A TEMPORALIDADE NA CULTURA CONTEMPORÂNEA

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A TEMPORALIDADE NA CULTURA CONTEMPORÂNEA João Adolfo Hansen Quero agradecer o convite da Vera e de vocês e queria lhes dizer inicialmente que, para falar desse tema ligado ao tempo, hoje, eu começava chamando a sua atenção para a própria posição em que eu falo, ou seja, é necessariamente uma posição aquém do que acontece. Eu acredito que falo, nesse sentido, pelo meio e acho que também dentro de uma situação que na maior parte permanece por mim, pelo menos, ignorada. Tenho nitidamente a sensação, ao falar de um assunto como esse, de falar entre aquilo que ignoro totalmente e aquilo que conheço muito mal. Acredito que esta, aliás, é uma das principais determinações de qualquer fala sobre a cultura hoje. Certas noções que até ontem pareciam muito evidentes e que eram noções produzidas a partir da segunda metade do século XVIII, noções iluministas como a de crítica, negatividade, transformação, superação, totalização, totalidade, finalidade e sentido da história , perderam a força e a fala que fala sobre elas tem que necessariamente reconhecer sua parcialidade quando fala delas. Nesse sentido, a fala sobre elas tem que reconhecer também que perdeu toda pretensão de prescrição. Se vocês pensam, por exemplo, que até ontem, enquanto essas categorias aparentemente eram óbvias, o fato de haver supostamente uma causa e um sentido final para a história também determinava . Conferência pronunciada no dia 29 de outubro de 1999 no Ateliê da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP. . Professor do Departamento de Letras Clássicas e Vernáculas da USP. Autor de A sátira e o engenho: Gregório de Matos e a Bahia do século XVII (Companhia das Letras) e de O O: a ficção da literatura em Grande sertão: veredas (Hedra).

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A TEMPORALIDADE NA CULTURA CONTEMPORÂNEA

João Adolfo Hansen

Quero agradecer o convite da Vera e de vocês e queria lhes

dizer inicialmente que, para falar desse tema ligado ao tempo, hoje,

eu começava chamando a sua atenção para a própria posição em que

eu falo, ou seja, é necessariamente uma posição aquém do que

acontece. Eu acredito que falo, nesse sentido, pelo meio e acho que

também dentro de uma situação que na maior parte permanece por

mim, pelo menos, ignorada. Tenho nitidamente a sensação, ao falar

de um assunto como esse, de falar entre aquilo que ignoro

totalmente e aquilo que conheço muito mal.

Acredito que esta, aliás, é uma das principais determinações de

qualquer fala sobre a cultura hoje. Certas noções que até ontem

pareciam muito evidentes e que eram noções produzidas a partir da

segunda metade do século XVIII, noções iluministas como a de

crítica, negatividade, transformação, superação, totalização,

totalidade, finalidade e sentido da história , perderam a força e a

fala que fala sobre elas tem que necessariamente reconhecer sua

parcialidade quando fala delas. Nesse sentido, a fala sobre elas tem

que reconhecer também que perdeu toda pretensão de prescrição.

Se vocês pensam, por exemplo, que até ontem, enquanto essas

categorias aparentemente eram óbvias, o fato de haver

supostamente uma causa e um sentido final para a história também

determinava a idéia de uma prescrição do que deveria ser a ação em

termos de uma ação adequada a esse sentido. Na medida em que

hoje uma categoria como totalidade ou totalização desaparece da

discussão da cultura, e também desaparece a idéia de um sentido

final para a história, toda idéia de uma fala prescritiva quer dizer,

de um "dever ser" também desaparece.

. Conferência pronunciada no dia 29 de outubro de 1999 no Ateliê da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP.. Professor do Departamento de Letras Clássicas e Vernáculas da USP. Autor de A sátira e o engenho: Gregório de Matos e a Bahia do século XVII (Companhia das Letras) e de O O: a ficção da literatura em Grande sertão: veredas (Hedra).

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Assim, tenho a impressão de que a gente deveria lembrar

também uma noção exposta há muito tempo por um autor que hoje

está bastante esquecido devido a essas mudanças na cultura que é

Marx e que há uma afirmação dele no início dos Grundrisse, dos

rascunhos que ele faz sobre O capital, em que ele diz que, no

desenvolvimento histórico, geralmente a última fase é muito

unilateral em relação às anteriores porque ela supõe que as

anteriores foram etapas para ela mesma e que, nesse sentido, ela

geralmente tem uma incapacidade de criticar a sua pretensão de

universalidade e de se criticar a si mesma. Nesse sentido, diz o

Marx, o presente é unilateral. E ele é unilateral porque produz

unilateralidades, ou seja, ele se apropria do passado de modo

unilateral e ele é de algum modo cego em relação a si mesmo porque

ele não tem uma evidência evidente dos processos que ocorrem nele

enquanto presente.

Nesse sentido, eu gostaria de lembrar a vocês uma hipótese

que é feita por um historiador alemão, que é Koselleck, que,

discutindo o processo histórico, propõe que a gente pense a história

segundo uma categoria que é o tempo. E ele propõe o tempo não

necessariamente de modo kantiano, como uma categoria prévia de

todo pensamento, mas como uma categoria social. Ele propõe que a

categoria de tempo permitiria observar determinados períodos

históricos, observando por meio dela duas coisas fundamentais: o

modo como é recortada uma experiência do passado, em termos de

experiência, e ao mesmo tempo o modo como se recorta uma

expectativa de futuro. Koselleck trabalha fundamentalmente, nessa

noção, com as histórias de Antigo Regime, com as histórias hoje

chamadas "barrocas", com as histórias dos séculos XVI, XVII e XVIII,

e ele mostra, por exemplo, como essas histórias reciclam uma noção

que a gente encontra nas letras latinas, principalmente no Cícero,

que é a velha idéia de que a história é mestra da vida. O Koselleck

propõe: o que permite, por exemplo, que um homem do século XVII

pense que a experiência histórica, aquilo que já houve, possa ser,

enquanto experiência do passado, modelo para o presente e ao

mesmo tempo modelo para a mestra da vida regulação de uma

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expectativa do que vai acontecer no futuro? E ele evidencia uma

coisa que deve ser evidente para quem trabalha com esse assunto

ligado aos séculos XVII e XVIII: que nessas sociedades ditas

“barrocas” o fato justamente de elas suporem que há um fundamento

primeiro, único e último da história que é Deus fazia com que elas

pensassem que a presença divina, que já aparece no passado,

aparece também no presente e no futuro. E, nesse sentido, a

hipótese de que os bons e grandes exemplos vividos por homens

ilustres, profetas, heróis etc. antigos, que evidenciam a presença de

Deus no tempo, na medida que Deus “é” sempre, eles também são

repetidos no presente e no futuro. Nesse sentido, na hipótese que o

Koselleck mostra, para uma formação histórica como a formação de

Antigo Regime, havia uma espécie de nexo quase imediato entre a

experiência do passado e a expectativa de futuro devido justamente a

essa hipótese teológica de que o tempo tem um sentido religioso e de

que Deus se repete nele sempre.

É isso que permitiria, por exemplo, no nosso caso específico,

brasileiro, português, a gente entender a experiência de um padre

Antônio Vieira, no século XVII, que escreveu um livro chamado

História do futuro. A gente, desde a Revolução Francesa, sabe que

uma hipótese de escrever uma história do futuro é uma hipótese

cabalística, para nós, ou supersticiosa ou, por definição, improvável

porque a gente tem uma experiência, desde a Revolução Francesa,

de que a história não se repete. Ou, se ela se repete, é como farsa da

tragédia que ela foi a primeira vez.

Agora, o Koselleck faz justamente essa hipótese, que é muito

interessante pensar: essa idéia de que a cultura enquanto

produção social, enquanto representação social, enquanto

expectativa social e enquanto consumo social do passado e produção

de valores no presente articulada a uma expectativa de futuro

também deveria ser historicizada pelo modo como a gente pode

pensar a categoria do tempo e que, numa sociedade de Antigo

Regime, pré-iluminista, pré-Revolução Francesa, que acredita no

Cícero a história é mestra da vida , a história se repete sim. A

história se repete e o lapso que há entre o passado e o futuro é

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praticamente zero. Ou seja, o fator de imprevisibilidade do futuro

tende a zero. Por exemplo, para um homem do século XVII

provavelmente era bastante evidente a idéia de que, se aconteceu

assim, vai voltar a acontecer assim no futuro.

Agora, vocês estão lembrados, por exemplo, de uma hipótese

crítica dessa hipótese feita pelo Kant na Antropologia, que é um livro

que ele escreve logo depois da Revolução Francesa, em que ele diz

que até então toda a experiência histórica ele está se referindo às

sociedades que chama de “despóticas”, de Antigo Regime tinha

sido subordinada ao modelo teológico do sentido do tempo. E ele diz:

toda a sociedade estava subordinada ao tempo, na medida que

teologicamente o tempo é uma emanação de Deus e, portanto, a

história humana faz parte de um projeto divino incluído no tempo. O

Kant vai afirmar, no fim do XVIII, vocês sabem disso, que, a partir

daquele momento em que ele escreve, a história não necessitava

mais de Deus, Deus está morto, e que, nesse sentido, não há

fundamento absoluto para ela e que a história agora passa a ser

apenas um processo quantitativo que subordina o tempo a si mesmo

e que estabelece, por definição, um lapso de indeterminação entre a

experiência do passado e a experiência do futuro. Na hipótese

kantiana, já no fim do século XVIII, a idéia iluminista, a idéia de que

o futuro é imponderável, a idéia de que nós não sabemos

absolutamente o que é o futuro, mas que o futuro depende de um

cálculo humano que quantifica as diversas variáveis tentando

justamente orientar o tempo no sentido dele, futuro, donde vem o

sentido do tempo.

Provavelmente a gente aprende com a Revolução Francesa e

com os filósofos iluministas, e depois com o marxismo, no século XIX

e ainda no XX, essa idéia de que o tempo tem um sentido. Agora,

esse sentido não é mais divino nem teológico, ele é apenas humano e

resulta de uma produção de eventos meramente humanos. A

discussão é saber se esses eventos são produzidos por tipos

individualizados ou por massas proletárias ou por fatores anônimos

como a economia ou a política, de maneira indeterminada. Mas

sempre há esse dado nuclear comum que é a idéia de que o tempo

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avança numa linha reta, o passado não se repete porque ele foi

negado pelas práticas do presente, o presente ainda é um estágio

onde nós estamos mas ele é um estágio de contradição e ele ainda

não realizou a plenitude do tempo, a plenitude da razão que vai se

encarnar nele pra valer, e que então a idéia de que o tempo no

presente é, por definição, vocês sabem, o espaço de uma

negatividade. Quer dizer, a cultura tem uma função não só de

representar o social etc., mas a cultura também tem uma função com

a idéia de crítica, ou seja, a idéia de fazer das contradições do

presente o material de uma negação que postula uma transformação

que vai superar o presente, fazendo o futuro vir rapidamente. Essa é,

por exemplo, a hipótese utópica do início do século XX a hipótese

dos surrealistas em 24, a hipótese dadá ou a hipótese cubista ,

provavelmente a idéia de que as formas de representação burguesas

ou acadêmicas ou oficiais que nós encontramos na cultura são

passadistas, ligadas excessivamente a um passado entendido como

um passado conservador ou reacionário ou próprio de uma vida

administrada. E essa idéia, então, de que a arte ou a cultura tem uma

função de, pela racionalização negativa da forma, pela recusa da

familiaridade da forma com o mundo administrado, propor uma

atividade crítica, que provavelmente atinge o espectador o

conscientizando politicamente de uma necessidade de superação

daquele estado presente em função do futuro.

