner (1991) e Winner (1991) compem a contracapa do livro Critical Theory of Technology (1991) de Feenberg.

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Ainda sobre a importncia de Feenberg e sua teoria crtica da tecnologia, Thomson (2000b, p. 429) escreve que Feenberg no seu trabalho de uma dcada na teoria crtica da tecnologia se confirma como um dos lderes da filosofia da tecnologia no mundo. assim que se efetua a anlise de textos de Feenberg e de sua teoria como uma forma de ampliar e atualizar o debate sobre uma anlise sistemtica e crtico-emancipatria questo da tecnologia no campo pedaggico. A teoria crtica da tecnologia, que se apresenta como um meio termo entre as teorias do instrumentalismo e do substantivismo (tecnofilia e tecnofobia), pretende super-las, conservando contribuies de cada uma delas. A teoria crtica da tecnologia aceita o argumento das teorias substantivas de quea natureza tecnolgica mais do que a soma de ferramentas e, de fato, estrutura o mundo a despeito das intenes dos usurios. Ao escolher nossa tecnologia ns nos tornamos o que ns somos, o que s vezes molda as nossas escolhas futuras. O ato de escolher est agora to embutido de tecnologia que ele no pode ser entendido como um uso livre no sentido pretendido pela teoria instrumental (FEENBERG, 1991, p. 14).

Feenberg (1991), no entanto, enfatiza que a teoria crtica da tecnologia no aceita a posio do substantivismo de que a modernidade est exemplificada uma vez por todas pelo tipo de lgica fragmentada, autoritria e orientada para o consumo conforme se observa no Ocidente (FEENBERG, 1991, p. 14). Em relao ao instrumentalismo-determinismo, a teoria crtica da tecnologia rejeita a tese da neutralidade da tcnica, pois os valores e interesses das elites e classes dominantes esto instalados nas prprias mquinas e no formato dos procedimentos racionais, at mesmo antes de lhe serem atribudos um objetivo (FEENBERG, 1991, p. 14); porm concorda com o instrumentalismo ao rejeitar o fatalismo do substantivismo. [O fatalismo] no desapareceu face ao triunfo da tecnologia, nem vai pedir por uma renovao do esprito humano a partir de um domnio alm da sociedade tal como a religio ou a natureza (FEENBERG, 1991, p. 14). Em sntese, e essa parece ser a sada da teoria crtica ao problema do tecnocentrismo e do determinismo tecnolgico: a tecnologia um processo21

ambivalente. Como acentua o autor, essa ambivalncia da tecnologia distinguida da neutralidade pelo papel a ela atribuda pelos valores sociais no seu prprio formato, e no meramente o uso, de sistemas tcnicos. Nesta viso, a tecnologia no um destino mas um espao de disputas (FEENBERG, 1991, p. 14). Alm da importncia especfica que a posio de Feenberg assume em relao discusso tecnologia-sociedade, conforme se evidenciou antes, a conotao que a teoria crtica da tecnologia assume nos seus trabalhos interessa pelo fato de que o autor tem uma preocupao em articular essa teoria com a questo educacional; embora, o esforo de Feenberg em relao educao possa ser ampliado. Feenberg, conforme ele prprio expe, um dos fundadores da educao online, bem como apresenta preocupao em articular tecnologia e educao em vrios de seus escritos. Para ele, o debate posto pelas teorias do instrumentalismo e do substantivismo se faz presente no campo educacional na existncia de duas formas de compreender a relao tecnologia e educao. De um lado, os otimistas que, imbudos do esforo em incrementar a produo e aumentar os lucros, vem na tecnologia educacional a possibilidade de reduzir custos com o processo de formao humana. Por outro lado, h os pessimistas que no visualizam possibilidades de articulao entre tecnologia e educao, pois a tecnologia eliminar sempre os elementos pedaggicos fundamentais ao processo de humanizao plena, como, por exemplo, o dilogo. assim que o autor argumenta que a teoria crtica da tecnologia pode contribuir para uma terceira perspectiva de relao tecnologia-educao, na qual a tecnologia surge no como um destino, mas como uma possibilidade para os seres humanos. No exemplo especfico do princpio pedaggico do dilogo, tratase de saber, por exemplo, quais as possibilidades da tecnologia em promov-lo ou neg-lo; em suma, o campo educacional pode encontrar na teoria crtica da tecnologia uma alternativa que permita as bases para uma adequada relao entre tecnologia e educao.

