A Teoria das Elites e sua Genealogia Consagrada - GRYNSPAN.pdf

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ISSN 0100-199X ANPOCS Revista Brasileira de Informação Bibliográfica em Ciências Sociais 41 Neste número: Os Livros do Brasil em Frankfurt Teoria das Elites Democracia Sindical Estudo sobre Profissões dijmaii A

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  • ISSN 0100-199X

    ANPOCSRevista Brasileira de Informao Bibliogrfica

    em Cincias Sociais

    41Neste nmero:

    Os Livros do Brasil em Frankfurt Teoria das Elites

    Democracia Sindical Estudo sobre Profisses

    d i j m a i i A

  • BIB Revista Brasileira de Informao Bibliogrfica em Cincias Sociais (ISSN 0100- 199X) uma publicao semestral, da Associao Nacional de Ps-Graduao e Pesquisa em Cincias Sociais (ANPOCS) destinada a estimular o intercmbio e a cooperao entre as instituies de ensino e pesquisa em Cincias Sociais no Pas. O BIB editado sob orientao de um Editor e um Conselho Editorial composto de profissionais em Cincias Sociais de vrias instituies do Pas.

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  • ISSN 0100-199X

    bibRevista Brasileira de Informao Bibliogrfica

    em Cincias Sociais

    Sumrio

    Os Livros do Brasil entre o Rio de Janeiro e Frankfurt 3

    Gustavo Sor

    A Teoria das Elites e sua Genealogia Consagrada

    Mario Grynszpan

    Trabalhadores, Sindicatos e Democracia:Um Ensaio Bibliogrfico sobre Democracia Sindical

    Jorge Ventura de Morais

    Os Estudos sobre Profisses nas Cincias Sociais Brasileiras

    Maria da Gloria Bonelli Silvana Donatoni

    Teses e Dissertaes en Cincias Sociais 143

    35

    85

    109

    BIB, Rio de Janeiro, n. 41, 1, semestre de 1996, pp. 1-156

  • Colaboram neste nmero:

    Gustavo Sor doutorando em Antropologia Social no Museu Nacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro.

    Jorge Ventura de Morais professor do Departamento de Cincias Sociais da Universidade Federal de Pernambuco.

    Maria da Gloria Bonelli professorado Departamento de Cincias Sociais da Universidade Federal de So Carlos, So Paulo.

    Mario Grynszpan pesquisador do Centro de Pesquisa e Documentao de Histria Contempornea do Brasil e professor do Departamento de Histria da Universidade Federal Fluminense.

    Silvana Donatoni aluna do Programa de Ps-Graduao em Cincias Sociais da Universidade Federal de So Carlos, So Paulo.

  • Os Livros do Brasil entre o Rio de Janeiro e Frankfurt

    Gustavo Sor

    Em outubro de 1994, o Brasil foi o pas- tema homenageado na maior feira internacional de livros: a Frankfurter Buchmesse. O evento consistiu na realizao de um conjunto de representaes sobre o Brasil, para o qual os principais grupos culturais, empresariais e polticos ligados produo e circulao de textos e livros2 brasileiros mobilizaram um grande volume de recursos institucionais, financeiros e humanos.

    Do ponto de vista dos organizadores brasileiros e alemes, a exposio de Frankfurt oferecia uma oportunidade singular para restaurar a imagem deteriorada do Brasil no exterior; para os editores, tratava-se de uma misso de cidadania da qual participavam em nome de um povo. Com o objetivo explcito de enfrentar os clichs vulgarizados pela mdia (violncia, samba, mulatas, crianas pobres, desprezo pela ecologia, futebol) e, aproveitando o evento cultural-editorial mais divulgado pela imprensa internacional, um pequeno grupo de seis pessoas reuniu-se sistematicamente, durante trs anos, na Secretaria Municipal de Cultura e na Editora Melhoramentos de So Paulo. Os autores do Projeto Frankfurt representavam a Cmara Brasileira do Livro (CBL), o Sindicato Nacional dos Editores de Livros (Snel), o Ministrio das Relaes Exteriores e o Ministrio da Cultura por intermdio da Biblioteca Nacional (BN) e do Departamento Nacional do Livro (DNL). A partir de negociaes com a companhia fundada pela Associao de Livreiros e Editores alemes para realizar a feira (Ausstel- lungs- und Messe-GmbH), e contando com a

    participao de escritores, os representantes planejaram um conjunto de exposies, colees, psteres, encontros, catlogos, estatsticas e eventos artsticos sintetizados no ttulo Confluncia de Culturas. As encenaes montadas procuravam transmitir um quadro geral do Brasil, em que a literatura, os autores e os livros no passavam de meios para comunicar a idia de um pas culturalmente rico e complexo, mas injustamente no reconhecido como tal pelos europeus.

    O objetivo deste artigo fazer uma etnografia da organizao e encenao da homenagem ao Brasil realizada durante a 46. feira do livro de Frankfurt. O estudo focaliza o poder do livro e as profisses ligadas produo de livros na construo social dos emblemas, esteretipos e sentimentos de nacionalidade. Inversamente, procura-se compreender como as formas de classificaes denacional e internacional definem as prticas editoriais e a circulao da palavra impressa em livros.

    Idias relativas a um pas autntico, real, verdadeiro, fazem parte das representaes de prestgio e das prticas de honraquetm como suporte mitos e lendas e remetem a uma mis so providencial, cuja realizao atribuda queles que so considerados seus mais au tnticos representantes (Weber, 1992: p. 682). A anlise desse evento permite com preender a produo das idias de nao e os processos de individualizao dos agentes que, disputando e definindo espaos profis sionais, conseguem elevar-se condio de representantes da coletividade, ocupar postos pblicos e/ou obter reconhecimento editorial

    BJB, Rio de Janeiro, n. 41, 1. semestre de 1996, pp. 3-33 3

  • consagrador. Assim, a anlise est centrada no processo de oficializao (Bourdieu, 1991:182-187), pelo qual se manipula uma definio coletiva e se universaliza a ao dos profissionais do livro, a pretexto da exposio de um povo .3 Com isso, os escolhidos, autoridades editoriais, pblicas e escritores- representantes, apropriam-se do privilgio de definiros limites do pensvel e do impensvel sobre o Brasil, o carter de seu povo e suas grandezas culturais.

    As fe iras internacionais de livros so eventos privilegiados para conferir uma perspectiva comparativa ao estudo das culturas nacionais, j que materializam sries classi- ficatrias complexas nas quais as origens nacionais constituem um dos princpios de oposio dominantes.4 Ao mesmo tempo, a apre- sentao-identificao do pas no exterior pe a nu um conjunto de estratgias implcitas de valorizao nacional, no diretamente revelveis, menos ainda visveis, na medida em que os sinais e princpios da nacionalidade so transmitidos entre iguais, todos os dias, dentro das fronteiras onde o Brasil e seus smbolos so to naturais como o ar que se respira. Uma feira internacional de livros realizada em solo estrangeiro deixa expostos principalmente os fios simblicos e materiais da competio do pas com outras culturas nacionais e seus porta-vozes, outras genealogias nacionais de autores, outras lnguas vernculas, outros mercados editoriais e outras morais civilizadoras que medem a fora do estilo brasileiro de se apresentar, e lhe conferem um valor e um reconhecimento especfico como configurao singular digna de ser admirada e julgada atravs de uma exposio.

    De modo geral, as feiras internacionais de livros so articuladas em torno de um circuito anual que percorrido pelos agentes dominantes de cada um dos mercados. Assim, elas cumprem um papel significativo na imaginao e institucionalizao de um mercado editorial internacional, com suas novidades e tradies, fronteiras e possibilidades, normas e prticas legtimas, suas ideologias e hierarquias. A exposio dos livros-da-nao em

    uma feira uma oportunidade singular para estudar os efeitos da apropriao diferenciada por parte do mercado internacional da configurao de um mercado nacional, bem como para avaliar as estratgias de dominao que nele se expressam.5

    Mais que uma entidade racional e abstrata, o mercado internacional sustenta-se em estruturas institucionalizadas e, por isso, pode ser estudado mediante a objeti vao das redes de relaes concretas e prticas legtimas por ele estabelecidas entre diferentes campos edi- toriais-nacionais em competio. Essa perspectiva permite-nos retomar, embora com outros olhos, a pergunta de amplo interesse para o estudo da vida intelectual que Robert Escar- pit (1965: p. 99) formulou nos anos 60: O que leva um autor a transpor as fronteiras de um pas?6

    Dadas essas premissas, o texto inicia-se com a descrio das condies de realizao do evento, focalizando Frankfurt como praa de mercado dotado de amplo poder cultural para impor padres de internacionalizao e profissionalizao editorial. A partir da feira, procuro dimensionar uma rede de relaes editoriais entre o Brasil e a Alemanha a fim de encontrar respostas para as seguintes indagaes: por que Frankfurt e por que a Alemanha so locai s adequados para a demonstrao da dimenso internacional da literatura e da publicao de livros brasileiros? Por que razo Frankfurt um evento editorial mundial se Nova York comporta, atualmente, um volume maior de relaes editoriais-comerciais? Por que no realizar a exposio Brasil em Buenos Aires ou Paris que so, de longe, os mercados onde mais se encontram tradues de autores brasileiros em catlogo?7 Por que passou a ser do interesse de outros mercados apreciar o Brasil por suas manifestaes literrias e cientficas, traduzir seus escritores e difundir sua cultura?

    Em seguida, descrevo a organizao e a realizao da exposio brasileira, ressaltando o lugar dos agentes e as representaes oficiais. Paralelamente, examino a hierarquia dos agentes escolhidos, a lgica do desinte-

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  • resse e o sentimento de misso que os levou a exibir as imagens do pas como aspectos essenciais de um povo ao qual do voz. Analiso primeiramente a ao daqueles que, em termos weberianos, podem ser chamados de burocratas e sacerdotes da cultura nacional e, mais no final do artigo, fao algumas breves consideraes sobre a inevitvel ao dos profetas contestadores que, discordando da forma como os primeiros mostravam o que somos, procuravam fortalecer-se dentro do campo editorial nacional como base para a formulao de novas maneiras de produzir imagens e suportes impressos para pensar a nao (Cf. Anderson, 1993). Por essa via, descrevo e interpreto as representaes, discursos e sentimentos predominantes na encenao. Por detrs da polmica, os porta-vozes lutavam para dirimir a veracidade, ou justia histrica, dos Retratos do Brasil, enquanto reafirmavam os limites de sua arbitrariedade classificatria, de suas competncias e de seu poder para orientar as prticas das profisses que se estruturam para falar da nao.

    A anlise baseia-se em observaes realizadas durante as bienais internacionais de So Paulo e do Rio de Janeiro desde 1991, ano em que se iniciaram os trabalhos do Projeto Frankfurt.1 Registrei, tambm, a preparao do evento no Brasil, utilizando-me do trabalho das entidades de classe, da Biblioteca Nacional e da divulgao feita pela imprensa. Coletei ainda catlogos, estatsticas, revistas e outras publicaes brasileiras e alemes especialmente elaboradas para esse fim, assim como a produo anterior e posterior relativa ao Mxico e ustria. Embora nada substitua a observao in loco das feiras e exposies, a possibilidade de coletar e sistematizar informaes permitiram ressaltar a dimenso relacional na construo das imagens do pas, diante dos valores essenciais afirmados e vi

    vidos nos relatos apaixonados que disputam um modo legtimo de mostrar a nao.

