A TERRA, A GENTE E OS COSTUMES. DE TIMOR

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A TERRA, A GENTE E OS COSTUMES . DE TIMOR POR PAULO BRAGA

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A TERRA, A GENTE E OS

COSTUMES.

DE TIMORPOR

PAULO BRAGA

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CADERNOS COLONIAIS

PAULO BRAGA

A TERRA , A GENTE E OS

: COSTUMES DE TIMOR :

EDITORIAL COSMOSRua do Mundo, 100, S .°L 1 S B 0 A

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Este Caderno jala da mais distante e desconhecidacolónia de Portugal - e é um simples apanhado de im-pressões.

Não pretende esgotar um assunto .Não pretende, sequer, delineá-lo .Obra de momentos, constitúi apenas uma série de qua-

dros escolhidos ao acaso de recordações da vida timorense,duma vida demasiadamente sugestiva para sepoder descre-ver com limites de tempo e de espaço .

Uma outra ideia nos anima . Para quando? Para breve,talvez. Timor é urna fonte inextinguivel de sugestões. Sen-timo-las e ,amais as poderemos esquecer -porque as sen-timos sofrendo . E se é verdade que esse sofrimento não de-rivou da dôr física, da dôr do doente ou do escravo dum.destino sem humanidade, derivou, contudo, duma dôr espi-ritual que foi angustía, estado de alma, chaga continua-mente aberta na sensibilidade, feita de ansiedades e da in-quietação indizivel da vida do Oriente e da vida de Timor- quando a vivemos com o cérebro e o coração entregues aodecorrer das horas sem espaços ene branco, sem vácuos, seminstantes que a alma não sincronise .

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Entretanto, aqui ficam estas paginas de recordações dedias vividos sob os trópicos, cheios de luz, cheíos de sons,cheios de vida, de dias feitos de horas diferentes-mas quenem por isso deixaram de sêr dias que se viveram e jápassaram.

A terra, a gente e os costumes de Timor. . . -umacoleção de tópicos, afinal!

LisboaPAULO BRAGA

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A 8.° latitude S-125° longitude E

O semanário francês Gringoire,antecedendo uma repor-tagem de Ferre-Pisani na Austrália, escreveu um pequenointroito que termina por estas palavras : - «A Austráliaestá nos antípodas da França . . . Não é já uma pequenaaventura ir visitar a Austrália?».

Se os intuitos que nos levam a escrever estas cróni-cas fôssem, apenas, os de fazermos um reclamo turístico,género -Baedecker, género Cook's, diríamos : -- «Timor éum país de sonho e encantamento, perdido em planíciesverdejantes e montanhas floridas . Timor atrai e perturba-- e, ali, é belo sonhar á sombra dos tamarindos em flôr,aspirando a brisa dos palmares, o perfume estonteantedo sândalo e dos cafezais . Timor tem estradas, que osautomoveis percorrem e donde se desfrutam os mais be-los panoramas que existem . Timor tem montanhas daaltura dos Pirineus, sulcadas de precipícios, cheias deravinas pletoricas de seiva . Timor possui os melhores dosnossos climas coloniais, alguns superiores aos da metró-pole. Pode ser o términos duma viagem por terras e pormares do Oriente . Timor está nos antípodas de Portu-

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gal . . .

Não é já uma pequena aventura ir visitar Ti-mor?»E não exageraríamos . . .

No Oriente, num dos extremos do arquipélago deSonda : Timor .

Por toda a parte, sinfonias de côres, sinfonias loucasde perfumes, como nos arco-íris, como nos templos budis-tas . Depois, uma natureza primitiva - onde tudo é iné-dito, onde tudo é diferente . O instinto dominando asconvenções, a verdade genésica ainda vitoriosa ante ospreconceitos . Hálitos quentes, sensualidade, perfumesviolentos da terra sob o sol ardente dos trópicos . Luz .Impressões voluptuosas . Superstições.

Correm inquietas, dolentes ás vezes, alucinadas quásisempre, as águas das ribeiras, turistas das escarpas, ca-minheiras em delírio, ansiosas por um fim, pelo abraçodo mar . Revolvem-se á volta dos troncos das árvores eá volta das fragas ; arrastam pedaços das margens ; alar-gam-se nas planícies quando o inverno chega. Depoisvem o verão, e não se vêem . Dir-se-ia que foi o marque as levou.

E as ribeiras são símbolos . . .Símbolos da vida do Oriente .Símbolos da vida de Timor .Ansias de viver, de sentir-se a vida em haustos de

loucura, no ambiente que ou morfiniza ou excita. A se-guir o descanço, o fim . Enquanto se vive, luta-se ; equando a luta termina a Vida acabou .A vegetação cresce, cresce. Parece querêr conquistar

a altura, hirta, ansiedade de infinito . Na terra, a seiva éuma força sem limites, uma força latente e inextinguivel .As raizes são bocas, as bocas das plantas . Para que mui-tas bocas, se a seiva que uma só recebe sustenta o cauleesguio do milho e o tronco formidável do ingondoeiro?

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Timor! . . . Fica lá para os confins do Oriente, junto áAustrália, nos antípodas . . . Chamou-lhe Osório de Castro- A Ilha Verde e Vermelha de Timor ; outros cognomi-naram-a de Antecâmara do Inferno e de Fantasma doOriente, talvez porque não a tivessem compreendido ; e amaioria dos portugueses não possui uma mínima ideiado que seja aquela partícula dos nossos domínios colo-niais - ultimo abencerragem duma vassalagem, de quásitrês séculos, do Mar das Indias, � e visionam-a como se

" Aproxima-se o vendaval -- e cái o caule tenro, comoderrúe a catedral de madeira e folhagem.

E' assim, tambem, na vida dos homens. Não há raizesfortes a prendêrem o sêr à terra . Não há o desejo deeternidade . A vida é o momento que passa . Por isso,talvez, o Oriente raramente ergue monumentos de gra-nito para desafiarem os séculos . Mas em nenhum outrolugar. do mundo se vive como no Oriente . . .

Almas sem raizes no tempo, são as dos naturais deTimor e, tambem, um pouco, as dos europeus que lá vi-vem . No Oriente, quando se é dotado duma sensibilidade,quer se tenha nascido na Europa meridional, quer nas

regiões nórdicas, é-se oriental . Pode o português ir áAmérica e ficar sempre português. Pode o alemão vivêrna Africa sem abandonar a sua índole teutónica. Mas nemo ,português, nem o alemão ou qualquer outra complexãode ocidental que vá ao Oriente vence a modificação queo ambiente cria no seu espírito . Wenceslau de Morais,o poeta das païsagens românticas de Tokushima, é umexemplo . E é errado o pensamento de Loti ao afirmarque, num futuro próximo, o mundo terá uma só paísagem,uma só fisionomia, uma só expressão. O Oriente serásempre o Oriente . A paísagem é um estado de alma, --dizia Oscar Wilde . E os nossos estados de alma jamaisdeixarão de sêr aqueles que os ambientes nos dérem !

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fôsse apenas uma terra de presídio, perdida em primiti-vismo e vagas de sol ardente . Não se exagera se se dis-ser que novecentos e noventa e nove por mil dos portu-guêses desconhecem absolutamente Timor, ou têm sôbreesta colónia uma impressão distante das realidades,adquirida nos livros das escolas e nas conferências daSociedade de Geografia . Depois, pouco se tem escritosôbre ela;�e, deste pouco, muito não passa de vulgaresmanifestações de pretenciosismo, nem sequer justifica-veis num fim nobre que movêsse as penas ao redigi-los .

Entretanto, Timor vale um mundo de sugestões . . .

Quási esquecida, herança dum ciclo histórico de nave-gação e conquista e dum império que o tempo e os êrroshistóricos foram diminuindo sempre, a colónia da Oceâ-nia lembra-nos mais o espírito comercialista e colonisa-dor da nacionalidade do que a sua tendencia guer-reira .