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No que concerne estrutura de apresentao da anlise, este texto composto de quatro captulos, conforme descrio. No primeiro captulo, que tem por ttulo Dilemas da relao tecnologia e educao, tematiza-se a necessidade e urgncia de uma crtica da tecnologia para alm da instrumentalidade; pontua-se alguns dos problemas da relao tecnologia e sociedade, porm o foco se concentra nos principais dilemas da relao tecnologia e educao. O segundo captulo, cujo ttulo Instrumentalismo, Substantivismo e Teoria Crtica, remete ao esforo de identificar as principais formas de compreenso dos dilemas da relao tecnologia-sociedade/tecnologia-educao, de modo a categoriz-las na

classificao proposta por Feenberg (instrumentalismo, substantivismo e teoria crtica da tecnologia); no terceiro captulo, com o ttulo de A crtica da tecnologia no pensamento de Feenberg, apresenta-se alguns dos conceitos centrais da teoria crtica da tecnologia do autor, no esforo especial de delinear a estrutura e fundamentao de sua proposta terica. Por fim, no quarto captulo, cujo ttulo A Teoria crtica da tecnologia e a educao, procura-se pensar, a partir do conceito de ambivalncia da tecnologia proposto por Feenberg, a relao tecnologia e educao. Por fim, enfatiza-se que o estudo evidenciado nesta tese, embora mantenha interao ativa com a filosofia e a teoria crtica, no se insere nas referidas tradies de pesquisas desses campos. Antes, uma tese em teoria da educao que busca aproximar os estudos educacionais da tradio de pesquisa que toma a tecnologia como o foco de suas investigaes. Alm disso, embora Feenberg assuma a inspirao em autores da Escola de Frankfurt, neste texto, ele analisado muito mais pelo fato de pertencer ao movimento de crtica da tecnologia do que pela sua fidelidade ou no aos autores da referida Escola.

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CAPTULO 1

DILEMAS DA RELAO TECNOLOGIA E EDUCAO

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1.1 Introduo

A tecnologia invade progressivamente a vida dos homens em todas as suas configuraes: do interior de sua casa, passando pelas ruas de sua cidade, no contato direto com os alunos em uma sala de aula, l esto os aparelhos tecnolgicos a dirigir as atividades, condicionando o modo de pensar, sentir, raciocinar, relacionar as pessoas. Aceit-la plenamente significa ser um homem contemporneo de seu tempo, abrir caminhos para um futuro promissor. No integraliza-la em seu cotidiano, em sua sala de aula, pode significar o banimento mais rpido do mercado de trabalho e da vida social. No entanto, aceit-la plenamente significa, tambm, aderir aos paradoxos que a civilizao, ambgua em si mesma, lhe impinge a todo momento, como, por exemplo, ser escravo de sua prpria criao, deixar-se apagar pelo sistema que ele mesmo projetou. (Tecnologia, Cultura e Formao... ainda Auschwitz. Bruno Pucci).

Neste estudo, prope-se uma anlise da estrutura e fundamentao da crtica da tecnologia em Feenberg, tendo como horizonte pensar a relao tecnologia e educao. Alm dos aspectos mais gerais da relao tecnologia e sociedade, a relao do fenmeno tecnolgico com o campo educacional , portanto, um dos focos primordiais; por isso, explora-se neste captulo a problematizao da relao tecnologia e educao no contexto das sociedades tecnolgicas. A construo deste captulo envolve: a) problematizao da relao tecnologia-educao, conforme problemas que ela impe no domnio do ensino e da pesquisa (o pedago-tecnologismo; sociedade de informao e educao; tecnologia e democracia; a tecno-pesquisa no campo pedaggico); b) identificao das condies que limitam a superao do problema do tecnocentrismo no campo pedaggico (racionalidade moderna e racionalidade tecnolgica; o sentimento do sagrado: influncias para o educacional; profecia auto-realizadora e totalitarismo ciberntico); c) por fim, situa-se os principais problemas da relao tecnologiaeducao no contexto das sociedades tecnolgicas, as quais implicam em significativos limites para a condio humana (contexto histrico-social: efeitos sociais da tecnologia; um exemplo ilustrativo: o caso da guerra; a relao economia, tecnologia e poltica; o humano no contexto das sociedades tecnolgicas; educao e civilizao tecnolgica). Todos as trs partes e os25

tpicos acima mencionados assumem como fio condutor o problema do tecnocentrismo na sociedade e no campo pedaggico.