    A Feira de Frankfurt e a Institucionalizao de um Mercado Editorial Internacional

    Alm da dimenso internacional da feira de Frankfurt, a apresentao do Brasil como pas-tema decorreu das relaes culturais entre brasileiros e alemes. Afora o caso do Brasil, um expositor anual entre outros, essa feira constitui uma outra faceta do comportamento dos alemes ocidentais no ps-guerra, no intuito de se mostrarem ao mundo como pas culto e civilizado .

    A feira de Frankfurt apresenta todas as caractersticas de uma tradio inventada.J mais uma representante, seguramente das melhores, de um estilo de intercmbio da palavra escrita nesta metade do sculo XX: o das feiras internacionais de livros. Quando se fala da feira de Frankfurt, repete-se um percurso ideal:

    The Frankfurter Buchmesse was recorded for the first time in 1462, only seven years after Gutemberg had completed his 42-line Bible (...) A few years after the collapse o f the 1000-year Reich, a new start was ventured in Frankfurt. The Borsenverein des Deutschen Buchhandels was set up there, and in 1949 the first post war Book Fair took place in the Paulskirche, symbol of the dem ocratic tradition in G erm any (Ausstel- lungs- und Messe GmbH, 1989: p. 29).*

    Sua existncia perde-se nos primrdios do nascimento da imprensa e prolonga-se at os nossos dias como um ritual que reafirma todos os sinais da tradio democrtica e civilizada da Alemanha. Por seu carter internacional, a feira de Frankfurt, alm de permitir a exposio das expresses literrias de outras naes, representa, antes de tudo, uma forma de afirmao das imagens da Alemanha para o exterior, como uma nao de

    [*N.T.] A Frankfurter Buchmesse foi realizada pela primeira vez em 1462, apenas sete anos depois que Gutemberg finalizou sua Bblia de 42 linhas. [...] Alguns anos aps a queda do Reich dos Mil Anos, retomou-se a iniciativa em Frankfurt. A Brsenverein des Deutschen Buchhandels foi criada e, em 1949, realizou-se a primeira Feira do Livro do ps-guerra, em Paulskirche, smbolo da tradio democrtica da Alemanha.

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  • leitores. Essa formulao anloga quela utilizada pelos organizadores da mostra brasileira. Cotidianamente, pesam sobre a Alemanha imagens e clichs vulgarizadores transmitidos pela mdia, notcias predominantemente negativas sobre o passado nazista, sobre o recrudescimento do racismo e os paradoxos da queda do Muro de Berlim.10 Recorrendo a Mauss, poder-se-ia dizer que, de modo similar a um museu etnogrfico ou s artes nacionais e suas modas , a feira um desses fenmenos que permitem evidenciar que embora a nao crie a tradio, preten- de-se remodelar a nao com base na tradio (Mauss, 1972: p. 303).

    Aps a guerra, com a recuperao de Frankfurt como centro financeiro internacional e ponto de cruzamento de rotas culturais da Europa, sua feira de livros tornou-se um modelo, lugar de presena anual obrigatria para todos aqueles que desejam participar do mercado editorial internacional. Assim, ela se cerca de toda uma atmosfera de prticas e concepes estruturadoras de uma moral profissionalizante.

    A internacionalizao da feira de Frankfurt coincide com o surgimento, em diversos pases, das principais feiras internacionais de livros, por volta da segunda metade dos anos 60. Desde ento, seu perfil vem sendo delineado sob a influncia de duas foras opostas: de um lado, vem-se consolidando como centro de intercmbio do mercado de best sellers e, de outro, como espao de manifestao de crticas poltico-culturais que pretendem fazer dela um centro de divulgao dos problemas e da literatura do Terceiro Mundo. Por volta de meados da dcada de 70, a rivalidade entre os agentes quanto ao modelo legtimo de feira provocou a realizao de feiras paralelas, organizadas por pequenos editores polticos e alternativos, segundo avaliam retrospectivamente os atuais organizadores.

    A Indicao de Temas Centrais

    A pacificao foi obtida em 1976, quando se institucionalizou a escolha de temas centrais a cada dois anos. Os temas seleciona

    dos neste novo modelo foram: Amrica Latina, A criana e o livro; frica Negra, Religio, Orwell ano 2000 e ndia.11 Os resultados dessa nova modalidade foram positivos, harmonizando-se as dicotomias entre a dimenso comercial-profissional e a dimenso pblica da feira. Como se ver adiante, as naes e os nacionalismos expressam-se na segunda d imenso, mas esses valores transferem-se de modo incorporado s duas dimenses.

    A dinmica dos temas centrais foi modificada no final dos anos 80 para dar lugar exposio anual de pases-tema.12Da exposio de temas elaborados pela empresa organizadora da feira, que privilegiavam naes jovens em livros (Muth, 1986: p. 3), regies ou questes culturais e polticas problemticas, passou-se exposio de pases-tema, organizada pelas autoridades de cada pas interessado. Ao contrrio do modelo anterior, comeou-se homenageando as literaturas nacionais mais antigas, estabelecidas, refinadas, civilizadas, modelares: Itlia, Frana, Espanha, Japo, Unio Sovitica, Mxico, Holanda, Brasil, ustria. Nessas escolhas, feitas pelos alemes, o primeiro princpio classificatrio estabelece uma diacrisis poltico-cultural para enfrentar a circulao da palavra escrita em ingls, privilegiada pelas foras de mercado.1

    A companhia fundada pela Associao de Livreiros e Editores alemes abre periodicamente uma lista de pases postulantes como expositores-tema. A participao de um pas na feira articulada diplomaticamente, envolvendo umaprolongada e intensa competio com outros candidatos. O resultado um jogo tcito de convite-postulao, pelo qual os organizadores exercem o poder de decidir a favor dos pases que possuam uma indstria editorial forte, com influncia sobre um conglomerado lingstico e, ao mesmo tempo, tenham uma base de histria cultural suficientemente profunda para preparar um tema central.14

    A consolidao de Frankfurt como centro editorial mundial, o resultado de uma intricada rede institucional que opera atravs de uma intensa diviso de tarefas e funes, bem como da lgica prtica da crena de que a Ale

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  • manha um pas de leitores e um foco de irradiao cultural.15 Os dois aspectos convergem para apresentar o pas como possuidor de uma indstria editorial modelar, exportadora de padres de profissionalismo, capaz de impor critrios de seleo cultural-nacional de grande significado na regulao da circulao internacional de livros e mensagens escritas.

    Na feira de 1994, a percepo internacional do Brasil concorria com duas questes mais permanentes nas preocupaes do mercado editorial e dos meios intelectuais alemes: por um lado, um encontro Leste-Oeste destinado a discutir a incorporao do mundo editorial e intelectual da Europa Oriental e das naes resultantes da desintegrao da Unio Sovitica, diante das quais a Alemanha se impe como ponte cultural natural . Por outro lado, o ciclo de conferncias sobre Direitos em CD-Rom, continuado em 1995 com a Conferncia sobre Meios Eletrnicos , os quais, transcendendo os interesses alemes, foram realizados pelo CenterBar, organizao multinacional de advogados especialistas na regulao do fluxo de informaes atravs de meios telemticos.

    Percepo e Escolha do Brasil

    A escolha do Brasil comeou a ser gerada em 1988. Em 1986, em um perodo de recesso mundial generalizada, o Brasil teve seu ltimo boom editorial. Nesse ano, conjuga- ram-se uma exploso editorial, aps vinte anos de represso intelectual imposta pela ditadura,16 e a ativao de um plano econmico (Plano Cruzado) que regulamentava amplos benefcios para as prticas culturais. Em 1985, o Brasil obteve sua melhor posio no mbito da produtividade mundial, chegando a situar-se como o 12. maior produtor em nmero de exemplares publicados, superando definitivamente, e por ampla margem, a posio de Portugal (Buchhndler-Vereinigung GmbH , 1991: p. 57). Porm, a inflao no demorou a marcar o ritmo da recesso econmica e da depresso do mercado editorial, impedindo de levar a cabo o projeto Frankfurt, segundo as autoridades editoriais brasileiras.

    Assim como a dimenso da indstria editorial brasileira no foi fator decisivo para a escolha, tambm no o foi um intenso fluxo de autores e livros entre o Brasil e a Alemanha. Brasil ou a lngua portuguesa so categorias muito pouco expressivas nas estatsticas editoriais alemes. Em 1990, somente0,5% das tradues para o alemo, feitas na Alemanha, originavam-se do portugus e de um total de 40 ttulos, 25 eram de fico 0Buchhndler-Vereinigung GmbH , 1991: p. 59). Em sentido inverso, cerca de 3,8% dos direitos de publicao de ttulos alemes negociados para traduo para outros idiomas, correspondiam ao portugus (op. cit.: p. 63); de um total de 120 ttulos, 40 eram sobre paisagismo, desenho e arquitetura , 18 eram de literatura juvenil , 14 de medicina, 13 de filosofia e psicologia, 12 de religio e teologia (op. cit.: p. 66). Destes, a metade foi vendida para o Brasil. O esteretipo alemo, que imagina o Terceiro Mundo como exportador de literatura e importador de cincia, s se verifica no primeiro caso, mas tambm se encontra de maneira difusa no segundo. Pode-se ainda acrescentar, que a participao de editores brasileiros na feira de Frankfurt, tem igualmente pouca expresso estatstica.

    A julgar pelos discursos dos editores alemes e suas autoridades institucionais, assim como pelas objetivaes em catlogos e outros instrumentos de ordenao de livros e autores brasileiros, as classificaes do Brasil na Alemanha correspondem preferentemente a trs categorias gerais: sur, Late in-ame ri ka ou sdamerikanische autoren. Essas classificaes confirmam o peso que teve na negociao da participao do Brasil e do Mxico a Sociedade para a Promoo da Literatura da frica, sia e Amrica Latina, representada por Peter Weidhaas (presidente da sociedade e diretor da Feira de Frankfurt), Ray-Gde Mertin (vice-presidente da sociedade e prestigiada tradutora de portugus), no caso brasileiro,17 e Juan Villoro no caso mexicano (1992).

    Como atesta o Quellen, catlogo bianual desta sociedade, o Brasil o pas mais bem representado entre os chamados blocos conti-

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  • Quadro 1Rede Institucional do Mercado do Livro na Alemanha

    Associao alem de editores e livreiros

    A Brsenverein des Deutschen Buchhandels a associao comercial que representa 2.100 editores, 4.300 livreiros e 80 firmas do comrcio intermedirio do livro".

    Objetivos: 1) Livro-mercadoria: garantir e racionalizar a eficiente produtividade do mercado do livro alemo; 2) Mandato Cultural : promoo da leitura e organizao do Prmio da Paz.

    Organizao Instituies AutnomasComit Executivo Organizao autnoma de editores, livreiros e

    Presidente setor intermedirio3 representantes de editores 3 representantes de livreiros1 representante do comrcio intermedirio -j 1 federaes regionais de editores e livreirosAssemblia de representantes

    Distribuio: Escritrio em Bonn: negociao com o poder poltico, a mdia e o comrdo.Escritrio em Leipzig (desde 1991): consultoria empresarial/cultural; incorporao do Leste alemo.

    Organizaes Comerciais

    Federao de livreiros: companhia de publicaes da Associao.