Vocês se lembram, por exemplo, que o poeta Maiakovsky vai

dizer, quando ele é encarregado pelo Lenin de fazer aquele

programa gráfico e ao mesmo tempo poético de arte revolucionária

na União Soviética no início dos anos 20, que o verdadeiro tempo da

revolução é o futuro ou seja, tudo vem do futuro, o futuro é o

tempo donde vem o tempo. Ou seja, é como se houvesse uma

memória do futuro, quer dizer, a gente vive o presente, já que a

gente é iluminista, em função de uma crítica do presente, de uma

negação contínua do presente, em função de algo que deve ser um

futuro que ainda não veio por isso provavelmente ele é “u-tópico”;

na verdade, ele é “a-tópico”, ele não tem lugar; mas ele é “u-tópico”,

ou seja, ele está fora do topos, ele está fora do lugar.

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Provavelmente, a idéia tradicional, então, se vocês pensarem,

por exemplo, a constituição de um tipo no fim do século XVIII que é

“o artista”, outro tipo que se constitui que é “o crítico’, outro tipo

que se constitui que é “o intelectual’, são todos tipos, segundo o

iluminismo, dotados de um função de produzir a cultura, num sentido

amplo, ou, no caso mais específico da cultura, de produzir as artes

no sentido de uma crítica contínua que postula sempre uma

superação do estado presente porque o presente, por definição, é um

estado insatisfatório.

Vocês se lembram daquela hipótese, por exemplo, “o sonho da

razão engendra monstros”. Vocês se lembram da pintura do Goya,

aquela idéia de que o presente é o estado do mito, o presente é o

tempo da ignorância, da superstição, e que a crítica iluminista, por

ser racional, vai produzir uma abolição radical do mito fazendo com

que os valores da res publica, como dizia o Kant, quer dizer, da

“coisa pública”, da verdadeira democracia contra o despotismo, se

estabeleçam. Agora, o Gilles Deleuze dizia uma piada muito

engraçada. Ele dizia assim: sim, o Goya estava certo, o sonho da

razão produz monstros, mas a insônia também. Dizendo assim que,

quando a razão fica louca e ela fica , ela pode ser uma razão

industrial que calcula, por exemplo, quantos judeus a gente vai

queimar por segundo num forno. E ele chama a atenção, por

exemplo, para um campo de concentração, que é racionalmente

construído como razão instrumental, razão iluminista levada às

últimas conseqüências do industrialismo, queimando pessoas. E que

é uma razão absolutamente frenética, uma razão levada à insônia

máxima, não é uma razão que está dormindo, mas é uma razão

acordadíssima.

Nesse sentido, justamente, vocês concordem comigo, nos anos

60 principalmente, nós encontramos várias atividades na cultura,

sobretudo vindas da França, mas também na Alemanha, na

Inglaterra, na Itália e depois nos Estados Unidos, um movimento na

cultura que inicialmente começou em disciplinas que começaram a

criticar o positivismo de historiadores e o positivismo de modo geral

dos cientistas sociais e são disciplinas vindas da lingüística, da

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psicanálise, da etnologia, da antropologia que começaram a chamar

a atenção desses cientistas sociais e dos historiadores para a

particularidade das práticas e começaram a criticar principalmente a

idéia de que haja um sentido dado ou de que haja uma unidade dada

na idéia de sujeito ou de consciência ou de ideologia ou de

representação etc..

Isso constitui aquilo que um filósofo alemão que dá aula em

Stanford hoje, que é o Hans Ulrich Gumbrecht, chama de “campo

não-hermenêutico”, no caso da cultura, e que está ligado justamente

a uma crítica do iluminismo. Quer dizer, a idéia de que esse modo de

organizar o tempo como sucessão, evolução, transformação,

superação dialética e como contradição supõe que haja um sujeito

unitário, pleno, que é sujeito de conhecimento na relação com um

objeto qualquer por conhecer. Supõe, ao mesmo tempo, que é a

consciência o lugar onde as operações de conhecimento acontecem.

Supõe, ao mesmo tempo, que há uma relação quase de equivalência

entre o sujeito que conhece o objeto por conhecer. E supõe, ao

mesmo tempo, que o tempo é um contínuo e que ele tem uma

unidade. O que é uma idéia hegeliana, vocês se lembram: essa idéia,

no caso das artes, de classificar períodos históricos, com uma única

unidade então, “o barroco”, “o clássico”, “o árcade”, “o

romântico”. Vocês sabem disso, é óbvio: vários historiadores

começaram a mostrar, desde os anos 20 do nosso século, que dentro

de um recorte temporal limitado a gente observa várias

temporalidades, que é impossível unificar o tempo debaixo de uma

etiqueta única porque a gente observa, por exemplo, que há uma

temporalidade da linguagem, há um tempo próprio dos processos

econômicos, há uma temporalidade específica das práticas sexuais

ou das relações de parentesco, há uma temporalidade própria da

política e que há vários tempos num mesmo tempo que impedem a

gente de supor essa idéia de uma unidade evolutiva.

Vocês se lembram, por exemplo, dos estudos do Braudel sobre

o Mediterrâneo, sobre o Felipe II, como ele mostra que há um

longuíssimo tempo, que dura milhares de anos, que é o próprio

tempo da rotação das culturas ou da Terra. Depois como há um

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tempo mais curto que se coloca sobre esse, que é um tempo político

uma monarquia, que dura duzentos anos. E depois um tempo

quase conjuntural, um tempo rápido, dos eventos, das pequenas

guerras. E depois um tempo micro, que seria o tempo dos processos

quase individuais. Essa idéia de historiadores é muito interessante

pensar. Ela começou a introduzir, desde os anos 20, na historiografia

francesa por exemplo, Febvre, Bloch , essa idéia de que a gente

deveria abandonar esse modelão historiográfico vindo do século XIX,

que é o modelo hegeliano, de um evolução contínua, de uma história

que tem um sentido já dado e de uma única linha no tempo,

mostrando, por exemplo, que essa história é etnocêntrica, ocidental,

basicamente alemã, inglesa e francesa e que ela exclui outras

historicidades. Ela coloca o Oriente para fora, ela coloca as ditas

“sociedades primitivas” para fora etc.. Essa crítica que começou a

colocar justamente essa idéia de que [?] descontínuo, que até então

era uma coisa que assustava os historiadores, deve ser considerada

já um abalo na idéia de que o tempo é um contínuo evolutivo de

transformações e que o tempo tem um sentido já dado como uma

origem e como um fim.

A gente vai encontrar, por outra parte, por exemplo, em toda a

atividade da psicanálise e do desenvolvimento da psicologia no

século XX, uma crítica à idéia burguesa de um indivíduo definido

como unidade e identidade psicológica sempre irrepetível. A

psicanálise freudiana ou lacaniana mostra, por “a” mais “b”, que o

sujeito é um acidente numa cadeia significante onde ele ocupa uma

posição imaginária permitida a ele pela cultura e que ele pode ser a

cada momento vários e sempre outro e que o sujeito não tem

nenhuma unidade substancial.

Ao mesmo tempo a gente encontra, na filosofia, nos anos 50 e

60, uma recuperação muito forte das hipóteses do Nietzsche e depois

do Heidegger sobre o não-sentido fundamental da história, essa idéia

de uma anarché. Quer dizer, na hipótese tradicional, iluminista, a

história tem uma arché existe uma origem básica e, portanto,

existe um fim. Agora a gente vai observar, nos anos 60, essa idéia de

uma anarché, de uma não-origem, e que vai produzir, por sua vez, a

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idéia de um não-sentido dado e a crítica da idéia de evolução, da

idéia de progresso, da idéia de identidade, da idéia de unidade, ou

seja, como eles diziam, é um antiplatonismo generalizado feito como

crítica radical à essa idéia de que a consciência é núcleo fundante do

processo de conhecimento, porque agora se diz: não, a consciência é

o efeito de uma estrutura lingüística ou de uma estrutura familiar ou

de uma estrutura política ou de uma estrutura econômica ou de uma

estrutura “x”. Aí acaba a idéia, por exemplo, de que a consciência

seja o núcleo. Ao mesmo tempo se diz: é falsa a idéia de que haja um

sentido já dado no objeto, de que apenas o sujeito reconhece o

sentido dado. Na hipótese nietzscheana, por exemplo, o

conhecimento não é re-conhecimento, mas é força, o conhecimento é

uma violência que se exerce sobre um objeto qualquer que é

totalmente estranho a nós. A hipótese, então, de que a própria idéia

de verdade, que a gente aprendeu com os gregos que é algo

substancial, é um produto histórico e que é uma radical, vamos dizer,

historicização de tudo.

Isso levou, vocês sabem muito bem, a uma crítica que vem

sendo feita até hoje nas discussões ditas “pós-modernas” nos anos 80

que é uma crítica do método tradicional de interpretação da cultura

constituído no século XIX, principalmente na Introdução às ciências

do espírito, do Dilthey. Vocês se lembram, por exemplo, que no fim

do século XIX o Dilthey, o filósofo alemão, faz uma hipótese: qual é a

relação que nós estabelecemos com uma obra de arte? Na hipótese

do Dilthey existe um sujeito criador, que é pensado à moda clássica,

como um sujeito unitário, um indivíduo dotado de sentido crítico

profundo e psicologicamente original. Esse indivíduo então

formaliza, numa obra, a sua experiência individual. Mas que, por ser

genial, consegue formalizar na individualização da obra uma

experiência que é social e que por isso transcende a mera

individualidade e pode ter interesse para outros. Nós, como leitores

ou como espectadores, diz o Dilthey, estabelecemos, enquanto

sujeitos que também somos como o autor, uma relação de diálogo

com a obra. Ao estabelecermos essa relação, nós vamos buscar

aquilo que a superfície da obra oculta e nós vamos perguntar para a

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obra o que ela quer dizer ela tem uma intenção secreta, ela tem

uma intenção profunda. Então nós vamos interpretar a obra. Ou seja,

a obra está dobrada a palavra latina: interpretare, ou seja, ficar no

meio da dobra e desdobrar para fora. O que é interpretar? É buscar

na obra aquele sentido oculto na sua profundeza e que corresponde a

um sentido oculto na natureza humana e que aquele homem, artista

individual, por ser um cara genial o modelo é romântico , ele

expressa, ele representa, ou seja, apresenta de novo, ele re-

apresenta, ele re-vela, ou seja, quando mostra, ele ao mesmo tempo

oculta re-velar. A atividade do crítico, então, é estabelecer uma

relação de comentário com o objeto, mostrando para o público no

caso, a gente , que não foi capaz de ver aquele sentido profundo, o

verdadeiro sentido profundo da obra. Porque, quando se descobre

esse verdadeiro sentido profundo, imediatamente a obra se revela

como crítica do presente e possibilidade de superação crítica,

propondo o advento do futuro.

Agora, esse modelo de interpretação foi pelos ares justamente

com a constituição, nos anos 60, desse chamado “campo não-

hermenêutico” porque é a idéia de que é sexo explícito não há

nada para ser interpretado porque não há profundo. E a idéia de que

a gente deveria trabalhar com relações e não propriamente com essa

hipótese de buscar na profundidade suposta do objeto uma

interpretação que a gente traria para fora. Isso produz,

imediatamente, a hipótese de que não há um sentido dado no

processo histórico ao qual a interpretação está relacionada

tradicionalmente. Na medida que não há esse sentido dado, também

não há motivo para fazer interpretação porque a gente não tem que

procurar o verdadeiro sentido para engatar teleologicamente,

finalisticamente, na crítica da história e no avanço, no progresso

histórico. A hipótese agora é a de que o sentido é contingente, o

sentido é apenas um efeito que se produz aqui e agora como mera

relação entre o sujeito que age — e esse sujeito sabe que ele é

apenas uma parcialidade, ele não é nada unitário, profundo, ele é

apenas uma função sintática — e o objeto.

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Isso produz, no campo da crítica de arte e de literatura, um

grande deslocamento que vem sendo cada vez maior dos anos 80

para cá. Provavelmente porque a própria história, enquanto

disciplina, os historiadores principalmente, levando em conta essa

modificação do campo do conhecimento, eles começaram a chamar a

atenção para o fato de que, em vez de estabelecer uma relação com o

objeto que deveria ser interpretado, seria preciso começar a discutir

as condições de possibilidade do aparecimento daquele objeto.

