A TEORIA DA DESORGANIZAÇÃO SOCIAL

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COESO SOCIAL, DESORDEM PERCEBIDA E VITIMIZAO EM BELO HORIZONTE, MINAS GERAIS, BRASIL

Brulio Figueiredo Alves da [email protected]

Dissertao apresentada ao curso de mestrado em sociologia da Faculdade de Filosofia e Cincias Humanas da UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS como requisito parcial obteno do ttulo de MESTRE EM SOCIOLOGIA

rea de Concentrao: Violncia e Criminalidade Orientador: Prof. Dr. Claudio C. Beato Filho

Belo Horizonte, Dezembro de 2004

AgradecimentosNa famlia: Aos meus pais, que sempre me apoiaram e me ajudaram nos estudos; A voc, R, um agradecimento muito especial; s Tias do stio e s Irms do Rio, sempre presentes e sempre prontas a ajudar (no poderia deixar de ressaltar a imensa ajuda de vocs!); Ao V Paulo (in memoriam) e V Titina, pela pacincia e carisma; nio, Tia Dodora e Dra. Brendinha, pelo apoio e incentivo nos meus estudos; Ao Geraldo (in memoriam), meu primo e amigo. Como gostaria que estivesse aqui para compartilhar este momento em que finalizo este trabalho! Na Universidade: Ao Beato, pela orientao segura neste trabalho; aos professores, pelos ensinamentos e pelas importantes contribuies na etapa final deste trabalho, especialmente a Danielle Cireno e a Corinne Davis; notadamente, eu no poderia deixar de agradecer ao Professor Andres Villarreal, da Universidade do Texas, com muita pacincia e dedicao ajudoume a pensar sobre os modelos estatsticos e a estim- los; pela amizade, que se estendeu para alm da sala de aula, destacadamente Antnio Augusto, Paulo Henrique e Renato Assuno. No trabalho: Aos amigos do Crisp e so tantos! , pelo convvio sadio no dia-a-dia: Ao Beato, pela postura como coordenador, proporcionando-nos o aprendizado em pesquisas aplicadas, dando-nos autonomia nos trabalhos e incentivando-nos sempre a avanar nos estudos; A Dani, a secretria e universitria, Andra, Karina e Maria Helena; aos amigos Fred, Ricardo, Rodrigo e ao Campeo Rei; aos Pulmezinhos; e aos demais estagirios. Aos companheiros Claudinho e Luciano. Capes, pela bolsa do Programa de Intercmbio Vilmar Faria .

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SUMRIO:

RESUMO ............................................................................................................................ 4 INTRODUO .................................................................................................................. 5 1 CONTEXTO TERICO DO PROBLEMA ................................................................. 8 2 AS ORIGENS DA ECOLOGIA SOCIAL DO CRIME ............................................. 14 3 ESTRUTURA DAS COMUNIDADES E CRIME .................................................... 21 a) A teoria da desorganizao social............................................................................. 21 b) A reformulao sistmica da teoria da desorganizao social.................................. 25 c) O modelo ecolgico de Sampson e Groves .............................................................. 30 d) Eficcia coletiva e crime........................................................................................... 35 4 DESORDEM E CRIME ............................................................................................. 41 5 DADOS E METODOLOGIA ..................................................................................... 45 a) Dados ........................................................................................................................ 45 b) Anlise descritiva das variveis................................................................................ 50 b.1) Variveis dependentes ....................................................................................... 50 b.2) Variveis independentes;................................................................................... 52 c) Hipteses................................................................................................................... 55 d) Modelos estatsticos.................................................................................................. 58 6 RESULTADOS........................................................................................................... 63 7 CONCLUSO ............................................................................................................ 71 REFERNCIAS ................................................................................................................ 77

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RESUMOA teoria da desorganizao social de Shaw e McKay (1942) associa caractersticas das vizinhanas s suas taxas de criminalidade. Considerada por muitos pesquisadores como um excelente estudo acerca da criminalidade urbana, nunca foi testada fora do contexto anglo-saxo. Neste trabalho, usamos o survey de Vitimizao, produzido pelo Centro de Estudos de Criminalidade e Segurana Pblica (Crisp) em 2002 na cidade de Belo Horizonte e analisamos o efeito das medidas de coeso social e desordem percebida sobre o crime. Ao usar modelos de regresso multinvel, encontramos elevados nveis de coeso social entre os residentes de vizinhanas mais pobres, ao mesmo tempo, seu efeito sobre as taxas de vitimizao no foram significativos. Por outro lado, encontramos maior percepo de desordem nas vizinhanas mais pobres e esta medida estava significativamente associada com vitimizao reportada de agresso fsica e homicdios. Palavras-chave: Coeso Social, Vitimizao, Desorganizao Social, Eficcia Coletiva,Homicdio, Belo Horizonte.

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INTRODUOPor que algumas cidades tm ndices de violncia maiores que outras? Por que alguns bairros so mais violentos que outros? Por que algumas ruas, becos ou vielas devem ser evitados e outros no? Essas so algumas das perguntas que mais tm intrigado pesquisadores e policy makers por muitos anos. A publicao de Delinqncia Juvenil e reas Urbanas, de Clifford Shaw e Henry McKay, da escola de Sociologia Urbana de Chicago, em 1942, foi apenas o incio da tentativa para compreender algumas dessas questes. Neste trabalho, os autores mostraram que altas taxas de crime e delinqncia podiam continuar existindo em certas vizinhanas, apesar de uma mudana completa da populao destas reas ao longo do tempo. Tal concluso levou-os a concluir que a explicao para a criminalidade no interior das grandes cidades no estava nas caractersticas dos indivduos, tais como raa, nacionalidade ou inteligncia; estava, sim, fortemente associada a caractersticas particulares das vizinhanas.

Depois de um perodo de hibernao, entre os anos de 1950 a 1970, a teoria da desorganizao social, de Shaw e McKay (1942), retoma todo seu vigor investigativo nos anos de 1980 e, com maior intensidade, na dcada de 1990. Neste perodo, essa teoria colocada definitivamente em teste. Trabalhos mais recentes tm mostrado que ainda apresenta forte poder explicativo. No obstante, estes testes se situam quase exclusivamente no contexto das grandes cidades americanas, palco de seu surgimento.

A nfase que este trabalho dedica teoria da desorganizao social particularmente relevante por duas razes: primeira, busca test-la no contexto brasileiro, mais especificamente da cidade de Belo Horizonte, rompendo com um certo paroquialismo acadmico existente nesta rea de pesquisa, uma vez que ainda no ultrapassou os limites anglo-saxo; segunda, assumindo que as grandes cidades brasileiras tambm apresentam reas com elevados ndices de violncia, pretende verificar se as associaes entre as variveis encontradas no contexto das grandes cidades americanas prevalecem tambm aqui e, mais do que isto, se as suas associaes tm o mesmo sentido. 5

Ser utilizado o survey de Vitimizao, produzido pelo Centro de Estudos de Criminalidade e Segurana Pblica (Crisp) em 2002 na cidade de Belo Horizonte, procurando-se verificar o impacto das medidas que compem o indicador de desorganizao social no contexto desta cidade. Alm de focar as medidas e associaes entre as variveis propostas pela teoria original da desorganizao social (Shaw e McKay, 1942), tentar-se- percorrer alguns dos trabalhos subseqentes teoria, considerados por ns como principais no processo de desenvolvimento e teste desde a elaborao inicial, culminando com aquele que consideramos ser o melhor teste da teoria na atualidade: o trabalho de Sampson e seus colegas de 1997 (Sampson et al., 1997).

As hipteses e o modelo aqui construdos para testar a teoria no contexto brasileiro estaro baseados exclusivamente nos debates apresentados na parte terica deste trabalho. Neste sentido, assume-se que os indicadores estrut urais no nvel da vizinhana (a) instabilidade residencial, medido pelo tempo de moradia na vizinhana; (b) controle informal enfraquecido, representado pelo percentual de mulheres responsveis pelo domiclio, e (c) baixo indicador de renda da vizinhana, obtido pelo escore do componente principal da anlise fatorial das medidas de renda e raa afetam negativamente o grau de coeso social. Considerado uma medida equivalente de eficcia coletiva (Sampson et. al., 1997), o indicador de coeso social funciona como uma varivel mediadora entre o efeito dos indicadores estruturais das vizinhanas e sua taxa de criminalidade e vitimizao criminal. Hipoteticamente, espera-se encontrar um maior grau de coeso social naquelas vizinhanas em que os ndices de violncia e vitimizao forem menores. Porque acredita-se que as teorias devem ser trabalhadas de maneira complementar, que impe-se aqui testar a mesma associao entre as variveis estruturais e o indicador de desordem percebida, o qual faz parte de outro debate terico, apresentado parte. Neste caso, busca-se uma possvel conexo entre os sinais de desordem percebida e a ocorrncia de criminalidade violenta. Como se ver, um alto indicador de desordem percebida pode estar refletindo um contexto em que a criminalidade e a delinqncia so fenmenos que se confundem com a prpria medida de desordem.

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O Captulo 1 faz um apanhado geral dos diversos objetos de estudo da criminologia, traando-se a abordagem criminolgica que ser utilizada neste trabalho. O Captulo 2 apresenta as origens do conceito de ecologia aplicado compreenso de fenmenos urbanos, dentre os quais se encontra o crime. Neste captulo, tem-se uma indicao para a explicao do fenmeno da criminalidade baseada na relao que existe entre os indivduos e o meio ambiente em que vivem. O Captulo 3 revela o arcabouo terico que sustenta este trabalho, descrevendo o percurso que a teoria da desorganizao social fez desde sua origem at os dias atuais. O Captulo 4 complementa o fundamento terico deste trabalho ao analisar o indicador de desordem percebida associado ao fenmeno da criminalidade. O Captulo5 descreve o survey utilizado para testar a teoria no contexto de Belo Horizonte, apresentando, detalhadamente, os dados utilizados, as variveis dependentes e independentes usadas no modelo de regresso, as hipteses levantadas e os modelos estatsticos utilizados. O Captulo 6 mostra os resultados obtidos. Por fim, o Captulo 7 diz respeito s concluses e consideraes finais.

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1 CONTEXTO TERICO DO PROBLEMATeorias criminolgicas, em geral, tm como objeto quatro elementos: a lei, o criminoso, o alvo e o lugar. A forma como essas teorias so classificadas diz respeito aos diversos nveis de explicao, que variam do individual ao contextual. As teorias criminolgicas que adotam o nvel individual de anlise partem do pressuposto de que o crime a explicao de suas causas e o controle de sua ocorrncia na sociedade se deve aos fatores internos aos indivduos que os motivam, ou melhor, os impulsionam a cometerem um ato criminoso. Variveis como idade, raa, posio social e educao seriam algumas das medidas consideradas fundamentais para explicar a atitude criminosa de um indivduo.