    BAG: Clearing do mercado. Realiza transaes para pagamentos e combina negociaes coletivas entre devedores e credores. Tambm organiza um sistema de comunicao eletrnica multilatral conectada em rede internacionalRBZ: Centro de servios de computao do mercado do livro. Organiza faturas, assinaturas, pagamento de publicidade, coleta contribuies. Produz estatsticas, catlogos, registros e listagens de preos. Oferece assistncia e treinamento para uso de hardware e software.BKG: Procura e garante crditos bancrios para livreiros devedores e crditos de trabalho para editores credores.

    PublicaesAdressbuch fr den deutschprchien Buchhandel Fachpresse in ZahlenBrsenblatt fr den Deutschen Buchhandel:104 n s/ano. Artigos, reportagens, publicidade. Verzeichnis lieferbarer Bcher: livros editados no mercado de lngua alem: 620.000 ttulos de 11.500 editores da Alemanha, ustria e Sua. Verzeichnis lieferbarer Schulbucher: didticos. Buch-Journal: veculo trimestral, publicidade Buch und Buchhandel in Zahlen: estatsticas/anual

    Sociedade Para a Promoo da Literatura da frica, sia e Amrica Latina: Instituio independente, criada em 1980, por editores, jornalistas e catedrticos, visando promover a literatura universal do Sul no mercado editorial de lngua alem: Hermann Schulz, editor de Peter Hammer Verlag; Johannes Rau, governador de Nord- hein-Westfalen; Giman Hoffman: presidente do Instituto Goethe; Juan Villoro, escritor e catedrtico mexicano; Ray-Gde Mertin: agente literria, tradutora (vice-presidente); Peter Weidhaas (presidente).

    AuM: Ausstellungs- und Messe GmbH: Companhia fundada em 1964 para organizar a feira de Frankfurt. Realiza seminrios e workshops de treinamento profissional e um programa de promoo de feiras e eventos. Peter Weidhaas, diretor desde 1975, tambm presidente da Sociedade para a Promoo da Literatura para a frica, sia e Amrica Latina.

    Supervisiona com a Fundao Bertelsmann um programa de intercmbio de editores e livreiros interessados em realizar experincias em outros pases. Realiza programas de formao para pases com indstria editorial em desenvolvimento" atravs de workshops denominados Fundamentos de Economia Editorial.Entre outros programas de colaborao com o Ministrio das Relaes Exteriores, patrocina convites a editoras de pases em desenvolvimento.

    Projeto Frankfurt 94 (Brasil) Alfredo Weiszlog F. Lindoso (Cmara Bras, do Livro, Sindicato Nacional dos Editores de Livros) Empresa Marketing Cultural Curadores de diversas instituies culturais S.P. Rouanet, cnsul em Berlim M. Souza: Div. Internacional (DNL)A. Romano de SantAnna: Fund. Biblioteca NacionalMinistrio da CulturaItamarati

    Fontes: The German Publishers and Booksellers Association, 1993; entrevistas e dados de campo.

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  • nentais. Em 1993, as editoras alems tinham em seu catlogo 142 ttulos de autores brasileiros e 7 antologias.18 Vinte e um ttulos eram de Jorge Amado, 7 de Clarice Lispector, e, com 4 ttulos cada um, Darcy Ribeiro, Rubem Fonseca, Guimares Rosa e Jos Mauro de Vasconcelos. A exceo de poucos autores de renome, ou daqueles que so divulgados por fora do mercado, os casos de Paulo Coelho e Chico Buarque recentemente, quase todos os ttulos entram no mercado alemo por intermdio de iniciativas como as que a Sociedade para a Promoo da Literatura da sia, frica e Amrica Latina patrocina. Esta instituio articula uma rede de acadmicos, estudantes, crticos, editores, agentes literrios e tradutores, entre os quais circulam resenhas especializadas, sugestes, avaliaes, catlogos, peridicos e outros meios, o que lhes garante um rgido controle sobre o que se deve publicar desses pases, vistos como perifricos, reas subordinadas ou fora do mundo dos livros. Do mesmo modo, com exceo dos best sellers temporrios, as tiragens nesses pases so extremamente reduzidas para o padro do mercado alemo (2.000 ou ,3.000 exemplares) e a circulao dos ttulos limita- se estritamente aos crculos universitrios. De maneira geral, pode-se observar uma certa diviso das casas editoras alems: as grandes, como a Surkhamp, editam clssicos, e as pequenas, como a Di, publicam autores muito pouco conhecidos na Alemanha.19

    O Projeto Frankfurt: uma Misso de Cidados

    Apesar da recesso do mercado brasileiro, em 1991 retomou-se a postulao de homenagear o Brasil. A essa finalidade, um grupo de agentes dedicou um tempo precioso, quase exclusivo. A Comisso Organizadora, ento criada, compunha-se de cerca de 6 a 10 pessoas devotadas a montar a apresentao e, acima de tudo, a cumprir um dever de cidados. Os editores foram os principais mediadores culturais e empresariais para a concretizao do evento. A organizao foi coordenada pela Cmara Brasileira do Livro

    (CBL) (SP) e pelo Sindicato Nacional dos Editores de Livros (RJ). Pela primeira, participaram os diretores Alfredo Weiszflog e Felipe Lindoso. Pela segunda, Regina Bilac Pinto, presidente do sindicato na poca em que os trabalhos comearam. Por ser um assunto de Estado , tambm participou o Ministrio da Cultura, representado por Affonso Romano de SantAnna, presidente da Fundao Biblioteca Nacional e por Mrcio Souza, diretor do Departamento Nacional do Livro. O ministro Jos Nascimento e Silva encabeou a comitiva oficial de escritores que viajou para a feira. O Itamarati, por sua vez, participou por intermdio de seu cnsul em Frankfurt, Ces- rioMelantonio, edo cnsul em Berlim, Srgio Paulo Rouanet.

    Trs desses agentes destacaram-se pela dedicao e influncia na definio de perspectivas. Um deles foi Weiszflog, empresrio e editor daCompanhiaM elhoramentos de So Paulo,20 que atuou como presidente do projeto. Ele havia sido anteriormente presidente da Cmara Brasileira do Livro e continuava como assessor permanente, mudando de cargo diretivo a cada eleio dos representantes do setor editorial. Por sua vez, Felipe Lindoso, mestre em Antropologia Social, um dos vrios diretores da CBL e scio da Marco Zero (SP), editora de pequeno porte com atuao no plo humanstico e literrio do campo. Assim, a seleo natural de agentes no rgo coordenador do projeto, inclui desde o representante antigo e economicamente poderoso ao relativamente novo e culturalmente distinguido e especializado. No bloco de rgos estatais, Mrcio Souza, diretor do DNL distinguiu-se por suas iniciativas e seu desempenho nos trabalhos de organizao. Souza apresentava-se, simultaneamente, como chefe da mais importante agncia pblica ligada circulao do livro no Brasil, como scio-edi- tor da Marco Zero e escritor profissional muito conhecido dentre a nova gerao de escritores brasileiros, com livros traduzidos para o ingls, francs e alemo, e professor de literatura latino-americana na Universidade de Berkeley.21

    No aspecto institucional, as bienais inter-

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  • nacionais de livros de 1992 e 1994, em So Paulo, funcionaram como espao de sntese dos preparativos. Mais uma vez, o eixo Rio- So Paulo disputava e definia o campo editorial e as representaes do Brasil autntico: pelo Rio, o Estado; por So Paulo, o mercado. A partir de outubro de 1992, os organizadores fizeram levantamentos sistemticos das instituies culturais de Frankfurt envolvidas na montagem de exposies, espetculos e conferncias. Com base em perfis institucionais, tipos de pblico freqentador e possibilidades de co-responsabilidade financeira, montou-se um ncleo de projetos de exposio que foram apresentados s autoridades da companhia organizadora do evento. A resposta chegou um ano depois com a visita de Peter Weidhaas bienal paulista e a aprovao do esquema bsico de exposies apresentado pela comisso organizadora. Do modelo constava uma exposio central, a ser realizada em um pavilho especial do prdio da feira, e uma srie de exposies, espetculos, conferncias e debates, em diversos locais de Frankfurt e outras cidades alemes. Para cada uma dessas unidades, a comisso designou curadores

    Essas atividades aprofundaram uma virtual diviso do trabalho de preparao e concepo das representaes do pas. A montagem e certas tarefas executivas foram terceirizadas, ficando a cargo da Empresa de Marketing Cultural. As reunies peridicas dos seis responsveis pela comisso organizadora tiveram a funo de realizar a unificao burocrtica e definir a concepo geral. Do ponto de vista dos organizadores, o esforo empreendido era totalmente desinteressado, como alis deve expressar-se a conscincia de cidadania, fora de qualquer vantagem empresarial ou cultural de natureza individual:

    Como foram escolhidas as pessoas que coordenaram o projeto?

    Olha, foi mais uma questo de experincia pessoal e vontade de fazer. Hoje pode-se dizer que toda a equipe est com muita garra para fazer uma coisa bem feita e mais por amor Ptria do que por amor a um resultado financeiro. So poucos os que vo receber alguma coisa.

    Como foram escolhidos os curadores?

    So todos pessoas reconhecidamente competentes em suas reas. E isso foi consultado dentro da Comisso, foram analisadas diversas alternativas e se completou o grupo. uma questo de disponibilidade de tempo, disponibilidade de entrar num projeto em que o sacrifcio pessoal muito maior do que a remunerao pessoal.

    Quais foram os esforos, temas e problemas colocados nas discusses da Comisso?

    Eu j disse o seguinte: a execuo do projeto em si feita por uma equipe extremamente entrosada, extremamente motivada, que v issoefetivamente como cidados, como uma questo

    23muito importante e imperdvel .

    Com o passar do tempo, a diviso e o volume de funes e responsabilidades foi se acentuando at estruturar uma hierarquia de eventos e agentes ativos na tarefa de representar o pas.

    Apresentao Brasiliana

    A participao brasileira e dos brasileiros na feira dividiu-se do seguinte modo: uma parte comercial, organizada em urn estande coletivo de 270 metros quadrados onde cerca de 90 editoras expunham suas publicaes; uma exposio central montada em um dos halls da feira (de 3.100 metros quadrados); e um conjunto de eventos culturais extra-feira.

    Os editores dispunham de um estande adicional, para profissionais, de tamanho considervel. Em termos nativos, uma participao em Frankfurt definida como profissional quando o editor tem uma agenda lotada, pode participar de leiles de ttulos de grande porte e dispe de direitos de ttulos para vender e comprar. Como se sabe, nessa feira, apenas umas duas dezenas de editores se realizam profissionalmente .24 Os demais vo Frankfurt para saber como o mercado mundial e para marcar presena em um lugar do qual, como um santurio, todos falam e onde todos desejam estar. A grande afluncia de pequenos e mdios editores nessa verso da feira, foi fruto das vantagens financeiras negociadas pela comisso organizadora e das

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  • expectativas decorrentes da crena generalizada de que era importante participar. O estande coletivo onde estes se reuniam era, por oposio ao primeiro, uma mostra para o pblico e um local pblico. Ali os livros no eram vendidos, apenas ficavam expostos. Ne

    gao da economia, lgica do desinteresse, lugar da Nao.