Ano a ano, dir-se-ia passo a passo, a penetração fêz-sequási sem luta . Uma ou outra caravela, conduzindo maismissionários do que soldados, procurou aquelas paragensde infieis a cristianisar e de sândalo e tamarindo paraenriquecerem os herois e a nação . E talvez que, ao apor-tarem ás costas de Timor, de Solor, de Alor e das Flores,os navios jamais vissem - as azagaias e os túric indígenas,mas sómente os beiras timorenses e as corcóras arabescom carregamentos de cêra e mel, de madeiras precio-sas ou de pepitas de ouro colhidas nas areias das ribei-ras, para as trocas com os produtos idos dos mares deJava e Samatra, de Malaca ou de Ceilão, da India e da Pér-sia longínquas. E a conquista missionária foi fácil e pro-veitosa ante a predisposição daqueles povos semi-selva-gens para apreenderem as inovações e os processos dumaexistência mais civilisada . A palavra dos missionáriosfêz-se ouvir, chamando adeptos, procurando criar umambiente diferente para uma raça definhada pelo alcool

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e pelas orgias que sempre coroavam os estilos e os fébedaznuma ânsia louca de prazêr, de renuncia e entorpeci-mento mental. Só a volubilidade e a inconstância, quecaracterisam os timorenses e os povos afins, prejudicarama acção evangelizadôra e a tornaram mesmo inútil . Impos-sível seria existir um missionário ao lado de cada indí-gena . E, sempre, quando acabava de ouvir a voz do cate-quista, o timor começava a misturar os ensinamentosrecebidos com as superstições ancestrais, com as suascerimónias lúlic, com as feitiçarías que tanto o emo-cionam.Em vão, por isso, ecoaram, de Koepang a Manufai e a

Lautem, de Tibar a Bétano, na planície e nas culminan-cias do Teta-Mai-Lau e do Cablac, as vozes dos religio-sos . Foram sempre tolerados e respeitados, como o são osfeiticeiros e os catúas dos sucos . Veneraram-os . Hoje,contudo, quatro séculos passados, pode considerar-senulo o ideal cristão na mentalidade timôr - e só a inter-ferencia das autoridades, após a conquista de facto termi-nada em =9z2, tem conseguido lançar alguns diques aoencaminhar para os abismos duma decadencia extermi-nadôra que parecia orientar o destino duma raça.

Uma ansiedade de vida fácil e agradável, sem traba-lhos e sem preocupações, dirige a mentalidade timôr.E o verbo que lhe prégavam era complicado e procriadorde importunos problemas espirituais . . .

No remanso dos palmares, a vida decorre em carica-tura de paradisíacas mansões. O sol aquece e as sombrassão dôces e convidam ao sono. Dos caféeiros pendem osfrutos que refrescam e nas bananeiras há sumo vivifi-cante e alentador. O milho e o néli nascem da terra efrutificam sem darem cuidados . A raiz da mandioca ésaborosa. A canipa e a tuaka embebedam e criam visõesestranhas, visões que deleitam, e uma sensação de pêso

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no corpo que invoca a sonolencia . A masca de aréca e

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cal queima a boca, é amarga�mas vicía. O tabaco ergueespirais azuladas de fumo, espirais lânguidas, voluptuo-sas na graça harmoniosa das linhas curvas . E nos estilos,com o resoar monótono e monocórdico dos bambos ca-vados em troncos de árvores, o corpo revolve-se emmovimentos ritmicos e sensuais e as vozes erguem-se,ora dolentes, ora em gritos, enquanto o luar se espalhasobre a terra e as fogueiras brincam em reflexos verme-lhos com a noite escura .

Para excitar os nervos, há á luta de galos, esfusiantesde alegria, replectas de entusiasmo, com apostas e ala-ridos. E se é verdade que já não deflagram as guerrasentre os reinos e já se não realizam as avançadas sôbreterritórios inimigos, semelhantes a fossados de extermínioe vingança, com os raptos das mulheres, o roubo dosbúfalos e o decepar das cabeças dos prisioneiros, conti-núam, apesar de tudo, a existir os barlaques, as cerimó-nias fúnebres, as questões de justiça . . . Mais nada? Mas,assim, a vida é bela, e vive-se - porque se vive de qual-quer forma quando não se têm grandes aspirações e setem tudo quanto se deseja sem penoso esforço para oadquirir.E entretanto, quási sem se sentir, tudo, vai sendo di-

ferente do que foi outrora . O europeu, ao colonizar, quereque os indígenas tenham as suas casas e as suas hortas emobiliza-os para abrir e conservar estradas, para os car-regamentos, para o serviço militar . . . Incita-lhes a vai-dade, principalmente a das mulheres . Leva-os a desejarum pouco de luxo, de riqueza, de comodidade e civilização .Exige-lhes o imposto .E no remanso dos palmares começou a vivêr a inquie-

tação, essa inquietação que produz e cria, que é a ala-vanca de todos os progressos, de todas as ansiedades deredenção . O timor aprende a trabalhar. E o seu espíritocriador encaminha-se para mais além das suas necessi-dades primitivas de selvagem esquecido no laissez faire

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laissez passer de fatalistas predisposições . Deseja . Pensana forma de satisfazer os seus desejos . E vê um novoritmo na sua existência .

Colhendo os bagos de café, com a unção mística dequem colhe rosas, demoram-se as indigenas nas plan-tações. Apenas a lipa lhes desce da cintura aos pés . Oresto do corpo conserva-se nú . Do peito, trémulos, sobre-saem os seios. Longos cabelos negros caem-lhes sôbre ascostas . E quando levantam os braços para a ramaria doscaféeiros, os seios erguem-se em oferta.

Sobre os cestos vão caindo os bagos do café . . .Pelos caminhos e pelas estradas, passam os indígenas.

Simples na indumentária : - quási sempre, uma feridanuma perna, um galo sob o braço e uma faca prêsa ácinta por um cordel . Um galo, uma ferida e uma faca é adefinição sintética dum timor.

E os galos, como as cotações da Bolsa, como os cava-los nos hipodromos, valem sonhos e esperanças . . .

Nas ruas de Dili e nos bázares desfilam as nonas, sal-titantes nas sóquinhas e nas sandálias, reluzentes nassêdas e no ouro dos cordões, das cruzes e das escravas .São as amorosas de Timor, semelhantes ás amorosas detodo o mundo, talvez mais exóticas e mais originais . De-sejos de penumbra, de frescura e solidão .

E as ruas de Dili e os bázares são como as ruas Au-rea e Augusta, do Carmo e Garrett, como a Bennard, oTivoli, o S . Luiz . . .

Depois, a noite vem : noite do Oriente, noite dos tró-picos, misteriosa e sensual ; noite escura com as estrêlasa brilharem em alucinações estranhas, ou noite brancacora as sombras e as silhuetas dos montes a desfazerem--se em luar.Ao longe, murmura o mar junto á praia e junto ás

rochas . Pipiam os pássaros e gritam, sonolentos e nos-tálgicos, os toques. Ardem as queimadas nas encostas e

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nas arestas das montanhas. As cigarras e os grilos e umainfinidade de insectos, cantam, cantam incansavelmente.Mas um eflúvio de serenidade paira sobre as coisas . Ape-tece seguir com os olhos o fumo dos cigarros, deixarcaír o pensamento num sonho infindo e dôce . Apeteceamar, a todo o momento, indefinidamente, enquanto asinfonia lancinante dos rumores vagos, dos sons indis-tintos, dos milhões de vidas dispersas na natureza, lem-bra ansiedades de heroísmo e hinos de epopeia.