Tendo a lei como objeto e o indivduo com unidade de explicao, podem-se utilizar como representantes os trabalho s de Cesare Beccaria, na Itlia (Beirne, 1993), e de Jeremy Bentham, na Inglaterra (Bentham, 1984). Publicados no final do sculo XVIII e incio do sculo XIX, o pressuposto bsico desses trabalhos estava na concepo de crime como um produto da natureza humana individual. neste sentido que os autores acreditam que a natureza colocou o gnero humano sob o domnio de dois senhores soberanos: a dor e o prazer (Bentham, 1984). De acordo com esta viso, todas as condutas humanas podem ser compreendidas a partir de uma busca individual pelo prazer em detrimento da dor. Assim ocorre com o crime. Isto , quando as pessoas escolhem cometer (ou no) um crime, esto agindo racionalmente, optando por maximizar o prazer e minimizar o seu sofrimento. As pessoas so livres para escolher entre uma conduta legal ou ilegal, e cabe lei o papel de controlar esta conduta humana de livre escolha.

As idias que esses autores tm sobre o papel das leis na sociedade daquela poca so muito parecidas e se resumem, basicamente, a trs circunstncias que devem coexistir para que um indivduo escolha entre um ato ilegal ou no, baseando-se no clculo entre a quantidade de prazer ou de dor obtida no seu cometimento:

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a) Intensidade e durao da lei. A aplicao de uma punio deve basear-se em critrios justos e a pena aplicada ao criminoso deve corresponder ao mal que o seu ato causou sociedade. Ao mesmo tempo, a durao da pena corresponder, tambm, gravidade do delito cometido por ele. b) Certeza ou incerteza da lei. Para um indivduo que escolhe entre cometer um crime (ou no), mais importante que o rigor do castigo a certeza de que ser punido caso seja descoberto. Este o fator fundamental nesta escolha entre faz-lo ou no. c) Celeridade na aplicao da lei. A aplicao da lei deve ser rpida. Isto , alm de considerar em seu clculo a intensidade, durao e certeza da punio, o criminoso deve saber que esta lei lhe ser aplicada to logo seja descoberto pelo sistema de justia.

Do ponto de vista jurdico, as propostas sugeridas por esses autores so consideradas humanis tas e revolucion rias para a poca. De um lado, toda essa racionalizao das leis traz em si uma oposio ao sistema jurdico e penal da poca, sobretudo porque a justia vigente era altamente arbitrria, cruel, corrupta e injusta. De outro lado, so tratadas como idias revolucion rias ao serem consideradas uma vanguarda do Iluminismo contra a intolerncia religiosa. Neste sentido, os trabalho s de Beccaria e Bentham so fundamentados na idia de contrato social, de Montesquieu, e buscam a separao da lei criminal da religio.

Alm da tentativa de compreender o crime e o seu controle no nvel individual via racionalizao das leis e sua aplicao fundamentada nos princpios da certeza, severidade e celeridade, existe na criminologia um amplo nmero de estudos que buscam explicar o crime utilizando variveis individuais do criminoso a partir de fatores genticos 1 , neurolgicos ou psicolgicos (Lombroso, 1876; Wolfgang, 1972; Goddard, 1912; Caplan, 1965, Taylor, 1984). Tais teorias tentam explicar o comportamento1

Pesquisadores que compartilhavam desta corrente de pensamento tratavam os criminosos como um grupo distinto de pessoas biologicamente inferiores aos cidados obedientes s leis ou como pessoas inerentemente defeituosas de alguma maneira. Com a publicao, no final do sculo XIX, de O homem delinqente, Cesare Lo mbroso (1876) introduz uma forma determinista de explicar o crime a partir do biofsico individual do criminoso.

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delinqente daquelas pessoas cuja lei no consegue afetar. Ou seja, para aquelas pessoas que no se importam com a certeza ou severidade das leis, as teorias biolgicas do comportamento criminoso creditam um carter de inferioridade biolgica ou defeituosa.

Essas teorias se baseiam na personalidade, no ajustamento emocional e no retardo mental ou distrbio fsico dos indivduos. Neste sentido, o criminoso, ou melhor, as motivaes que o impelem a cometer um crime tornam-se o objeto de estudo, seja em virtude de um atavismo criminoso (Lombroso, 1876), seja de acordo com uma abordagem behaviorista, por causa de uma interao recproca entre determinantes cognitivos, comportamentais ou do meio ambiente (Akers, 2000, p. 71). De um lado, a personalidade criminosa em um indivduo pode ser facilmente reconhecida a partir das propriedades aparentes do mesmo, como assimetria da face ou cabea, orelhas abano, ossatura craniana protuberante e outros sinais que o identificariam como um criminoso nato. De outro lado, as explicaes estariam nas variantes do aprendizado cultural, em que o comportamento criminoso se d a partir de um aprendizado na interao com outras pessoas e por um processo de comunicao (Sutherland, 1947).

Mais recentemente, surgiram as teorias genticas, que explicam o comportamento criminoso das pessoas do sexo masculino a partir de uma anormalidade cromossmica, pela qual elas teriam um cromossomo XYY, ao invs de apenas o cromossomo XY (Taylor, 1984). Assim, tais homens teriam uma dose maior de masculinidade, que os impulsionaria a atos de risco, como cometer crimes. Estudos mostram que a proporo de cromossomos XYY na populao masculina dos presdios maior que a encontrada na populao masculina em geral (idem).

Os dois outros elementos de explicao do crime o alvo e o lugar tm sido objeto de discusso, cujos fundamentos tm origem em disciplinas variadas, como arquitetura, estatstica e sociologia (Boggs, 1965; Cohen e Felson, 1979; Clarke, 1980; Block e Block, 1995; Block 2000). No mbito da sociologia, dispe-se de teorias criminolgicas cujas explicaes do crime variam desde fatores individuais, chamadas de kinds-ofpeople explanations of crime theories, at explicaes do crime a partir de fatores

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culturais, estruturais ou socioeconmicos, chamadas de kinds-of-places explanations theories (Akers, 2000).

No primeiro caso, encontra-se na convergncia dos pressupostos etnometodolgicos e interacionistas o germe da teoria dos rtulos, de Howard Becker (Becker, 1963). a partir da explicao ordem social sob o ponto de vista individual que se explica o fenmeno da criminalidade. De um lado, a ordem para os interacionistas tratada como um produto de uma negociao realizado pelos atores sociais em seu contnuo processo de interao. De outro lado, os etnometodlogos assumem que o problema da ordem social est na forma como os membros da sociedade descrevem e explicam a ordem no mundo de sua experincia. Um indivduo criminoso porque ele interage com outros indivduos cuja atividade quebra cursos normais de ao e, provoca reaes sociais. Assim que Becker define o desviante como algum a quem este rtulo foi aplicado com sucesso; comportamento desviante comportamento que as pessoas assim rotulam2 (Becker, 1963. p.9).

Quanto s explicaes do crime que levam em conta os lugares, o foco de anlise desloca-se das atitudes individuais tratadas como uma reao ao comportamento da sociedade para as diferentes caractersticas dos lugares dentro da sociedade, que so tratados como fatores causais da criminalidade. Isto , os indivduos vm a cometer crimes ou se tornam vtimas de crimes por residirem ou estarem em localidades cujas caractersticas proporcionam tal situao.

Por causa dessa complexidade e diversidade de explicaes da criminalidade que optouse por enfatizar o estudo das teorias sociolgicas que consideram a dimenso do lugar fundamental para a compreenso do fenmeno. Da perspectiva dessas teorias, o crime gerado por fatores externos pessoa, considerados condies patolgicas de comunidades particulares, vizinhanas, ou bairros (Einstadter e Henry, 1995, p. 121).

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Do original: The deviance is one to whom that label has successfully been applied; deviant behavior is behavior that people so label. Traduo de responsabilidade do autor.

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As teorias da ecologia social, como so conhecidas, assumem que o crime no um fenmeno individual, mas um fenmeno em que o meio ambiente (o lugar) decisivo. Isto , as causas do crime se devem ao contexto fsico, social e cultural dos seres humanos. Estes estudos concentram suas anlises no problema da criminalidade nas grandes cidades. Mais especificamente, tratam o crime como um problema localizado de determinadas regies, bairros ou vizinhanas dentro da grande cidade (Shaw e McKay, 1942; Sampson e Groves, 1989; Sampson et. al., 1997). A identificao de vizinhanas3 violentas no interior das cidades se d com a identificao, tambm, de caractersticas fsicas, sociais e culturais similares entre as vizinhanas com o mesmo grau de periculosidade. Isto , so teorias que associam as caractersticas da estrutura das comunidades (ou vizinhanas) sua respectiva taxa de criminalidade e delinqncia.

Ao considerar-se a abordagem ecolgica para a compreenso da criminalidade, a referncia so os trabalhos da sociologia americana produzidos pela Escola de Chicago na primeira metade sculo XX. O representante clssico desta escola americana de sociologia o trabalho de Shaw e McKay (1942), fundamental estudo para todas as abordagens ecolgicas do crime e da delinqncia da atualidade. Neste trabalho, o crime no visto como um produto da vontade individual; pelo contrrio, as condies estruturais das vizinhanas no interior das grandes cidades so determinantes para se compreender as causas da criminalidade. Foi a identificao de algumas vizinhanas socialmente desorganizadas no interior da cidade de Chicago que permitiu aos autores explicar a incidncia e estabilidade das taxas de delinqncia juvenil na cidade. Embora tenha servido de explicao do fenmeno em outras cidades americanas aps seu surgimento, a teoria no ultrapassou os limites de explicao em contexto de cultura anglo-saxo 4 .

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Deste momento em diante, iremos traduzir a palavra neighborhood por vizinhana. E, como se poder notar, a nossa unidade de anlise para testar a teoria da desorganizao social receber a denominao de vizinhana. 4 At 1990, praticamente todos os trabalhos associando desorganizao social e crime tinham sido realizados com dados e em contextos americanos. Em 1989, Sampson e Groves (1989) publicam um excelente trabalho comprovando o poder explicativo da teoria de Shaw e McKay (1942) com dados da Inglaterra.

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Desde o seu surgimento, a teoria original da desorganizao social foi passando por diversas modificaes no sentido de corrigir as imperfeies detectadas, sobretudo pelas crticas. De maneira geral seus pressupostos bsicos permaneceram praticamente inalterados nos trabalhos subseqentes. No entanto, medida que a teoria foi sendo reelaborada, novas associaes entre variveis foram surgindo e, posteriormente, os testes empricos foram mostrando a necessidade de se incorporar medidas ou indicadores mais completos. isto que ser mostrado na seo seguinte.