1.2 O pedago-tecnologismo

No campo educacional, parece que a tecnologia surge como a panacia de todos os problemas. Polticos e administradores educacionais no medem esforos em anunciar determinadas tecnologias na defesa do que denominam a sada para a crise da educao brasileira. No so poucos os seminrios acerca da relao tecnologia e educao em que o vis de uma determinada idolatria da tecnologia visvel. No necessrio muito esforo para perceber certa nfase geral sobre os benefcios da aplicao da moderna tecnologia educao e sociedade; margem para crtica dos problemas que a tecnologia traz para o humano parece no existir. No se nega a possibilidade de se reorganizar a educao a partir da insero da tecnologia na sociedade moderna. Alis, neste estudo, h um esforo de que a educao, especialmente a teorizao do educacional, prepare-se para um adequado relacionamento com sociedades cada vez mais tecnologizadas. O desacordo est com a viso de alguns polticos, administradores educacionais e tambm pensadores da educao que advogam que a tecnologia a soluo de todos os males da educao brasileira, at mesmo para reduo dos custos com o processo educacional. s vezes, h a impresso que, caso no fosse a promessa de possvel reduo de custos com o pagamento de professores, manuteno dos campi, contratao de funcionrios, compra de material didtico etc., essas pessoas no estariam entusiasmados na defesa do uso da moderna tecnologia na promoo, por exemplo, do ensino distncia1.

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A reduo do custo em si no problema, ao contrrio, desejvel; o problema quando a reduo do custo ocorre em detrimento da qualidade. 26

Tal idolatria da tecnologia por parte do pedaggico o que se denomina neste texto de otimismo pedago-tecnolgico. A seguir, apresenta-se um exemplo da verso corrente de um grande otimismo pedaggico na insero da tecnologia no campo educacional. Caso fosse possvel uma analogia, dir-se-ia mesmo que a posio em anlise uma espcie de espelho de muitas outras posies semelhantes sobre a relao tecnologia e educao na sua vertente ao tecnocentrismo. Com efeito, o texto Novas tecnologias; novas alfabetizaes: reconstruindo a educao para o novo milnio2, de Douglas Kellner (2003a), exemplar de uma verso ingnuo-otimista da relao tecnologia e educao; um espelho de vrias outras posies semelhantes que, no momento, apresentam-se no debate. Quando se enfatiza isso, a referncia tanto aos aspectos do formato da proposta tecno-educativa, quanto aos problemas que ela engendra. H reflexes de Kellner das quais se h aproximao e das quais se devedor neste texto. A sua releitura do pensamento de Marcuse pode demais consistente, e neste estudo h um respeito a um olhar cuidadoso sobre os textos iniciais de Marcuse, quando o autor apresentava uma viso menos pessimista quanto questo da tecnologia, porm sem perder a noo crtico-reflexiva. No entanto, saindo da releitura de Marcuse e entrando na formulao de sua filosofia da educao, Douglas Kellner cede por demais viso otimista da tecnologia, tornando-se ele prprio um ingnuo-otimista. assim que o seu trabalho entra nesta tese mais como um processo de atualizao das reflexes anteriores e de ilustrao de uma posio. O pressuposto de Kellner de que o mundo entra em um novo3 milnio, com uma dramtica revoluo que no deixa nada intocado; afeta a maneira de trabalhar, comunicar, usar o tempo livre etc. uma revoluo tecnolgica que est centrada no computador, na informao, na comunicao e nas tecnologias multimdias. Para ele, o primeiro estgio de uma sociedade do conhecimento e2

Traduo de New technologies/New Literacies: Reconstructing Education for the New Millennium. Apoio-me na excelente traduo do professor Newton Ramos-de-Oliveira. 3 Sempre que aparecer o adjetivo novo/nova (s) se deve ao fato de um esforo em ser fiel ao pensamento do autor. 27

da informao4, e tudo isso traz para a educao um papel central no mundo atual. A Grande Transformao5 traz desafios para os educadores, exigindo novos princpios pedaggicos, novas tecnologias criativas para a reestruturao da educao, para que assim ela se adeqe ao novo modelo de sociedade e s mudanas tecnolgicas. Tenho como pressuposto que as novas tecnologias esto alterando todos os aspectos de nossa sociedade e cultura e precisamos compreend-las e utiliz-las tanto para entender, quanto para transformar nossos mundos (KELLNER, 2003a, p. 45). A defesa do autor de que os seres humanos vivem numa sociedade multicultural, proporcionada pela tecnologia, e se fazem necessrias novas modalidades de alfabetizaes, para uma melhor insero do educando no mundo. uma revoluo que tornar o computador e a Internet acessveis a todos os seres humanos. As tecnologias de comunicao esto se tornando cada vez mais acessveis para as pessoas jovens e o cidado comum, e podem ser usadas para promover a educao, o esprito democrtico, e o progresso social (KELLNER, 2003a, p. 51). Essa revoluo tecnolgica na educao a mais significativa desde a mudana do ensino baseado na oralidade para o ensino com base na imprensa e no livro. Do mesmo modo como a transio literatura impressa e cultura do livro envolveu uma dramtica transformao da educao [...] tambm a revoluo tecnolgica exige uma reestruturao superior da educao de hoje com novos currculos, pedagogia, literatura, prtica e objetivos (KELLNER, 2003a, p. 45). A reformulao se faz necessria pelo fato de que, para ele, a educao moderna est relacionada a um outro modelo de sociedade, industrial, de cidadania mnima e de democracia de representao passiva. uma educao que enfatiza a submisso autoridade, a memorizao mecnica. O autor apoiase em Paulo Freire para atribuir o conceito bancrio educao moderna, com a4

Esse conceito de sociedade do conhecimento , comumente, aliado posio otimista no uso da tecnologia. 5 Atente-se para a expresso A Grande Transformao, com masculas, pois pretende-se, ao final da descrio, relacionar a questo do sagrado com a forma como ele descreve o moderno processo tecnolgico.