Então, por exemplo, no caso da literatura, nós percebemos um

movimento assim: nos anos 60, 70, houve uma espécie de grande

concentração na análise “imanente” do discurso ou numa análise que

buscava sentidos de um discurso. Subitamente isso ficou esquecido e

os estudos se bandearam para uma coisa hoje chamada “estudos

culturais”, em que os historiadores da literatura, em vez de

discutirem o romance de Machado de Assis, estão discutindo as

condições materiais do fim do Império, do desenvolvimento da

imprensa ou das técnicas produtivas do livro ou as condições

materiais da circulação da leitura ou a oralidade ou o analfabetismo

no Brasil para discutir o texto de Machado de Assis no contexto

dessas práticas. Ou então se deslocou para uma história da recepção,

quer dizer, vamos ver não propriamente qual o sentido dessa obra.

Porque na hipótese do Dilthey a gente estabelece uma relação com a

cultura independentemente da materialidade dela, a gente vai buscar

na cultura um significado que é transcendental, que é o significado

da comunicação de dois sujeitos plenos independentemente de

qualquer elemento material. Que é a idéia tradicional: o que quer

dizer esse texto? A idéia de que um texto tem um significado

universal sempre.

Agora, todo o movimento dos anos 60 para cá, levando em

conta a crítica desse modelo interpretativo, por exemplo, os alemães

ligados à teoria da recepção... Aquela hipótese, por exemplo, que o

Jauss fez que o Joaci aqui conhece, ele trabalhou uma coisa

parecida nas Cartas chilenas... O Jauss diz, vocês se lembram: o

Goethe escreveu, no fim do século XVIII, uma peça que é a Ifigênia

em Táuride. A Ifigênia, se a gente a lê interpretativamente, nós

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vamos dizer: o que quer dizer a peça Ifigênia? Na hipótese do Jauss,

vocês se lembram, o sentido cultural da Ifigênia seria a somatória

das leituras que foram sendo feitas desse texto desde que o Goethe o

publicou no fim do século XVIII. Então a idéia agora é a de que é

fundamental levar em conta as condições práticas de apropriação do

objeto, que o objeto não tem um sentido produzido.

Não sei se vocês concordam, mas nas discussões que há hoje

no campo da cultura nós percebemos que mudou alguma coisa no

modo como se orienta a experiência do tempo. Quer dizer, nós

evidentemente não somos agentes do Antigo Regime, nós não

acreditamos em Deus, por definição nós somos ateus. Acho que

mesmo quando a gente é religioso, a gente é ateu prático. Ao mesmo

tempo, acho que o capital revoluciona o mundo de novo hoje com

essa revolução tecnológica, por exemplo, da informática. É uma coisa

que a gente não sabe o que é, mas é absolutamente espantoso. Outro

dia fiquei muito deprimido porque li uma notícia de um assaltante de

banco no Canadá que roubou um carro também e fugiu. E ele foi

localizado por satélite, um satélite leu a placa dele numa floresta no

norte do Canadá e ele foi preso. É muito assustador porque o

Lampião, que era um cara vivido, dizia: “Deus é grande, mas o mato

é maior”. Hoje, não, Deus é muito grande.

Eu penso na idéia do Deleuze, de que a nossa sociedade hoje

não é mais uma sociedade disciplinar, mas de controle. Deleuze

propõe que o modelito da sociedade hoje é o cartão de crédito. E ele

lembrava, por exemplo, como o cartão de crédito produz dinheiro

virtual e também como ele produz tempo virtual. E, como produz

tempo virtual para cada um de nós, ele nos obriga, no presente, a

que a gente se comprometa com todos os engates conservadores em

que estamos metidos. A gente continua casado com a mesma mulher,

com o mesmo homem, tem o mesmo amante, o mesmo namorado, a

gente continua tendo o mesmo patrão, continua fazendo as mesmas

coisas com a idéia da responsabilidade. Quer dizer, eu tenho que

pagar isso daqui no mês que vem. Então o Deleuze demonstra como

talvez o cartão de crédito mostra justamente um novo modo de

organização do tempo que pressupõe uma outra coisa. E isso é que é

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terrível, segundo os críticos do pós-moderno: a idéia de que o

presente não passa, de que o presente é eterno. Na hipótese

iluminista, o futuro é o tempo donde vem o verdadeiro sentido da

história e, portanto, o presente é só uma passagem, o presente deve

ser declarado rapidamente passado. Quer dizer, quanto mais a gente

matar o presente, mais rápido o futuro vem. Que é a idéia da

revolução. A revolução é isso. Agora, no nosso tempo, desde os anos

80, sumiram radicalmente das discussões termos como revolução,

luta de classes não sei se vocês concordam e, hoje, uma pessoa

que ouse falar de revolução ou de luta de classes imediatamente será

classificada como desadaptada ou neurótica ou romântica ou pouco

realista. O nosso presidente propôs: “esqueçam o que eu escrevi”,

em nome de um realismo político que a gente sabe que não é só um

realismo mas que é um cinismo radical.

Agora, os críticos justamente criticam a hipótese de que o

nosso presente parece que virou um presente de um valor de troca e

de fetichismo radical da mercadoria, onde a gente tem apenas um

processo contínuo de troca, um troca-troca absolutamente

generalizado, e que, como a gente não tem idéia de futuro parece

que o presente se repete , todos os passados são empilhados como

se eles estivessem à nossa disposição. Então, por exemplo, alguns

urbanistas têm chamado a atenção para o espaço contemporâneo das

metrópoles, para como se vive hoje uma espécie de simultaneidade

estilística, principalmente na arquitetura, de citação de estilemas de

estilos históricos. Então a gente está num espaço que é neobarroco,

babilônico, romano, grego, renascentista, neoclássico, romântico,

Bauhaus, funcional, Corbisier e pau-a-pique. Agora, isso é

meramente um modismo? Alguns dizem que não, não é um modismo,

que isso está correspondendo a uma estrutura mais funda, mais

radical do próprio modo de organização da percepção nas mudanças

econômicas, políticas e culturais do presente, que estão fazendo com

que o tempo seja vivido de um outro modo. Por exemplo, o

Gumbrecht chama a atenção para o fato de que quem está em Nova

York fazer uma ligação para Paris e o Oceano Atlântico não ser um

obstáculo espacial. Há uma simultaneidade radical, é como se eu

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estivesse falando com o meu amigo no quarto ao lado ou aqui,

com vocês. O que significa isso? Aquilo que alguns estudiosos

chamam de “glocal”, quer dizer, é um global que está no local, uma

simultaneidade do espaço de todas as versões, a possibilidade de a

gente ter acesso simultâneo a todas as versões.

A gente tem nisso duas posturas básicas, não sei se vocês

concordam. Existe uma possibilidade, na medida que hoje a cultura

acumula, empilha, tem um padrão de arquivo, vai juntando e citando

aparentemente de modo desierarquizado... Quando eu era moço,

havia uma discussão básica para a gente que era a distinção entre

kitsch e cultura alta. Então a gente dizia: “ah, isso é kitsch”; “isso é a

grande poesia”; “ah, essa música é boa, essa outra é kitsch”. E a

idéia de uma cultura erudita oposta à indústria cultural. E a idéia

ainda de uma cultura popular oposta a uma cultura não-popular. E a

idéia ainda de uma validade de termos como “direita” e “esquerda”

na determinação de posições políticas. Agora, a gente sabe que,

desde os anos 80, esses termos desapareceram. E principalmente

nos midia a gente percebe uma absoluta e radical indeterminação do

valor estético, por exemplo. A gente tem, numa mesma página tipo

Folha de S. Paulo mas também seria New York Times ou Figaro,

em qualquer parte do mundo , ao mesmo tempo, uma notícia sobre

o Caetano Veloso falando do amor dele pelo Fernando Henrique e, do

outro lado, um trecho de Mozart, o Macaco Simão falando mal do

Mário Covas, um anúncio do Brad Pitt e depois uma pequena notícia

de culinária. Há trinta anos atrás uma página como essa seria

violentamente criticada por sociólogos, historiadores, críticos etc.

como uma contrafacção e como algo kitsch e radicalmente de mal-

gosto e como uma coisa ridícula, absurda. Agora, não, a gente tem

uma espécie de absoluta equalização, não há intervalos. E há uma

espécie de desierarquização do valor artístico.

Isso produz um problema crítico que é divertido e que é o

seguinte: os críticos iluministas, que ainda estão aqui, os críticos

marxistas, gente que lê muito Adorno ou que tem a cabeça formada

pelo Walter Benjamin, quando vêem esse espetáculo pensam assim:

“nossa, que horror, que horror”! Ao mesmo tempo, quando vêem, por

14

Page 15: A TEMPORALIDADE NA CULTURA CONTEMPORÂNEA

exemplo, o novo romance do menino-Folha-de-S.-Paulo, que usa a

Folha como meio de marketing para publicar seu novo romance que

vai falar das relações incestuosas homoeróticas que agora é

politicamente correto , eles dizem assim: nossa, que péssimo esse

romance, uma porcaria! Por quê? Nós lemos Kafka, quando éramos

jovens. Kafka! Ao mesmo tempo, eles vão a uma exposição de pintura

e vêem lá, por exemplo, que o Fulano está repintando a repintura da

pintura de Beltrano, que ele está fazendo uma paródia da estilização

da citação etc.. Então eles falam assim: putz, mas não tem invenção

nenhuma, esse cara não tem nada, nós gostávamos do Picasso, do

Klee, essa gente sim, é inventiva. Agora, isso é um problema crítico

muito interessante porque esses críticos ficam numa atitude de

choro, nostálgica, de melancolia tipo “como era verde meu vale”,

dizendo assim: aquele tempo sim, que era bom, e agora vivemos uma

decadência radical dos valores. E eles inclusive produzem uma

contradição no próprio discurso que é a idéia de propor produtos da

alta modernidade — Kafka ou Picasso, poderia ser Matisse ou Joyce

ou Eliot — como modelos para o poetinha ou escritores de hoje.

Agora, se a gente é moderno contra o pós-moderno, a gente não pode

propor que o moderno seja modelo de coisa alguma porque, por

definição, o moderno é uma idéia iluminista que faz com que o

moderno tenha que se negar a si mesmo. O moderno não admite

cânones, o moderno não tem modelo. Então o crítico que diz assim:

“isso não presta” e Kafka é o modelo para dizer que isso não presta,

é de uma violenta contradição porque ele está propondo que um

artista moderno como Kafka seja um acadêmico, seja um clássico que

sirva de modelo para uma outra produção. Isso é um lado, que tem

esse choramingo na cultura e que hoje vem, eu acho, principalmente

da área do marxismo. Marxistas que ficam chorando, dizendo que é

muito triste... Realmente, a sociedade neoliberal é um horror! Mas

não adianta ficar nessa posição só de choro.

Outro problema é o seguinte: como tudo está equivalente, a

gente corre o risco de cair num radical relativismo cultural e bater

palma para tudo, ficar apenas numa posição de descrição e achar

que tudo é legal. O problema que há hoje, no modo como

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Page 16: A TEMPORALIDADE NA CULTURA CONTEMPORÂNEA

enfrentamos essas questões e também a questão da organização do

tempo na experiência histórica da cultura contemporânea, na minha

opinião — que é só uma opinião —, é que não temos categorias para

descrever o que acontece. Quer dizer, a realidade é muito maior do

que a gente pensa. E ela provavelmente é muito mais rápida. A gente

ainda está aplicando categorias iluministas, que são as nossas, para

pensar processos que já deixaram o iluminismo para trás. Se a gente

fica na posição de crítico modernista, nostálgico de bailado,

nostálgico da grande arte do século XX — que é uma grande arte,

realmente —, a gente fará enunciados melancólicos e regressivos

sobre o presente. Se a gente fica na posição de meramente

relativizar tudo, a gente acaba aderindo à essa espécie de liquidação

geral que é apenas um marketing da cultura como mercadoria, como

regressividade etc.. A questão que se tem, então, que é crítica e

teórica, e provavelmente epistemológica, é como nós vamos pensar a

cultura hoje de modo que não seja meramente regressivo, propondo

voltar a uma coisa que já passou, e que também evite meramente

aderir ao que está aí.