Ás vezes, do mundo dos rumores vagos, elevam-se,pouco a pouco, conquistando o ambiente, assoberbandoas almas, as canções dos estilos. Pungentes, agressivas,parecem brotar da terra, do fundo de catacumbas. E aVida, como se se fizesse evolar no ritmo e no som, im-pele-nos para um desejo estésico de nirvanismo e renun-cia, para um ideal fatalista de socêgo e silencio .Um outro dia vem - e o sol desflora a terra e calcina

as pedras, lançando fogo e luz sôbre a planície e sôbreos vales . Pesados e monstruosos, os búfalos ato-lam-se na lama, virando o humus, revolvendo a lamados arrozais . Perfurando a montanha, violando as flores-tas, avançam as estradas, os fios dos telégrafos e dostelefones . Germinam as sementes nas hortas . Nas povoa-ções, surgem as escolas, as enfermarias, os edifícios dosbázares . Pastam os rebanhos e as manadas . Plantam-se,aos milhões, os caféeiros, as árvores da borracha, a ca-nela, a baunilha, o sândalo . Trabalham as fábricas dedescasque do café e do arroz, as fábricas de sabão e derefrigerantes . . . No mar, pequenos barcos estacionam napesca.

E isto é a Vida, uma Vida como a que existe em todaa parte, a Vida de Timor, nos confins do Oriente, juntoá Austrália, nos antípodas . . .

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Aspectos da vida indígenaA EXISTENCIA

E' um mundo diferente do nosso . Ao principio, não ocompreendemos bem- e julgamo-nos inadaptados. De-pois vamo-lo conhecendo e vamo-nos sentindo presospelo ambiente . Então amamo-lo, sentimo-lo, vivemo-lo . . .Tem-se a impressão de que a nossa alma se modificou,se transformou . Deixamos de ser ocidentais, porque oambiente nos deu uma outra alma ou estados de almadiferentes dos que tinhamos. Esquece-se. Alguma coisase cria em nós que apaga o que antes eramos, porqueduas almas raro podem subsistir no mesmo involucromaterial . E se é verdade que a alma que perdemos se há-de readquirir um dia, verdade é tambem que ela nãodeixa de sofrer as consequências de sensações e imagensque teve e observou .

Isto pode acontecer em qualquer parte . Mas, mais doque em qualquer parte acontece nestas paragens longín-quas do Oriente. Timor é uma particula do Oriente. E',mesmo, um dos mais belos e originais recantos do Orien-te. Há nele cenários virginais para os nossos olhos, ce-

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nários que�a Civilização não pincelou ainda de moder-nismos . A ideia que os livros nos deram aparece errada,estranha ás realidades . Os livros descrevem-mas rarasvezes nos fazem sentir. Existem, tambem, coisas que nãose traduzem em palavras, coisas que só se conhecemquando se vêem . Para mim, o Oriente -- e no OrienteTimor � surgiu na virgindade estésica de um mundoque a minha imaginação não vislumbrava. Surgiu no en-cantamento das coisas que se vem pela primeira vez.E, impregnada de novas sensações e de novas imagens,a minha alma pôde compulsar qualquer coisa de inéditonesse mundo que não arquitectara em visões de horas demeditação, em sonhos de momentos de ansiedade e in-quietação. Não tive, por isso, desilusões, castelos decartas a derruir em face das realidades .

Depois, amei o Oriente e amei Timor. Olhei paraêste mundo novo com olhos de ver, com o coração pre-

disposto a sentir. Jamais me arrependi, porque, ao dei-xá-lo, tinha no meu coração uma recordação grata, umasaüdade. E quando se possui um saüdade . . .

Esqueci a Brasileira, a rua do Ouro, o Tivoli, o Nacio-nal. Lembrei-me inumeras vezes do Jacinto, do Principeda Boa-Ventura da Cidade e as Serras, e tive o prazer denotar que era dotado de outras predisposições . Aminha vida não emperrou no enferrujamento da gilette,

nem na ausência dos taxis e dos electricos. E quandovisionava selvagem o palco da minha existencia, conven-cia-me fàcilmente de que deveria sêr selvagem tambem.Foi êste meu modo de ser que encheu de notas o meudiário de vagamundo e de impressões a minha alma emhoras de aventura.E porque não deveria ser assim? Se em Robinson

Crusõe houvesse um pouco mais de realidades crueis emenos de imaginação providencial, eu consideraria

Robinsonum grande exemplo e as suas aventuras dignas

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de serem lidas e meditadas nos portalós dos navios . : .Entretanto, neste mundo que vivi durante algum tempo,a vida nem sempre foi um pesadelo . Encontrei estradas,telefones, automoveis, grafonolas, rádios e livros . . . Umalfaiate fez-me os fatos brancos e um china miseravelvendeu-me sapatos de borracha e um capacete made inChangai. Tinha casa, cadeiras, um leito . . . A païsageme a existencia selvagem, brutal, visionei-as quando asprocurava o meu ideal desportivista de caminheiro oude turista. O resto, era vida civilizada, vida vivida àeuropeia nestes confins misteriosos do Oriente.

Aqui encontrei alguem que, um dia, foi forçado aabandonar a Europa e se resolveu a viver na florestavirgem, à beira de um riácho infestado de crocodilos,apenas munido de uma espingarda, de alguns pacotes depolvora e chumbo e de uma colecção de anzois . Cons-truiu uma cabana entre a ramaria de uma árvore, emcamaradagem com os ninhos dos morcegos . Quando osol aperta, estiraça-se na frescura da cabana ou, sob asombra perfumada de um tamarindo, esquece o tempona diversão da pesca. Só por acaso um europeu passajunto à solidão da sua tebaída-e anos decorrem semque encontre alguem com quem possa trocar impressões,falar, expôr desejos e ansiedades . Contudo, vive . . . Masmeu caro leitor, se compreendo o ideal que o levou a se-guir êste rumo de existencia, tambem compreendo quesó é recomendável para dez ou vinte dias, seja para dezou vinte meses. De contrario, deve ser horrivel, a nãoser quando dentro de nós existe uma grande dôr que nosconceda um incomensuravel egoísmo.

Preguntei-lhe--Não pensa em voltar a Portugal? . . .-Para quê ? Lá custa tanto a viver! . . . � respon-

deu-me .E, depois de uma pausa, apontando as papaieiras, os

coqueiros e as bananeiras a vergarem ao peso dos fru-

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tos, a ribeira e o mar, os bandos de caça em vôo no es-paço, continuou :

E' mais fácil a existência aqui- E é mais doce !Olhei-o melhor. Vestia-se à moda indígena : apenas

uma lipa que, presa à cintura, lhe cobria o corpo até aospés . As barbas longas denotavam um último corte, feito,certamente, com uma faca . A cabeleira revôlta confun-dia-se com as barbas, dando-lhe um aspecto patriarcal eridículo ao mesmo tempo.

Junto à cabana, uma mulher indígena, nua, descascavaarroz, E um garoto, lindo, de traços correctos, como sãosempre os produtos das relações dos europeus com asnaturais de `Timor, coberto de lama por ter andado abrincar num pântano, mastigava milho cozido e dobravamais os cantos das folhas de um a b c desoladoramentesujo .

Preso aos ramos de uma árvore, meio esquartejado erodeado de moscas, secava um veado. Alguns peixes,abertos e espalmados, alinhavam-se na areia. De um co-queiro pendiam cachos de espigas de milho . Eram asprovisões dêste Robinson espiritual de Timor. . .

Achei isto sobremaneira poético .Mas o sol ia descendo no horizonte. Uma aragem

fresca, repleta de odores suàves e excitantes afluía dashortas e dos montados. A caminho de um estilo passa-vam indígenas . Um grupo maior rodeava e empurravaum búfalo, próxima vítima de uma noite de orgia . E omeu cavalo, deitado na terra húmida, descansava já deuma tarde inteira de pastagem na pradaria .