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viso de que o professor o dono do saber, que depositado na cabea do aluno passivo, o que leva conformidade, subordinao e padronizao. Tais caractersticas esto se tornando obsoletas numa sociedade ps-industrial e interconectada pela rede Internet que exige novas habilidades para o posto de trabalho, participao em novos territrios poltico-sociais e interao com novas formas de cultura e de vida cotidiana (KELLNER, 2003a, p. 45). O autor centraliza sua reflexo no papel do computador e da tecnologia informacional na educao contempornea. Assim, na educao do novo milnio, argumenta Kellner, os estudantes devem aprender novas formas de alfabetizao em informtica. O que quer dizer aprender usar as tecnologias do computador para pesquisas, informaes e, ainda, fundamentalmente, identificar a cultura do computador como local com textos, espetculos, jogos e multimdia interativa. Para Kellner (2003a), a cultura do computador um espao discursivo e poltico no qual os estudantes e professores podem intervir, participar de grupos de discusso, de projetos de pesquisa, criando web sites, produzindo multimdias, e tendo novos modos de interao e aprendizagens inovadoras. A cultura do computador possibilita que indivduos participem ativamente na produo de cultura que vo da discusso de temas pblicos criao de suas prprias formas culturais (KELLNER, 2003a, p. 53/54). A aprendizagem para o uso do computador se deve ao fato de que, enfatiza Kellner, na poca presente, ele est proliferando. Essa alfabetizao para o computador deve iniciar desde a idade mais tenra, e o conceito no pode se restringir ao uso tcnico do computador. Kellner prope ampliar o conceito de alfabetizao informtica para alfabetizao para a informao e para a multimdia. Isto requer a promoo de habilidades mais sofisticadas na leitura e escrita tradicionais bem como na capacidade de dissecar criticamente formas culturais ensinadas como partes da alfabetizao crtica da mdia e da pedagogia multimdia (KELLNER, 2003a, p. 54). O conceito ampliado de alfabetizao informtica est relacionado a aprender usar computadores, acessar informaes e material educativo, usar correio eletrnico e servios de listas, construo de websites. A alfabetizao em informtica29

compreende

o

acesso

e

o

processamento de diversos tipos de informaes que abundam na chamada sociedade da informao (KELLNER, 2003a, p. 54). Para Kellner, uma importante novidade da revoluo tecnolgica est em possibilitar materiais de biblioteca e informaes em escala mundial. Para o autor, a Internet a quase biblioteca oniabrangente que Alexandre construiu no Egito, com a finalidade de conter todos os livros do mundo. Como as bibliotecas locais ainda so necessrias para retirar livros e material impresso que no existem na Internet, a alfabetizao da informao deve enfatizar o que pode e o que no pode ser encontrado na Internet. tarefa da alfabetizao em informtica e em informao aprender a lidar com hipertextos, levando o aprendiz aos campos da cibercultura e participao na cultura digital e interativa. Parece que o autor concorda com o conceito de hipertexto como uma forma cultural multissemitica e multimodal. Hoje cada vez mais se v tal estilo crescentemente como uma nova cibercultura hiperconectada, interativa e multimdia (KELLNER, 2003a, p. 55). Da, continua o autor, essa alfabetizao envolve refinada leitura, escrita, pesquisa e capacidade de comunicao. Outro elemento importante para o autor, nessa nova cultura de multimdia computadorizada, a alfabetizao visual. Ele argumenta que as telas dos monitores so grficas, visuais e interativas, ao contrrio do que ocorre com os campos impressos convencionais. cones, janelas, mouses, links relacionados ao hipertexto solicitam novas competncias e, portanto, uma expanso da prpria alfabetizao. Em suma: [...] alfabetizao informtica, assim, tambm envolve a habilidade de descobrir e acessar informao e habilidades intensificadas de ler, de esquadrinhar (scan) textos, bases de dados e websites bem como acessar informaes e imagens numa variedade de formas (....) (KELLNER, 2003a, p. 55). O que o autor denomina de alfabetizaes mltiplas est relacionado a diferentes alfabetizaes, as quais so fundamentais para acessar, interpretar e participar das novas formas de cultura e sociedade, as quais esto emergindo; pelo menos o que ele defende. Para ele, o elemento central no seu conceito a questo do mltiplo: competncias, tcnicas e habilidades. Essa alfabetizao30