De qualquer forma, parece que, na experiência do tempo hoje,

o futuro está bloqueado. Por que? Talvez porque o presente não

passa. E por que ele não passa? Aí temos duas hipóteses: uma, que

vem da área do marxismo e da crítica muito bem fundada ao mundo

neoliberal hoje, é a idéia de que o presente não passa porque os

processos econômicos e políticos produzem, nos indivíduos, um

desinvestimento básico das relações de crítica. Por exemplo, quando

o trabalho tem que se aliar ao capital para garantir emprego, a idéia

de revolução que até ontem animava o movimento operário foi para

o espaço. Ao mesmo tempo, a idéia de que numa cultura como essa o

capital está revolucionando a cultura e que, nesse sentido, o

presente não passa e o futuro está bloqueado porque o que está

dominando, por enquanto, é esse presente mercantil, financeiro, da

troca econômica que transforma a cultura em valor de troca. A gente

está percebendo isso, por exemplo, nos programas do Banco Mundial

para a universidade ou para o ensino brasileiro, essa idéia de que só

interessa, enquanto ensino, enquanto educação, aquilo que seja

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Page 17: A TEMPORALIDADE NA CULTURA CONTEMPORÂNEA

imediatamente rentável. O Bill Gates esteve em Stanford há coisa de

cinco anos atrás e reuniu todos os artistas, arquitetos, músicos,

pintores que dão aula lá, reuniu também o pessoal de letras, os

filósofos, historiadores, todas as humanidades e as artes e disse

assim para eles: vejam, eu ganho trinta milhões de dólares por mês.

É um argumento divino, é absolutamente absoluto. E aí ele disse

assim: vocês ainda perdem tempo em ensinar a estrutura do teatro

de Shakespeare? Vocês discutem se Macbeth é ou não um criminoso,

se ele é ou não maquiavélico? Isso é bobagem. Vocês, com o saber

que têm, devem ensinar seus alunos a produzir enredos que imitem

Shakespeare porque a gente tem um grande campo de indústria de

divertimento pela frente. Que é o modelo japonês também, vocês

sabem. Os japoneses estão fazendo uma aposta que a grande

economia do século XXI será o signo. Daí o investimento numa

educação que já está treinando gente lá para produzir divertimento

para as massas, porque eles estão fazendo uma hipótese de que a

informática está liberando as pessoas do trabalho imediato e que o

crescimento dessa gente que presta serviços, terciários etc. será

infinito. Agora, a cultura está nessa chave, segundo uma crítica

marxista mostraria, justamente por essa idéia capitalista radical de

que a cultura eficazmente sempre foi uma mercadoria, um presunto,

e que só interessa quando o presunto é imediatamente rentável,

ponto. Essa é uma hipótese. Os críticos mais otimistas — e que são

pós-modernos — estão dizendo: olha, chega de melancolia, a coisa

mudou, o futuro está bloqueado porque a gente tem um excesso de

futuro. O presente é tão múltiplo, tem tantas pluralidades, tantas

articulações que a gente não sabe qual é o futuro porque acabou

aquela idéia iluminista de que o futuro era um só e que seria um

futuro superando o presente como revolução. A gente tem milhões de

futuros hoje, por isso o futuro aparece bloqueado — ele está

indeterminado, nós não sabemos qual seja.

Então, nesse espaço, a gente tem uma discussão acho que

brava da cultura, se a gente pensar que, ao mesmo tempo, os

processos econômicos neoliberais estão pondo cada vez mais gente

para fora da economia, da produção, da educação, da saúde etc. e

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Page 18: A TEMPORALIDADE NA CULTURA CONTEMPORÂNEA

simplesmente lavando as mãos. Quer dizer, até ontem havia um tipo,

que era o intelectual iluminista ou o intelectual crítico, que ainda

ousava ter a idéia de que ele podia falar por essas massas. Hoje essa

é uma idéia que envergonha, ninguém tem coragem de falar por

ninguém — achar que eu vou doar consciência para um proletário do

verdadeiro dever histórico dele, isso deve envergonhar realmente

qualquer um. Mas é um equívoco que houve. Ao mesmo tempo,

quando desaparece essa idéia da crítica ou do intelectual como um

tipo crítico, que tomava partido político na questão da cultura,

também desaparece essa velha representação do tempo como

contradição, negação, transformação, superação e revolução. Hoje

essas idéias estão aparentemente ausentes na cultura não só no

Brasil, é um fenômeno mundial. Então a gente está numa situação

em que teríamos que discutir o que significa um novo modo de

vivenciar o tempo e que cada vez mais a espacialização, a

simultaneidade substituem as idéias de contínuo ou de superação e

que a negação desaparece e se vive uma espécie de plena

possibilidade afirmativa daquilo que foram chamadas as diferenças.

Agora, cada vez mais, a gente tem diferenças que são legiões. Quer

dizer, desde gays, lésbicas, homoeróticos, passando por negros,

judeus abandonados, crianças, FEBEM, vocês têm tudo. São tantas

minorias... Agora, a sociedade de classes, obviamente, está aí e está

cada vez mais eficaz. O capital está aí, nós temos uma sociedade

ainda baseada na idéia de exploração. Provavelmente, então, o que a

gente não tem, na rapidez dessa mudança, são as categorias que

permitissem a gente pensar o tempo.

Agora, na idéia do Koselleck, que eu acho uma hipótese muito

interessante, pensando no modo como entendemos a experiência,

quer dizer, de que modo classificamos e definimos a categoria de

experiência, o que entendemos por experiência. Ao mesmo tempo,

como acumulamos a experiência, que função tem nela, por exemplo,

a memória? O que é a memória, hoje, quando ela está num disco

rígido ou em disquete? É interessante pensar. Que relação

estabelecemos com a experiência não só do presente mas

principalmente do passado em processos da nossa vida no presente

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Page 19: A TEMPORALIDADE NA CULTURA CONTEMPORÂNEA

em termos de uma expectativa de futuro? Quer dizer, qual o nosso

horizonte de expectativas do futuro? Como nós pensamos o futuro? E

se nós não o pensamos, por que não pensamos o futuro? E aí esses

elementos — a categoria experiência, a categoria horizonte de

expectativa, a categoria previsibilidade e imprevisibilidade do futuro

— permitiriam a gente pensar uma outra coisa que é fundamental

para pensar o tempo o que é o evento, o que é o acontecimento. Na

nossa sociedade não acontece nada — não sei se vocês concordam

—, o tédio é mortal — eu pelo menos sinto. Acho que existe uma

espécie de grande agitação da troca, todos correm de um lado para

outro, a simultaneidade é cada vez mais radical, mas não acontece

nada que seja uma transformação do estado de coisas. Um enunciado

como esse — vocês poderiam dizer para mim — é iluminista, você

ainda está com o modelo anterior, porque hoje talvez não se devesse

nem colocar isso, que não acontece nada. O não acontecer nada

talvez seja próprio da troca porque há apenas a manutenção do

circuito, sem que aconteça nada no circuito que está circulando, mas

nada de novo vem de fora ou de dentro que o interrompa. Nesse

sentido, algumas pessoas críticas — não sei se elas são iluministas

—, têm o direito de dizer, eu acho, que é muito tedioso, é muito

chato, é muito repetitivo.

A gente tem alguns eventos programados. Por exemplo, a

gente pode matar um presidente. É o modelo norte-americano de

produzir um evento. Ou então, por exemplo, a gente é um serial

killer, a gente sobe numa torre e com um rifle mata os nossos

colegas na universidade ou na escola. Agora, será que isso é um

evento? A polícia, na periferia de São Paulo, em Carapicuíba, mata

de sete a oito por noite. Não é um evento. É um acontecimento, mas

não é um evento porque isso não é dado nos midia e isso não afeta,

aparentemente, a estrutura da vida. O que é um acontecimento?

Parece que a idéia de acontecimento está relacionada também

sempre a uma certa expectativa que a gente tem em relação ao

futuro, ao modo de trabalhar com a experiência do passado e do

presente e ao modo como orientamos, no sentido político da

intervenção, essa experiência e essa expectativa no nosso presente.

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Page 20: A TEMPORALIDADE NA CULTURA CONTEMPORÂNEA

Isso determinava o evento. O que é o evento? É aquilo que acontece

podendo não acontecer. Ou seja, ele é uma ruptura, o acontecimento

é uma ruptura.

Nesse campo não-hermenêutico atualmente vêm vindo vários

estudos justamente sobre novos objetos. E um dos objetos que vem

sendo estudado em Princeton, por exemplo, é a teoria da emergência

ou a teoria do evento. Quer dizer, a idéia de inventar uma nova

ciência, uma heurística, que deve tentar pensar novos objetos que

são meio impensados ainda hoje mas que já estão entre nós. Por

exemplo, o criminoso que é preso no Canadá porque o satélite leu a

sua placa; o cartão de crédito que produz tempo virtual; o fato de a

gente ter cada vez mais fenômenos neofascistas; o fato de que, ao

mesmo tempo que se vive um absoluto fim dessa idéia iluminista, a

gente estar cada vez mais vivendo os cultos de Ísis, cada vez mais há

cultos esotéricos, cultos do diabo, essas seitas de televisão que se

proliferam. Quer dizer, há vários eventos, ou melhor, vários

fenômenos acontecendo na cultura que mereceriam ser discutidos

como objetos novos, mas geralmente o que está acontecendo é que,

para falar deles, o crítico ou fica numa atitude melancólica — “oh!,

isso não presta, é uma decadência!” — ou ele fica numa atitude de

mera validação. E talvez a gente devesse recuar o pressuposto e

tentar discutir quais são as possibilidades efetivas de encontrar

categorias novas de pensar os objetos. Por exemplo, a universidade

não pensa o cotidiano. A universidade pensa só um saber erudito já

acumulado que é um saber geralmente morto. A universidade, onde

tem cabeças, geralmente não pensa o aqui e agora de uma prática

cotidiana. Ela tem que pensar o século V antes de Cristo,

evidentemente, ela tem que fazer isso, que é a função dela. Mas não

só isso. Ela precisaria inventar uma heurística, uma arte de inventar

problemas futuros que a gente nem imaginou ainda. Aí seria legal,

porque resposta a gente não tem nenhuma. Isso é legal também, isso

é magnífico, é um tempo de uma absoluta indeterminação.

De qualquer forma, é interessante pensar: talvez pensar

seriamente a presença do presente, quer dizer, o que é a presença

do presente. Provavelmente a presença do presente é, na minha

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Page 21: A TEMPORALIDADE NA CULTURA CONTEMPORÂNEA

hipótese, uma desierarquização dos valores, uma absoluta

simultaneidade das relações, uma ausência do futuro que está

bloqueado , um acúmulo radical de todos os passados que estão

armazenados e citados à vontade e, principalmente, uma indefinição

do que seja, por exemplo, o corpo. A gente teria que pensar também

o corpo. O que é o corpo, quando ele se move, quando ele entra em

contato com o computador? O que é o sujeito, nessas várias

conexões? A gente teria que discutir até se hoje ainda vale o nosso

modelo lingüístico significante, significado que dá conta, como

uma semiótica, dos fenômenos culturais, ou se a gente não deveria

recuperar aquilo que o Jean François Lyotard propunha como uma

energética, uma teoria de pulsões, uma teoria libidinal da produção

cultural.

Mas isso são hipóteses. Eu acho que falo muito. Inclusive tinha

um texto feito e não o segui, eu me perdi falando outras coisas.