    A diversidade dos eventos encenados em Frankfurt pode ser descrita em um conjunto de quadros nos quais buscarei sistematizar e hierarquizar a participao dos representantes e as formas de representar o Brasil.

    Quadro 2Mostras Correlativas a Cada Volume da Coleo Brasiliana de Frankfurt

    Nome Tema Curador Lugar

    Pioneiros do cinema brasileiro

    Histria do cinema mudo das origens "aos anos 30

    Jurandir Noronha Deutsches Filmmuseum

    Arte Popular Brasileira Mostra da coleo do Museu da Casa do Pontal -R J

    Jacques van de Beuque Brgerhaus Bornheim

    Brasil: Museu de Imagens do Inconsciente

    Desenhos, pinturas e telas depacientes do Centro Nacional de Psiquiatria do Engenho de Dentro

    Org. da Dra. Nise da Silveira, apresentada pelo artista plstico Almir Mavignier

    Kommunale Galerie Leinwandhaus

    Os jardins de Burle Marx Paisagismo no Brasil Haruyoshi Ono, assistente de Burle Marx. Textos de Llia Coelho Frota

    Palmengarten (Jardim Botnico de Frankfurt)

    Pintura Nai Brasileira Seleo do acervo do Museu Internacional de Arte Naf do Rio

    Maria do Garmo de Oliveira

    Affentorhaus

    0 livro infantil no Brasil Mostra de livros premiados,selecionados pela FNLIJ

    Elisabeth Serra Biblioteca Juvenil Haus Bornheim

    A espessura da luz: fotografia contempornea brasileira

    Seleo de trabalhos de vrios fotgrafos

    Paulo Herkenhoff Fotografie-ForumLeivewandhaus

    A literatura na filatelia brasileira

    Seleo de temas literrios em postais e lanamento de selos

    Las Scouto e Jos Afonso Braga

    Museu do Correio

    A espessura do signo: desenho contemporneo brasileiro

    Exposio de artistas da dcada de 50: Oiticica, Schendel, Monteiro etc.

    Paulo Herkenhoff Galeria de arte em um antigo Convento de Carmelitas

    Literatura Brasileira no singular e no plural

    Ensaio de autoria de Affonso Romano de SantAnna

    Affonso Romano de SantAnna

    Panorama do design grfico brasileiro contemporneo

    Mostra de capas de livros, discos, catlogos, cartazes e livros de arte

    Joice Leal. Federao das Indstrias de So Paulo

    Karmeliterkloster

    A arte na religiosidade afro-brasileira

    Panorama do sincretismo e das influncias africanas na religio

    Emanoel Arajo. Diretor da Pinacoteca de So Paulo

    Associao Artstica de Frankfurt

    Cada mostra foi impressa nos doze volumes da Coleo Brasiliana de Frankfurt,25 onde os curadores afirmaram sua autoridade com ensaios introdutrios. A coleo uma

    frmula editorial que prope uma totalidade homognea para todos os volumes e garante o registro da presena brasileira para alm do evento. O ttulo Brasiliana marca, por sua

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  • vez, a pretenso de que a coleo seja reconhecida em uma hierarquiade colees nacionalistas que baliza a histria da indstria editorial no Brasil desde o fim dos anos 20. Desse modo, oferece um modelo estvel e poderoso para transmitir mensagens sobre o Brasil. As mostras e livros exprimem a idia predominante de apresentar o Brasil como um todo, homogneo, igualmente representvel por expresses do povo (arte popular) ou pela genialidade de seus artistas exemplares em

    artes nobres (Burle Marx); por mostras coletivas de artistas de novas geraes em artes menos distintivas at o cinema de arte antigo; pela vulgarizao da literatura para o povo e para crianas at a viso potica da mais alta literatura. Esse quadro de eventos-livros com- pletou-se com outro conjunto de mostras preparadas especialmente para Frankfurt,. mas que no desfrutavam do privilgio da posteridade em livro:

    Quadro 3 Outras Mostras e Exposies

    Outras mostras e exposies

    Tema Curador Lugar

    Conflunica de Culturas Painis sobre a histria da literatura brasileira e os brasileiros

    M. Souza, Regina Machado Carneiro e Paulo Herkenhoff

    Pavilho central da feira

    Clarice Lispector e Joo Guimares Rosa

    Autores traduzidos para o alemo, com grande reconhecimento

    Ray-Gde Mertin, Ute Hermans, agentes literrios e tradutoras

    Biblioteca Nacional de Frankfurt

    Exposio histrica da literatura brasileira

    58 painis e 2.000 livros de autores brasileiros, em alemo e portugus

    Eliane Pszcol: Seo de Divulgao Internacional da Biblioteca Nacional

    Biblioteca Pblica de Frankfurt

    Exposio Von Martius Botnico que participou de uma misso cientfica no Brasil em 1817

    Walter Raunige: Museu Etnolgico de Munique

    Schirn Kunsthalle

    Evandro Teixeira Fotojornalismo: fotgrafo com trinta anos de trabalho no JB-RJ e fotografias atuais sobre vida, pessoas e cultura do Nordeste

    Galeria Nova Viso

    Exlio no Brasil: 1933-1945 Mostra sobre intelectuais e escritores da Europa Central, como Stephan Zweig, que se refugiaram no Brasil a partir dos anos 30

    Biblioteca Nacional de Frankfurt

    Semana de Cinema e Literatura

    Filmes brasileiros adaptados de obras literrias

    Jos Carlos Avellar, crtico de arte

    Deutsches filmmuseum

    Brasil: arquitetura recente Projetos e maquetes de arquitetos posteriores a Niemeyer

    Hugo Segawa Deutsches Architektur Museum

    Msica erudita Quarteto de Cordas de So Paulo e Ewerton Gloeden (guitarra): Villa-Lobos

    Gilberto Tinetti e Museu Gesellschaft

    lter Oper de Frankfurt

    Dana Coreografia de duas companhias

    Endana (Braslia) e S.O.A.P. (Frankfurt)

    Casa de Cultura Monsonturn

    Antnio Dias Exposio de obras do artista plstico em uma galeria

    Mathiidenhole, em Darmstadt

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  • Mesmo que nesse conjunto de mostras a literaturae a cincia tenham maior relevncia, configura-se de novo um quadro no estritamente voltado para as atividades intelectuais que fazem do livro o centro de seu trabalho de objetivao e reproduo. Aqui no se destacam as artes populares, mas diferentes expresses de artes prestigiadas, certificadas pela assinatura de autores individuais. At certo ponto, expressam tambm o desejo de reconhecimento por parte de um pblico alemo mediante manifestaes legitimadas pela origem e representatividade alemes.

    A Inveno da Tradio Literria

    A literatura teve sua maior expresso na extensa mostra histrica preparada pela Biblioteca Nacional: 58 painis e 2.000 livros exibidos em uma biblioteca pblica e nos dois principais painis da exposio do pavilho central da feira. Seus curadores encarregaram-se da organizao e coordenao estti- co-visual; a montagem, porm, foi realizada por artistas plsticos. Como suporte, os textos e a concepo literria de Mrcio Souza:

    Quem fez os painis da exposio Confluncia de Culturas?

    Os painis foram executados por carnavalescos de escola de samba. Isso tambm fazia parte do esprito da exposio. Estexpcado notexto que eu escrevi, que o acabamento to bem feito qu os europeus poderiam pensar que foi confeccionado por cengrafos de pera. Mas est explicad o que fo i p o p u la r , p esso as do povo confeccionaram a exposio. (Mrcio Souza, entrevista na Biblioteca Nacional, 29-9-94).

    Sobre as idias que se desejava transmitir, Souza contou que a sua, veiculada em textos, livros, fotos e desenhos, comea com o Padre Anchieta escrevendo poemas nas praias de Peroigli e termina com Jorge Amado. Comea no sculo XIV e termina no sculo XX. So painis imensos. Para este escritor-repre- sentante, a literatura brasileira possui uma profundidade histrica igualada por poucas, mas que no obteve ainda o devido reconhecimento internacional. Esse senso de temporalidade foi resumido em uma Agenda Permanente da Lite

    ratura Brasileira, elaborada pela Biblioteca Nacional para marcar presena em Frankfurt. Nessa Agenda, que representou mais um dos esforos daBibliotecaNacional, toda a histria literria foi condensada.

    A agenda consistia inicialmente na idia de que a literatura latino-americana , em geral, muito pouco conhecida, especialmente pelos europeus, porque os americanos tm muito senso de histria, como ns, mas os europeus olham a Amrica como uma coisa muito recente sem grandes tradies. E de repente ns vemos que o Brasil um dos pases da Amrica que tm uma histria literria contnua de pelo menos trezentos anos, onde voc pode indicar uma presenaj m arcante da identidade nacional atravs da literatura. E certos pases da Europa no tm uma tradio dessas, de trezentos anos. (Souza, ibidem).

    O discurso de Mrcio Souza, assim como o de Felipe Lindoso e dos autores-repre- sentantes, estrutura-se a partir da ambivalncia de um pais no descoberto nem reconhecido, ainda a ser explorado, mas que possui a continuidade de uma histria cultural de sculos: um pcis novo, porm antigo.

    A antiguidade construda como uma prova de identidade. Lgica similar predominava nas exposies de pases como o Mxico e a ndia. Mas toda a fora da identidade nacional, como construo cultural, sobressai quando comparada com a exposio realizada pela ustria, pas-temade 1995. Os austracos limitaram sua exposio e concertos a expresses do sculo XX. Sem Mozart ou Freud em cena, as atividades privilegiaram a presena de escritores de literatura e cincia, assim como de msicos contemporneos (Veranstaltungen im ds sterreich Schuerpunktes zur Frankfurter Buchmesse, 1995).

    Como modelo de apresentao, cada pas inventa um eixo de tempo e um perfil de expresses artsticas, representativas de um carter nacional. O paradoxo est no fato de um pas do Velho Mundo apresentar-se como novo ou atual e pases do Novo Mundo se mostrarem como antigos.

    A mostra brasileira, conforme resumida na agenda, procurava sintetizar um pas repleto de criao literria, algo que nem todos

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  • podem acumular e sistematizar com o rigor de sua biblioteca nacional:

    Os ingleses tinham feito uma agenda internacional muito bem feita, parecida. Ns fomos levantar tudo o que existia nesse sentido. Mas era uma agenda muito falha, porque no entrava nenhum autor de lngua portuguesa, nem Cames (...) Entravam autores ingleses de quinta categoria que no entrariam em nenhuma agenda mundial, mas nem Cames entrava; e da literatura latino-americana s entravam Garcia Marquez e Manuel Puig. Ou seja, no d para entender (...) E os mexicanos tinham tentado fazer uma agenda, mas no deu para preencher todos os dias do ano. (Mrcio Souza, ibidem).

    Como observa Anderson, em seu livro Comunidades Imaginadas, os estilos narrativos dos gneros literrios so uma das mensagens mais poderosas paraimaginar aNao. Mas como assinalam os fragmentos dos discursos transcritos, tal fora de representao e singularizao reforada pelo nome de certos autores que, capazes de permanecer no tempo por terem transposto as fronteiras do pas, produzem, quando mencionados, um efeito simbitico de associar uma origem nacional e uma origem lingstica. Por isso a literatura , tambm, uma questo de Estado e leit motiv da Biblioteca Nacional. Seus repre- sentantes-escritores controlam de perto a histria e os marcos da literatura a exibir, ao mesmo tempo que tornaram mais complexos os meios de multiplicar o nmero de autores traduzveis para outros idiomas:

    Qual a imagem que a Biblioteca Nacional procura transmitir internacionalmente?