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2 AS ORIGENS DA ECOLOGIA SOCIAL DO CRIMEEste captulo focaliza a origem dos estudos que tratam a dimenso de lugar como o fator decisivo para a compreenso da criminalidade, sobretudo nas grandes cidades. Preocupam-se, ento, com o problema da localizao de crimes no interior de cidades ou regies, uma vez que a incidncia desproporcional de crimes que caracteriza certas reas mais violentas que outras. possvel encontrar nestes estudos uma grande possibilidade de explicar os questionamentos inicialmente apresentados neste trabalho : o porqu de algumas cidades, bairros, vizinhanas ou ruas serem mais violentos que outros.

Diferentemente do que se poderia imaginar, desde o incio do sculo XIX a dimenso de lugar j era a preocupao de alguns pesquisadores quando se tratava de se explicar um crime. Uma das questes mais recorrentes para os estudiosos da poca era a busca pela explicao do fato de existirem alguns lugares que consistentemente concentravam mais ocorrncias de crimes que outros (Wilson e Herrnstein, 1985, p.289). Pesquisadores europeus tentavam entender por que alguns pases eram mais violentos que outros. Na maioria das vezes, esta dvida existia em funo da diferena nas taxas de crimes dentro do mesmo pas.

Esses questionamentos impulsionaram o trabalho de alguns pases europeus no sentido de organizarem ou construrem informaes sobre criminosos, prises e do prprio sistema de justia criminal como um todo. Essa nova estatstica da justia criminal que estava surgindo proporcionava valiosas informaes, como idade, sexo, nvel educacional, local de nascimento, ocupao e registros anteriores de delitos de cada um dos criminosos, as quais foram organizadas de acordo com a localizao espacial do crime, de maneira que regies no interior dos pases pudessem ser comparadas. Os achados, ento, mostravam que o crime apresentava uma distribuio geogrfica desigual: as reas rurais, tradicionalmente, apresentavam menos crimes que reas urbanas; algumas cidades apresentavam mais crimes que outras; e dentro da cidade existiam reas crimingenas.

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Um dos primeiros trabalhos a mostrar a existncia de uma distribuio espacial heterognea de crimes foi realizado pelo estatstico francs Guerry (1833), complementado, poucos anos depois, pelo s estudos do matemtico e astrnomo belga Quetelet (1835). Chamados de fsicos sociais, estes pesquisadores associaram a distribuio espacial de crimes a fatores demogrficos, situacionais e do meio ambiente, tais como populao, pobreza, estaes do ano e clima. Foram os resultados obtidos que levaram Quetelet a afirmar que : A sociedade contm o germe de todos os crimes cometidos. o estado social, em alguma medida, que prepara estes crimes, e o criminoso meramente o instrumento que os executa (Quetelet, 1835) 5

Os resultados de seus trabalhos mostraram que os crimes contra a propriedade se concentravam nas reas industrializadas e urbanizadas, enquanto os crimes violentos contra pessoa eram mais recorrentes nas reas rurais, locais onde as taxas de crimes contra a propriedade eram baixas. Na Frana, Guerry identificou trs reas distintas quanto as suas taxas de criminalidade e estas diferenas eram explicadas a partir das condies sociais caractersticas de cada uma das reas (FIG. 1). Pode-se dizer que Quetelet e Guerry foram os fundadores (ou percussores) da escola ecolgica de crime (Beirne, 1987).

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Do original: Society itself contains the germs of all the crimes committed. It is the social state, in the some measure, that prepare these crimes, and the criminal is merely the instrument that executes them. Traduo de responsabilidade do autor.

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Figura 1: Distribuio espacial de crimes na Frana, por tipo de crime.Fonte: Guerry (1833)

Esses estudos impulsionaram a utilizao de mapas, facilitando a visualizao espacial por tipo de crime e, posteriormente, a associao entre a localizao de crimes e as condies sociais. Utilizando mapas para relacionar a l calizao espacial de crimes a o fatores sociais das reas onde eles haviam ocorridos, Guerry (1833) proporcionou a primeira ecologia social do crime e seu trabalho estimulou muitos outros esforos no mesmo sentido em diferentes pases, especialmente na Inglaterra (Fletcher, 1848) e na Amrica do Norte (Ferri, 1896). No caso da Inglaterra, por exemplo, Fletcher (1848) usou dados estatsticos para demonstrar que o crime estava distribudo, principalmente, naqueles bairros em que os criminosos estabeleciam sua residncia, segundo ele, bairros contaminados por criminosos.

Reconhecem-se importantes estudos desta natureza desde o final do sculo XIX cujos resultados j indicavam interessantes avanos para a criminologia da poca: Mayhew, 1861; Booth, 1891; Park e Burguess, 1925; Thrasher, 1927; Alihan, 1938; Shaw e McKay, 1942; Hawley, 1950; Morris, 1957. Em quase todos eles, as taxas de crimes apresentavam uma clara variao espacial. Quando as ocorrncias de crimes eram

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mapeadas, verificava-se que no interior das cidades ou pases havia setores mais violentos; isto , alguns bairros ou regies apresentavam ndices de criminalidade muito maiores que o restante da cidade (Alihan, 1938; Morris, 1957). Essas diferenas ocorriam nos distintos nveis de agregao, tais como pases, regies, estados ou cidades. Quando analisados ao longo do tempo, alguns autores identificavam que a incidncia espacial de crimes permanecia relativamente constante (Shaw e McKay, 1942). Isso direcionava as pesquisas para a busca dos fatores do ambiente urbano que poderiam explicar a recorrncia constante de crimes nas reas.

Em adio, os dados de crimes dispostos espacialmente eram conduzidos facilmente comparao com outros dados tambm dispostos espacialmente, como habitantes por rea. Neste momento, cruzavam-se informaes agregadas dos habitantes e da rea onde eles viviam na busca por associaes. Quando isso era possvel, verificava-se que as reas com altas taxas de crimes ou com alta incidncia de criminosos (i.e. residncia) tambm apresentavam muitos outros problemas, como alta densidade populacional, pobreza e analfabetismo.

Naquela poca, os pesquisadores encontraram na ecologia a possibilidade de explicar seus achados. Fundamentalmente, esta cincia estuda a inter-relao entre os organismos, ou espcies de organismos, e seu meio ambiente fsico natural, explicando o que se passava com a vida das plantas. Da mesma forma, os conceitos da ecologia poderiam ser usados para se compreender o que ocorre na relao entre os seres humanos e seu meio ambiente comunitrio, assumindo, portanto, o nome de ecologia social ou ecologia humana (Hawley, 1950).

Conceitualmente, o trabalho de Park ( 1936) foi pioneiro na tentativa de importar os conceitos da e cologia natural vida social. Para tanto, ele assume que a ecologia humana a tentativa de aplicar as inter-relaes dos seres humanos um tipo de anlise previamente aplicada s inter-relaes de plantas e animais. Park encontra nos conceitos

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bsicos da ecologia o fundamento para compreender a comunidade humana 6 . Da teoria da evoluo, de Darwin, vem o conceito de cooperao competitiva, que mostra como plantas e animais reage m naturalmente a qualquer distrbio que possa afetar a ordem natural desta inter-relao no hbitat comum. No mbito da natureza, o mecanismo de competio funciona no sentido de: (i) regular a quantidade de indivduos; e (ii) preservar o equilbrio entre espcies competitivas. Da mesma forma, a competio opera na comunidade humana para manter e restaurar seu equilbrio natural. No interior de uma cidade, por exemplo, o valor territorial de uma rea pode ser entendido como uma funo do mecanismo de competio entre os indivduos no sentido de ocupar a rea.

Existem, tambm, outras maneiras em ecologia nas quais indivduos ou espcies buscam estabelecer e manter a ordem comunal. Uma delas o princpio de dominao, que opera na comunidade humana como uma funo do mecanismo de competio. No interior da cidade, diferentes reas com valores e usos distintos assumem tais caractersticas por causa deste processo de dominao determinado pelos indivduos. Por fim, em ecologia o termo sucesso tambm merece destaque. o processo de sucesso que determina o modo de evoluo de uma comunidade para um estgio de estabilidade, uma vez que ela passa por perodos de crise representados pelas situaes de competio e dominao. Este terceiro princpio em ecologia responsvel por explicar como as mudanas promovem uma nova ordem estabelecida e restaura o equilbrio da comunidade.

A operacionalizao desses conceitos de ecologia no mbito da sociedade humana pode ser encontrada no trabalho clssico de Park e Burguess (1925), os quais usaram o modelo ecolgico para descrever a estrutura das comunidades urbanas, ou melhor, o modo como se dava a conformao das cidades americanas medida que se desenvolviam e cresciam. Neste trabalho, os autores mostram que o crescimento das cidades segue um padro especfico, assumindo a forma de zonas ou crculos concntricos em seu interior. No caso das cidades americanas, pode-se dividi- las em cinco tipos de zonas concntricas (FIG. 2), ou crculos concntricos, os quais vo no sentido do centro comercial da cidade para a

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Comunidade um termo utilizado na cincia da ecologia para se referir a um hbitat e seus habitantes plantas, animais ou seres humanos.

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periferia: Zona I, formada pela rea central de bancos, comrcio e indstrias; Zona II, zona de transio, ou rea de residentes mais desfavorecidos economicamente, caracterizada por ser uma regio onde as residncias se misturam com os comrcios e indstrias; Zona III, rea mais residencial, onde localizam as casas dos trabalhadores do comrcio e indstrias; Zona IV, ou subrbio, rea residencial propriamente dita; e Zona V, rea mais externa dos limites da cidade, na qual esto as residncias das pessoas de status socioeconmico mais elevado.

Figura 2: Representao grfica da teoria dos crculos concntricos , de Park e BurguessFonte: http://revistaurbanismo.uchile.cl/n3/leidenberger/le idenberger.html

O modelo de crculos concntricos, elaborado por Park e Burguess (1925), predizia que a concentrao de criminosos, ou melhor, de sua residncia, seria maior na regio central, ou Zona I, e tendia a declinar medida que se distanciava desta regio de comrcio e indstrias. Ao mesmo tempo, os segmentos que dividiam cada uma das zonas, ou reas naturais, distinguiam umas das outras em funo de suas caractersticas fsicas e econmicas. importante ressaltar que os autores notaram uma rela tiva estabilidade

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dessas caractersticas das reas com o passar do tempo. Com isto, as reas naturais de residncia dos criminosos existiam e persistiam em partes especficas da cidade.