Mastiguei um último pedaço de veado e bebi uma ca-neca de água fresca e mel . E, enquanto enrolava um ci-garro e esperava que um auxiliar trouxesse o cavalo,fiz uma última pregunta :- Não tem saudades da metrópole?- Algumas . . .

Deixei

lá a companheira e os fi-lhos . . .

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Vi-lhe nos olhos uma outra expressão . E senti queêle, desde êste instante, ficou desejoso de que me afas-tasse. Apertou-me a mão com fôrça e quando, quási semo olhar, disse ao auxiliar para ir andando e me prepareipara tombem iniciar a marcha, com a voz trémula, proferiu:

-Até nunca mais? . . .Que legião de ansiedades existiria nessas três pa-

lavras! ?A custo, respondi :- Quem sabe?! Talvez, sim., até nunca mais .-Boa viagem!- Adeus,,! Felicidades!Ao transpôr o cêrro de um monte, olhei ainda para

trás. Sôbre uma saliência dos rochedos, o meu eremitaacenava com umas fôlhas . A seguir, transpuz o cêrro .Pouco depois, retrocedi . Sôbre o rochedo, sentado, coma cabeça entre as mãos, o eremita meditava . E que, nofundo, a alma do civilizado não tinha desaparecido aindae era uma fonte latente de sugestões e saudosismo .

Em Timor um europeu pode vivêr assim . E é assimque vivem os indígenas.

Há qualquer coisa de edenismo na existência dostimores . Decorre serenamente, fácil e plena de realida-des dôces, adquiridas sem esforços e sem preocupações.A terra desfaz-se em frutos . Os climas são agradáveis.As cubatas fazem-se com meia dúzia de ramos . Nos

bá-zares vendem-se os ovos, ocafé,ashortaliças- que dãoo dinheiro para a compra de mil coisas gratas aos olhos,as moedas de prata com que se fazem os ornamentosque enfeitam, as possibilidades de entrar nas apostas delutas de galos . Restam as horas de ociosidade, as horasvagas . Então dorme-se ou procuram-se trabalhos quenão exijam grandes esforços .

Se, de quando em quando, os estilos chamam as aten-

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çóes e os trabalhos obrigatórios do Estado impelem paraalguns sacrifícios, grande número de dias ociosos restamem cada ano. Acabaram as guerras, as avançadas sôbreos reinos inimigos para o saque das colheitas, o roubodo gado, o rapto das mulheres . Oportuguês, ao colonizar,impõe a paz e a harmonia entre os povos. Desaparece-ram os grandes estilos em que se decidia sóbre os conflitos,em que as cerimónias lúlic, em invocação da vitória, serepetiam dias e noites seguidas, enquanto na fogueira cres-tava a carne dos animais e, ao seu lado, as latas decanipa esperavam que as bôcas sedentas fossem esva-siá-las . Longe vão os tempos das orgias loucas quecoroavam os estilos, conseqüências das danças, dos re-quebros contorcionantes dos rins, dos cansaços físicos,dos contactos e dos desfalecimentos sensuais. Distantes,muito distantes, ficam as horas vividas em ansiedadesde animalidade e prazer que corroeram as mentalidades efóram definhando uma raça, perdida em embriaguez elubricidade. Os estilos das noites luarentas em que sereüniam os régulos e as comitivas, os estados-maioresdos exércitos e, às vezes, populações completas, paradiscutirem quanto à guerra contra os reinas inimigos oucontra a ocupação e a colonização portuguesa são, hoje,somente recordações. Duas décadas decorreram já semsublevações. A obra colonizadora realiza-se . O indígenavai-se aclimatando às exigências de uma outra existên-cia cheia de preocupações, de desejos, de inquietação.

Entretanto, a serenidade, a apatia e o tédio pairamnos palmares e nas hortas. Estas, desenvolvem-se semdarem canseiras. Os caféeiros crescem nas plantações efrutificam sem que haja o receio das moléstias horro-rosas. O gado pasta nos montados e o milho nasce embenesses da terra preta das queimadas, apenas pedindoas mondas . E, fazê-las, vão as mulheres, curvadas natarefa de arrancar as hervas. Depois, cai o orvalho. Aterra remexida une-se e guarda a humidade . A seiva

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corre nos caules tenros e a folhagem ergue-se verde eviçosa. Na verdade, a Natureza é mãe, uma mãe a todo omomento gloriosa na maternidade excelsa das colheitas.

E, quando à sombra das árvores e dos telhados, o sono,anda erradio, para vencer a ociosidade e o aborre-cimento, o temor pega numa faca, que lhe servede escôpro e cinzel, e num pedaço de madeira, de pontade búfalo, de tartaruga; derrete a prata e o ouro; tira daágua os feixes de cizal e as folhas de palmeira esfiapa-da . . . Senta-se. E, em excessos de paciência e perseve-rança, fabrica os pequenos artefactos da indústria indí-gena, os bonecos, os utensílios de ménage, os adornos.Com o cizal, mergulhado em tintas feitas por processosprimitivos, arranja obras primas de graça e de

ingenuï-dade . Molda a prata e oouro para os enfeites dasmu-lheres, as escravas, as pulseiras, os pentes para o cabelo,os cordões a que se prendem florins e libras. As mulhe-res tecem os panos timores, cheios de côres berrantes,profundamente característicos, bordam, fazem rendasreplectas de delicadeza e suavidade. E um espírito imen-samente artístico se manifesta em tôdas estas pequenascoisas .

Só as mulheres são ensinadas para a confecção dosbordados e das rendas. Os homens não têm quem osensine e lhes desenvolva a mentalidade criadora . A ins-trução, ministrada pelas missões católicas, que possuemem Timor o monopólio das escolas, cinge-se quási aocantochão e à formação de sacristães e vàdios . Contudo,da imaginação dos indígenas brotam artefactos que como-vem pelo encanto e visão plástica que exteriorizam .Quando se aproveitar todo o potencial de emotividadedas centenas de milhar de seres que vagueiam no des-perdício de energias pela ignorância e pela ociosidade, acolonização de Timor será a mais bela das realidadesda nossa acção civilizadora na Oceânia. Mas, isto só se

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dará quando, em Timor, as escolas fôrem factos e o en-sino uma utilidade. Por emquanto, pela instrução, os in-dígenas podem tornar-se santos, mas não se civilizam . . .

Percorro mais uma vez, através as minhas recorda-ções, a païsagem e a vida de Timor. Lembro as noitesde luar, em que a terra adormece sob um manto brancode luz, as noites escuras com o cintilar lancinante dasestrêlas . Lembro a teoria infinita das horas vagas, dashoras de sonho e das horas de tédio, em que olhei indo-lente o fumo dos meus cigarros e a hipertrofia dos meussentidos impregnados dos eflúvios de um ambiente es-tranho . Recordo cenários de encantamento e alucinação,sinfonias de sons e ruídos indistintos, com acordes pun-gentes dos estilos e a orquestração delirante de uma na-tureza ansiosa de vida, de luta e eternidade . Oiço aindao marulhar do mar junto às praias, o cantar das ribeirasao descerem as escarpas . Vejo uma população inteira in-decisa, temerosa, ao encetar os primeiros passos para umnovo futuro em que a inquietação substitui a apatia e osdesejos destroem a serenidade. Vejo aquela mulher nua,entretida a descascar arroz, companheira de um europeuanacoreta que vive longe do mundo e das exigênciassociais. E, ao relembrar instantes em que vi outras mu-lheres na tarefa dos bordados e das rendas e homensdistraídos a talhar a madeira, os chifres brancos oupretos dos búfalos, a tartaruga e a prata macia, sintosaüdades daquele mundo diferente do nosso, em que nosjulgamos inadaptados, ao princípio - mas que, depois,começamos a amar, a sentir, a viver. . .