mltipla no tem regras fixas e definitivas, da sua diferena em relao alfabetizao tradicional, que, para Kellner, uma prtica em contexto dominado por regras e convenes. Essa nova alfabetizao, para o autor, , de uma certa forma, um ambiente tumultuado, aberto e de competio; e essa nova educao, tumultuada, parece ser o grande desafio de uma educao democrtica para o novo milnio. assim que a educao, para Kellner, deve ser reconfigurada para a democratizao, cultivando novas alfabetizaes. O autor prope construir novas relaes sociais, novas pedagogias, de modo a se retomar o projeto educacional de Paulo Freire e John Dewey. As tecnologias multimdias hoje possibilitam projetos de equipe para estudantes e muito mais uma pedagogia do tipo resoluo de problemas Dewey e Freire do que a transmisso tradicional dos modelos de ensino do topo para a base (KELLNER, 2003a, p. 56). Com esse processo de aquisio de novas alfabetizaes, os estudantes adquirem as tcnicas necessrias para serem bem sucedidos na nova economia, na nova cultura. Essa nova alfabetizao permite o trabalho em equipe, entre professores e estudantes, tornando as relaes sociais mais igualitrias, cooperativas e democrticas. O fato que para Kellner (2003a) existe uma revoluo tecnolgica que obriga a repensar e reconstruir a educao. Essa reformulao, para o autor, envolve os objetivos da educao, voltados para a democracia, e,

fundamentalmente, uma expanso do conceito de alfabetizao. Essa expanso do conceito de alfabetizao diferencia-se da alfabetizao tradicional, a qual caracteriza-se por ser experincia governada por regras. Em resumo, a nova alfabetizao aberta e mltipla. O exposto at o momento evidencia os aspectos gerais da proposta do autor e aponta para a existncia de alguns problemas nesse formato tericoprtico de tecnologia educacional, caso se considere as reflexes dos dois captulos iniciais desta tese. De fato, as expresses/concepes nova cultura, nova economia, novo milnio, nova educao, nova tecnologia, nova sociedade etc., que o autor utiliza, permitem mostrar tais problemas.

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A primeira discordncia com a noo de novo, especialmente quando esta indica uma total ruptura com o que vem no curso da histria. Alguns tericos querem acabar com a histria, mas no se sustenta a nfase de que, por exemplo, ao se ingressar no denominado novo milnio os seres humanos, os capitalistas, os trabalhadores, passem for uma espcie de filtro histrico que os tornem totalmente diferentes. No h base histrica para uma afirmao semelhante; no novo milnio h as mesmas velhas cabeas que se formam ao longo da histria. O mesmo se aplica para a questo da tecnologia; no h como argumentar que a tecnologia moderna, que vem numa longa tradio de relacionamento com o mundo capitalista, com o capital, e associada a um estilo de vida especfico, ingresse, a partir de alguma ao extra-terrerestre, em uma fase totalmente diferente: hoje ela moderna tecnologia, na manh seguinte, nova tecnologia. Nesse sentido, um projeto terico-prtico de tecnologia educacional no pode abandonar o olhar histrico; como Feenberg demonstra, os interesses dos capitalistas esto incorporados ao prprio objeto tecnolgico. Mas no s isso, outros elementos, os quais so problemticos na proposta do autor, no podem ser relegados. A expresso nova economia tambm ilustra tais problemas. O capitalismo acabou? As relaes de produo no existem mais? O lan vital do capital adquiriu nova espiritualidade? evidente que no. A defesa da historicidade no quer dizer que se caia sempre na noo de progresso histrico, que to bem os ps-modernos a criticam; porm, mesmo que se admita uma certa

transversalidade histrica, a influncia histrica existe. Atente-se a reflexes anteriores que levam a crer que a tecnologia moderna, entre os muitos processos que tem permitido, est o prprio processo de velocidade cada vez maior. Para Lanier (2003), entre os muitos processos que os sistemas de informao tornam mais eficientes est o prprio processo do capitalismo. Um ambiente econmico praticamente sem atritos permite a acumulao de fortunas em alguns meses, ao invs de algumas dcadas, mas a durao da vida dos32