    No temos uma poltica para transmitir imagem. Ns queremos aumentar o nmero de autores brasileiros traduzidos. Eles que vo dar uma imagem do Brasil. (Mrcio Souza, ibidem).

    A Literatura Subordinada ao Povo

    As expresses literrias dominaram os eventos montados em Frankfurt. Todavia, na mostra central, Confluncia de Culturas, elas ficaram perdidas, subordinadas a uma lgica expositiva que privilegiava as imagens do

    povo e suas manifestaes mais sagradas de igualdade, fraternidade e liberdade.

    Confluncia de Culturas foi a exposio de maior envergadura, a mais rigorosamente planejada pela Comisso Organizadora e a nica colocada em um hall especial da feira, em uma rea de 3.000 metros quadrados. Os painis no eram identificados por autor, personagem, gnero, individualidade literria ou artstica. Dispostos em cinco mdulos de 16 metros de dimetro, representavam as paisagens rurais e urbanas, as manifestaes culturais coletivas, a vida social e familiar, o cotidiano e o mundo do trabalho, e os rostos do brasileiro. Com fotografias e livros relacionados a cada mdulo, pretendeu-se mostrar, em primeiro lugar, a ecologia, as dimenses continentais do pas, as paisagens de seu territrio e as cidades emblemticas. No segundo painel mostravam-se cenas do Maracan abarrotado de gente, cenas de comcios polticos, as praias cheias e outras manifestaes em que o indivduo no aparece, uma vez que se dilui entre os 150 milhes de iguais em suas mais sagradas confraternizaes. O painel sobre o trabalho exps desde as atividades manuais mais rudimentares, camponesas, at o cientista em seu laboratrio e o intelectual pensante nas universidades. O quarto painel reunia famlias de diferentes cores e estratos sociais assim como a comunho nas manifestaes religiosas e no tempo de lazer. O ltimo painel era uma colagem de rostos superpostos, que pretendia expressar as principais contribuies dos fluxos migratrios. A mescla, o sincretismo, a miscigenao, a comunidade toda indiferenciada: Brasil de iguais, singulares e soberanos.

    Ao longe, em segundo plano, os painis eram cercados de psteres contendo fotos e figuras de heris populares, como Romrio e Ayrton Senna, e autores populares e/ou cultuados como Jorge Amado, Gilberto Freyre e Nelson Rodrigues. Mais alm, o bar Ipanema criava um espao de socializao e de reunies, para projetar vdeos e recepcionar, entre batidas e caipirinhas, autoridades estrangeiras (desde ministros e representantes menores at o presidente Helmut Kohl), edi-

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  • tores, escritores, agentes literrios e outros empresrios culturais.

    O Brasil como ele O que procuravam transmitir com o trabalho da Comisso?

    Dar uma ampla viso da cultura brasileira, tendo o livro como pano de fundo, como elo de ligao entre todas as reas da cultura. O esprito que norteou a exposio foi mostrar o Brasil como ele ; e seu lado criativo e seu lado nem sempre conhecido, evitando-se esteretipos ou formas distorcidas de se conhecer o Brasil l fora. (A. Weiszflog, entrevista, ibidem).

    Que imagem de pas procuraram mostrar na exposio central?

    Quem trabalhou com conceito de exposies procurou evitar o clich sobre o pas. Extico difcil deixar de ser. Um pas onde um mulato que teve a maior dificuldade de aprender a ler, se torna o maior romancista da Amrica do sculo X IX .... tem alguma coisa mais extica do que isso? Ento, no d para fugir do exotismo. E tambm evitar um pouco alimentar essa comiserao terceiro-mundista de conscincia pesada de europeu em relao Amrica-Latina.

    E que imagens tentaram contrapor?

    Eu acho que a imagem que o Brasil est apresentando a imagem de um pas da Amrica que tem uma alternativa para u.ma proposta am ericana, que o multiculturalismo, que vai compartimentando as culturas e os povos sob um suposto respeito pela integridade, para a proposta brasileira dessa multiplicidade de vises de mundo internas e de pele tambm, que a miscigenao, que a mistura concreta e total, a proposta do Brasil, uma proposta popular, que est inserida na cabea, na identidade do pas. Ento esse o pas que vai. (Mrcio Souza, entrevista, ibidem).

    Que imagem de Brasil procuraram transmitir?

    A imagem de um pas muito mais rico e complexo do que os esteretipos que circulam na Europa. Ns estamos levando uma enorme coleo de livros para surpresa dos prprios europeus, do que se pensa sobre o prprio pas e sobre o mundo. Mostrar que o brasileiro pensa sobre si e no est simplesmente recebendo conselhos bons ou maus da intelligentzia europia.

    E como foram organizadas as exposies?

    Ali h coisas que foram surgindo no caminho. Por exemplo, a questo da contribuio das culturas africanas. Eu, por exemplo, sou extremam en te r e f ra t r io a isso que cham am de pseudo-viso do multiculturalismo americano, onde as coisas so americanas, so afro-americanas, o preto separado do resto. Enfim, me parece uma viso muito equivocada tanto para l, e muito particularmente para c. Ento, no podamos permitir que a contribuio da cultura africana para c se reduzisse a uma questo de cor de pele. No verdade no Brasil isso. H um exemplo que eu sempre uso, que o de Emanoel de Arajo, um pintor muito reconhecido, preto, diretor da Pinacoteca de So Paulo. Em conversa com ele saiu uma idia realmente interessante: a exposio montada se chama Arte na religiosidade afro-brasileira, que pega desde objetos de culto, at artistas consagrados independentemente da cor da pele; que trata de um tema, de uma verso, da contribuio da cultura africana cultura brasileira que o sincretismo, muito especfica e muito rica.26 (Felipe Lindoso. Entrevista na Bienal de So Paulo; agosto de 1994).

    Os discursos dominantes, e no somente entre os organizadores do projeto com sua retrica de oficializao, apresentavam a Confluncia de Culturas como uma forma de convivnciasocial, cultural e multirracial nica, oferecida pela histria do pas ao mundo, como um modelo bem-sucedido de processo civilizador. A miscigenao, como um no multiculturalismo, atualizava representaes do senso comum, gravadas nas mentes de todos e atribudas a autores como aqueles que, com semblante srio, vigiavam de perto a exposio, em psteres. Passando da histria objetivada para sua dimenso incorporada,o pas teve voz atravs dos escritores convidados pelas autoridades pblicas.

    Burocratas e Sacerdotes da Cultura Nacional

    Oficializao e Prdicas Literrias Eficazes

    O ficialm ente, o Brasil esteve representado por uma comitiva de escritores organizada pelo Ministrio da Cultura. O ministro

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  • Luiz Nascimento e Silva distinguiu-se como cabea visvel de uma seleo que passou a ser conhecida como a lista do ministro.27 A tradio objetivou-se nas mostras e nos livros. A novidade residiu na oportunidade de organizar uma nova sistemtica de apresentao da imagem do pas e de torn-la pblica em um evento sem precedentes: Vou levar o Brasil pensante Europa (...) E um momento nico para mostrar Alemanha, Europa e ao mundo inteiro, sua produo cultural e artstica, sua identidade nacional. 8 Atravs de aes coordenadas entre o ministro, Mrcio

    29 Souza e Romano de Sant Anna, a participao oficial buscou corrigir o exagero da predominncia do signo visual sobre o signo escrito

    (op. cit.). Nascimento e Silva conduziu os preparativos finais de seu ministrio, procurando redirecionar uma das imagens do Brasil: havia na primeira participao brasileira, logo que cheguei, uma viso que se concentrava mais no aspecto folclrico que no aspecto internacional do pas. Ento minha idia foi enfatizar um pas que capaz de pensar a cultura, ter uma produo de nvel internacional, apesar da lngua ser de difcil difuso (op. cit.). Os porta-vozes do Estado-nao levaram a cabo um esforo tanto para delinear uma identidade e provocar seu reconhecimento como algo importante para o mundo, quanto para demonstrar a eficincia prtica de um Estado moderno.30

    Quadro 4 Seleo Brasileira de Escritores

    Escritor Atividade principal Principais ttulos IdadeChico Buarque de Holanda Msico (compositor e cantor) e

    escritorEstorvo*, Fazenda Modelo", Gota dgua (teatral), pera do Malandro (roteiro de cinema)

    50

    Ferreira Gullar Poeta e crtico de arte. Diretor da Funarte na poca da feira

    Poema Sujo 64

    Joo baldo Ribeiro Membro da Academia Brasileira de Letras, colaborador em jornais

    Sargento Getlio*, Viva o povo brasileiro*

    53

    Josu Montello Presidente da Academia Brasileira de Letras, ex-diretor da Biblioteca Nacional

    Inmeros livros. Nenhum traduzido na Alemanha

    83

    Lygia Fagundes Telles Romancista. Primeiro reconhecimento literrio em 1938

    Ciranda de Pedra, As Meninas, As Horas Nuas*

    71

    Antnio Ccero Mestre em filosofia e letrista de sua irm, a cantora Marina, e de Joo Bosco

    No final de 1994 lanava 0 mundo desde o fim (ensaio antropolgico), no traduzido

    45

    Antnio Torres Romancista e crtico literrio Balada da infncia perdida, Um co uivando para a lua , "Essa terra* e "Um txi para Viena dustria*

    54

    Antnio Olinto Crtico literrio (MG) Presena (poesia, 1949), Caderno de crtica (ensaio, 1959)

    75

    Darcy Ribeiro Poltico (PDT), escritor e antroplogo

    Romances traduzidos em alemo: Migo, Mara , Mulo , e seu ensaio Utopia Selvagem

    71

    Fbio Lucas Crtico literrio, presidente da Unio Brasileira de Escritores e ex-diretor do Instituto Nacional do Livro

    Horizontes da crtica (1965), no traduzido para o alemo

    63

    Igncio de Loyola Brando Romancista Bebei que a cidade comeu* , Zero* , No vers pas nenhum como este , 0 beijo que no vem da boca

    58

    ( continua)

    16

  • (continuao)

    Escritor Atividade principal Principais ttulos Idade

    Moacir Werneck de Castro Bigrafo, ensasta, editor de suplementos literrios e colunista do Jornal do Brasil

    Simn Bolvar . Sem tradues para o alemo

    79

    Moacyr Scliar Escritor e mdico sanitarista A orelha de Van Gogh" e 0 olho enigmtico

    57

    Lgia Bojunga Nunes Escritora de literatura infantil. Ganhou o prmio Hans. Ch. Andersen (Nobel da rea) em 1982

    Tchau, Sete cartas e dois sonhos

    62

    Nlida Pinon Escritora. Ganhou o prmio Mrio de Andrade em 1972 e recentemente o Juan Rulfo. Professora de Literatura latino-americana na Universidade de Miami

    A casa da paixo, Repblica dos Sonhos

    56

    Rachel de Queiroz Escritora O Quinze (1930), Memorial de Maria Moura

    84

    Zuenir Ventura Colunista do Jornal do Brasil 1968. 0 ano que no terminou, Cidade Partida". Sem tradues

    63

    Paulo Coelho Escritor de maior vendagem no pas e mais traduzido no exterior nos ltimos anos

    Dirio de um mago, "0 alquimista", Brida, "As Valkrias . Todos traduzidos para vrias lnguas

    47

    Affonso Romano de Sant'Anna Poeta, diretor da Fundao Biblioteca Nacional

    "A grande fala do ndio guarani perdido na histria e outras derrotas, O canibalismo amoroso

    59

    Mrcio Souza Diretor do Departamento Nacional do Livro na poca da feira e posterior diretor da Funarte

    "Galvez, o Imperador do Acre*, O fim do Terceiro Mundo, As folias do ltex

    49

    Roberto Drummond Escritor "O dia em que Ernest Hemingway morreu crucificado

    61

    (*) Textos traduzidos para o alemo (Dados referentes ao momento da feira).