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Aspectos da vida indígenaOS «ESTILOS»

Lembro-me bem do primeiro estilo nocturno que viem Timor. . .

Decorria o fim do inverno, quente, sufocante, com as i

suas chuvas torrenciais. Apressadamente, desciam sobrea terra as noites tropicais, quási sem crepúsculo, espa-lhando na montanha dilúvios de silencio e serenidade.Uma expressão plastica de suavidade irradiava a seguir

das coisas vivas e das coisas mortas . Manchas de verme-lho e oiro substituiam no horizonte o sol fugitivo . . . En-tão era dôce sentir o deslisar da aragem e aspirar o odorforte, quási consistente, das ervas queimadas, da bauni-lha, dos tamarindeiros e cafezais emflôr, que dela se des-prendia a todo o instante.

Dia a dia, ao meu espírito desnudava-sé cada vezmais assoberbante e magnífica a poesia dos anoiteceresna Montanha, aquela poesia estranha que parece emanar

de catástrofes imensas desenroladas em lugares distan-tes, de catástrofes que não vemos e apenas sentimos

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uma poesia de epopeia, feita em ritmos heroicos, atin-gindo expressões de loucura: a poesia, enfim, da selva,vibrante e dinâmica .

Quási sempre, tinha a meus pés a planície - que, es-condida na noite, era sómente uma sombra. Mas eu co-nhecía-a, e as sombras não tiravam dos meus olhos aplanície infinita . Via os palmares silenciosos a ergueremas folhas verdes, semelhantes a mãos em preces. Via ascasas de bambú e palapa entre os pangares de roseiras etrepadeiras, cheias de frescura, onde, junto ás portas,mulheres semi-núas descascam o néli e trituram o milho,rodeadas de garotos buliçosos e nús, cupidos nêgros,ídolos de bronze dum culto imaginário a Èros. E via osbúfalos atolados nos arrozais e nos pântanos cercados decoqueiros e bananeiras, como via os proprios pântanosde águas quiétas e doentes, de febre e perdição. Porquese apagavam estas coisas nas sombras? Porque presentiatodo aquele mundo compacto de verdura a escondêr-sena satisfação dum instinto de prazêr e procriação, com osramos unidos e as raizes apertadas em amplexos de vo-lúpia e êxtase? E pensava que, quando a manhã viésse,as coisas apresentariam uma fisionomia de cansaço eplenitude de desejos satisfeitos . . .

Há uma expressão indefinivel, simultâneamente detranqüilidade e arrebatamento, nas noites do Extremo-Oriente. As estrêlas cintilam com fulgurações suplicantes,brilhando tão juntas que se misturam numa só luz. Asmontanhas são manchas de nanquim, silhuetas de païsa-gem chinêsa, incrustando-se e confundindo-se umas nasoutras . De onde a onde brotam as fogueiras das queima-das, semelhantes a tocheiros ardendo espectralmentenum fundo de panos prêtos . Erguem-se as línguas defôgo em verticais que se dílúem no fumo branco. Depoisondulam. Depois apagam-se vagarosamente . Mas outrassurgem . . .

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dos longes, vagamente, como se irrompêssem decavernas, pungentes, harmonias de elegía e desolação,elevam-se as canções dos estilos . Recordam orações resoando em naves dum templo imenso . E vão-se elevando,elevando . . . Mas, inesperadamente, cáem, como se se ex-tinguissem . A vida parece prêsa ao som, indo para ondeo som a quere levar. Mais uma vez, a melodia monotonado estilo se prolonga num grito que magôa. E, á volta dasfogueiras, figuras nêgras vão caminhando, num vai-vemintérmino a que os reflexos vermelhos das chamas dãoperfís monstruosos de sabat de duendes.

Naquele dia, vi a noite caminhar em sombras defini-das. E apeteceu-me ficar a olhar a noite escura, ouvindoa orquestração dos rumores vagos, dos rumores que sãoansiedades de silencio .

Ao meu lado, o panka movia-se com um ritmoadormecedor; mas, pouco a pouco, as suas oscilaçõesfôram perdendo a cadencia, como se o vencêssem inter-mitencias de fadiga. Por fim, parou de vez . . . Olho para ofundo da varanda; e, caído de bôrco, adormecido, com acorda ainda prêsa aos dêdos, vejo o indígena do panka �tambem uma sombra esquecida na penumbra . Uma res-piração forte, ofegante, dilatava-lhe as narinas e engros-sava-lhe de momento a momento o dôrso nú,. enchendo-lhe o peito de emanações quentes. Embriagado pelosperfumes da viração, só a custo abriu os olhos, fixando-os, indeciso, em mim e no panka parado.

Vá Loba, lailais ! . . . (Vai dormir, depressa! . . .)-Obrigado, senhor!Levantou-se, deu uns passos, cambaleante, e foi cair

mais além, num sono que só o alvorecer terminaria,O Oriente 1 O Oriente! . . .

Sonho, embr iagués e ador-mecimento!

E, sem o panka, a serenidadetornou-se

maispro-funda. Nemum estremecimento nasroseirasenasarvo.-

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res. Só os sons lembravam que a vida existía : o som dorepuxo no jardim, o álerta das sentinelas, o quebrar dasondas na práia, os rumores infindos dos animais nomato e a cadencia do estilo. E a vida parecia suspensa noencantamento da canção do estilo . . .

. . . como um veleiro de sonho sôbre um lago ador-mecido ;

. . .como os reflexos do luar junto ás bicas das fontes ;_como.como pensamentos de amor na alma dum so-

litário .

Depois aquela rapariga passou .- Ha'u ba na bé? (Onde vais?)

� Ha'u ba uma lúlic, senhor . . . (Vou ao pomal . . .)Era uma criança, quási. Talvez 13 anos. Talvez 18

anos . Não o sei dizer, porque, geralmente, é difícil preci-sar-se a idade das indígenas de Timor enquanto sãonovas. Os seios eram pequenos, a voz era dôce e os ca-belos eram negros . . . Nos braços tilintavam escravas epulseiras de prata e marfim, seguindo-se ;mas às ou-tras dos pulsos aos ombros. Nos cabelos lisos e relu-zentes prendiam-se alfinetes encimados por florins . Equando lhe toquei no braço para vêr ao luar as pulseiras,dêle desprendeu-se um cheiro forte de sândalo, canela eervas queimadas.

Havia qualquer coisa de leve no seu andar, nos me-neios dos quadrís e no oscilar da cabeça sobre umpescôço alto e fino, - o que constitui um dos encantos damulher timor que mais prende a atenção dos europeus eque lhes lembra um pouco as estilisações das palmeiras.Quási sempre de pequena estatura, as crioulas timoren-sespossúem, contudo, a flexibilidade peculiar ás mulhe-res altas e ás bailadeiras indianas, uma flexibilidade har-moniosa e fascinante como a das serpentes, criada navida ao ar livre e no contorcionamento lascivo e caden-ciado dos estilos . Desconhecem este atributo, ou o apagam

S"

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despreocupadamente, enquanto são muito jovens : masaos treze e catorze anos, j á familiarisadas com as prefe-rencias dos europeus, começam a sentir a imposição de oevidenciar . Começam a usar meias e a calçar chine-las que as tornam mais saltitantes no andar. E amam osestilos e 'os bázares, os passeios nas ruas de Dili e as de-ambulações ao pôr do Sol e ao luar nos caminhos e sobos ingondoeiros de Bidau e Lecidére, à espera que al-guem goste delas . . .