Espero não ter sido excessivamente perdido. Desculpem-me, eu falei

de maneira arbitrária. Talvez eu tenha sido apenas pós-moderno.

Obrigado. [Aplausos. Pausa.]

Então, vocês acham que deu para situar alguma questão? A

minha idéia foi lhes propor assim, de repente, três hipóteses sobre a

temporalidade pensada como uma articulação social. Quer dizer,

essa hipótese de que fala o Koselleck, do tempo Antigo Regime, um

tempo teológico, em que Deus está presente; o tempo iluminista, que

a gente encontra nos iluministas e no marxismo, essa hipótese de

uma crítica e da superação; e o tempo pós-moderno, que parece não-

tempo, que parece uma eternidade. Como dizia o Drummond, como

ficou chato ser moderno, agora serei eterno. É mais ou menos essa

situação em que somos póstumos em relação a nós mesmos, nós já

morremos e nós continuamos vivos — isso é que é legal.

VERA PALLAMIN — Professor, uma das coisas que nós temos

discutido muito aqui na FAU é justamente a ausência de crítica no

campo da arquitetura. O discurso crítico, quando vem, na verdade

ele vem frouxo. Normalmente o que a gente sente mais falta, em

termos gerais, é essa grande ausênsia. Isso por um lado. Por outro, a

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Page 22: A TEMPORALIDADE NA CULTURA CONTEMPORÂNEA

ausência de categorias, tal como o senhor disse, eu tenho a

impressão que na arquitetura é um dos pontos mais críticos até pela

própria questão propositiva da arquitetura. Normalmente ela não

pensa suas categorias. [Pergunta parcialmente inaudível]

Eu posso falar a partir sempre do que eu vivo — e o que eu vivo

muita vez é muito restrito. No caso da arquitetura, tenho seguido às

vezes um debate. Conheço, por exemplo, as discussões feitas aqui

pela Otília Arantes, que eu acho que vem numa chave marxista e às

vezes até um pouco nostálgica, crítica mas melancólica, às vezes um

pouco reclamando do leite derramado, embora seja muito eficaz.

Eu me lembro de uma banca de que eu participei, de uma

orientanda da Otília, que é uma arquiteta mas que defendeu uma

tese sobre o Barragán na área de estética, na Filosofia, aqui na USP.

E que, para discutir a arquitetura do Barragán, ela lançava mão das

teorias do Baudrillard e de outras teorias de críticos do pós-

modernismo e críticos pós-modernos sobre arquitetura. E eu me

lembro que uma das principais categorias críticas que ela

trabalhava, ao estudar o Barragán, era a idéia da desaceleração. Ela

propunha, por exemplo, a hipótese de uma crítica que não trabalhava

mais com os conceitos macro — “a revolução”, “a humanidade”, “a

luta de classes”, “o proletariado”, “a burguesia” — que, no limite, são

generalidades muito generosas mas muito amplas, e a idéia de uma

crítica no micro, a idéia de uma crítica da prática situada, datada

daquele tipo de agente histórico para aqueles receptores naquela

situação. Então é a idéia de uma crítica que, por exemplo, levantasse

as condições de possibilidade de produção daquele objeto num

determinado estado da cultura naquela situação, com tais

determinações materiais, com tais limitações. Então a tese dessa

professora — é a Hygina Moreira Bruzzi, de Belo Horizonte — é

muito bonita, muito eficaz, porque ela fazia uma hipótese das

apropriações que o Barragán fazia da arte moderna e, ao mesmo

tempo, da velha arquitetura asteca-tolteca mexicana, da arquitetura

indígena. Ao mesmo tempo ela mostrava as condições de trabalho de

um arquiteto como ele, da formação dele como arquiteto no México,

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Page 23: A TEMPORALIDADE NA CULTURA CONTEMPORÂNEA

quer dizer, num país latino, com uma determinada tradição, e a

relação que ele estabelecia com a arquitetura européia e a norte-

americana. Ao mesmo tempo ela introduzia, para discutir a

arquitetura produzida por ele, categorias que ela importa da teoria

crítica francesa do pós-moderno, em que ela propunha essa hipótese

da desaceleração. Eu me lembro que era uma das coisas

fundamentais do trabalho dela. A idéia, por exemplo, de que as

nossas sociedades são cada vez mais rápidas, de que nós vivemos um

presente contínuo e que, aparentemente, embora o futuro não venha

nunca e o passado esteja acumulado, nós temos menos tempo no

tempo, cada vez mais nós estamos mais afobados, cada vez mais

ocupados e cada vez mais distraídos da distração pela distração —

como diz o Eliot. Então a hipótese da Hygina é que uma arquitetura

como a do Barragán era uma intervenção política muito forte numa

prática do espaço porque ela permite desacelerar pelo modo como

ele faz o corpo se relacionar com a forma no espaço. Ela exige, por

exemplo, uma atitude contemplativa, que é uma atitude radicalmente

anticapitalista. É uma atitude até antifascista — se se pensar que a

regra básica do fascismo é “mexa-se!”, a energia. Quer dizer, é um

cara platônico, ele exige que a gente pare e fique olhando e que fique

pensando, a gente não sabe muito bem, porque ele é insípido,

neutro, chato, a gente fica parado. E ela dizia que isso era a eficácia

política dele. E, nesse sentido, acho que ela fazia um trabalho crítico

particular. Quer dizer, ela não está interessada em pensar se o

Barragán libera o proletariado mexicano, mas ela pensava que o

Barragán, naquela prática de arquiteto que é uma grande prática

, tem uma técnica muito precisa, tem um projeto muito preciso e

ela, como professora de filosofia fazendo uma tese na área de

estética, podia demonstrar que tem um sentido político, mas numa

espécie de redefinição do político, quer dizer, o político como

intervenção pontual num processo micro. Que é uma idéia

provavelmente importada do Michel Foucault, do Deleuze, essa idéia

de que o sistema como um todo é radicalmente forte mas é

totalmente frágil nas conexões. E então, como vivemos na conexão,

eu posso, por exemplo, brigar com a minha mulher, que é uma

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Page 24: A TEMPORALIDADE NA CULTURA CONTEMPORÂNEA

neurótica, eu posso exigir dela que não seja neurótica, posso brigar

com o meu patão, posso brigar com meu professor, com meu colega,

posso conseguir pequenas coisas no micro porque a idéia de que vou

salvar a sociedade é uma idéia mitológica, eu não vou conseguir

nada disso. Então essa hipótese do Deleuze é muito interessante,

essa hipótese da intervenção micro. Talvez por aí fosse uma hipótese

de buscar as categorias críticas, talvez na própria prática, no

cotidiano da prática, a gente pudesse descobrir categorias.

Evidentemente sem nenhum sentido épico ou heróico.

Eu me lembrei do trabalho da Hygina porque ele junta duas

coisas: uma reflexão estética e filosófica ao trabalho sobre a

arquitetura, que é muito bonito. Vale a pena ler o trabalho dela,

defendido com a Otília Arantes.

VERA PALLAMIN [Pergunta inaudível]

Às vezes tem um purismo nos críticos marxistas e eu acho

que eles são muito coerentes e eles têm razão. Quer dizer, a

atividade vai ser provavelmente uma reforma. É como pôr luz na

favela. Eles vão continuar favelados, vão continuar vivendo ali, o que

eles vão ter é provavelmente a luz na favela. Vai ser um conforto

para eles, do ponto de vista dos agentes. Agora, do ponto de vista da

estrutura geral, a sociedade de classes permanece a mesma e as

pessoas continuam dominadas como faveladas. Então essa crítica é

clássica, é apenas uma atitude reformista, no limite encontra a idéia

da caridade cristã. Agora, aí é uma questão quase ética, que depende

de escolhas individuais inclusive. Quer dizer, se vale a pena ou não

ingressar num projeto desses. A gente pode ter uma atitude

radicalmente teórica, crítica e totalmente fundada e dizer: não, eu

não acho que vale a pena, não vou participar disso porque isso vai

apenas realimentar a estrutura geral de dominação, ponto. E pode

ser aqueles que dizem assim: “bom, apesar de tudo a realidade está

sempre se movendo, sempre a gente pode contar com o que é

eventual e por que não entrar nisso, quem sabe?” Geralmente os

pequenos movimentos que cresceram mudaram muita coisa na

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Page 25: A TEMPORALIDADE NA CULTURA CONTEMPORÂNEA

história, a gente sabe disso. Por exemplo, a política de reforma

agrária é conservadora? É. Será que não valeria a pena?

Quer dizer, são coisas para discutir. Eu não saberia dizer para

ninguém: você deve fazer tal coisa. Acho isso de uma imoralidade

radical. Então a hipótese é: você pode fazer, quem sabe? Mas é uma

questão ética, que é um outro problema também, se é possível uma

ética hoje. Porque não tem fundamento para uma ética. Qual seria?

GUIOMAR DE GRAMMONT E a questão do neobarroco? Como

você vê essa analogia diante do fato de que no barroco você tem um

tempo muito determinado, embora tenha também essa idéia de um

presente congelado, e o fato de que hoje a gente tem um futuro

absolutamente indeterminado? [Pergunta parcialmente inaudível]

É um campo muito amplo, esse. Me parece que nas discussões

da cultura contemporânea que propõem que a nossa sociedade é um

“neobarroco”, um “novo barroco”, ela já tem uma hipótese feita do

que seja barroco. Quem diz que a gente é um novo barroco acredita

que haja uma coisa chamada “barroco”. Geralmente, na definição

desse barroco, nas posturas neobarrocas eu penso no Calabresi e

outros , se supõe que barroco é uma arte excessiva, tumultuada,

informal, com predomínio da linha curva, exagerada, acumulada, às

vezes afetada, até de mal-gosto, kitsch e que tem uma mania de falar

de tudo, de incorporar tudo e que tem horror do espaço vazio, horror

do vácuo e que é uma sobreacumulação, uma arte acumulada. Agora,

o crítico neobarroco vê um altar feito pelo Francisco Xavier de Brito

o altar da Igreja do Pilar, em Ouro Preto, por exemplo. Aquilo é

absolutamente acumulado, realmente. Existe ouro pra todo lado, anjo

pra todo lado, Deus pra todo lado, um acúmulo radical. O crítico, ao

mesmo tempo, vê, por exemplo, um objeto feito por um autor

contemporâneo, um autor francês eu esqueço o nome dele , que

fez uma cadeira radicalmente antifuncional, toda acumulada de

botões e pregos e espetos parece um objeto do Man Rey, um

negócio todo desconforme. Aquilo é tão acumulado de coisas, tão

exagerado, que o crítico diz: este é um fenômeno evidentemente

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Page 26: A TEMPORALIDADE NA CULTURA CONTEMPORÂNEA

próprio do barroco, isso é neobarroco. O crítico tem uma outra

hipótese aí também implícita que é a idéia de que há uma forma

universal de mentalidade, de que aquilo que aconteceu no século

XVII provavelmente se repete no século XX porque provavelmente é

um universal do espírito humano. Existe o espírito humano o que é

discutível , depois há uma universalidade da forma e aquilo que foi

usado no XVII pode ser usado de novo a ponto de ser “neo”.

Agora, a primeira dúvida que a gente tem é a seguinte: que

aquela arte tipo Francisco Xavier de Brito, no século XVIII mas que

no Brasil é XVII, o nosso século XVII dura duzentos anos, até a

Missão Francesa, 1817 pelo menos... O crítico que diz isso está

supondo o seguinte também: que existe, acima da diferença

histórica, na analogia, um dado essencial que é uma “expressão

barroca”. Agora, o crítico do crítico poderia lembrar o seguinte: que,

no século XVIII, trata-se de uma monarquia absoluta e, no século XX,

trata-se de um processo capitalista pós-industrial; que, no século

XVII, trata-se de uma sociedade de ordens, baseada na idéia de

hierarquia e de fidalguia e que, no século XX, essa idéia está morta

desde a Revolução Francesa; que, no século XVII, trata-se de uma

sociedade que acredita que Deus é causa e fim do tempo e que, no

século XX, evidentemente, Deus é apenas uma presença da condição

da lógica, da condição do silogismo, quer dizer, creio em Deus, logo

eu penso posso pensar assim. Então talvez as diferenças sejam

muito maiores do que as identidades.