    Outros escritores, como Jorge Amado, Joo Cabral de Melo Neto, Rubem Fonseca, Antnio Cndido e Eduardo Portella, foram tambm convidados. No entanto, quase todos, por problemas de sade, declinaram do convite. Dos 21 escritores que constavam da lista, nenhum era negro e apenas quatro eram mulheres. Ao contrrio destas, dedicadas quase que exclusivamente atividade literria, a maioria dos homens ocupava, ou ocupou alguma vez, postos pblicos em instituies culturais de alta hierarquia. A mdia de idade desses autores ultrapassava os 65 anos, o que contrastava com a idade dos escritores mais jovens que, como Chico Buarque e Paulo

    Coelho, apesar de no ocuparem cargos burocrticos, entraram na lista por serem fenmenos literrios de mercado. Por outro lado, escritores de grande reconhecimento, cujos livros, em sua maioria, foram consagrados h vrias dcadas, disputavam lugares entre os clssicos. Nesse quadro predominavam romancistas, ensastas e jornalistas, gneros historicamente associados produo de mensagens sobre a miscigenao e outros Retratos do Brasil. O relevo dos escolhidos tornou-se manifesto em uma srie de debates e encontros coordenados para verbalizar o que pensavam ser o Brasil autntico:

    17

  • Quadro 5

    Leituras e Debates na Literaturhaus31

    Ttulo do evento Autores e/ou assuntos

    Brasil: Um auto-retrato Fbio Lucas, Nlida Pinon, Josu Montello, Antnio Ccero

    Brasil: A metrpole retratada Chico Buarque de Holanda, Igncio de Loyola Brando, Ferreira Gullar e Lygia Fagundes Telles

    Brasil: Um mosaico de provncias Joo Ubaldo Ribeiro, Moacyr Scliar e Antnio Torres

    O Brasil no imaginrio europeu Srgio P. Rouanet, Darcy Ribeiro, R. Menasse, Karl Corino

    Literatura ao vivo Encontro com escritores brasileiros presentes em Frankfurt

    Workshop com tradutores de literatura brasileira Dirigido pelos tradutores Karim von Schweder e Berthold Zilly (Os Sertes)

    Lanamento de revista Poesia sempre, da Biblioteca Nacional, dirigida por Affonso Romano de SantAnna

    Paralelamente comitiva oficial, as editoras de grande porte enviaram, por sua conta, outros autores. Ao todo, estiveram presentes em Frankfurt 60 escritores. A forma como viajaram, a intensidade e os contextos de suas manifestaes, o reconhecimento acumulado por cada um e a ateno que lhes dispensou a imprensa, permitem observar a diferena de suas participaes; apenas alguns reuniram todas as propriedades para manipular palavras e ritos do culto literrio nacional.

    Entre os escritores da lista, cada um alcanou um destaque diferente. Novamente produziu-se uma diviso tcita entre os negcios e o pblico, entre a feira profissional e a homenagem nacional, os campees de vendas e os clssicos . Chico Buarque e Paulo Coelho foram considerados, por unanimidade, os de maior sucesso. Passeavam pelos estandes, de entrevista em entrevista, de deferncia em deferncia, enquanto seus agentes vendiam ttulos de sua autoria para mltiplas tradues. A Literaturhaus foi o espao da palavra clebre e clamorosa, do discurso cha- mativo sobre o Brasil. Poucos dias depois de proferirem as palestras, alguns oradores usavam suas colunas nos grandes jornais brasi

    leiros para tecerem elogios recprocos. Levando adiante um mandado delegado, esses escritores firmavam posio sobre o que o Brasil em enfticas contestaes aos anfitries europeus:

    Testemunhos sobre o Bom Selvagem

    IFrankfurtianas, de Moacir Werneck de Castro, colunista do Jornal do Brasil

    Melhor que ningum do exterior, ns conhecemos, estudamos e procuramos combater no Brasil as causas essenciais de males que nos afligem (...) Assim, natural que nos desagrade receber pretensas lies de pessoas que s tm desses problemas uma viso estereotipada, e adequada a aplacar conscincias doloridas (...) Claro que no se recusa o debate internacional sobre tais questes, mas chega a ser engraado ouvir pitos com endereo errado, mais ainda num pas onde aindaontem eram exterminados milhes de judeus e nos dias atuais se sucedem revoltantes crimes racistas contra trabalhadores estrangeiros e suas famlias.

    S mais um comentrio, para concluir. Foi dito na feira de Frankfurt que, na Europa atual,

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  • Affom o Romano Us Sant 'A nm

    Joo l baio Ribeiro

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    0 TIME DE ESCRITORESFiccipnistas, ensastas,

    jornalistas e poetas levaro Alemanha urna imagem mais

    verdadeira do Brasil.

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  • 100.000 em pregados em 18.000 editoras e100.000 livrarias, produzem por ano um total de300.000 ttulos para 370 milhes de consumidores. Que beleza! Quando chegaremos l? Um dia chegaremos, por certo. Mas desde logo podemos dizer que para o intenso patrimnio da cultura europia ns demos ao longo dos sculos uma contribuio substancial.

    Para atingir to altos patamares, a Europa recebeu o nosso ouro, as nossas madeiras, os nossos produtos naturais, de mo beijada, tudo abundantemente irrigado com o sangue de nossos aborgines e dos negros trazidos da frica para o trabalho escravo. verdade que os tupinambs comeram Hans Staden, mas em compensao nossos ndios, ao serem mostrados na Europa, inspiraram Montaigne, depois Rousseau, Pufen- dorf e outros pensadores, que fizeram do bom selvagem' o smbolo e o fermento das idias de liberdade no mundo ([Jornal do Brasil, 15-10- 94).

    De Paris, Zuenir Ventura relatava os ecos da feira para a massa annima de leitores brasileiros que, de longe, seguia os eventos:

    A diplomacia aqui est em festa. Depois da eleio do Fernando Henrique, depois da Feira de Frankfurt, a Europa pode no ter se curvado ao Brasil, mas que chegou a fazer uma leve reverncia, isso chegou.

    No terreno da literatura como se tivssemos ganho uma Copa do Mundo, por exemplo, de Portugal justamente o ano em que Lisboa foi escolhida a capital cultural da Europa'. Apesar de todo o dinheiro investido pela Comunidade Europia, a imprensa parisiense deu mais destaque ao que ocorreu durante uma semana em Frankfurt do que ao que passou o ano todo em Portugal. A cultura fez pela imagem do Brasil o que s o esporte costuma fazer. (...)

    Se houvesse um evento desses por ano cessariam aquelas perguntas incmodas que os europeus gostam de fazer sem olhar o prprio rabo, que pode se chamar Bsnia, racismo, xenofobismo, neo-nazismo. "Vocs ainda exterminam meninos de rua?, Continua o genocdio de ndios?. Eles adoram provocar.

    Em Frankfurt os brasileiros responderam muito

    bem a essas inconvenincias. A um gringo que insistia em afirmar que no carnaval se matava muita gente no Rio, Ferreira Guilar disse que no, porque nessa poca os traficantes ou estavam sambando ou vendendo drogas para os turistas estrangeiros. Lygia Fagundes Telles, por ser moa fina, conteve o que tinha para dizer quando ouviu se repetirem as denncias de extermnio, massacre e genocdio. E la respondeu tudo altura, mas saiu com um a resposta na garganta. O que ela teve vontade de dizer foi que a Alemanha no era o lugar indicado para se falar em genocdio. Imaginem o mal-estar se ela no se contivesse.

    Quem no se conteve foi o incontinente Darcy Ribeiro. Insubordinado s formalidades da civilizao ocidental, ele comeou interrompendo seu colega alemo na mesa-redonda, para reclamar que ele estava falando muita bobagem sobre o Brasil. Era s o comeo. O mnimo que disse para uma platia divertida e espantada era que tudo de bom acontecido na Velha Europa viera do Novo Mundo, inclusive a Revoluo Francesa. Montaigne, Rousseau, todos os que acenderam as luzes da civilizao moderna, se inspiraram nos nossos bons selvagens. D gosto ver o Darcy na Europa sacudindo a pasmaceira mental de um continente velho e cansado. Lembra Glauber Rocha (...) Como Glauber, Darcy a cara de um Brasil soberbo, ncf, no colonizado, orgulhoso, brbaro e muito engraado (...) Nessa hora de submisso total nova ordem mundial, bom ver as peraltices desse bom e inconveniente selvagem, que resiste civilizao europia no por ignorncia, mas por saber tudo sobre ela.

    Darcy veio a Paris no dia seguinte mesa-redonda em que desafiou os alemes. Mas s ficou 24 horas. Uma labirintite e uma sbita alterao da presso arterial o derrubaram. Estirado sobre a cam adeum m odestohotel emM ontparnasse, ele continuava o debate de Frankfurt. Falava, para variar, das ndias nuas, de suas vergonhas, das doenas que Anchieta levou para o Brasil, das trs vezes em que os ndios se negaram a comer van Staden porque era um cago e os antropfagos s devoram os corajosos.

    O mdico, chamado s pressas, aplicou uma injeo de urgncia e ficou impressionado com o ndice de presso e sobretudo com a energia do paciente (...) E preciso sosseg-lo, preciso faz-lo calar. Expliquei ao mdico que isso era

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  • impossvel. Nem os militares, quando tinham o poder, conseguiram (...) Pouco depois Darcy voltava ao Brasil, cambaleando e com uma presso que s Deus sabia a altura. Para quem gosta de alegoria, como ele, estava ali uma imagem alegrica que bem poderia ser a do Brasil sem muito equilbrio, respirando mal, beira de um colapso, mas com uma disposio de jovem e com a cabea cheia de idias. (Jornal do Brasil, 15-10-94).

    Esse tipo de artigos ilustra, de modo cristalino, a dulcificao da violncia direta transformada em discursos, no uso contido da linguagem, nas imagens da lngua brasileira e seus gneros impressos e discursivos que escritores e leitores exercitam, como ningum, por meio da introspeco individualizada e da imaginao sublimada, desde a inveno da civilizao. Entre essas artes simblicas, os discursos nacionalistas especializam-se na ironia (o Darcy gosta de provocar, dizia Zuenir Ventura), a desqualificao e o assassnio virtual das afirmaes e provocaes semelhantes do outro nacional, real ou imaginado.