Acompanhei-a para vêr o estilo.Atravessámos uma horta e, depois da passagem difícil

duma ribeira que inundava as margens com as águas detrês ou quatro horas contínuas de chuva, vime-nos empleno montado. Logo de principio, ergueu-se á nossafrente um gigantesco ingondoeiro com o tronco circun-dado por um muro de metro e meio de altura . Ervas al-tas cresciam à sua volta e alguns arbustos distendiamramos sêcos em que se enroscavam trepadeiras floridas .Dentro do muro, roseiras silvestres em época de flora-ção bordavam rosários de manchas brancas e vermelhas.Entretanto, apezar do seu aspecto bucolico de ruína an-tiga, aquele ingondoeiro lúlic encerrava coisas profunda-damente tétricas: despojos de guerra, centenas e centenasde cabeças decepadas, cuja visão nos leva a recordar oespectaculo máximo da vida timorense de há poucosanos ainda --- o espectaculo das guerras entre os reinose contra a invasão portuguesa, as discordias dos liurdi edos dató, com as conseqüencias trágicas das chacinas dosprisioneiros em excessos horrorosos de canibalismo . Anossa imaginação reconstitui quadros, e vê as vítimaspostadas em filas, enquanto os vencedôres, ébrios, numaloucura demoníaca de selvagens, acordam os écos dasflorestas com gritos de vitória e extermínio, empunhandoos túric brilhantes ao sol como auréolas de santos . De-pois, um a um, os prisioneiros avançam, com as mãosprêsas atraz das costas e com os olhos alucinados pelo

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terrôr. Obrigam-os a curvar-se. E o alfange refulge emdescidas rápidas, enquanto gritos de dôr se fazem ouvir.Por fim, cabeças que rolam e corpos que mechem os bra-ços, que ás vezes andam e tentam fugir, que arrefecem eficam rígidos. Como trofeus, erguem-se as cabêças deórbitas salientes, de línguas saindo das bôcas, de expres-sões patéticas e horrorosas de espanto. A volta dumaárvore, no interior duma parêde circular, algum tempodepois, florescem roseiras e glicínias, crescem as ervase rastejam os reptís . . . E em toda a ilha existem cente-nas de monumentos assim, definindo a história de mui-tos séculos, a história de uma raça decadente que vêneles a sua epopeia.

Muito perto de mim, trémula pelo mêdo, a raparigadesviava os olhares daquêle recanto fúnebre. Sentia-lheo côrpo junto ao meu côrpo, procurando uma proteção .A morte e os mortos são os maiores motivos do terrorindígena . E, não sei porquê, tive o desejo cruel de arran-car da profundidade enigmática do muro o primeiroobjecto -que a minha mão encontrasse . Quando o luar in-cidiu sôbre uma caveira, a rapariga soltou um grito efechou os olhos, cobrindo-os com as mãos .

---- Maromac! . . . Maromac, senhor! . . .Sorri . . . porque, na minha qualidade de europeu, era

superior à ira do Maromac; mas, conjuntamente, sentiem mim um desgosto infindo por ter satisfeito aqueleestranho e sacrílego desejo.A seguir reiniciámos a marcha . Foi necessário atra-

vessar um montado de capim, tão alto que, como arcosduma abóbada, se recurvava sôbre as nossas cabeças enos escondia o céo. De instante a instante, ouvia-se odeslisar enervante das cobras e o esvoaçar sonolento dospássaros na ramaria que afastávamos à passagem . E,pouco depois, surgia á nossa frente um pangar fechandouma clareira de terrenos cultivados.

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Ao fundo, uma casa e uma fogueira .Chegámos, finalmente, á uma lúlic, á casa sagrada

ao pomal.A uma lúlic é o templo dos cultos indígenas. Mate-

rialmente, é uma casa que se distingue das outras casasporque reúne dentro de si objectos sagrados, fétiches,vulgares utensílios de uso indígena que, por qualquermotivo, passaram a sêr lúlic. Espiritualmente, porquese cerca de superstições . E estas são inúmeras . Se otempo, no exercício da sua eterna função destructiva,não as fôsse eliminando, Timor nada mais seria do queuma massa compacta de uma lúlic !Em quási todos os reinos, junto ás residencias dos

régulos, ergue-se a uma lúlic principal. Esta distingue-sefácilmente das casas particulares E' maior. E' feita commais cuidado. O telhado eleva-se a uma altura despropor-cionada em relação á base . E o fecho-em Timoros fechosdas cubatas, feitos em madeira trabalhada, constituem assuas únicas notas artísticas - apresenta um particularesmêro de construção. Contudo, é perante o temôr quese apodera dos indígenas quando deles se aproximamque melhor podemos descobrir a existencia dos pomais,o que se nos torna compreensível quando nos lembra-mos de que nas uma lúlic há sempre a recordação dosmortos e, em algumas, o dominio do feiticeiro, do macáilúlic, temido por toda a gente.

Foi proximo duma uma lúlic, alumiada por umagrande fogueira, que, naquela noite tropical de serenidadena natureza e de lassidão nas almas, se realizou o estilo,concedendo-nos uma primeira impressão de tristeza edesolação, quási de horror.

Imagine-se um palco imenso em que se desenhe ocenário duma bacanal de fantasmas, com estilisações desombras a esbaterem-se nas sombras e línguas de fogo aviolarem a noite, com a fantasmagoria de danças macabras de espectros abraçados ás labaredas coleantes e

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mudas ; imagine-se uma mansão infernal, criada pelaimaginação dum Mefistófeles humorista e melancólicoem horas de profunda neurastenia, possuindo todos ossegrêdos das mise-en-scénes de alucinação e terror, naespectaculosidade grandiosa e indiferente da noite ; jun-te-se a tudo isto a vizinhança da floresta, magnifica emisteriosa, e do pântano traiçoeiro, fábrica de febres emorte ; pensemos ainda que, num dado instante, arealidade de tudo que imaginámos se desnuda aos nossosolhos desprevenidos, - e só assim faremos uma ideiado choque causado na nossa sensibilidade ao cairmos,pela primeira vez, no ambiente dum estilo nocturno .Em redor, está a floresta, a selva. Esta palavra quere

dizer: um mundo áparte dum outro mundo, daquele em quetodos nós vivemos, um mundo feito de infinidades, som-bras, surprêzas e perigos . E a floresta tropical, quando anoite faz descêr sôbre os seres eflúvios de magia e sen-sualidade, parece vivêr horas de êxtase e volupia quecontagiam. Dir-se-ia que a floresta tem estremecimen-tos que são o seu respirar cansado, seguidos dum rumorsurdo e pesado que lembra a existência de multidõesmurmurantes na escuridão . Há nela qualquer coisa demagnificente e indizível - a sua alma, ora silenciosa,ora rumorejante, que conquista e avassala a terra numaluta contínua contra o domínio do Homem, E, como emnenhuma outra parte, aqui a existência humana é secun-dária . E' a árvore que desempenha o papel primacial daNatureza, nascendo - e crescendo, enchendo o espaço,assoberbando-se de Sol e de côres . Depois luta - e temas suas armas . Esconde junto ás raízes os pântanos quie-tos. As folhas são bêrços que adormecem a água atéapodrecer,

fons-vitaedos miasmas que matam e

enlou-quecem . Ao seu lado, toda a vida animalsofre como senão existisse no seu mundo . E quando a noite vem, -afloresta psalmodeia o seu fastígio e a sua gloria. Estre-mece e murmura . . . São os milhões de insectos a viver

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no seu seio ; é o rastejar dos reptis e o esvoaçar das aves;são as vozes humanas no interior das casas ; é o soluçardas águas nos regatos e nas bicas; é, talvez, a seiva acaminhar de célula em célula das plantas . . .