Agora, por que há interesse em dizer que a gente é neobarroco,

no Brasil? Essa é uma outra questão. A gente sabe que na América

espanhola por exemplo, em Cuba ou no México ou na Colômbia

os processos de emancipação política tiveram que afirmar, como

afirmaram no Brasil, uma originalidade local. Então Lezama Lima,

em Cuba, fala em “el señor don barroco”, quer dizer, “o senhor

barroco”. É justamente essa capacidade cubana de juntar a cultura

indígena, a cultura africana e a cultura espanhola, misturar tudo isso

e dar uma solução local que, desde o início, sendo uma cultura

crioula, diz ele, afirmou valores locais contra a dominação espanhola

e, depois, contra a dominação norte-americana. Então a gente tem a

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Page 27: A TEMPORALIDADE NA CULTURA CONTEMPORÂNEA

idéia de um neobarrco afirmado em programas nacionalistas de

tradições locais contra a dominação interna e a externa.

Mas tem também outras coisas e no Brasil isso é tenebroso

, que é a idéia de uma historiografia que nós temos, que é uma

historiografia conservadora, que afirma que os processos da nossa

colonização e do nosso Império e da nossa República sempre foram

harmônicos e feitos com a máxima delicadeza e que o que

caracteriza o Brasil é fundamentalmente a integração cultural, a

integração social e o respeito pela diferença. Quer dizer, aqui

sempre cabe mais um. Agora, quando a gente vê um altar do Brito,

aquilo tem uma citação de estilemas romanos, medievais,

renascentistas, uma citação de mil coisas que aparentemente estão

coexistindo ali, integradas. Na verdade, aquilo está hierarquizado.

Agora, quando a gente diz que nós somos neobarrocos como o altar

do Brito era barroco, nós estamos falando também que o que

caracteriza a nossa mente, a nossa cultura, é esse padrão de

integração da diversidade de maneira harmônica, apenas acumulada.

Ao mesmo tempo vocês percebem, por exemplo, quando o Fernando

Henrique se alia com Antônio Carlos Magalhães, quando a chamada

crítica intelectuália do Sul se alia com a oligarquia nordestina, o

discurso que veio validando isso foi o discurso justamente da

integração e de um tradicional destino do povo brasileiro para ficar

acima das discussões, das divisões etc.. Quando nós dizemos que nós

somos neobarrocos nós justificamos uma tradição de dominação.

Então tem um uso político da coisa que é um uso que produz

tradições no sentido da validação dos interesses contemporâneos.

Então, nesse sentido, a gente pode ser violentamente crítico disso

dizendo: olha, aqui está havendo uma apropriação desses restos dos

séculos XVII e XVIII, usados por tal crítico que tem tal compromisso

com tal grupo, propondo isso em função de tal interesse e está

produzindo esse efeito. No Brasil acho que vai por aí viu, Guiomar?

essa idéia do neobarroco. Se bem que anda meio desaparecida.

Barroco tem aqui também um dado nobilitador. Barroco virou

um fenômeno burguês. Você imaginar, por exemplo, o grande

espetáculo mítico que a FIESP produziu ano passado e validado

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inclusive por intelectuais da USP, isso que é mais assustador...

Fizeram aquele evento no prédio da FIESP e a gente entrava num

templo, parecia um templo maia o modo como a gente entrava

naquele espetáculo... Mas era uma ostentação de poder econômico.

Quer dizer, quem tem hoje no país essas peças. Era assim uma coisa

esmagadora, associada à tradição católica, à idéia de que somos

naturalmente católicos, naturalmente religiosos e naturalmente

subordinados como membros de um corpo místico, como se a gente

fosse barroco. É uma coisa espantosa. É por isso que estava

brincando com vocês, mas é real: as grã-finas mineiras hoje que

dizem, nas colunas sociais de Belo Horizonte, as socialites:

Aleijadinho? O meu é Aleijadérrimo! Vejam a barbárie que é uma fala

como essa. Porque provavelmente ela está dizendo: eu sou casada

com banqueiro e eu posso comprar. Ou então: eu sou amante de tal

ministro e ele me consegue etc. É abissal a barbárie, é assustadora,

mas é o que está aí.

Então o barroco tem esse uso de validação de classe. Eu acho

que é muito forte isso hoje na cultura, porque ele produz uma

tradição num país que procura doidamente tradições, ele nobilita. A

gente vê isso até numa indústria que existe nos arredores de cidades

como São Paulo, uma indústria de coisas barrocas. Vocês já viram:

móveis barrocos, artifícios barrocos, objetos barrocos que as pessoas

compram para ter provavelmente uma origem, uma tradição. Uma

coisa kitsch radical, mas está aí. Eu penso que é por aí, Guiomar, não

sei. Tem mais coisa mas eu falo demais. O Guimarães Rosa dizia que

é melhor falar bobagens do que calar besteiras. O Rosa é um cara

sábio, não é? [Pausa]

E então? Vocês estão plenos de tempo... Acabou?

PESSOA NÃO IDENTIFICADA A gente, quando sai do colegial,

nem sabe o que é barroco. Na verdade, “barroco” não existe, na

época eles não chamavam... [Pergunta parcialmente inaudível]

Não, não chamavam. A melhor definição que ouvi do termo

“barroco” foi em Mariana, de um menininho, daqueles guias, levando

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Page 29: A TEMPORALIDADE NA CULTURA CONTEMPORÂNEA

um grupo de turistas ali na Sé de Mariana. Ele bateu a mão na

parede assim e falou: tá vendo?, isto tudo é barro, aqui não tinha

pedra quando eles fizeram isso e então eles encheram de barro, é

por isso que a gente chama de “barroco”. E as senhoras

concordaram. Achei uma definição radicalmente funcional. Funcional

e funcionalista. Putz, esse menino tá com tudo! É linda, a definição,

muito bonita. Agora, o nome a gente encontra atestado pela primeira

vez eu acho que em 1593, num texto de um português, o... ai!, aquele

do Colóquio dos simples e drogas e cousas medicinais da Índia... o

Garcia de Orta. Ele usa esse termo para nomear umas pérolas que

traziam da Índia, da região de Baróquia, e que em português foram

chamadas “barrocas”. Então é o nome de uma pérola irregular. Aí ele

começa a nomear brincos de homem e de mulher. “Usava barrocos”,

quer dizer, usava brincos de pérola.

Agora, no século XVII, o termo sai do português, entra no

espanhol barroco e vai para o francês baroque e entra no

inglês baroque , para o alemão barock , para o italiano

baròcco e vai para outras línguas da Europa, passando a significar

qualquer coisa que seja irregular. Então a gente encontra, por

exemplo, no teatro francês do século XVII, a idéia de que uma

determinada personagem tem um “rosto barroco”, quer dizer, que

tem um rosto irregular, que o rosto é feio. A palavra quer dizer feio,

mal-gosto. Esse termo vai assim até o fim do século XIX.

Provavelmente é o Wölfflin que usa, pela primeira vez, quando ele

propõe aquela hipótese de que existe, entre a coisa neoclássica do

XVIII e o maneirismo italiano do XVI que eles chamam de uma

outra arte o termo “barroco”. Ele e o professor dele, o Buckhardt,

que já havia usado esse termo. Agora, os homens do século XVII que

faziam arte — os poetas, pintores, escultores — se diziam

“engenhosos”, “agudos”, “prudentes” ou então nomeavam suas

práticas segundo o estilo retórico que aplicavam. Então um Fulano

que escreve por frases curtas, em ordem direta, com no máximo

quatro palavras por frase e sem adjetivos, ele é “ático”. Um Fulano

que gosta de um período composto por quarenta e sete orações, com

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Page 30: A TEMPORALIDADE NA CULTURA CONTEMPORÂNEA

ordem invertida, com muito adjetivo, é “asiático”. São os termos que

a gente encontra.

Agora, esse modelito barroco, neoclássico, romântico etc. vem

da história hegeliana do século XIX e da história da arte que quer

enfiar tudo dentro de uma etiqueta. A hipótese talvez crítica é que a

gente não necessita da etiqueta e que é mais interessante ir às

próprias práticas artísticas e reconstruir, na hipótese de fazer uma

arqueologia, o modo como aqueles artesãos e poetas pensavam a sua

própria prática. Hoje, nesse campo não-hermenêutico... [interrupção

na gravação] ...história que vem do iluminismo, a gente está

refazendo essas histórias. A história da arte está nessa de novo, essa

idéia de que é preciso buscar a materialidade da prática para dizer

alguma coisa sobre o objeto — embora aqui no Brasil, pela própria

inércia da universidade, ainda domine no ensino esse modelão século

XIX e também interesses políticos na dominância desse modelo. No

Brasil, o fato de a gente permanecer, no campo da história literária

ou da história da arte, mantendo o modelo do século XIX de crítica

evolutiva justifica politicamente o compromisso, por exemplo, das

elites burguesas e do Partido Comunista com elas no sentido de um

etapismo de classe. A idéia, por exemplo, de que é cedo para fazer a

revolução — sempre me foi ensinado isso, quando eu era moço

porque a gente precisa ainda se aliar à burguesia nacional contra a

verdadeira burguesia internacional que nos explora. É preciso fazer

a revolução burguesa no Brasil para depois pensar nessas coisas. Por

enquanto, então, nós devemos manter as tradições. Por enquanto nós

mantemos os esquemas evolutivos de ensino da história. Na nossa

universidade tem um currículo cego, mudo, que passa no modo como

a gente ensina os conteúdos. A própria idéia de disposição

cronológica na história da arte clássico, barroco, neoclássico etc.

ensina isso, ela forma a cabeça com essa idéia de que existe uma

evolução. Que interessa a processos do presente. Agora, a gente

poderia criticar isso daí mostrando o compromisso disso com elites

brasileiras desde o século XIX e mostrando que geralmente são

hipóteses historicamente infundadas, que é apenas um modelo de

historiografia que dominou os outros, por várias razões ideológicas e

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Page 31: A TEMPORALIDADE NA CULTURA CONTEMPORÂNEA

políticas, mas que não é o modelo único ou verdadeiro ou acabado de

história, que a gente pode fazer outras hipóteses. Principalmente

quando se leva em conta que, num recorte de tempo, a gente

encontra uma grande pluralidade de tempos que a gente precisaria

explorar. É por aí, eu acho.

VERA PALLAMIN [Pergunta inaudível]

A discussão desses jogos de linguagem acho que ela vem... [fim

do lado B da fita 1]

...sobre alguma coisa. Então é a idéia de que todo enunciado

tem uma referência — aquilo sobre o que se fala — e tem um sentido

— aquilo que se atribui àquilo de que se fala. Sentido e referência e a

significação associada aos dois, na relação dos dois a gente tem a

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Page 32: A TEMPORALIDADE NA CULTURA CONTEMPORÂNEA

significação. Ao mesmo tempo, a lingüística mostra que o outro

elemento da fórmula — alguém diz para alguém — envolve

justamente o emissor e o receptor que, logicamente, são aquele que

emite e aquele que recebe, mas em termos concretos são indivíduos

situados em práticas concretas ou são instituições — a Rede Globo,

por exemplo, transmitindo o jornal hoje à noite ou o presidente

falando. Então a lingüística dá conta de duas grandes possibilidades

de estudo do discurso. Quando eu tento estudar, por exemplo, a

relação de sentido referência-significação, trabalho ou com as

técnicas de construção do discurso, com a sintaxe, ou com as

técnicas de significação do discurso, como a semântica. Agora,

quando a gente vai discutir as relações entre emissor e destinatário,

entre o que fala e o que ouve, a gente está numa pragmática, na

discussão da prática.