acumulao do capital, cuja

indivduos que esto acumulando ainda a mesma. at maior, na verdade (LANIER, 2003, p. 13). Ou seja, para o autor, pessoas muito hbeis em enriquecer tero a possibilidade de ficarem mais ricas at o dia da sua morte do que tinham os seus antepassados. O maior perigo desse processo que o abismo entre os ricos e o resto do mundo atinja uma gravidade transcendental. E, de fato, as concentraes de riqueza e pobreza aumentaram durante os anos de exploso da Internet nos Estados Unidos (LANIER, 2003, p. 13). No sem razo a preocupao do autor em saber se em meados do atual sculo os ultra-ricos sero reconhecidos como pertencentes a mesma espcie dos demais seres humanos do planeta terra. Para o autor, as possibilidades deles se tornarem uma outra espcie so, embora aterrorizantes, bvias. Os ricos, por exemplo, complementa Lanier, poderiam fazer seus filhos mais inteligentes, belos e entusiasmados, basta a ajuda da gentica6. Talvez eles pudessem, at mesmo, ser geneticamente arranjados para apresentar uma capacidade superior de empatia, mas apenas em relao a outras pessoas que se encaixem numa estreita faixa de critrios (LANIER, 2003, p. 13). Eles poderiam, com a gentica, tornarem-se quase imortais, argumenta o autor. Conforme o autor, ausncia de envelhecimento foi demonstrado em culturas de clulas e em organismos vivos.

1.2.1 Sociedade da informao e educao

Entre todas as expresses utilizadas por Kellner, a Grande Transformao talvez seja a mais indicadora de que o autor tem certo olhar tecnocntrico para com a tecnologia. Relembrando Ellul e a noo de intimidade em relao tecnologia, conclama-se a identificar se nessa expresso no h algo como Grande Alexandre, Grande Mestre, ou seja, uma natureza Demiurga para a

Na verdade, os ricos fazem os seus filhos mais inteligentes, belos e entusiasmados, via as condies sociais de existncia; a questo que a gentica pode agravar a situao. 33

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tecnologia. evidente que o divino est, pelo menos em teoria, associado ao que bom, ao que transforma tudo para o bem. Da os limites e os problemas da proposta: assumir que a tecnologia est por natureza associada ao bem. necessrio que uma proposta terico-prtica de tecnologia educacional mantenha a criticidade para com o fenmeno da tecnologia. Para alm disso, a Grande Transformao no representa,

necessariamente, com a sua sociedade de informao, um significativo avano na histria da humanidade. Para evidenciar a importncia de uma viso crtica em relao tecnologia, aponta-se, com base no pensamento da filsofa Marilena Chau, alguns dos problemas da denominada sociedade do conhecimento, supostamente impulsionada pelo desenvolvimento tecnolgico. Chau (2003) desmistifica o suposto carter benfico da sociedade do conhecimento. Para a autora, de fato, transformaes do capital e da cincia, aliadas a mudanas tecnolgicas na circulao da informao, proporcionaram a idia de sociedade do conhecimento. Conforme a autora, at 1940, a cincia era um projeto terico, com repercusses prticas. Mudanas, no entanto, no modo de produo capitalista, na tecnologia, transformaram a cincia. Ela no mais uma investigao sobre uma realidade externa ao pesquisador e tornou-se a construo de uma realidade; passou a ser manipulao de objetos. A cincia transforma-se ainda em fora produtiva e se insere na lgica da produo capitalista. A cincia deixou de ser teoria com aplicao prtica e tornou-se um componente do prprio capital. Donde as novas formas de financiamento das pesquisas, a submisso delas s exigncias do prprio capital [...] (CHAU, 2003, p. 4). Assim, essa transformao proporciona o surgimento da noo de sociedade de conhecimento que, ainda de acordo com a autora, tem como fator mais decisivo o uso intensivo e competitivo dos conhecimentos. Para Chau, o conhecimento e a informao, ao se tornarem foras produtivas, passam a fazer parte do prprio capital; o capital depende desse processo para sua acumulao e reproduo. Na atual sociedade, a hegemonia econmica est com o capital financeiro, e no com o capital produtivo, o que leva a informao a prevalecer sobre o conhecimento, visto que o capital financeiro34