Ao fundo, uma casa e uma fogueira . . .Em torno da fogueira, sentados, olhando fixamente

as chamas, duas dezenas de homens entôam uma can-tilena monótona e triste . As mãos batem umas nas ou-tras ou nas peles tensas dos tambores, desferindo sonscavos que causam arrepios . Ao lado, dez, quinze, vintemulheres, em duas filas, tocam com os dedos em pandei-retas, abanam no ar conjuntos de guisas, mechem os bra-ços para que as pulseiras tilintem, e, como dois raiosduma roda em movimento, vagarosamente, ritualmente,vão girando em marchas rítmicas de avanço e recúo .Conservam uma postura hierática de sacerdotisas, cheiade requebros sensuais . Os olhos, numa abstracção quecompunge, parecem continuamente atraídos por umaforça fantastica que, atravez deles, dirija a movimentaçãocoreografica do estilo.

E, alucinadamente, erguendo nuvens de poeira, cho-calhando uma lata cheia de pedras e soltando gritos, umhomem salta, estende-se no solo, contrái os músculos,torce as pernas e os braços, espuma pela bôca aberta,transforma a fisionomia com esgares terrificantes . . . Jul-gar-se-ia infatigavel . Mas, a dada altura, coberto de suore poeira, abandona a pista e deixa-se cair ofegante sôbrea relva . Logo um outro o vai substituir. Agora é um lá-bárac de oito anos que se contorce e ri, move os braços,grita . . . Quando se retira, é um catúas que inicia umasérie de trejeitos alucinados . Os seus membros decrépi-tos parecem revivificados por uma mocidade que voltasse .0 tempo vai decorrendo, e êle demora-se no seu bailarlouco sem se mostrar extenuado. Há na sua máscara umríctus infernal . . .

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E as mulheres, indiferentes a tudo, semelhantes a au-tomatos, lembrando cerimónias de sacrifícios, continuamno seu vai-vém ao som dos guisos, dos tambores e dascantilenas .Um ruído contínuo de batêr dos pés na terra dura

repercute com o dos tambores . A atmosfera torna-secompacta, quási irrespiravel . 0 mundo enche-se de figu-rações sinistras, de projecções de sombras monstruosasde écos que parecem estertôres de moribundos .E sempre, sempre, o mesmo ritmo e as mesmas

cenas . . .Só uma vez por outra, demoníaco e repelente, aparece

o feiticeiro, o mercai-lúlic . Faz algumas contorções e ex-pele um grito gutural semelhante ao piar das corujas .Então o grupo de mulheres avança rápido e dá duas,três ou mais voltas á uma Iúlic, no mesmo andar ca-denciado, para de novo regressar ao terreno iluminadopela fogueira .

Cheio de espanto, vi aquela rapariga que me acompa-nhou aparecer á frente do macai-lúlic, obrigando-o adesviar-se . E o mais alucinante bailado começou a de-senrolar-se ante os meus olhos e os olhos dos indígenas,silenciosos, semelhantes a estátuas de bronze a sobressaí-rem da nuvem espessa de pó . Era, conjunctamente, o osci-lar das palmeiras com os vendavais e o desusar das ribei-ras pelas escarpas ; era o vôo das aves e a fuga das côrçasnos montados; era o quebrar das ondas nas rochas, odesprender das pétalas pela aragem, as espirais do fumoem madrugadas húmidas. No dobrar lascivo dos rins, nofluctuar da lipa, no ondular do seu talhe fino e no estre-mecer dos seios, uma visão de bailarinas selvagens deoutros tempos, de cortezãs da Héllade ou de bailadeirasindianas, surgia . E no meu espírito viveu uma sensaçãode irrealidade . Jamais tinha pensado encontrar em Ti-mor este espectaculo, expressão ao mesmo tempo olim-

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pica e fúnebre do ritmo ; e, em face duma realidade,vendo aqueles olhos de fulgores estranhos e aquele corpoquási nú num revoltear, ora lânguido e voluptuoso, oratrágico e espasmódico, julguei sonhar . A-pesar de tudo,não sonhava . . . E jamais esquecerei o pitoresco e o en-cantamento daquela noite tropical . . .

Os estilos e os tébedai são os grandes espectaculos davida indígena timorense .

Servem-lhes de pretexto todas as contingencias emque seja de temer a influencia dos espiritos, desde assementeiras aos funerais .

Outróra, quando os reinos se reuniam nos grandesestilos, o espectro da guerra pairava sobre Timor . Asfogueiras iluminavam á distancia . Os festins duravamdias, ás vezes semanas . As cerimonias presididas pelosmacái-lúlic sucediam-se . Um a um, os guerreiros cuspiamo bétel repelente numa bacia de barro ou num canudode bambú. Depois o feiticeiro agitava o recipiente. Pro-feria palavras cabalísticas . No fim, introduzia um dêdono bétel e marcava sinais na testa e no peito dos guer-reiros, tornando-os invulveraveis . Era esta a cerimoniaprincipal dos estilos de guerra, que duravam até que omacái-lúlic afirmasse estarem as estrelas propícias paraos combates .

Hoje, ainda, os estilos cercam-se dum entusiasmo in-vulgar .

Espetados nos ramos mais proximos, dependuram-sebúfalos, veados, porcos e galinhas, que, metódicamente,vão desaparecendo a caminho das fogueiras - ondecrestam, espalhando um cheiro acre a carne queimada.Latas e bambús de tuaka, de canipa e de todas as espé-cies de alcoois arrancados á floresta, vão-se esvasiando.E os timores, geralmente sóbrios, capazes de passardias sustentados por duas únicas bananas ou por uma

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papaia, comem e bebem, comem e bebem indefinida-mente.

A orgia constitui os entreactos . Os corpos extenuadose as almas perdidas em desfalecimentos lúbricos entre-gam homens e mulheres á satisfação de instintos de aní-,malidade que, no decorrêr dos séculos, têm conduzidouma raça inteira á decadencia mental e ao definhamentofísico .

Na floresta e no mistério do capim . . .

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Aspectos da vida indígena

A caminho dos bázares descem a montanha, em filasindianas, estáticos como autómatos, os indígenas . Incan-savelmente, marcham a direito, silenciosos, como em pro-cissão de penitencia . Deixam as estradas e os carreirosestreitos e tortuosos, escorregam e trepam pelas ravinas,contornam os precipícios, sempre em frente, para encur-tarem caminho, com cêstos sôbre as costas, prêsos ãtesta por uma cinta de cizal ou de fôlha de palmeira es-fiapada . As mulheres, com os seios trémulos e nús, mas-cando o bétel, compassam o andar pelo dos homens .Umas, as mais novas, semi-núas, mostram os seios durose pujantes ; outras, as que já aleitaram filhos, escondem-os com as mãos que se cruzam sôbre o peito . Raras tra-sem cabaias a vestir-lhes o tronco . Mas todas as mulherese quási todos os homens usam lipas que cobrem oscorpos da cintura aos pés . Entretanto, os firracos apa-recem nús, apenas com um estreito pano a esconder-lheso sexo . As crianças, os lábarac, de barrigas descomunal-

OS BÁZARES

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mente salientes, nús tambem, saltitam atráz e no meiodas filas, medrosos e barulhentos .

Atravessam os povoados, as hortas, as plantações e asribeiras ; desviam-se para as bêrmas das estradas quandoouvem o buzinar dos automoveis ; estendem as mãos jun-tas e apertadas uma na outra em direção ao europeu quepassa, saudando-o

--Bom dia, ita bote! . . . (Bom dia ; senhor! . . . )E andam sempre, sempre silenciosos, sempre a direito .Depois chegam ao bázar . E cêdo ainda. Sentam-se

nos calcanhares, á espera que o comandante do posto ouo administrador da circunscrição dê o sinal de aberturado mercado . E quando o sinal resôa no toque de tambôrdos moradôres, um alarido alegre ergue-se da multidão .

Nas sédes dos comandos, os bázares têm edifícios, al-guns monumentais. Nos postos, realizam-se á volta dosingondoeiros, numa clareira da floresta ou junto a ummastro em que fluctua a bandeira nacional, hasteada emdias de mercado. Mas, quer seja á sombra dos telhadosde zinco- quer sob a incidencia dum sol forte e agres-sivo, os bázares constituem a manifestação mais típica davida timorense, impregnada de colorido e de movimento .