Faz-se interessante a observao de que a noo de subrbio para as cidades americanas diferente daquela usada para definir reas em pases latino-americanos. No Brasil, por exemplo, o subrbio usualmente caracterizado como uma rea pobre. Na poca em que foi elaborada a teoria das zonas concntricas, o subrbio indicava uma rea nas cidades americanas onde residiam pessoas de elevado padro socioeconmico. No caso brasileiro, quanto mais perifrico um lugar em uma cidade, mais empobrecida a sua populao. Quando os desfavorecidos ocupam reas centrais das cidades, eles se encontram em reas com problemas geolgicos ou com nveis altos de declividade (Freitas, 2004). Nos ltimos anos, no Brasil, j se reconhece uma tendncia de as pessoas de classe social mais elevada se deslocarem para regies ainda mais afastadas das periferias das grandes cidades, passando a morar em grandes condomnios particulares, em busca por maior privacidade e fuga da violncia cada vez maior nas grandes cidades.

Embora tenha ressaltado alguns aspectos espaciais da criminalidade no interior das cidades, a teoria de Park e Burguess (1925), apresentada neste captulo, tratava-se mais de um estudo sobre o surgimento, crescimento e desenvolvimento das cidades americanas baseada na cincia da ecologia no qual, o crime, era mais um dos problemas tratados por esta teoria 7 . Sua importncia est no fato de ter desenvolvido a idia da cidade como laboratrio e de ter atrado a ateno de estudiosos que buscavam compreender as causas da criminalidade a partir da (des)organizao social de algumas reas dentro das cidades. Assim, o prximo captulo se prope a faz- lo, ou seja, est dividido em quatro tpicos, comeando pela apresentao da teoria da desorganizao social. Os demais trazem os principais caminhos, selecionados por ns, percorridos por esta teoria. So trabalhos baseados na ecologia social da Escola de Chicago, os quais carregam consigo o lema de que a cidade um grande laboratrio social.

7

A primeira fase da Escola de Chicago, no qual se insere o trabalho de Park e Burguess (1925), trata-se de um perodo marcado pela tradio de estudos voltados para a observao direta e anlise de processos sociais urbanos. No estudo ecolgico da cidade, destaca-se os problemas relativos imigrao, crime, delinqncia e proble mas sociais, como pobreza, analfabetismo, etc.

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3 ESTRUTURA DAS COMUNIDADES E CRIMEa) A teoria da desorganizao social

Considerado por muitos pesquisadores (Sampson e Groves, 1989; Bursik e Grasmick, 1993) como um dos primeiros e mais bem elaborado estudo sobre a dinmica espacial da criminalidade a usar a cidade como unidade de anlise, Delinqncia Juvenil e reas Urbanas, de Clifford Shaw e Henry McKay (1942) destaca-se na literatura sobre o assunto. Consiste em um mapeamento da distribuio da delinqncia na cidade de Chicago. Desde seus primeiros achados, esta abordagem tem influenciado diversas reas da criminologia, no somente por causa das descobertas de uma aparente conexo entre a ocorrncia de crimes e o contexto das reas urbanas, mas, tambm, pela prpria experincia dos cidados, que reconhecem o fato de que em toda cidade existem reas em seu interior que devem ser evitadas (Wilson e Herrnstein, 1985, p. 289). Shaw e McKay (1942) mapearam a localizao residencial dos jovens 8 que haviam sido encaminhados corte juvenil de diferentes reas da cidade de Chicago. Os resultados da primeira anlise espacial dos dados mostraram que a distribuio dos delinqentes pela cidade ajustava-se a um padro sistemtico: havia uma forte concentrao das residncias dos delinqentes juvenis nas reas centrais de indstria e comrcio. Usando os mesmos dados para trs perodos distintos no tempo (1900-06, 1917-23 e 1927-33), Shaw e McKay encontraram que o padro de localizao espacial da criminalidade na cidade se repetia para cada um dos perodos analisados. Eles descobriram que muitas das reas caracterizadas por altas taxas de delinqentes 9 , ou pela concentrao de indivduos delinqentes, situavam-se nas regies de comrcio ou indstrias ou eram adjacentes a elas. De outro lado, reas com baixas taxas de8

Em seu estudo, Shaw e McKay usaram dados sobre delinqncia juvenil de adolescentes do sexo masculino, com idade inferior a 17 anos que haviam passado pelo sistema de justia criminal. 9 O clculo das taxa s de delinqncia foi feito considerando a populao de cada rea proveniente dos dados do censo. Como os autores calcularam as taxas agregando informaes de seis anos em cada perodo, eles assumiram uma relativa estabilidade da populao em cada rea.

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delinqncia eram, na maioria das vezes, aquelas projetadas como regies residenciais distantes do centro comercial. Os seus achados confirmavam as hipteses de Park e Burguess (1925) sobre a grande concentrao de residncias de criminosos na rea comercial e industrial das cidades (Zona I) e seu declnio constante medida que se distanciava desta regio central. Nas prprias palavras de Shaw e McKay, entre o centro da cidade e a periferia, as taxas, como um todo, mostram uma regular diminuio10 (Shaw e McKay, 1942, p. 55).

Outra descoberta diz respeito aos indicadores sociais das reas mais violentas, tidos os piores da cidade, caracterizando-as por uma elevada deteriorizao fsica das moradias, famlias incompletas ou desestruturadas e uma populao residencial instvel e etnicamente heterognea. Seus moradores situava m-se no mais baixo nvel da escala socioeconmica: poucos anos de estudo, baixa renda e nveis ocupacionais menos qualificados. Em adio s altas taxas de delinqncia juvenil encontradas por Shaw e McKay, estas reas tambm apresentavam altas taxas de adultos criminosos, viciados em drogas, alcoolismo e prostituio, e pessoas com problemas mentais. Para eles, havia uma clara correlao entre as condies estruturais das vizinhanas e as altas taxas de delinqncia juvenil (Shaw e McKay, 1942, p. 90-107). Do mesmo modo, a delinqncia juvenil revelava uma ntida correlao com o fato de se concentrar em reas com elevada concentrao de criminosos adultos, e este era um dos fatores que explicava a estabilidade das taxas de crimes nas reas em diferentes perodos do tempo 11 .

De acordo com esses autores, a identificao de alguns fatores estruturais no nvel local da vizinhana explicaria as diferenas nas taxas de delinqncia na cidade como um todo. Basicamente, eles encontraram que heterogeneidade tnica, mobilidade residencial e privao econmica, que caracterizava m algumas reas da cidade ocasionavam a perturbao da organizao social comunitria, que, por sua vez, explicava as variaes em crimes e delinqncia.

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Do original: between the center of the city and the periphery the rates, on the whole, show a regular decrease. Traduo de responsabilidade do autor. 11 importante considerar que a teoria da associao diferencial, que explicaria esta evidncia, foi desenvolvida por E. H. Sutherland, da Escola de Chicago, nesta mesma poca.

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A existncia de diferentes grupos tnicos numa mesma rea no interior da cidade funcionava como uma barreira que impedia os residentes de compartilharem valores convencionais comuns a todos, refletindo um ambiente social segmentado, provincial e personalstico (Sampson e Groves, 1989, p. 781). A heterogeneidade funcionava como um mecanismo impedindo a comunicao, ou melhor, a interao entre os residentes de uma rea dificultando a resoluo de problemas e a conseqente obteno de recursos externos para a melhoria na qualidade de vida dos seus residentes (Kornhauser, 1978, p. 75).

Em suas proposies originais, Shaw e McKay assumiam que a mobilidade residencial em uma determinada rea, medida como instabilidade da populao residente, abalava as redes comunitrias de relaes sociais. Isso ocorria porque as regras institucionais de uma rea com alta concentrao de migrantes no estavam facilmente acessveis aos novos residentes e, tambm, porque as regras institucionais que os novos residentes traziam no os preparavam para aquelas encontradas no novo contexto de sociabilidade residencial (1942, p. 381). Alm do mais, menos provvel que ocorra o desenvolvimento de relaes primrias que resultam em estruturas informais de controle do bairro quando as redes locais esto em contnuo estado de fluxo (Berry e Kassarda, 1977)

Finalmente, a privao econmica dos residentes numa vizinhana, medida a partir do status socioeconmico local, afetaria a localidade como um todo por falhar na alocao necessria de dinheiro e recursos. De acordo com os argumentos elaborados por Shaw e McKay (1942), vizinhanas com baixo status socioeconmico sofreriam de um enfraquecimento na base organizacional se comparada com uma outra com elevado status socioeconmico. Os autores hipotetizaram que o efeito do status socioeconmico sobre as taxas de crime e delinqncia operaria por meio dos controles formais e informais como um reflexo da participao organizacional e da superviso comunitria dos jovens residentes.

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Segundo Shaw e McKay (1942), este conjunto de fatores que impediam os residentes de determinadas reas urbanas alcanarem objetivos comuns era o que caracterizava uma vizinhana como socialmente desorganizada. Em termos mais gerais, desorganizao social um conceito que se refere incapacidade de uma estrutura comunitria em alcanar valores comuns a todos os seus residentes e de manter o controle social efetivo (Kornhauser, 1978). Assim, as altas taxas de criminalidade e delinqncia de algumas vizinhanas no interior das cidades encontravam sua explicao no contexto de desorganizao social em que se situavam, em que os mecanismos de controle social formal ou informal enfraquecidos diminuam os custos para se cometer um crime.

Adicionalmente, os autores mostraram que, embora houvesse alterao da populao que residia nas reas de desorganizao social, as taxas de criminalidade e delinqncia permaneciam relativamente constantes, o que deslocava as explicaes da criminalidade do foco individual para um nvel superior de agregao, o nvel s ocioestrutural da vizinhana. Deste modo, Shaw e McKay enfatizaram que residentes desta rea [i.e. de desorganizao social] no eram biologicamente ou psicologicamente anormais. Antes, seu crime e desvio eram simplesmente respostas normais de pessoas normais s condies sociais anormais (Akers, 2000, p. 140).

Embora tenham elaborado um trabalho considerado clssico na criminologia (Bursik e Grasmick, 1993), Shaw e McKay falharam em alguns pontos relativos sua teoria, sobretudo na construo do conceito de desorganizao social e em sua associao com as taxas de delinqncia juvenil (Kornhauser, 1978; Bursik, 1988, Bursik e Grasmik, 1993). A maior fonte de crticas teoria da desorganizao social tem a ver com a prpria construo do conceito de desorganizao social, uma vez que os crticos no viam uma perfeita distino entre este conceito e o seu resultado: as taxas de crime e delinqncia. Tericos como Lander (1954) e Pfohl (1985) mostraram que o conceito de desorganizao social elaborado por Shaw e McKay pode ser equiparado com o prprio fenmeno que ele procura explicar. De acordo com este argumento, o valor terico e emprico deste conceito duvidoso, por causa da forma como definido. Na realidade, as crticas incidem sobre o conjunto de fatores de grupo, no qual delinqncia, crime,

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famlias desestruturadas e outros fatores sociopatolgicos esto includos para a definio do que vem a ser desorganizao social.