trabalha com riquezas virtuais; o prprio capital financeiro uma informao. O principal efeito desse processo, para a autora, que o poder econmico, por se basear em informaes, faz com que elas se tornem campo de competio econmica e militar, ao mesmo tempo em que bloqueado o acesso s informaes. [...] A assim chamada sociedade do conhecimento, do ponto de vista da informao, regida pela lgica do mercado (sobretudo financeiro) [...] (CHAU, 2003, p. 5). Nesse sentido, necessrio um certo cuidado com a noo de que a sociedade do conhecimento representa um aspecto positivo no desenvolvimento da histria da humanidade; as propostas de tecnologia educacionais precisam, portanto, estar atentas a tais questes. A anlise de Chau sobre a sociedade do conhecimento est muito voltada para a repercusso dessa noo na universidade e na pesquisa cientfica. No interessa o aprofundamento nessa direo, no momento, porm importante ressaltar outro aspecto mencionado pela a autora no que concerne conformao do conceito de sociedade do conhecimento; trata-se da questo da velocidade. Conforme Chau, organismos internacionais aliam constantemente sociedade do conhecimento velocidade. [...] Isto , a acentuada reduo do tempo entre a aquisio de um conhecimento e sua aplicao tecnolgica [...] (CHAU, 2003, p. 5). uma espcie de exploso do conhecimento, quantitativa e qualitativa, nas diversas reas. Ao descrever sua posio, Chau enfatiza que tais autores argumentam que o conhecimento levou 1750 anos para duplicar-se pela primeira vez, no incio da era crist; aps isso levou 150 anos para duplicar-se; em seguida duplicou-se a cada 50 anos e, agora, aps o ano 2000, duplica-se a cada 73 dias. No entanto, para Chau a questo fundamental que a quantidade de descobertas cientficas no significa necessariamente uma mudana na definio de uma cincia. Em outras palavras, a qumica, a matemtica, a biologia e a histria (para ficarmos nos exemplos mais freqentes) foram redefinidas em termos de seus objetos, mtodos, procedimentos [...]? (CHAU, 2003, p. 6). Ou seja, o fundamental para Chau estar atento ao fato de que as mudanas introduzidas pela sociedade do conhecimento no indicam obrigatoriamente que a estrutura da cincia nos ltimos 30/40 anos mudou. Essa suspeita, para a autora,35

tem dois motivos: primeiro, o aumento pode ser s quantitativo sem colocar em questo os fundamentos; segundo, a quantidade pode exprimir pouca qualidade e pouca inovao, pois os critrios de avaliao de pesquisadores, dos produtores do conhecimento, so cada vez mais quantitativos e no qualitativos. Muitas vezes, o pesquisador, em busca de garantir financiamento para sua pesquisa e ascenso na carreira, promove uma busca frentica por mais publicaes, artigos, textos etc. que no apontam, necessariamente, para uma melhor qualidade e inovao do conhecimento. Assim no possvel agir de forma ingnua para com a noo de sociedade de conhecimento, e, nesse sentido, quando algumas propostas tericoprticas de tecnologia educacionais esquecem isso, elas incorrem em problemas. Os argumentos anteriores suscitam um certo cuidado ao lidar com o referido conceito e os elementos tericos que lhe so prximos. Porm, para alm dos limites da noo de sociedade do conhecimento, seja compreendendo-a numa perspectiva ingnua ou crtica, o fato que, de uma forma ou de outra, alteraes no universo da pesquisa cientfica e tecnolgica remetem a uma determinada condio que afeta, necessariamente, a prtica educativa, nos seus diferentes nveis e modalidades. Em resumo, contudo, independentemente da perspectiva que seja adotada, a denominada sociedade do conhecimento, revoluo tecnolgica, a questo da tcnica, a questo da tecnologia etc., repercutem na educao e impem uma reflexo sistemtica e crtica sobre a relao tecnologia e educao, tecnologia e sociedade; no caso especfico deste estudo convidam a uma problematizao a partir da perspectiva terico-crtica. verdade que a anlise tem sido feita, porm isso no impede a existncia de mais estudos. H trabalhos, no Brasil, que podem ser inseridos nesse campo; porm, a reflexo, como recente, pode ser ampliada para se aproximar da natureza e amplitude do problema. No se desconhece pesquisas e trabalhos, no Brasil, que abordam filosoficamente a relao tecnologia e educao. Ora, o prprio texto, mencionado antes, da filsofa brasileira Marilena Chau, um esforo de repercutir a questo da tecnologia no campo educacional; a diferena 36

que ela se preocupa com as repercusses no ensino superior, especialmente nas universidades brasileiras. De uma certa forma, o texto analisado mostra como em virtude de determinadas questes sociais, incluindo a questo da tecnologia, o ensino superior tende a assumir contornos diferenciados. Assim, alm da prpria redefinio da natureza da universidade, em saber se ela uma instituio social ou uma organizao social, o prprio ensino assume contornos diferenciados, conforme o projeto social em questo. Chau no parece satisfeita com alguns dos apelos dos ps-modernos e sua sociedade do conhecimento. Alis, a autora questiona o fato de muitos falarem da condio atual como a era da incerteza; ela no v nesse conceito a compreenso filosfico-cientfica da realidade natural e cultural. Para ela, em vez de se falar era da incerteza, dever-se-ia proclamar era da insegurana. E, para ela, insegurana no gera conhecimento e ao inovadora, e sim medo, paralisia, submisso ao institudo, recusa crtica, conservadorismo e autoritarismo. Na mesma direo, a noo de educao permanente, advinda dos autores otimistas com a tecnologia, no permanece intocvel. Afirma-se que diante de um mundo globalizado e em transformao constante, a educao permanente ou continuada uma estratgia pedaggica indispensvel, pois somente com ela possvel a adaptao s mudanas incessantes [...] (CHAU, 2003, p. 8). A educao permanente, para Chau, deixa de ser preparao para a vida e se torna educao para toda a vida. Precisamos ponderar crtica e reflexivamente sobre essa idia. De fato no se pode chamar isso de educao permanente (CHAU, 2003, p. 8). Para Chau, h uma confuso entre educao e reciclagem, conforme exigncia do mercado. Isso ocorre pelo fato de que a atual forma do capital produz a obsolescncia da mo-de-obra e produz o desemprego estrutural; da o motivo da confuso. Conforme ela, o que se denomina de educao permanente a aquisio de tcnicas, em processos de adestramentos e treinamentos, para que, depois, tais tcnicas sejam utilizadas conforme as finalidades das empresas. Tanto assim, que muitas empresas possuem escolas, centros de treinamento e