    Em declaraes publicas ou em suas colunas de opinio na imprensa, burocratas e sacerdotes da cultura apresentavam-se em territrio estrangeiro munidos de metforas agressivas. As palavras de ordem rechaar os esteretipos, mostrar a eles uma tradio desconhecida e complexa, sintetizar a diversidade em mostras e debates (Felipe Lin- doso, Teoria incompleta de uma exposio brasileira, Folha de S. Paulo, Mais!, 20-11- 94), eram enfaticamente pronunciadas antes e durante a feira. A imagem consensual e coesa transmitida pelos editores, autoridades culturais, escritores e imprensa, assinalava o triunfo de um conjunto particular de estratgias de oficializao.

    Entre burocratas e sacerdotes, os profetas esperaram o final da feira para proclamar atravs de outros jornais de grande circulao, seu desagrado pelo que continuamos exibindo.

    Profecias Des-autorizantes

    Houve uma ntida diviso do trabalho de registro e difuso jornalstica do evento entre os principais jornais brasileiros que fizeram a

    cobertura da feira (Folha de S. Paulo e Jornal do Brasil). A Folha de S. Paulo realava Chico Buarque, o Jornal do Brasil destacava Paulo Coelho. O primeiro, mais ctico, con- textualizava os marcos gerais da realidade social e cultural alem e internacional; o segundo dava mais ateno aos preparativos oficiais, como a lis tado ministro, e focali zava os eventos particulares e as questes brasilianas.

    Tanto na Folha quanto em outros jornais predominaram polmicas e mensagens cticas como meio de expresso das vozes de um outro Brasil. Para M arilene Felinto, em Frankfurt o Brasil apresentou a imagem de um pas informal (Folha de S. Paulo, Ilustrada, 11-10-94). Na sua opinio, a exposio refletiu uma organizao de burocratas da cultura, que gastaram milhes de dlares para levar um grupo de escritores oficiais , cujas maiores estrelas eram extra-literrias (Chico Buarque e Paulo Coelho). Os demais transmitiam, predominantemente, o ar vetusto de uma literatura pouco expressiva (...) O que ficou foi a imagem do Bar Ipanema. Com anloga ironia, pujante e ficcional, Dio- go Mainardi dizia que a homenagem terminou com pavilho demais e escritor de menos (...) nosso pavilho lembrava um balnerio e a verdadeira atrao mstica da feira foi Paulo Coelho que raramente visitava nosso posto verde-amarelo (Fim de feira , Veja, 19-10-94, p. 106). Ali onde Ventura e Werneck de Castro davam voz s expresses universais dos expositores brasileiros, Mainardi fazia-o em um sentido completamente oposto:

    A pior coisa que se pode fazer com um escritor brasileiro dar-lhe um microfone. Fagundes Telles: O problema da droga no Brasil s ser resolvido quando os americanos tirarem seus drogadinhos das ruas de Nova York . Darcy Ribeiro: Os americanos no tm o direito de criticar a matana de ndios no Brasil porque eles tambm mataram. Infelizmente no possvel reproduzir o tom acalorado dos oradores, seus rostos vermelhos de raiva, a veia inchada no pescoo, os perdigotos assassinos sobre a platia indefesa. A fim de reforar a sua imagem folcl-

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  • rica, entre os jornalistas corria a histria de que Darcy Ribeiro tambm tentou agarrar uma intrprete alem (sem sucesso). No sei se se deve acreditar nessa notcia. Como se sabe, os jornalistas costumam ser malignos (...) O Brasil no tem mais do que quatro ou cinco escritores, mas o mundo no est interessado nem mesmo nesses quatro ou cinco. O que dizer de ns? (op. cit.).

    William Waack, de um lado, descrevia como Paulo Coelho era o nico brasileiro, fora Jorginho e Dunga, procurado pelo Bild Zeitung, jornal com 4,6 milhes de exemplares dirios (O mundo se curva ao mago, Veja, 19 -10 -94 , p. 107). L ilia M o ritz Schwarcz, de outro lado, escrevia uma coluna na Folha de S. Paulo, onde afirmava que em Frankfurt foi apresentado Um Brasil caricatural para alemo ver (Mais!, 6-11-94). Na sua opinio, o Brasil no se arriscou em mais uma feira dominada por um ambiente profissional neurtico, apresentando um estilo expositivo anlogo ao coordenado pelo prprio Imperador nas exposies universais do final do sculo passado, quando o princpio de distino nacional era predominantemente racial. Na exposio central apresentou-se um pas sem fronteiras, um local onde tudo tende a atenuar-se, como numa verso frey- riana da realidade (...) Estvamos diante de um santurio com imagens para exportao , dizia, referindo-se a Ayrton Senna, Romrio e s imagens do carnaval carioca, cercadas por televisores e caricaturas de alguns escritores tropicais como Jorge Amado, Gilberto Freyre e Nelson Rodrigues . Para esta autora, a mostra, em sua totalidade, passava uma imagem homogeneizadora, organizada com a finalidade de oficializar imagens cristalizadas. Lilia Schwarcz terminava sua coluna, escrevendo:

    Resta pensar se o Brasil que foi tema da feira de livros de Frankfurt foi o mesmo que se sentou com Pedro I em finais do sculo nas exposies universais, ou ento a nossa representao externa que pouco mudou. Na lgica do contraste, que faz da alteridade uma marca fundamental, um Brasil pela negao que desponta, aquele que os outros no so. Se no se trata de dizer no a qualquer singularidade, a questo indagar porque em momentos como esse aparecemos

    sempre como o outro lado, a outra face. Como dizia o texto da exposio, esse continua a ser um pas simptico em que o que importa mesmo poltica, mulher e futebol .

    Irritado, Felipe Lindoso, um dos representantes da comisso organizadora, no tardou a responder, apresentando-se, por sua vez, como especialista da mesma rea de Lilia Schwarcz. Como mestre em antropologia social, contestou a crtica, dirigindo-se Moritz Schwarcz editora , e associando-a legio de neurticos e aflitos negociantes da feira internacional. Depois de desqualificar o mtodo legtimo de observao e anlise da disciplina que os une, Lindoso acusou:

    Quem viu homogeneidade na exposio realmente no viu nada. Apenas passeou por l e resolveu escrever para pater e revelar-se como algum que aqui quer por fora mostrar que do Primeiro Mundo e l fora faz questo de esconder que brasileiro. Em tempo: a Companhia das Letras, qual est vinculada a professora-edito- ra, no colaborou em nada com a apresentao brasileira. (FelipeLindoso, Teoriaincom pleta de uma exposio brasileira , Folha de S. Paulo, Maisl, 20-11-94).

    Se fssemos acompanhar a relao entre as opinies de editores e escritores sobre o evento, sua distribuio por casas editoras e a posio destas no estado atual do campo editorial, certamente encontraramos um princpio fundador de seus discursos. Porm, no possvel nos alongarmos aqui sobre esse assunto. Cabe ressaltar que tanto os agentes cuja trajetria os predispe a desempenhar as funes de delegado e porta-voz, quanto aqueles inconformados com as regras do jogo e que no ocultam suas transgresses ou sua pretenso a uma reverso da ordem (Bourdieu, 1991: p. 184), contribuem para a existncia das representaes legtimas, oficiais , sobre a nao e as regras que orientam as prticas de sua transmisso e interiorizao.

    Ofensa, indignao, ironia, desqualificao, exaltao, as disciplinas, a literatura, os jornalistas, a burocracia, a biblioteca, as editoras, as entidades de classe, os curadores, tudo isso so retricas de agentes especializa

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  • dos em delinear e transmitir o que a nao, utilizados numa aguerrida luta de opinies que tem por objetivo conquistar a opinio pblica, impor categorias legtimas, um estilo paraimaginara comunidade brasileira, e obter a adeso e o reconhecimento cultural internacional.

    A Nao, a Lngua e um Lugar no Mundo Editorial

    O domnio do jogo para expor o pas uma das principais estratgias editoriais e intelectuais para apropriar-se e impor os instrumentos de objetivao do que o pas e o que so as prticas do mercado de livros.

    As formas de organizao da apresentao brasileira em Frankfurt foram anlogas s de todos os participantes: mostras de diversas artes, conferncias, histria literria, painis, culinria, catlogos etc. A padronizao dos estilos de exposio dos pases precedida por prticas profissionais estandardizadas, difundidas de maneira descontnua atravs das praas de mercado e reafirmadas cotidiana- mente por agentes literrios, caadores de talentos (scouts), estudos de direito internacional, peridicos, catlogos, estatsticas e outros meios e sistemas de agentes dispostos a fazer circular concepes e bens entre mercados nacionais. O mercado editorial mundial se imagina, se comunica e se constitui por intermdio de suportes impressos especficos e das especializaes profissionais. As crenas para efeito interno e para efeito de outros nacionais acerca da posio relativa e do potencial do mercado nacional manifestam-se como poder simblico, orientador das prticas que dominam um campo editorial.'3

    Qual a posio do mercado brasileiro no mundo editorial?

    Bom, em valores absolutos um a posio excelente. Est em 7. ou 8 o lugar. Ns estamos com 300 milhes de exemplares por ano produzidos. S para citar nmeros comparativos, a Espanha faz 280 milhes; ns temos 28 mil ttulos publicados por ano e a Espanha tem 36 mil. Em nmero de ttulos a oferta ainda maior

    na Espanha, mas em nmero de exemplares, apesar de a Espanha ter toda a Amrica Latina como mercado, na Amrica Latina o Brasil representa 40% do mercado. Agora, em nmeros relativos ainda estamos muito baixos, quer dizer: com 300 milhes; tem-se dois livros per capita, quando os pases desenvolvidos tm 8, 10, at 12 per cap ita . (A lfredo W eiszflog, entrevista, agosto de 1994).

    A posio do pas determinada em meio a um jogo marcado por extrema tenso relativamente a outros participantes tambm reunidos sob a capa do (des)interesse genrico quanto aos livros-da-nao ou lngua- me . Neste sentido, a concretizao do Projeto Frankfurt dinamizou a oferta e a disputa de um espectro de recursos que, parafraseando Antnio Cndido, motivou o Brasil a pal- par-se no contexto editorial e literrio internacional:

    O Brasil um pas passivo, tem uma tradio passiva nesse sentido porque tem um mercado enorme. A msica brasileira, por exemplo, que muito popular fora do Brasil, sai revelia. Nenhum projeto de vender ou exportar isso. Ento nunca existiu, nunca o governo, desde a proclamao da Repblica, instituiu de alguma maneira um rgo que fizesse divulgao. S quando ns entramos na Biblioteca, eu e Affonso, que ns criamos dentro da estrutura do DNL uma seo de difuso internacional. E o primeiro rgo oficial internacional. (Mrcio Souza, entrevista, "setembro de 1994).

    Reparties pblicas dedicadas promoo internacional da cultura brasileira e mostras brasileiras ein outros pases existiram pelo menos durante o Estado Novo (Servio de Cooperao Intelectual do Itamarati, Mello, 1937: p. 106; Exposio do Livro Brasileiro em Montevidu de 1939, Pongetti, 1940: p. 199). Uma anlise comparativa das formas de apresentar o pas nos dois perodos poderia evidenciar que, em grande parte, os estilos de configurao das imagens referentes s relaes indivduo-sociedade, projuo intelec- tual-expresso popular etc., so similares. Em ambos os perodos, a exposio do pas no exterior tendeu a reorganizar perguntas, dilemas (quem somos ns, os brasileiros e qual

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  • o nosso lugar diante das outras naes de livros) e disputas pelo aparecimento de guias culturais formuladores de respostas. Entretanto, em cada um desses perodos, a orientao das respostas apresentou sentidos diferentes. Nos anos 30-40, a preocupao era com a materializao das representaes do milagre brasileiro como potncia emergente, uma cultura que nascia e uma ideologia de tomadade conscincia para enaltecer a honra dos compatriotas. Nos anos 90, trata-se de materializar um pas maduro, plenamente consciente da profundidade de sua histria, um pas que busca produzir a tomada de conscincia do outro nacional (especificamente os europeus) arespeito da imperceptibilidade de um pas literrio construdo sobre um modelo civilizador de exportao (miscigenao).