Por causa das constantes crticas sobre esta teoria, houve um perodo de aproximadamente 20 anos, do final da dcada de 1950 ao incio dos anos de 1970, em que a abordagem ecolgica do crime foi abandonada pelos tericos da sociologia da violncia. Neste perodo, h um retorno tradio individualista de explicao das causas da criminalidade. Isto se deve, sobretudo, ao desenvolvimento da tcnica de surveys, momento em que as cincias sociais passaram a se preocupar muito mais com as caractersticas dos indivduos como fatos explicativos das aes desenvolvidas por eles. Isto fez com que as caractersticas do ambiente onde vivem, especialmente o contexto das grandes cidades, fossem relegadas ao segundo plano.

b) A reformulao sistmica da teoria da desorganizao social

O conceito de desorganizao social retorna discusso da sociologia do crime do mesmo ponto em que havia parado, isto , relacionando as caractersticas estruturais das vizinhanas status socioeconmico, heterogeneidade tnica e mobilidade residencial com a sua taxa de criminalidade. No obstante, os novos debates que surgem aps o perodo de abandono da teoria da desorganizao social buscam incorporar aos modelos originais variveis que mediam o efeito direto dos fatores estruturais sobre a medida de crime (ou, apenas, vitimizao criminal). Isto , enquanto as proposies originais de Shaw e McKay (1942) prediziam que o contexto de desorganizao social das vizinhanas era o responsvel pelas suas taxas de criminalidade e delinqncia, as crticas a esta teoria questionavam a construo deste conceito, sobre o qual toda a teoria se apoiava.

A partir dos anos de 1970, os trabalhos que buscavam retomar o debate original de Shaw e McKay mostravam que a relao entre as caractersticas estruturais das vizinhanas heterogeneidade tnica, mobilidade residencial e privao econ mica e as taxas de

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crimes e delinqncia deveria ser compreendida considerando a existncia de variveis que mediam a associao originalmente proposta. Ao mesmo tempo, surgem inmeras divergncias quanto definio de quais variveis (mediadoras) devem ser incorporadas ao modelo para testar a teoria original da desorganizao social. Isto passa, de certa forma, a dominar um grande debate metodolgico sobre a relao entre desorganizao social e crime, uma vez que comum encontrar conceitos com denominaes semelhantes, embora construdos a partir de questes extremamente diferentes obtidas dos surveys. Tambm, as associaes entre variveis nem sempre convergem entre os diferentes modelos.

Sendo assim, optou-se, neste trabalho, por apresentar, em ordem temporal, as discusses consideradas relevantes nos debates sobre as caractersticas estruturais das vizinhanas e suas taxas de crime e delinqncia. Inicia-se com o debate voltado ao entendimento do papel das redes relacionais nas comunidades e forma como seus residentes alcanam uma maior participao comunitria, para, em seguida, apresentar uma discusso sistmica da teoria da desorganizao social.

O trabalho de Kasarda e Janowitz (1974) discute os dois modelos divergentes sobre comunidades locais e sua organizao social. Os autores propem uma abordagem alternativa que v a comunidade local como um complexo sistema composto por redes de amizade e parentesco, no qual novas geraes e residentes so assimilados. Um dos modelos deriva dos trabalhos de Tennies e Wirth conhecido como modelo de desenvolvimento linear, por considerar o aumento linear da populao e a densidade das comunidades humanas como fatores que influenciam diretamente os padres de comportamento social. De acordo com esta abordagem, processos de urbanizao e industrializao alteram a caracterstica essencial da sociedade, baseada numa interrelao comunal entre os indivduos, e geram uma sociedade de caracterstica associativa (Tennies, 1887). Em Urbanism as a Way of Life, Wirth (1938) refora as formulaes tericas de Tennies e mostra que as caractersticas essenciais da sociedade urbana so: o aumento da populao, a densidade das comunidades e a heterogeneidade dos habitantes

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ou grupos. Esses trs fatores provocam um enfraquecimento dos laos de amizade e um declnio da significncia social da comunidade local (Kasarda e Janowitz, 1974, p. 328).

O outro modelo terico se ope viso de desenvolvimento linear das sociedades urbanas e tambm tem suas origens na Escola de Sociologia Urbana de Chicago. Em particular, representado pelos trabalhos de W. I. Thomas (1967), Robert E. Park e Ernest W. Burgess ( 925). Para eles, o crescimento das cidades e o surgimento das 1 grandes metrpoles urbanas geram uma variedade de mundos sociais e de solidariedades sociais. De acordo com esta viso, as comunidades so entendidas como uma construo social que tem seu prprio ciclo de vida e reflete variveis ecolgicas, institucionais e normativas (Kasarda e Janowitz, 1974, p. 328-9).

Para Kasarda e Janowitz, a organizao da comunidade considerada como um aspecto essencial da sociedade de massa, ou sociedade moderna. Ela uma estrutura que possui dimenses ecolgicas, institucionais e normativas. A comunidade local vista como um sistema complexo de redes de amizade e parentesco, e de laos associativos formais e informais, com origens na famlia e no processo contnuo de socializao (1974, p. 329). A comunidade manifestaria fronteiras difusas, e a participao dos indivduos que a compe dependeria, entre outros fatores, da sua posio na estrutura social.

O survey utilizado para testar as hipteses relativas aos modelos foi realizado na Inglaterra, em 1967, com 2199 adultos entrevistados 12 . Foram coletadas informaes sobre a posio social do individuo, sua atitude e seu comportamento social dentro e fora da sua comunidade local. Essas informaes permitiram o exame dos fatores sociolgicos que influenciam a participao comunitria local e o apego entre os indivduos. Os resultados apontam para a importncia da medida de tempo de residncia dos indivduos em sua comunidade na compreenso do nvel de participao comunitria. Esta medida mostrou-se muito mais importante que aquelas relacionadas ao tamanho da populao ou, mesmo, densidade no envolvimento e participao dos indivduos na sociedade

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Para mais informaes acerca desta pesquisa, ver Kasarda e Janowitz (1974), especialmente referencia contida na nota 1 da pgina 330.

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moderna. Enfim, o tempo de residncia promove uma maior estabilidade residencial na comunidade, que, por sua vez, implica maior envolvimento entre os indivduos desta comunidade, facilitando, entre outras coisas, as busca por uma ordem social entre eles.

A reformulao da teoria da desorganizao social, em termos sistmicos, foi realizada por Bursik e Grasmick (1993). A discusso destes autores visa a uma melhor distino entre os componentes da estrutura social das vizinhanas e a medida de crime. Isto , procura descobrir quais so os fatores gerados pela caracterstica estrutural de uma vizinhana que implicam maior ou menor taxa de criminalidade da mesma. Eles incorporam variveis intervenientes ao modelo que funcionam como mediadoras da relao direta, originalmente descrita por Shaw e McKay (1942), entre as caractersticas da estrutura das vizinhanas e as taxas de crime, tais como redes de relaes primrias e secundria s entre os moradores vizinhos e medidas que representam o exerccio de controle social.

Enquanto Kasarda e Janowitz (1974) buscaram na medida de tempo de residncia a explicao para uma maior participao local dos indivduos e controle dos mesmos, Bursik e Grasmick (1993) afirmavam que a capacidade local de auto-regulao est determinada pela extenso e densidade de redes formais e informais entre os residentes no interior das vizinhanas. Essas redes entre os residentes, ou vizinhos, conduzem a um efetivo controle social local, que, por sua vez, depender das trs dimenses bsicas propostas por Shaw e McKay (1942) em sua teoria da desorganizao social: baixo status socioeconmico, instabilidade residencial e heterogeneidade tnica, responsveis por uma diminuio da capacidade local de promover auto-regulao. Para Bursik e Grasmick (1993), essas trs dimenses estruturais afetam as relaes formais e informais dentro de uma comunidade. Por causa disto, ocorre um enfraquecimento do controle social comunitrio em trs nveis distintos: privado, paroquial e pblico, que tm a ver com as diferentes formas com que os indivduos de uma comunidade buscam a ordem social (Hunter 1985). No trabalho original, esses trs nveis ou tipo de ordem social, so utilizados para analisar a natureza do crime e a incivilidade no interior das comunidades urbanas (Hunter, 1985, p. 230-31).

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No nvel privado, que diz respeito s relaes mais pessoais entre familiares ou amigos, as mudanas contnuas da populao nas vizinhanas dificultam o estabelecimento e a manuteno dos laos primrios entre os residentes. Isso implica redes relacionais mais frgeis e menos duradouras e um controle social local menos eficiente. Em relao ao nvel paroquial, que diz respeito ao amplo conj unto de redes interpessoais entre vizinhos e sua ligao com instituies locais, o controle do crime se v abalado por causa da incapacidade dos residentes de se organizarem e supervisionarem o comportamento uns dos outros. Por fim, o modelo sistmico enfatiza a importncia de se considerar o nvel pblico de controle social. Neste nvel de ordem social, entende-se a capacidade da comunidade local de obter recursos e servios oriundos da esfera pblica de poder (servios de sade, social e de justia), situada fora da comunidade.

Do ponto de vista evolutivo, a reformulao proposta por Bursik e Grasmick (1993) incorpora o componente de controle social em trs esferas privado, paroquial e pblico aos elementos originais de propostos por Shaw e McKay (1942), associados s redes formais e informais de Kasarda e Janowitz (1974). Como se pode perceber, a cada momento, aos pressupostos originais da teoria de desorganizao social so incorporadas novas medidas, e arranjos vo sendo feitos para assegurar maior amplitude de explicao terica. Alm disto, as crticas anteriormente feitas teoria vo sendo superadas a partir de uma melhor elucidao terica.

Por exemplo, uma das mais fortes crticas teoria da desorganizao social (Shaw e McKay, 1942) foi a evidncia de vizinhanas caracterizadas por populao estvel, baixa heterogeneidade tnica e extensas redes interpessoais, e que, ao mesmo tempo, apresentavam altas taxas de criminalidade. Ao compreender o papel de cada um dos trs nveis de controle social no modelo sistmico de crime, Bursik e Grasmick (1993) mostram que esta aparente contradio no passa da falha em no atribuir s anlises precedentes o papel do nvel pblico. Seria muito difcil manter baixas taxas de crimes nas vizinhanas a partir somente de esforos locais. Um dos fatores principais a capacidade que o grupo local tem em negociar e captar das agncias da esfera pblica

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investimentos locais. Isso indica a necessidade de expandir o foco de controle para alm das dinmicas internas da comunidade (Snell, 2001. p. 11).

c) O modelo ecolgico de Sampson e Groves13

A reformulao da teoria da desorganizao social, em termos sistmicos, deu novo impulso pesquisa sociolgica que buscava nas caractersticas agregadas dos indivduos as explicaes para a criminalidade. A partir do final dos anos 70, possvel encontrar na literatura um volume considervel de trabalhos empricos que buscavam testar algumas das dimenses da teoria da desorganizao social no contexto de grandes cidades (Kornhauser, 1978; Taylor et al., 1984, Simcha-Fagan e Schwartz, 1986). Em termos gerais, esses trabalhos tratam a comunidade local, bairro ou vizinhana como um complexo sistema de redes de amizade e parentesco responsveis pelo grau de superviso coletiva e, por conseguinte, pelo controle da ordem local.