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reciclagem de seus empregados, ou fazem convnios com outras empresas destinadas exclusivamente a esse tipo de atividade (CHAU, 2003, p. 8). Enfim, para Chau, no d para nominar de educao esses processos de treinamentos e adestramentos. Educao, para ela, envolve um movimento de transformao interna de uma condio de saber a outra condio de saber mais elevada, ou ainda compreenso do outro, de si mesmo, da realidade, da cultura acumulada, do seu presente. Por isso, a educao inseparvel da formao e por isso que ela s pode ser permanente (CHAU, 2003, p. 8).

1.2.2 Tecnologia e democracia

Alm dos problemas mencionados, necessrio um vis crtico acerca da possvel democratizao da tecnologia. A idia de que a Internet, como defende Kellner, continuar a ser cada vez mais acessvel ilustra alguns problemas; ora, se at momento uma tecnologia que conta com algumas dcadas de existncia, como a da eletricidade, est longe de ser acessvel a todos do planeta terra, como fazer para, a partir do sistema capitalista, democratizar tecnologias como o computador, a Internet? Alguns pases centrais, especialmente Estados Unidos da Amrica, Inglaterra, Frana e Japo, proporcionaro maioria dos seus habitantes o acesso, por exemplo, Internet. Porm, em pases pobres, como o Brasil, frica do Sul, entre outros, essa possibilidade no to bvia. Isso quer dizer, ento, que a formulao terico-crtica necessita envolver, at mesmo, uma estratgia de democratizao tecnolgica. E o conceito de racionalizao democrtica de Feenberg pode ser til nesse contexto. No campo mais terico, as propostas pedago-tecnolgicas tambm apresentam limites, os quais necessitam ateno especial. Trata-se de saber qual o tipo de relao a ser estabelecida entre tecnologia e educao, enquanto campo de conhecimento. H indcios de que os clssicos da educao precisam ser lido com maior cuidado por parte dos defensores das tecnologias educacionais, bem38

como por parte daqueles que procuram relacionar tecnologia e educao. Pode-se ilustrar tal problema com a leitura que Douglas Kellner efetua da obra de Paulo Freire. Defende-se aqui que h um equvoco em atribuir a Pedagogia moderna na sua totalidade o conceito de educao bancria; provvel que Kellner utilize de forma satisfatria o conceito, mas esse conceito deve se referir a uma determinada vertente da teoria e prtica da pedagogia moderna. Apresentar Paulo Freire como um pedagogo ps-moderno que critica, com o seu conceito de educao bancria, a pedagogia moderna no se sustenta. De fato, Paulo Freire um autor difcil quando se trata de perscrutar as influncias do seu pensamento, e verdade que alguns vem nele um certo psmodernismo, mas ele um autor moderno e, enquanto tal, sua contraposio ao conceito de educao bancria leva a construir uma outra vertente da pedagogia moderna. Alm disso, a associao de Paulo Freire a Dewey no satisfatria. Com efeito, alguns autores, at mesmo no Brasil, associam Freire e Dewey. Porm tal associao um equvoco. Os modelos epistemolgicos e de sociedade que norteiam as duas propostas so completamente dspares. Enquanto Dewey7 procura uma adaptao ordem estabelecida, Freire constitui o essencial de sua pedagogia como uma contestao sociedade existente, tendo em vista a instrumentalizar o educando no para melhor se inserir na sociedade, adaptandose a ela, como intenta o movimento escola-novista, mas, ao contrrio, para transformar a prpria sociedade. A noo de humanidade em Freire diferente da de Dewey: este ltimo apela, na esteira do pragmatismo americano, para uma noo vaga e ahistrica de ser humano, enquanto que em Freire a essncia humana concreta, inserida no tempo e no espao, construda socialmente; comum observar o apelo em obras de Freire: se a situao est boa, porque os seres humanos construram-na assim; se a situao est ruim, se a sociedade injusta, porque tambm os seres humanos a fizeram de tal forma; portanto, esses mesmos seres humanos podem construir uma sociedade diferente.

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Para uma crtica do pensamento escola