    Tudo se passa como se a competio entre culturas classificadas por pases tivesse como suposto que o tempo de formao dos Estados-nao j foi sepultado para dar lugar a um perodo de refinamento dos paradigmas civilizadores das naes maduras que j acumularam imensas bibliotecas sobre sua histria e se dispem a convergir num entrelaamento internacional institucionalizado.

    As exposies procuram criar um lugar parao mercado nacional numa ordem internacional e ganhar e manter posies j alcanadas num espao de interdependncia ampliado. Contudo, a percepo das dimenses e orientaes desse espao distinta entre os agentes de diferentes pases. Por sua vez, a competio para impor uma viso sobre o destino e o lugar do povo no mercado internacional gerada em espaos de competio nacionais, como locusde apropriao diferenciada dos meios de percepo e orientao em um contexto internacional. Da decorre a importncia estratgica das posies dos representantes oficiais, como re-inventores de uma tradio que permite advertir publicamente como e at onde se deve atuar:

    O Brasil est perdendo terreno na divulgaointernacional de sua literatura, especialmente na

    Frana, frente a pases que antes eram insignificantes, como Portugal e Espanha .33

    O Brasil tem uma tradio muito particular no contexto da Amrica Latina. O Brasil tem uma lngua que, junto com Quebec, enfrenta o poderio da lngua da Amrica Espanhola. Alm disso, como Quebec, tem um mercado interno, isto , seus escritores podem viver somente de escrever aqui; ento so pases voltados para si mesmos, no possuem um a tradio internacional. Os pases hispano-americanos so todos muito frgeis em termos de indstria editorial; ento eles tm que juntar-se, exportar para a Espanha, e a m aioria dos escritores so membros do corpo diplomtico nos pases hispano-americanos, quando no so funcionrios pblicos e diplomatas. Ento a difuso da literatura em espanhol tem muito mais presena no mundo: primeiro pela importncia polticada lngua, e depois porque a maioria dos escritores so diplomatas. E tambm uma literatura voltada para o exterior, porque tem de sair. Um escritor da Argentina tem um mercado deste tamanho [gesto manual de pequenez], ento tem que publicar na Venezuela, no Mxico (Mrcio Souza, entrevista, setembro de 1994).

    O evento ter um efeito duplo, chamando a ateno para o Brasil no exterior no momento em que termina o boom latino-americano, provocando a prpria revitalizao da literatura brasileira (...) Para m uitos leitores o realism o mgico j no novidade, e as ditaduras parecem coisas, do passado. Esta troca pode ser benfica para a literatura brasileira (Moacir Scliar, Jornal do Brasil, 24-09-94: p. 5).

    H anos vivemos atrelados sombra da literatura hispano-americana, sem jam ais haver adquirido nitidez e reconhecimento editorial (Nlida Pinon, Jornal do Brasil, Idias , 24-09-94: p. 3).

    O boom da literatura latino-americana privilegiou apenas a lngua espanhola (Fbio Lucas, Jornal do Brasil, Idias, 24-09-94: p. 3).

    Para os escritores, sua escolha como representantes uma oportunidade de tornar pblicas mensagens inscritas de modo no literal em suas narrativas. A delegao de representao uma oportunidade de institucionalizar a crena em novos critrios de distino a ser adotados pelo pas, algo to natural e

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  • inexorvel como a lngua falada. As relaes Brasil-Amrica Latina, Amrica espanhola, Amrica do Sul, Mercosul, portugus-Portu- gal, se constroem em um vaivm simblico de fluxo e refluxo histrico. Nessas circunstncias, predominam as representaes sobre um Brasil que despontou num cenrio continental e lingstico e que pode reivindicar, de modo autnomo, um lugar entre as primeiras naes, aquelas que, no entanto, no se deram conta do outro Brasil . A encenao do Brasil-marca, Brasil-povo, Brasil-modelo civilizador em Frankfurt foi um ritual com pretenses de institucionalizao de novas polticas culturais orientadas para o exterior. A mesma mostra exibida em Frankfurt foi montada, alguns meses depois, em Bogot. O Brasil foi tema em Bolonha, a principal feira do livro infantil e j tomaram corpo novos acordos entre o Estado e as entidades de classe para conquistar maior notoriedade no mercado internacional.

    Concluso

    A nao, a Moral Profissional e o Mercado Internacional de Livros

    A homenagem em Frankfurt permitiu observar a exteriorizao de uma hierarquia de oposies classificatrias interiorizadas. Editores, tradutores, escritores e acadmicos- representantes, expressavam de modos diferentes o que o Brasil, segundo contextos comunicativos especficos, para identificao do receptor das mensagens; s vezes, como parte da comunidade lusfona, outras, como latino-americanos e, em outras ocasies ainda, contestando essas categorias. E inevitvel que se formem imagens sobre a maneira como os outros nacionais vem o pas, especialmente sobre os agentes de certos mercados o alemo, por exemplo capazes de delimitar o lugar e a potencialidade de cada mercado. Esse enfrentam ento pluridirecional gera prticas e bens simblicos especficos

    para individualizar o Brasil no concerto das naes .

    A construo da exposio transcorreu como um drama e uma luta. Drama por serem os brasileiros mal compreendidos pelos europeus. Luta contra clichs e esteretipos negativos dos agentes de pases que ocupam uma posio de legisladores sobre a ordem editorial internacional. Essadinm ica expressou-se na oposio entre burocratas, sacerdotes e profetas, com suas teodicias.

    Os livros e os editores foram tanto bens quanto especialistas escolhidos para enfrentar o complexo panorama da individualidade do Brasil. Os primeiros so suportes materiais historicamente consagrados para a comunicao de mensagens sobre identidade, carter, sensibilidade, perfil e outras essncias dos povos. Os segundos so personagens centrais na organizao da ordem dos livros, sua percepo e apropriao por um pblico.

    A anlise de um espetculo de ritualiza- o, como as feiras internacionais e a ao de com unidades m orais-profissionais (Durk- heim, 1985), permitiu examinaras condies especficas atravs das quais se tomam pblicas as mensagens sobre a nao. Assim foi possvel demonstrar a imbricao de trs processos culturais e sociais solidrios: internacionalizao nacionalismo profissionalizao.

    As imagens de nao so construdas na complexa tenso entre bens comuns e interesses privados. Contudo, a apresentao do pas obriga seus representantes e porta-vozes a negar seus interesses sob a capa de uma lgica de misso e devotamento ao bem comum. por esse motivo que a anlise do processo de oficializao do evento foi fundamental para compreender a maneira como a individualizao dessa comunidade profissional passa pela diferenciao do pas entre outras comunidades semelhantes. Ao mesmo tempo, colocou- se em evidncia um jogo de apropriaes e disputas para falar do pas, atravs do qual os agentes obtm poder para dominar o mercado nacional de livros. Paralelamente multiplicao dos discursos que impem a categoria de profissionais do livro e profissionalizao

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  • do setor consolida-se um processo de estreitamento da dependncia do mercado nacional e das imagens do pas dentro de um emaranhado de dimenso internacional. A identidade do Brasil passa por um jogo de publicidade cada vez mais sutil e complexo. A identidade das profisses do livro e a publicao de mensagens de brasil idade passa por Frankfurt e outros lugares de mercado. O Brasil se re-faz no cenrio mundial, como um caso particular dos fenmenos que afirmam que as formas de classificao nacionais e sua transmisso por meio de livros no entram em colapso automaticamente em decorrncia dos processos de globalizao. Em todo caso, a etnografia, a objetivao de redes de agentes concretos e suas prticas de legitimao, podem demonstrar a maior complexidade de processos culturais que no se circunscrevem dicotomicamente a uma era do nacionalismo e uma era da globalizao .

    O anexo (p. 31) mostra as cidades que publicaram e traduziram pelo menos cinco textos de autores brasileiros. Os responsveis pela publicao da BN que serviu de base para confeccionar o quadro contabilizaram 1.467 ttulos de autores brasileiros traduzidos, 223 participaes em antologias e trabalhos coletivos e 19 trabalhos sobre lingstica e literatura brasileira disponveis em outras lnguas. Por outro lado, trata-se de livros dispon- veisem catlogo , nas respectivas cidades. Esta compilao a primeira deste tipo reali

    zada no Brasil, como reconhecem seus realizadores, e pode estar sujeita a modificaes.

    Entre as possibilidades de anlise do ponto de vista deste artigo, cabe assinalar o grande predomnio de Paris e Buenos Aires, e a distncia de outras cidades. Assim, Frankfurt ocupa o sexto lugar. Sem dvida, o caso alemo o de maior diversificao por diferentes cidades editoras (seis neste quadro) que, ao todo, somam 172 ttulos de autores brasileiros traduzidos para o alemo. Alm disso, na classificao lingstica, o espanhol sobressai com 400 ttulos de autores brasileiros disponveis em um mercado lingstico interdependente. Em segundo lugar, esto o francs, com 242 ttulos, e o ingls com 238.

    Este tipo de quadro ilumina os contrastes entre os recursos simblicos mobilizados pelas opinies dominantes no campo editorial brasileiro a respeito de onde inserir-Se e com quem disputar o reconhecimento editorial dos mais nobres produtos de exportao da nao, em contraste com as relaes materiais de publicao concreta de autores brasileiros traduzidos. Assim, este quadro permitiria levantar interessantes hipteses histricas acerca dos lugares que, em outras pocas, ocuparam posies homlogas a Frankfurt na mentalidade dos homens do livro no Brasil.

    (Recebido para publicao em outubro de 1995)

    Notas

    1. A verso original deste texto foi apresentada em um curso sobre naes, nacionalismos e nacionalistas, ministrado pelo professor Federico Neiburg, no primeiro semestre de 1995, no PPGAS, Museu Nacional, UFRJ. Agradeo ao professor Neiburg por seu estmulo e pelos comentrios crticos. Tambm desejo agradecer a Afrnio Garcia e Monique de Saint Martin por discutirem este texto e terem proporcionado rigorosas observaes e sugestes. [A traduo do original castelhano Entre Rio y Francfort los Libros dei Brasil de Vera Pereira.]

    2. A diferena entre texto e livro enfatizada por Roger Chartier, que cita esta esclarecedora frase de Sttodard: (...) Faam o que fizerem, os autores no escrevem livros. Os livros no so absolutamente escritos. Eles so fabricados por copistas e outros artfices, por trabalhadores e outros tcnicos, por prensas e outras mquinas (1994: p. 17). A etnografia

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  • que apresento neste artigo pretende mostrar porque, embora os autores (principalmente de literatura e das disciplinas que, como afilosofiae as cincias sociais, tambm so dominadas por um princpio de autor, Foucault, 1992: p. 25) sejam os mais capacitados para escrever e falar em nome de um povo e sobre a nao, so personagens incompreensveis se no se consideram as condies que permitem tornar pblicas suas