No trabalho de Sampson e Groves (1989), a teoria da desorganizao social definitivamente testada empiricamente. Esses autores conseguiram construir medidas consistentes das dimenses abordadas pela reformulao sistmica de desorganizao social, agregando as respostas dos entrevistados ao nvel de vizinhana. Se as crticas teoria eram direcionadas muito mais medida de desorganizao social do que pela teoria em si (Lander, 1954), com este trabalho foi possvel testar a validade terica do modelo de Shaw e McKay (1942). Originalmente, o argumento principal da teoria da desorganizao social (Shaw e McKay, 1942) que baixo status socioeconmico, alta mobilidade residencial e heterogeneidade tnica conduziam a uma desestruturao da organizao social da comunidade, fato que, por sua vez, explicava as variaes nas taxas de crime. A incorporao de variveis mediadoras representando a organizao social de

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O trabalho Community Structure and Crime: Testing Social-Disorganization Theory, de 1989, considerado pela literatura como o mais completo teste do modelo sistmico de desorganizao social.

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uma vizinhana o componente principal que explica as diferenas das taxas de crime no interior das cidades 14 .

Sampson e Groves (1989) analisam dados de um survey britnico de 1982 (1982 British Crime Survey) em que aproximadamente 11 mil pessoas foram entrevistadas, representando quase 200 reas ecolgicas consideradas comunidades locais. Com o objetivo de examinar as dimenses da desorganizao social, conseguem medidas ao nvel de comunidades para as variveis estruturais, denominadas medidas exgenas e, para as dimenses mediadoras de desorganizao social (Sampson e Groves, 1989, p. 777). Eles chamam de dimenses da desorganizao social os aspectos de uma vizinhana que a caracterizam como socialmente desorganizada: fracas redes de amizade, baixa capacidade de superviso de jovens e adolescentes, e pouca participao em organizaes comunitrias. As taxas de crimes e delinqncia so construdas a partir de dados de vitimizao, independentes dos registros oficiais provenientes do sistema de justia criminal15 .

De acordo com o pressuposto terico clssico, trs variveis estruturais so responsveis pela capacidade diferenciada das comunidades de promoverem um sistema efetivo de controle social: status socioeconmico, mobilidade residencial e heterogeneidade tnica. Uma comunidade com recursos financeiros escassos ter problemas para estabelecer uma efetiva participao de seus residentes em organizaes formais ou voluntrias, de modo que o controle formal e informal, traduzido na forma de superviso de jovens ou adolescentes, torna-se mais enfraquecido e favorece elevadas taxas de criminalidade nestas reas.

Mobilidade residencial, por sua vez, desestabiliza as redes sociais de uma comunidade. De acordo com o modelo sistmico de Kasarda e Janowitz (1974), uma comunidade com14

De todos os trabalhos anteriores, a primeira vez que variveis mediadoras so incorporadas nos modelos estatsticos para testar a teoria da desorganizao social. 15 Outra crtica teoria da desorganizao social de Shaw e McKay (1942) o argumento de que comunidades com baixo status socioeconmico so caracterizadas por altas taxas de crime e delinqncia, em parte, por causa de uma grande concentrao de policiais nestas reas. Para garantir que este problema fosse minimizado, os autores procuram usar dados de vitimizao.

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elevada mobilidade entre seus residentes ter maiores dificuldades para promover fortes redes sociais e laos associativos. Essas redes sociais locais tm um papel importante no envolvimento das pessoas para a soluo de problemas ligados principalmente criminalidade na sua vizinhana, alm de funcionarem como mecanismos de superviso e controle, sobretudo de jovens e adolescentes.

Finalmente, heterogeneidade tnica, como hipotetizado por Shaw e McKay (1942), funciona como uma barreira para que os residentes de uma comunidade compartilhem sentimentos comuns, traduzidos na forma de consenso. Uma comunidade muito heterognea ter problemas de comunicao e interao entre seus residentes, tornando-a segmentada e frgil nos seus controles sobre a criminalidade e delinqncia.

Duas outras caractersticas estruturais exgenas so incorporadas na proposta de teste da teoria elaborada por Sampson e Groves (1989): desestruturao familiar e urbanizao. A primeira tem impacto direto na reduo dos mecanismos de controle social informal. O indicador de desestruturao familiar composto pelo nmero de residncias cujos pais so separados ou divorciados. Residncias monoparentais tero menor capacidade de superviso e proteo no apenas das crianas e da prpria casa, mas tambm das atividades da vizinhana como um todo 16 . Do mesmo modo como Shaw e McKay mostraram que o processo de estabilidade das taxas de crime em determinada rea tem a ver com o contato dirio entre adultos criminosos e jovens, uma menor vigilncia dos pais pode possibilitar um contato mais recorrente entre jovens e adultos criminosos. Hipoteticamente, uma comunidade caracterizada por desestruturao familiar ter menor superviso dos jovens e, portanto, maior taxa de criminalidade e delinqncia.

A medida de urbanizao chama a ateno para os tipos de relaes pessoais que ocorrem em sociedades mais industrializadas e modernas. No contexto da teoria, uma vizinhana mais urbanizada seria aquela rea da cidade de indstria e comrcio na qual as relaes entre os residentes so menos diretas e mais frgeis. Isso provocaria menor capacidade de

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Essa idia de superviso associada com lares completos pode ser encontrada, tambm, nos pressupostos da teoria das atividades rotineiras de Cohen e Felson (1979).

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controle e superviso em nvel local e geraria um ambiente favorvel criminalidade e delinqncia.

O merecido destaque que o trabalho de Sampson e Groves (1989) desfruta na literatura sobre desorganizao social, se comparado aos outros, justifica-se pelo fato de eles terem incorporado proposta original da teoria medidas sistmicas de desorganizao social ao nvel da vizinhana. Tais medidas absorvem o efeito direto das variveis estruturais nas taxas de crime e delinqncia 17 , e por isso so definidas pelos autores como as dimenses intervenientes de desorganizao social. As variveis que compem esta dimenso so representadas por medidas que dizem respeito a: capacidade da comunidade de supervisionar e controlar grupos de adolescentes, redes de amizade local e participao na comunidade em organizaes formais e voluntrias.

Para Sampson e Groves (1989), a capacidade de uma comunidade de supervisionar e controlar as aes e atitudes de jovens e adolescentes consideradas desordeiras a mais importante dimenso interveniente do modelo. Shaw e McKay (1942) mostraram que a criminalidade e delinqncia um fenmeno de grupo. As gangues que atuam em uma comunidade se desenvolvem por causa da fraca superviso e controle de grupos locais. Em decorrncia disto, Sampson e Groves (1989) consideram a capacidade de uma vizinhana em controlar as aes de grupos locais um mecanismo extremamente importante de ligao entre caractersticas locais e delinqncia. Hipoteticamente, quanto maior o grau de coeso em determinada vizinhana, maior ser sua capacidade de controlar o desenvolvimento e a ao de gangues responsveis pelas taxas de crime e delinqncia locais.

O modelo sistmico de Kasarda e Janowitz (1974) fornece o subsdio necessrio para a segunda dimenso da organizao social de uma comunidade. Para eles, os laos sociais formados numa comunidade favorecem uma maior capacidade dos seus residentes em exercerem o controle social informal. Por serem mais coesos, os vizinhos so mais capazes de reconhecer pessoas estranhas e de se tornar mais envolvidos nas discusses17

Ver figura 1, p. 783 em Sampson e Groves (1989).

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sobre a soluo dos problemas relacionados criminalidade e delinqncia. Por causa disto, Sampson e Groves (1989) consideram as redes de amizade local um dos fatores mediadores das taxas de crime, na medida em que funcionam como mecanismo de reconhecimento de pessoas suspeitas e de controle social informal.

Por fim, a terceira varivel interveniente elaborada por Sampson e Groves (1989) a taxa de participao local em organizaes formais e voluntrias (idem, p. 779). Organizaes comunitrias exercem um importante papel no envolvimento e participao dos residentes de uma comunidade local na discusso dos problemas de interesse comum. Alguns autores tm defendido a tese de que uma comunidade pouco organizada dispe de mecanismos frgeis de controle social, sobretudo com respeito a adolescentes e jovens (Simcha-Fagan e Schwartz, 1986). Neste sentido, vizinhanas muito organizadas seriam aquelas que, tambm, seriam caracterizadas por menores taxas de crimes violentos e de delinqncia juvenil. (Sampson e Groves, 1989, p. 780) 18 .

Os resultados obtidos deram novos impulsos teoria originalmente proposta por Shaw e McKay (1942), sugerindo testes futuros mais sofisticados. Resumidamente, os coeficientes do modelo de regresso utilizado mostram que as variveis intervenientes (redes de amizade, superviso de jovens e participao organizacional) tm um impacto muito maior nas taxas de vitimizao se comparados aos coeficientes das variveis estruturais prevalecentes do modelo original. De acordo com as palavras dos prprios autores, tomadas juntas, as trs dimenses de desorganizao social da comunidade mediaram mais da metade dos efeitos dos trs fatores estruturais de Shaw e McKay (status socioeconmico, mobilidade e heterogeneidade) sobre o principal indicador de crime (i.e. taxa de vitimizao total)19 (Sampson e Groves, 1989, p. 791).

Os resultados corroboram o modelo sistmico de desorganizao social de Sampson e Groves (1989), na medida em que tm nos indicadores de coeso, participao e18

Para um melhor esclarecimento de como as variveis foram construdas, ver Sampson e Groves, pginas 783 a 786 (1989). 19 Do original, taken together, the three dimensions of community social disorganization mediate over one-half of the effects of Shaw and McKays three structural factors (SES, mobility, heterogeneity) on the most general indicator of crime (i.e., total victimization rate). Traduo de responsabilidade do autor.

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superviso de uma comunidade a explicao para as menores taxas de crime e delinqncia no interior das cidades. No obstante, os autores assumem que seu modelo tem algumas deficincias, que devem ser sanadas em testes futuros, sobretudo no que diz respeito medida de participao organizacional.