A "teoria dos jogos" — theory games — veio justamente de uma

especialização da lingüística norte-americana e francesa na

pragmática, na discussão do que acontece quando alguém fala e

alguém ouve. Então vocês lembram, por exemplo, aquela idéia de

que há enunciados meramente constativos — eu digo: chove — e se

eu digo que chove alguém que ouve pode dizer: “verdadeiro ou

falso”. Agora, há enunciados que são basicamente performativos que

visam não propriamente constatar um fato mas visam interferir

numa ação, produzir uma ação. Eu digo: cala a boca. A pessoa não

pode perguntar: “verdadeiro ou falso?”. Ela não pergunta, é uma

evidência que eu estou mandando calar a boca. Ela pode discutir a

minha autoridade para mandá-la calar a boca, mas não o fato de eu

estar mandando calar a boca. Há ainda enunciados performativos

que são puramente atos ilocucionários. Por exemplo, eu digo de mim:

estou tão triste hoje à noite! Mas estou falando isso porque eu quero

que ela me console. Na verdade, não estou triste, eu estou querendo

que ela me beije, por exemplo, ou que me compre uma pizza. Então

essas várias possibilidades de uso da linguagem em função de uma

modificação do comportamento do agente ou do destinatário ou da

própria situação em que os dois estão envolvidos.

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Page 33: A TEMPORALIDADE NA CULTURA CONTEMPORÂNEA

A lingüística foi toda para essa questão principalmente porque

era uma discussão de uma teoria da tradução. Por exemplo, o que

acontece se eu, norte-americano, vou numa embaixada diplomática à

China comunista e eu vou traduzir simultaneamente do chinês para o

inglês quando o ministro chinês estiver falando para um diplomata

americano que tem que tomar uma decisão rápida? A gente sabe que

os chineses têm atos ilocucionários, perlocucionários etc. próprios da

cultura deles. Eu, americano, tenho outros. Se eu fizer uma tradução

equivocada posso produzir uma guerra nuclear. Então a questão,

para variar, foi de novo política, quer dizer, era uma aplicação da

lingüística na discussão desse campo ligado à tradução mas tentando

regular, inicialmente, relações políticas, relações diplomáticas. Daí o

positivismo lógico, por exemplo, inglês foi para a idéia de inferência,

conclusão, exclusão, das várias operações lógicas que a gente pode

produzir no discurso a cada momento que a gente fala. Mas sempre

envolvendo eu-tu/tu-eu.

No anos 60 e 70 a gente encontra essa teoria aplicada no

ensino da teoria literária na França e na discussão psicanalítica.

Principalmente o Lacan, que começa a discutir essa hipótese eu

não sei se chateio vocês, se eu estou falando demais , mas aquela

idéia que o Lacan faz: será possível construir uma gramática da

loucura? Porque a loucura é uma retórica, ele diz, a loucura é uma

agitação, quer dizer, o louco é falado, o louco produz imagens, coisas

aparentemente sem nexo. Será possível o psicanalista fazer uma

sistematização de todos os discursos da loucura que permita a ele

prever um discurso louco? E o Lacan fez a hipótese de que era

impossível sistematizar um discurso da loucura porque, por

definição, a loucura cai fora de qualquer sistematicidade, a loucura,

por definição, se define como não-racionalidade. Se a gente vai

racionalizar a loucura, a gente estaria numa contradição. Então a

hipótese do Lacan é: o psicanalista fica com o ouvido atento ao ato

de fala do louco, que é um jogo de linguagem. Então ele deve

dominar técnicas que lhe permitam compreender não teoricamente a

loucura mas entender aquele ato particular, aquela prática

particular.

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Page 34: A TEMPORALIDADE NA CULTURA CONTEMPORÂNEA

Essas hipóteses que vinham da psicanálise, a gente sabe,

entraram na teoria literária, via lingüística, e entram numa grande

discussão sobre a categoria do personagem, a categoria do sujeito e

sobre a própria idéia de “verdade”. Quer dizer, alguém diz para mim:

“eu te amo”. A pragmática mostra que a pessoa pode estar dizendo:

“eu te odeio”. Então qual o critério de validade daquilo que está

sendo dito? Agora, no fim dos anos 70, vocês se lembram, o Jean

François Lyotard fez um enunciado, que causou um grande

escândalo, em que ele diz o seguinte: no modelo iluminista de

história — e que é o modelo marxista — a gente tem uma meta-

narrativa, todas as narrativas, todos os acontecimentos, todos os

eventos podem ser incluídos numa macro-narrativa que dá conta

deles. Que é a idéia da narrativa da sociedade como luta de classes,

do sujeito histórico da luta que é o proletariado, do inimigo histórico

que é a burguesia, das fases do comunismo primitivo até chegar à

ditadura do proletariado e das categorias — ideologia, alienação,

falsa consciência, valor de troca, valor de uso, mercadoria,

fetichismo — que faz o marxismo clássico. O Lyotard dizia: o estado

atual da realidade mostra que é impossível subordinar a realidade a

uma meta-narrativa. Não há hoje mais uma meta-narrativa que

consiga dar conta da pluralidade da realidade. É como se ele

dissesse que a realidade tinha ficado infinitamente maior do que

qualquer discurso. E que o discurso que até então dava conta dela

era extremamente redutor. Ele dizia: o marxismo é uma redução, a

realidade tem outras coisas que não cabem nesse modelo. A hipótese

que ele fez, então, era aquela idéia de recusar o modelo do signo —

significante/significado — e cair na idéia de um investimento libidinal

dos sujeitos agentes enquanto pulsão, a cultura como pulsão — troca

de pulsão de morte, pulsão de vida, investimento anal, investimento

oral, esquizoanálise, esquizofrenia, todas essas discussões que vêm

fortes na cultura. E, ao mesmo tempo, a idéia de que qualquer

discussão da cultura deveria então, antes de começar a falar

qualquer coisa, perguntar para o objeto: segundo quais regras você

se propõe para mim? Porque isso faria o seguinte: se eu vou discutir

um discurso católico, e se eu sou ateu, se exijo dele que ele seja ateu,

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Page 35: A TEMPORALIDADE NA CULTURA CONTEMPORÂNEA

eu não estou entendendo, na hipótese do Lyotard, as convenções que

ele propõe enquanto discurso católico. É quase a idéia de que eu

deveria admitir que ele é um jogo particular de linguagem — o

discurso do cristianismo — que não pode ser reduzido às categorias

de um discurso ateu. Se fizer isso eu estou cometendo um erro

epistemológico, eu teria que tentar entender o discurso

antropologicamente, eu teria que tentar pensar católico mesmo

quando eu não o sou para entender o catolicismo. É essa idéia que

vinha da antropologia também, de que o observador não é neutro,

mas que ele faz parte do objeto que ele observa. E que então, por

exemplo, se vou ver os índios bororo, eu não posso olhá-los de fora

mas tenho que me esforçar o máximo possível para tentar pensar

como um bororo pensa quando ele faz aquele XY ritual. Agora, a

idéia do Lyotard era que a cultura toda se determinava como jogos

de linguagem específicos. Então havia o regime literário, a ficção, a

idéia, por exemplo, de que desde o século XVIII a gente vive isso no

Ocidente. Quer dizer, a gente tem um grupo de discursos que a

gente nomeia “ficção” e “literatura”. Então a gente lê ou se aproxima

desses discursos com determinadas regras pragmáticas. Elas são até

inconscientes, mas a gente usa certas regras. Tem um outro grupo

de discursos que a gente chama “política”. A gente lê de outro jeito.

Outro grupo é “moral”, outro é “religião”, outro é “mito”, outro é

“história”. A hipótese do Lyotard é que eu não poderia ler o discurso

da história nem o da literatura ou o da religião incluindo todos num

macro-discurso que seria o discurso marxista. Quer dizer, esse

discurso, na hipótese dele, é um discurso redutor. A idéia dele era

que a realidade é tão múltipla, tão plural que seria necessário

sempre levar em conta a particularidade do objeto e o tipo de regra

particular que ele propõe para o observador.

Daí a hipótese dos theory games, dos jogos de linguagem. Quer

dizer, eu acho que é uma importação lingüística da pragmática, ela

passa pela teoria psicanalítica sobre a não-unidade do sujeito, inclui

as hipóteses antropológicas dos anos 60 e 70 — e até antes, Lévi-

Strauss também —, também a idéia da física de que o observador faz

parte do campo, que o observador está dentro do objeto, e que então

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Page 36: A TEMPORALIDADE NA CULTURA CONTEMPORÂNEA

é necessário um saber da... De novo a idéia do micro e da

particularidade do objeto. Você encontraria isso na discussão que o

Lyotard tem também sobre o pós-moderno. Ele foi evidentemente

criticado pelo Habermas, que viu nisso uma afirmação de fim da

história e de negação do sentido. A hipótese do Lyotard era a de que

ele não estava negando o sentido mas, ao contrário, afirmando que o

sentido é múltiplo, que há uma proliferação de sentidos e que a

postura dele era uma postura anti-teológica. Isso ele vai dizer: que o

marxismo é uma última teologia, que o marxismo é o resquício de

religião que ainda sobra na gente enquanto pensamento.

Quer dizer, é um campo de forças, é um campo de lutas, é um

saco de gatos, não é uma coisa amena, é uma briga realmente. Acho

que passa por aí, não sei se te respondo também. [Pausa.]

Quer dizer, talvez a gente tenha observado na cultura uma

espécie de esvaziamento. O Gumbrecht fala muito bem disso. Ele diz

que houve uma destotalização, que na hipótese clássica existe uma

totalidade prévia — que é “o real”, “o sujeito”, “o objeto” — e existe

uma totalização a posteriori que a gente produz no ato do

conhecimento. Na hipótese do Gumbrecht, nesse campo não-

hermenêutico, teria acontecido no Ocidente, dos anos 70 para cá,

nisso que a gente chama pós-moderno, uma destotalização. As

categorias de totalidade e destotalização, que são centrais no

marxismo, foram para o espaço. Ao mesmo tempo isso teria

produzido uma desreferencialização. As categorias evidentes de

referência, de objetividade, de evidência foram para o espaço. Ao

mesmo tempo isso teria produzido uma dessemantização. A idéia de

que agora a gente não vai procurar o conteúdo, o significado, a

semântica mas a relação, a função, a sintaxe. E isso teria produzido

também uma desumanização. Quer dizer, seria o fim do humanismo,

o fim do modelo de homem que dominou no iluminismo. Aquela idéia

do Michel Foucault, de que o homem morreu. Morreu o modelo

iluminista de homem, que durou do fim do XVIII até metade do

século XX.

Evidentemente essas posturas são extremamente polêmicas e

há muita crítica a elas. Mas elas estão fortíssimas na cultura,

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Page 37: A TEMPORALIDADE NA CULTURA CONTEMPORÂNEA

inclusive porque eu acho que elas têm capacidade — o marxismo não

tem, o marxismo só descreve negativamente — de descrever o campo

da cultura hoje. Elas não têm muita capacidade de propor

alternativas, elas dizem: “é assim mesmo”. E, nesse sentido, elas são

muita vez extremamente conformistas. Agora, a crítica que se faz,

justamente, é como produzir novas categorias teóricas e críticas

numa situação em que aparentemente a teoria e a crítica foram para

o espaço. Parece meio contraditório. Mas é divertido. [Pausa.]

No más?