Talvez uma das maiores dificuldades sentidas pelos autores tenha sido controlar o efeito das medidas de nvel comunitrio pelas variveis individuais em modelos de regresso linear WLS. Neste tipo de anlise estatstica, reconhecem-se dois nveis de observaes: um individual e outro agregado, que diz respeito s caractersticas das vizinhanas. Os modelos de regresso devem controlar o efeito de um nvel sobre o outro. por is so que nos trabalhos mais recentes que utilizam variveis individuais e coletivas em modelos de regresso os autores tm adotado modelos multinveis de regresso hierrquica (Sampson et. al. 1997).

d) Eficcia coletiva e crime

Um dos mais elaborados estudos a associar caractersticas de vizinhanas a taxas de criminalidade foi realizado na cidade de Chicago, em 1995, por Sampson, Raundenbush e Earls (Sampson et al., 1997), considerado um importante avano sobre a idia original da teoria da desorganizao social. Os autores imputam ao conceito de Eficcia Coletiva , definida como coeso social entre os vizinho, combinado com sua predisposio para interferir no que de interesse comunitrio, a explicao para as diferentes taxas de crime na cidade.

A premissa bsica do estudo que caractersticas sociais e organizacionais dos bairros explicam as variaes nas taxas de crimes que no devem ser atribudas somente s caractersticas demogrficas agregadas dos indivduos (Sampson et al., 1997, p. 918). De acordo com este trabalho, as baixas taxas de crimes numa vizinhana seria o resultado de um ambiente em que os residentes tm valores comuns comp artilhados e, ao mesmo tempo, agem de forma a controlar as atividades locais. Este controle social informal ao

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nvel da vizinhana ser mais bem exercido quando houver maior interao e confiana entre seus residentes.

Os autores focam suas anlises nos mecanismos de controle social informal que os residentes de uma vizinhana buscam para alcanar ordem pblica, em contraste com controle social formal, como aes policiais, por exemplo. Em termos tericos, o controle social informal efetivo na vizinhana se traduz na capacidade de seus residentes de obterem recursos (financeiros) e respostas (aes polticas) direcionadas s demandas locais. Segundo os autores, essa viabilizao de servios pblicos direcionados s demandas locais minimiza os efeitos da desordem social sobre as taxas de criminalidade local.

Trata-se aqui do terceiro nvel de ordem social: o nvel pblico (Hunter, 1985). Bursik e Grasmick (1993) explicam que a aparente contradio do modelo original de desorganizao social, verificada pela existncia de vizinhanas caracterizadas por baixo status socioeconmico, instabilidade residencial, a heterogeneidade tnica e o baixo ndice de criminalidade decorrem da baixa capacidade de interlocuo entre os representantes da comunidade local e a esfera pblica de poder, localizada fora dos limites da comunidade.

Para que uma vizinhana consiga um efetivo controle social informal, traduzido na predisposio dos residentes locais em agirem para obter o bem comum, preciso que os moradores compartilhem de duas caractersticas individuais entre eles: confiana e solidariedade. De fato, improvvel que exista qualquer tipo de mobilizao numa vizinhana em que os seus residentes compartilhem sentimentos de desconfiana ou medo entre eles. Isto posto, os autores assumem que vizinhanas socialmente coesas apresentam um contexto mais frtil para a realizao de controle social informal (Sampson et al., 1997, p. 919).

O que os autores definem como eficcia coletiva de uma vizinhana, portanto, a conexo entre coeso social, confiana mtua dos residentes e predisposio para

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intervirem na resoluo de problemas locais. Para eles, eficcia coletiva dos residentes um meio crtico pelo qual localidades urbanas inibem a ocorrncia de violncia pessoal, sem considerar a composio demogrfica da sua populao (idem, p. 919)

Os autores indicam algumas caractersticas no contexto estrutural das vizinhanas que tm influncia sobre eficcia coletiva. Eles retomam as caractersticas estruturais originrias do trabalho de Shaw e McKay (1942) que impactam o contexto de desorganizao social, ao mesmo tempo em que lanam luz sobre novos fatores a se considerarem.

Por exemplo, o impacto que a taxa de mobilidade residencial na vizinhana tem na ordem social local foi vastamente discutida, sobretudo no que diz respeito ao efeito sobre laos sociais e envolvimento local (ver Shaw e McKay, 1942; Kassarda e Janowitz, 1974; Janowitz 1976; Sampson e Groves, 1989; e Bursik e Grasmick, 1993). Neste trabalho, Sampson e seus colegas vo mais alm e levantam informaes sobre a taxa de pessoas proprietrias das suas residncias numa vizinhana. Essa caracterstica, para eles, seria um bom indicador de mobilizao local em torno de resoluo de problemas comuns.

A heterogeneidade tnica, agravada por uma forte segregao racial, tem conduzido grupos de pessoas ao isolamento geogrfico e social. A literatura que discute este tema, inicialmente, considera a dificuldade de diferentes grupos tnicos conviverem numa mesma rea, sobretudo por causa das diferenas de valores. Somado a isto, eles consideram o isolamento social de residentes de baixa renda, especialmente de minorias e de famlias que tm a mulher como responsvel pelo domiclio. Assume-se, por isso, que a estratificao econmica por raa e lugar implica concentrao, nas vizinhanas, de formas cumulativas de desvantagem, intensificando o distanciamento de pessoas de baixa renda, minorias e famlias monoparentais dos recursos necessrios para obter um controle social coletivo (Wilson, 1987).

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Finalmente, variveis de renda representam o mais importante impacto na sade, tanto de indivduos quanto de sua coletividade. Pobreza concentrada 20 - definido pelo ndice construdo pelas variveis renda e raa, e pelas caracterstica do domiclio e do responsvel tem relao direta com a quantidade de eficcia coletiva dos residentes de uma vizinhana. De acordo com os prprios autores, mesmo se existirem fortes laos sociais em vizinhanas pobres, a desvantagem econmica um importante fator a se considerar no que diz respeito obteno de aes coletivas.

Os dados para testar o modelo de eficcia coletiva proposto por Sampson (Sampson et al., 1997) so do Projeto de Desenvolvimento Humano em Bairros de Chicago (Project on Human Development in Chicago Neighborhoods PHDCN 21 ). Os autores agruparam os 847 setores censitrios da cidade de Chicago em 343 Aglomerados de Vizinhana (Neighborhood Clusters NCs), os quais so, de acordo com os autores, ecologicamente significativos e compostos de reas contguas, de maneira que internamente so muito homogneos no que diz respeito a variveis sociodemogrficas do censo, como informaes de raa e de classe social.

As medidas mais importantes deste trabalho so traduzidas pelos conceitos de controle social informal, coeso social e confiana, combinados para compor a medida de eficcia coletiva. O indicador de controle social informal obtido a partir de perguntas direcionadas aos entrevistados para captar informaes sobre sua capacidade (ou predisposio) de agir ou intervir no bem-estar comum da vizinhana em que vivem. Como exemplo, a probabilidade de intervir sobre uma criana que est deixando de ir escola, pichando muros ou paredes de prdios, desrespeitando adultos ou brigando nas ruas.

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Este ndice foi construdo a partir do resultado da anlise fatorial das seguintes variveis ao nvel da vizinhana: percentual de pessoas abaixo da linha de pobreza, pessoas que recebem assistncia do governo, desempregados, mulheres responsveis pelo domiclio, densidades de pessoas com idade inferior a 18 anos e percentual de residentes negros. 21 Para mais informaes sobre este Projeto, resultados e notcias, ver http://www.hms.harvard.edu/chase/projects/chicago/about/about.html.

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As medidas de coeso social e de confiana na vizinhana so construdas a partir de questionamentos aos residentes a respeito do grau de coeso e confiana existente entre eles. Alguns autores chamam este indicador de integrao social (Rountree e Land, 1996). Neste caso, os entrevistados so perguntados sobre sua predisposio para ajudar seu vizinho, se eles se consideram muito unidos, se as pessoas em sua vizinhana podem ser confiveis e se compartilham de valores comuns (Sampson et al., 1997, p. 920).

Para os autores, controle social informal e coeso social so medidas altamente correlacionadas 22 . Sugerem que elas estejam indicando aspectos de uma mesma medida latente (idem p. 920) e que estariam combinadas para gerar o indicador de eficcia coletiva da vizinhana, uma medida que diz respeito, basicamente, predisposio e inteno dos residentes para intervirem no comportamento da vizinhana sob condies de confiana mtua e coeso social.

Outras variveis obtidas a partir deste survey cooperam para avaliar as diferenas entre vizinhanas, como informaes sobre renda, raa, migrao, mercado de trabalho, idade, estrutura familiar, situao da residncia e estabilidade residencial. No modelo apresentado, essas variveis so usadas separadamente no nvel individual e, algumas delas, so agrupadas para gerar informaes no nvel agregado de vizinhana, como pobreza concentrada, concentrao de imigrantes e estabilidade residencial.

As variveis dependentes, ou resposta, so as medidas de violncia, tambm obtidas pelo survey de vizinhana da cidade de Chicago. Os entrevistados so perguntados sobre a ocorrncia de vitimizao prvia para alguns delitos, como brigas com uso de armas, discusses entre vizinhos, briga de gangues, violncia sexual ou estupro e roubo.

Os autores usam modelos de regresso hierrquica para estimar o efeito de variveis estruturais sobre o indicador de eficcia coletiva. Num momento posterior, a medida de eficcia coletiva usada como varivel independente para estimar seu efeito sobre as

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O coeficiente de correlao linear de Pearson para estas duas medidas foi de 0.80 com p-valor igual a 0,001.

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medidas de vitimizao no nvel de vizinhana 23 . Os resultados obtidos mostram que as medidas ao nvel de vizinhana pobreza concentrada, concentrao de imigrantes e estabilidade residencial explicam 70% da variao de eficcia coletiva dentro da cidade. Concentrao de pobreza, imigrantes e elevada instabilidade residencial tm uma relao negativa com o indicador de eficcia coletiva. Da mesma forma, a existncia de eficcia coletiva na vizinhana est negativamente relacionada violncia. Isto , reas em que os vizinhos exercem um forte papel de vigilncia informal de jovens e adolescentes associado a um forte indicador de coeso social e confiana mtua apresentam baixos indicadores de desordem e vitimizao.

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Para mais esclarecimentos sobre esta metodologia, ver Sampson et. al., 1997, Raudenbush e Sampson, 1999a, Raudenbush e Sampson 1999b, Morenoff, Sampson e Raudenbush, 2001).

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4 DESORDEM E CRIMEAs teorias abordadas at aqui buscam na organizao social da vizinhana, bairro ou comunidade a explicao para as diferenas nas taxas de criminalidade nos grandes centros urbanos. Desde os primeiros achados da ecologia social do crime at recentes pesquisas sobre o nvel de eficcia coletiva em comunidades urbanas, encontram-se fortes subsdios para afirmar que a forma como os indivduos interagem, organizam-se e monitoram aes e atitudes, sobretudo na sua vizinhana, tem uma relao direta com o nvel de criminalidade onde vivem. No obstante, as reas no interior das cidades com altas taxas de crime tendem a se caracterizar por fortes sinais de desordem. Desde os primeiros estudos, as reas no interior das grandes cidades com elevadas taxas de criminalidade e delinqncia eram, tambm, regies caracterizadas por elevado ndice de degradao fsica e inmeros sinais de desordem pblica (Shaw e McKay, 1942; Sampson e Groves, 1989; Sampson et al., 1997).