PESSOA NÃO IDENTIFICADA — Sérgio Buarque de Holanda faz um

paralelo entre a América espanhola e a América portuguesa e coloca

que a portuguesa.... [Pergunta parcialmente inaudível]

Bom, que a história brasileira não é um mar de rosas, a gente

sabe. Não sei se é preciso falar. Eu só pontuo um caso, eu acho

interessante. Em 1556 o Estácio de Sá, que era sobrinho do Mem de

Sá, parece que na região de Ilhéus, na Bahia, fez uma fila de sete

milhas de índios mortos porque eles se recusavam a obedecer a

autoridade dos jesuítas, do padre Nóbrega. Eu acho que um pequeno

exemplo desse mostra como é uma história muito harmônica, porque

os índios ficaram muito quietos. E a gente tem outras referências

assim bárbaras, não só com índios. Basta pensar, por exemplo, o que

é ser um branco pobre numa sociedade escravista. Pensem o que é

ser negro nessa sociedade. E pensem, por exemplo, o terrível que é o

Brasil. Eu acho que é uma bobagem essa idéia de uma colonização

harmônica, genial, generosa, cordial. De modo algum.

Agora, a gente sabe que, em 1924, quando os modernistas

foram a Minas — então foi o Oswald de Andrade, o Blaise Cendrars,

o Mário de Andrade, a Tarsila — eles foram parar em Ouro Preto,

que era uma cidadezinha ainda abandonada porque Belo Horizonte

tinha já virado capital, e era uma cidade acho que modorrenta, acho

que desde o século XVIII ela estava meio morta, e eles então —

Oswald de Andrade principalmente, que na Europa estava vendo as

cores puras do cubismo — quando viram as fachadas coloniais de

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Page 38: A TEMPORALIDADE NA CULTURA CONTEMPORÂNEA

Minas e viram aquelas casinhas muito geometricamente dispostas e

aquelas cores contrastantes — o azul, o ocre, o vermelho —, fizeram

uma hipótese de que os homens do século XVIII que haviam feito

aquilo eram cubistas. E eles fizeram uma hipótese de que o Brasil já

era moderno. Aquela idéia — aliás, o Antônio Cândido vai afirmar

isso — de que aquilo que na Europa teria sido um processo de crítica

artística que tinha durado pelo menos desde o século XVIII, pelo

menos desde os românticos, de radicalização crítica, de rupturas, e

que tinha chegado até essa postura anti-figurativa típica das

vanguardas do início do século, chegando à idéia de uma cor pura —

por exemplo, na pintura cubista ou no fauve —, no Brasil seria um

dado constitutivo da nossa raça, da nossa formação. É como que,

para um brasileiro, aquilo que para um europeu seria algo difícil de

entender pela primeira vez, aqui seria algo conatural, é como se o

Brasil tivesse uma vocação modernista. Daí então a hipótese que eles

fizeram de que eram “os primitivos de uma nova era”, como diz o

Oswald de Andrade, usando a idéia do primitivo como o início mas

também o primitivo como aquele que tem o olhar puro, simples,

direto e que está inaugurando o moderno aqui. Daí a idéia de que,

por sermos barrocos, nós já éramos modernos, antigamente.

Nesse sentido, eu acho que você encontra, por exemplo, a

hipótese que eles fizeram de que teria havido uma tradição interna

no país, vinda desde os jesuítas, e que teria tido uma fusão muito

feliz, produzindo um tipo de arte mulata, mestiça, que teria sido o

barroco — a hipótese, por exemplo, do Mário de Andrade, a

representação máxima seria um expressionista, um Aleijadinho — e

que esse processo teria sido atalhado, cortado pelo meio pela Missão

Francesa. A idéia de que quando o d. João VI mandou vir os

franceses, em 1817, estes impuseram artificialmente às elites um

gosto neoclássico francês que não correspondia absolutamente à

tradição real do lugar. Mas os franceses imediatamente disseram:

“bom, essa arquitetura portuguesa é de péssimo gosto, isso é uma

coisa de bugre, isso é uma coisa de negro, isso é uma coisa inferior,

vamos pôr o neoclássico”. Os pintores acadêmicos franceses

disseram: “não, vamos fazer a pintura neoclássica, chega dessa coisa

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Page 39: A TEMPORALIDADE NA CULTURA CONTEMPORÂNEA

horrível, católica, monstruosa, de mal gosto” — como a gente

encontra realmente nos cronistas. A idéia então dos modernistas era

que era preciso criticar um passadismo mas identificado

provavelmente com essa macaqueação da Europa e que a gente

encontrava nos parnasianos — por exemplo, um Olavo Bilac, um Rui

Barbosa, um Coelho Neto. Nesse sentido, uma atitude passadista

sendo criticada por um Sérgio Buarque. Mas ao mesmo tempo a

hipótese: é preciso recuperar o passado naquilo que ele tem de

autenticamente brasileiro como constituição da nacionalidade. Quer

dizer, os modernistas não foram contra o passado, eles foram contra

uma atitude passadista que, segundo eles, macaqueava inutilmente

Paris sem ter nada a ver com o Brasil. Daí a supervalorização que

eles fizeram do barroco, que a gente encontra, por exemplo, na

pintura da Tarsila e no Oswald de Andrade — aquela idéia de uma

síntese e que, ao mesmo tempo, vai buscar lá as fontes. Como ele diz:

“bárbaro e nosso”.

PESSOA NÃO IDENTIFICADA — [Pergunta inaudível]

Justamente. Como diz o Oswald de Andrade: “pintura que não

tinha carneirinho, lã de verdade, não era pintura”. Eu tenho a

impressão de que o Sérgio Buarque vai nessa chave, quer dizer, de

recuperar, na hipótese que eles faziam, de recuperar uma tradição

local.

PESSOA NÃO IDENTIFICADA — [Pergunta inaudível]

É, a interpretação dele também é histórica. Você deveria

também levar em conta que, no momento em que ele está propondo,

é provável que fosse o tipo de documentação que ele tivesse ou então

o interesse mesmo de afirmar isso nesse momento. A gente deveria

talvez determinar mais para saber porque ele está fazendo esse

enunciado, que parece que a mínima evidência contradiz. Que é

também o Gilberto Freyre, por aí. A idéia de um escravismo ameno.

A mucama, a mulata... A Maria Sílvia de Carvalho Franco mostrou

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Page 40: A TEMPORALIDADE NA CULTURA CONTEMPORÂNEA

muito bem como isso é uma bobagem, aquela hipótese do Freyre,

vocês lembram, aquela idéia de que a ama-de-leite negra ou a

mucama ou o moleque que teria vivido junto com os senhores

durante todo o período da colonização e do Império brasileiro teria

adoçado as relações humanas. A Maria Sílvia de Carvalho Franco, no

livro dela lindíssimo que é Homens livres na ordem escravocrata,

vocês conhecem, mostra uma coisa muito interessante: que em

situações de crise os senhores, que eram plantadores de café ou de

cana, imediatamente vendiam os escravos da família, que estavam

mais perto — inclusive o sinhozinho vendia a negra que tinha dado

de mamar para ele —, porque o interesse era o lucro. Ou então eles

mandavam imediatamente para o eito. Quer dizer, a mucama, a

mocinha negra aparentemente frágil criada para servir a mesa ia

carpir na roça nas condições mais adversas porque o que interessava

era manter a produção funcionando para exportar o produto. Então,

nesse sentido, a Maria Sílvia fala de uma bonita, a expressão

“unidade contraditória de benevolência e violência” que articula as

relações sociais no país. Porque ela mostra que isso que articulava a

relação do senhor branco com o negro também articula as relações

de favor entre o senhor branco rico e os brancos pobres que, não

sendo escravos, têm que sobreviver, mas que por isso têm que se

subordinar aos senhores numa estrutura de favor, de compadrio, de

pistolão.

Eu falo muito, mas só mais um exemplo. Aquele historiador

americano, Stuart Schwartz, conta que, quando quis estudar o

assunto que ele estuda, que é Portugal e a colônia Brasil, ele estava

em Stanford e fez uma hipótese: “tenho que aprender a língua”. Ele

já falava espanhol e então pensou: “bom, vou aprender uma coisa do

mundo ibérico, vou aprender português”. E ele diz que nas aulas de

português eram aulas de conversação tinha uma professora

carioca que deu um diálogo para eles, alunos americanos, falarem e

que o diálogo era mais ou menos assim, João e Zé conversando:

Zé, você já conseguiu emprego? Você estava desempregado.

Ah, eu já!

Mas como?

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Page 41: A TEMPORALIDADE NA CULTURA CONTEMPORÂNEA

Ah, eu tô namorando a prima da mulher do ministro.

E ele diz então que eles, americanos, não entendiam. Diz que o

exemplo ele não entendia, ele sabia palavra por palavra mas não

entendia a relação. “O que quer dizer? Não entendo!” E diz que a

professora carioca, muito gozadora, tipicamente carioca, olhava para

eles e dizia assim [imitando o sotaque carioca]: “mas vocês não

sabem?, isso é o jeitinho, isso é o pistolão, isso é o compadrio, isso é

a estrutura do favor”. Devia falar assim, eu suponho. Diz que então

ele fez uma hipótese ele é um homem muito inteligente, o Stuart

, diz que ele pensou assim: “se isso é exemplo de gramática hoje,

qual será a gênese disso?”. Então ele foi estudar justamente a

burocracia no Brasil colonial. E ele descobriu que o Direito

português e que o modo como a Justiça portuguesa durava vinte,

trinta, quarenta anos para resolver uma causa em função da

burocracia fazia com que a Justiça fosse feita no modelo do

linchamento, os senhores tomando a Justiça nas próprias mãos. E

aquele provérbio colonial: para os amigos pão, para inimigos pau. E

aí ele foi discutir o que é ser pobre e branco nessa sociedade, como

necessariamente se está numa situação de subordinação. E daí a

idéia dele é que provavelmente o Brasil ainda mantém hoje essa

estrutura em muitas relações sociais e na cultura diferentemente,

por exemplo, da América inglesa, dos Estados Unidos, onde essa

hipótese das relações pessoais interferirem na coisa pública, por

definição, é uma hipótese excluída. E como aqui a gente o tempo

todo confunde público e privado provavelmente por causa dessa

formação colonial quatrocentos anos em que a gente confunde a

esfera pública com as relações pessoais. Como então ser amigo da

mulher do ministro me ajuda no meu emprego, no meu trabalho, na

minha influência. Enquanto que nos Estados Unidos teoricamente

não, a gente tem uma competição aberta ao talento e vença o mais

forte, é um darwinismo explícito. Aqui não, aqui é um darwinismo

implícito, quer dizer, a gente precisa ser amigo da mulher do

ministro e ela ajuda a gente a passar os concorrentes para trás. Quer

dizer, as duas soluções não são boas. A nossa é uma solução mais

pessoalizada.

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Page 42: A TEMPORALIDADE NA CULTURA CONTEMPORÂNEA

Acho que é nesse sentido que você pode pensar às vezes que o

Sérgio Buarque estava propondo a idéia de uma amenidade. Porque

a gente tem essa idéia do jeitinho, a idéia de que a gente vai evitar o

conflito que na sociedade americana é explícito, a gente vai pro

pau mesmo, na coisa pública, a gente vai brigar pelo nosso direito ,

aqui parece que tem essa hipótese de que o direito é algo que a

gente recua porque vai buscar uma prática conciliatória, nós vamos

tentar dar um jeitinho. Nesse sentido eu acho que muita vez os

historiadores estão dizendo também que aqui era harmonioso. Não

sei se estou sendo muito generoso com eles, mas acho que pode ser

isso. [Pausa.]

Fini? Acabaram? Finito? [Pausa.]

Nada mais? Nada? Quer dizer, acabou o tempo?

Foi legal. Espero ter dito alguma coisa que tenha tido algum

interesse durante alguns segundos.

VERA PALLAMIN Bom, professor, muito obrigado por ter vindo.

[Fala parcialmente inaudível]

Eu que agradeço, foi muito gentil, muito legal. Obrigado.

E isso aqui, o que é, Vera?

VERA PALLAMIN São as publicações da FAU.

Ah, vou abrir, as publicações da FAU. Que bom, hein?

Pesquisas do LAPS, Sinopse... Vocês publicam bastante, hein?

Cadernos Técnicos, Caramelo essa daqui dá vontade de lamber e

Paisagem e ambiente. Ótimo!

Muito obrigado. [Aplausos]

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