Recentes pesquisas buscam verificar a relao entre os indicadores de desordem e crime nas grandes cidades. Algumas apontam para a importncia de considerar a dimenso de desordem como causa dos elevados ndices de criminalidade. Isto , regies socialmente degradadas produziriam os ingredientes necessrios ocorrncia de crimes. Basicamente, estes estudos apontam para uma relao direta entre o indicador de desordem social e as medidas de crime (Wilson e Kelling, 1982; Skogan, 1990; Kelling e Coles, 1996).

De um lado, esses estudos mostram que, assim como ocorre com o crime, sinais de desordem no esto distribudos na cidade de uma forma homognea. Ou seja, assim como existem reas mais violentas que outras, tambm h localidades no interior das cidades que apresentam maior incidncia de desordem fsica e social. Em seu estudo de 1942, Shaw e McKay j haviam notado que as vizinhanas na cidade de Chicago com os maiores ndices de delinqncia juvenil eram, tambm, reas com elevada residncia de criminosos. Por sua vez, essas regies se caracterizavam pelos piores indicadores sociais

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e econmicos: elevado ndice de analfabetos, alcolatras, viciados em drogas ilegais, prostitutas e prdios mal conservados ou abandonados.

De outro lado, as pesquisas tm mostrado que os nveis de desordem na vizinhana esto altamente relacionados a taxas de crimes, medo de crime e crena de que a criminalidade um problema na vizinhana (Skogan, 1990, p. 10). Ou seja, de acordo com Skogan (1990), a relao entre crime e desordem de causa e efeito. Alm disto, desordem e crime seriam explicados por um terceiro conjunto de fatores caractersticos da vizinhana, tais como pobreza concentrada, instabilidade residencial e heterogeneidade tnica.

Outros estudos, em oposio, defendem apenas uma relao indireta entre as medidas de desordem e criminalidade. Neste caso, crime e desordem numa vizinhana so vistos como fenmenos com origens comuns. Quando controlados pelas caractersticas estruturais das vizinhanas, a relao entre essas medidas praticamente desaparece. O fator indireto da relao verificado no sentido de que desordem pblica vista como um fenmeno que provoca migrao e diminuio de investimentos nas vizinhanas onde encontrado. (Sampson e Raudenbush, 1999; Sampson, 2003).

Muitos sinais de desordem numa vizinhana podem gerar forte sentimento de desprazer por parte dos seus residentes, muitas vezes, identificado pelo desejo de mudana. De acordo com Harcourt (2001), o elevado ndice de desordem numa comunidade, bairro ou vizinhana pode influenciar pessoas honestas a mudarem do lugar ou a se isolarem em suas casas. No entanto, como mudar um fenmeno seletivo, pois depende, em grande medida, da renda familiar, o efeito da insatisfao em morar numa vizinhana ir afetar os componentes que promovem eficcia coletiva na rea: vigilncia social informal, coeso social e confiana mtua entre os vizinhos. Esse retraimento da vida comunitria mina o envolvimento dos residentes e sua predisposio para intervir em comportamentos que abalam a ordem social local Ao mesmo tempo, afeta a interao social, reduzindo o nvel de confiana entre eles. Como resultado, todo o processo sob o qual se constri e solidifica a eficcia coletiva em uma vizinhana se encontra afetado.

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Esse processo de deteriorao das condies fundamentais para a promoo de eficcia coletiva se torna progressivo e dificulta o envolvimento entre os indivduos, minando a participao deles em organizaes locais e afetando sua capacidade de organizar e demandar por benefcios pblicos. Com isto, cada vez mais os moradores desses locais se tornam estigmatizados e procuram distanciar-se ou isolar-se dos acontecimentos da sua vizinhana. medida que esses problemas se tornam mais intensos, passam a se autosustentarem, de modo que a vizinhana entra num processo cujo movimento um espiral, em que os problemas vo se tornando cada vez mais intensos.

Embora seja fcil perceber uma forte divergncia nesses estudos sobre a real relao entre sinais de desordem e ndices de criminalidade nas vizinhanas, as definies de desordem na literatura a respeito convergem para um mesmo conjunto de fatores considerados incivilidades pblicas, os quais podem variar na extenso em que so examinados por pesquisadores, bem como no contexto em que so encontrados. Por exemplo, existe forte consenso entre os pesquisadores de que vandalismo e construes abandonadas so sinais de desordem, enquanto medidas que captam informaes sobre lixos nas ruas ou caladas nem sempre compartilham o mesmo consenso. Ao mesmo tempo, algumas medidas de desordem podem ser consideradas grave s violao da lei em alguns pases mas no em outros.

De maneira geral, desordem pode ser definida como problemas de ordem pblica que geram reaes por parte das pessoas, variando no mesmo grau com que essas pessoas a tratam como um problema. Neste sentido, desordem um aspecto da vida coletiva que afeta valores compartilhados entre indivduos. Segundo Skogan (1990), as respostas pblicas ao problema so direcionadas a duas classes gerais de desordem: social e fsica.Desordem social um problema de comportamento: voc pode o ver acontecer (prostituio), experinci-lo (assdio sexual) ou notar sua evidncia indireta (pichaes). Desordem fsica envolve sinais visuais de negligncia ou deteriorao: construes abandonadas ou mal conservadas, iluminao de ruas sem funcionamento, lotes vagos cheios de lixo, caladas com lixos (p.4).

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Considerar desordem como um problema assumir que sua existncia em determinada localidade provoca a reao dos residentes. Neste trabalho, ao incorporar a medida de desordem nas anlises, acredita-se estar complementando as pesquisas anteriores que buscam testar a teoria da desorganizao social. Do mesmo modo que as variveis estruturais inicialmente propostas por Shaw e McKay podem promover eficcia coletiva na vizinhana (Sampson et al., 1997), a sua falta causa de um ambiente de desordem fsica e social. Isto , assim como alto status socioeconmico, baixo ndice de heterogeneidade tnica e pouca mobilidade residencial so fatores essenciais para promover um maior envolvimento entre os indivduos, tornando-os mais coesos e predispostos a intervirem na sua vizinhana, a inexistncia de uma dessas caractersticas poderia causar maior retraimento da vida comunitria, tendo como resultado muitos sinais de desordem na prpria vizinhana.

Fundamentalmente, busca-se aqui compreender qual a relao entre o indicador selecionado de desordem percebida na vizinhana e sua taxa de criminalidade e vitimizao reportada, tudo isto no contexto da cidade de Belo Horizonte. Enquanto uma relao de causa e efeito, espera-se encontrar coeficientes estatisticamente significativos nas analises que revelem que vizinhanas onde seus residentes apresentam um elevado indicador de desordem percebida so, no mesmo sentido, reas muito violentas, cujos residentes manifestam elevada probabilidade de vitimizao. De outro lado, se desordem e crime tm origens comuns, deseja-se provar que os mesmos indicadores responsveis por explicar um tambm explicam o outro. Em outras palavras, se a medida de coeso social for um bom indicador para vizinhanas pouco violentas, tambm o ser quando a medida de desordem estiver incorporada na mesma anlise.

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5 DADOS E METODOLOGIAEsta seo est dividida em quatro tpicos, dimensionados de modo a associar toda a discusso terica anterior aos procedimentos de verificao emprica, ou teste da teoria. Como se pode notar, a discusso terica foi pautada em uma realidade bem diferente daquela que ser usada aqui para testar a teoria. Quaisquer que sejam os resultados, acredita-se que sejam importantes, de um lado, para verificar a amplitude de explicao da teoria e, de outro, para estimular testes futuros baseados nas mesmas teorias, mas que incorporem novas variveis, adaptando a teoria realidade das grandes cidades brasileiras.

Os tpicos referentes aos dados e anlise descritiva das variveis so mais tcnicos e dizem respeito s informaes empricas utilizadas neste trabalho. Pretende-se mostrar a propriedade do survey utilizado, os objetivos, os procedimentos amostrais e as unidades de anlise utilizadas na parte de Dados. A operacionalizao das variveis por tipo, um breve sumrio das mesmas, bem como as modificaes necessrias a sua utilizao nos modelos estatsticos so apresentados no tpico denominado Anlise descritiva das variveis. Em Hipteses, como o prprio nome indica, descrevem-se as hipteses do trabalho e o que se espera, com base na discusso terica do trabalho. Por fim, elaborouse um tpico parte para explicar os Modelos Estatsticos utilizados neste trabalho. Mais uma vez, baseou-se na discusso terica e no tipo de dado utilizado para a definio dos modelos estatsticos. a) Dados

Os dados deste estudo so do survey de Vitimizao, realizado pelo Centro de Estudos de Criminalidade e Segurana Pblica (Crisp) na cidade de Belo Horizonte, Estado de Minas Gerais, no ano de 2002. A populao alvo deste survey compreende os moradores com idade superior a 15 anos residentes nos setores censitrios urbanos normais (bairros) e subnormais (favelas). Os dados populacionais so de 1996, relativos contagem populacional realizada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatstica (IBGE) ano em 45

que Belo Horizonte possua uma populao de 1.529.430 habitantes, morando em 556.859 domiclios, dos quais 10,8% so moradores de favelas.

O objetivo da pesquisa de vitimizao realizada pelo Centro de Estudos de Criminalidade e Segurana Pblica era estudar, separadamente, a taxa de vitimizao dos moradores dos bairros e a dos moradores das favelas, especialmente das favelas violentas. A amostra foi dividida em trs estratos: moradores de bairros; moradores de favela no-violentas; e moradores de favelas violentas. O grau de periculosidade das favelas foi baseado no trabalho de Beato (Beato et al., 2001), no qual foram identificadas algumas reas de favelas 24 na cidade de Belo Horizonte que se destacavam quanto ao seu ndice de criminalidade, especialmente pela concentrao espacial de homicdio 25 .

De um total de 4000 entrevistas, 1000 foram conduzidas nas favelas, sendo 500 em favelas no- violentas e 500 em favelas violentas. Foi utilizado peso amostral para controlar o erro de sobreamostra nas reas de favelas. Depois de definir os setores censitrios por tipo, 20 domiclios dentro dos setores eram escolhidos aleatoriamente e, por fim, uma pessoa de 15 anos ou mais era escolhida para entrevista, seguindo um critrio estabelecido por quota. Neste trabalho, as variveis adicionais utilizadas nos modelos de regresso como renda e estrutura das vizinhanas, por exemplo foram obtidas do Censo de 2000, compatibilizado com os dados da vitimizao.

O tamanho da amostra total do survey de Vi