Rufam os tambôres dos moradôres - e a multidãoabandona as lojas dos chinas, desfaz os grupos, correpara dentro do bázar. E, então, os olhos podem contem-plar a mais exótica alacridade e os ouvidos ouvir a maisestranha polifonia de gritos e ruídos da existencia dagente timôr.

Os que vendem, alinham-se em talhões, ocupam osrecantos destinados a cada produto, e conservam-se sen-tados sôbre os calcanhares, numa posição característicade descanso dêstes povos . Não anunciam os produtos enão chamam os fregueses . Conversam, riem, mascam amistura repelente de areca e cal para a cuspirem em se-guida, enchendo o chão de manchas vermelhas . As mães,

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sem constrangimento algum, sustêm os seios e amamen.tam os filhos pequenos . Os catúas arrancam grandes fu-maradas dos cachimbos. E todos esperam.

Quando um compradôr se aproxima, aponta com, o péaquilo que descia ou abaixa-se e ergue-o .- Ossa ira? (quanto custa?)-Pataca lima . . . (cinco patacas . . .Então o cliente finge desdenhar o produto e lança uma

oferta :-Pataca ida, meio ida. (uma pataca e

'cincoenta avos).

Raramente diminui a quantia pedida . 0 freguês, seacha caro, retira-se. Se na verdade havia uma exigenciademasiada, deixa decorrêr uns minutos e, ao voltar a pre-guntar o prêço, receberá uma resposta agradavel .

E, no bázar, a gente acotovela-se, animada . Com o eu,ropeu, cruzam o indiano, o árabe, o china, o timor . Desa-parecem as hierarquias. 0 fato branco, engomado, do euro-peu, mistura-se com o caqui dos chinas, o quimono ou opijama das chinêzas de olhos oblíquos, os balandraus e osfêzes brancos dos árabes, os cambatis e as cabaias java-nêsas e timôres, ou, ainda, com a pele escura dos firracose a pele nêgra dos moçambicanos e angolanos . Pisam oempedrado ou o cimento os sapatos de lona e borrachados ocidentais, as sandálias e os chinelos dos chinas, assocas das nonas e os pés descalços, num amálgamacosmopolita e simpático .E tudo se revolve na tarefa do negócio . Só o europeu

`não compra, nem vende. Não o leva ali uma finalidade deinteresse comercial, mas apenas uma curiosidade ou umaimposição de ordem sentimental . Vai vêr as nonas quejá existam e as possibilidades de nonas que porventuraapareçam. Por isso, não olha os géneros agrícolas e pe-cuários ou os artefactos expostos . Procura, apenas, asmulheres .

Vestidas de côres berrantes, vaidosas, provocadoras,espalhando em redor olhares ardentes, passam as nonas

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que já têm senhor, mas para as quais são dôces as galan-terias dos outros senhôres e agradaveis as infidelidades.Sôbre os corpos reluzem-lhes as sêdas e brilham asjoias . Meneiam-se, olham, sorriem. Nos penteados, delongas tranças de cabelos prêtos ou já cortados á gar-çonne, conjuntos de ornamentos de ouro e prata lembramdiademas e faíscam aos raios do sol : Com gestos quásidistintos fumam cigarros . E, ao andar, deixam evolar-seum odôr penetrante de água de Colonia e loção de violê-tas, enquanto o suor humedece o pó de arroz das faces .

Olhando mais insistentemente e rindo-se mais provo-cantes, passam as nonas que desejam malai, porque fo-ram abandonadas pelos que tinham . Apresentam-se,muitas vezes, com atitudes lascivas eternas, perseguindoalguem de quem gostem ou alguem que já as tivesseolhado demoradamente .

Escondidas, temerosas e ansiosas ao mesmo tempo, aolado das vendedeiras, estão aquelas que os progenitôresjulgam dignas dum barlaque com um europeu, com umindiano 'ou com um china. Ainda não trazem sêdas ejoias . Mas o pai vai dizendo preços, e um dia apareceráum malai que taça com que não regressem á cabana damontanha, pagando bem a virgindade que se evola aosdoze e treze anos e as suas companhias durante muitotempo, concedendo-lhes, juntamente, um prestigio porque anseiam .

Elas passam. . .São elas, e só elas, que levam o europeu aos bázares !

Ao centro do bdzar há uma fonte, onde se vão desse-dentar as bôcas resequidas pela masca . Ao lado, as ten- 'das e os estabecimentos dos chinas e dos árabes, onde osindígenas vão trocar por panos e bugigangas o dinheiroganho nas vendas, comprar as garrafas de álcool, os pa-cotes de cigarros, os florins e as patacas de prata mexi-cana para fazerem os adornos .

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E por toda a parte, sob os telhados de zinco ou ao arlivre, o mercado prolonga-se até, altas horas da tarde,sempre cheio de alarido enquanto o sol não aperta muito,sonolento depois .

.

Aqui, expõem-se as frutas saborosas, os ananazes, asbananas, as ameixas, as anonas, as papaias, ás vezesuvas e morangos, pêcegos e melancias., . . Ali, as hortali-ças, -verdes, encarnadas, amarelas, rôxas, técem arco-irisno chão, ou sobresai o branco dos ovos, cacarejam as ga-linhas e pipiam os pássaros . Além, o café Libéria e ocafé arábico espreitam pelas aberturas dos sacos, amon-toam-se as cebolas e as batatas. Mais além há cabritos ecarneiros, . porcos, veados e côrças assustadas, com osolhos muito meigos e muito abertos, cavalos a retouça-rem a relva e búfalos estiraçados na terra húmida. De-pois aparecem os trabalhos indígenas em cizal e vêrga, oscestos de inumeros feitios e tamanhos, simples ou com-plicados na sua contextura, as bolsas de rafia para o ta-baco e para o dinheiro ; aparecem rendas e bordados, ospanos timores, que constitúem o trabalho mais típico dasindustrias domesticas da ilha, pulseiras e escravas, pin-gentes, argolas para guardanapos, pentes, caixas, etc., emouro, prata, tartaruga ou ponta de búfalo, com desenhos,incrustações e embutidos ingénuos, com feitios curiosose simplistas .E tudo isto se vende e se compra, no meio de gritos e

de gargalhadas, enquanto o europeu, sentimental e dese-joso de gosar no ambiente misterioso e sensual doOriente, busca uma mulher . . .

Os soldados timores e os expedicionarios de Mo-çambique, vátuas e landins. concorrem para a construçãodo ambiente exótico do bázar de Dili.

Os primeiros, pouco robustos; os segundos, fortes ecorpulentos, estátuas bronzeadas de carne, evidenciandomusculaturas de Hércules, com um eterno sorriso infan-

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til nos lábios grossos . Passeiam rias alas d.obázar

osbo-tõesdouradoseos calções ecasacosdecaquiamarelodo

fardamento, perfilados e quási solenes .E, a regular a ordem, de onde a onde, autoritarios

pela posse dos casse-têtes, os polícias indígenas postam-seatentos e imponentes . Parecem indiferentes á carne quese descobre tentadora e provocante, ás gargalhadas e aossorrisos . Servem-se do mesmo olhar para as favoritas epara as que não recebem galanteios de ninguem . Pren-dem os indígenas que se envolvem em questões, o chinaque se exalta e insulta os vendedores . Aproximam-se dosgrupos onde as vozes se elevam mais iradas, determinamos lugares a ocupar pelos géneros em mercado . Entre-tanto, de quando em quando, transformam-se -- e exer-cem funções de agentes de turismo ou de cicerones demuseu. E são os mais lídimos intermediários em transa-ções amorosas e intérpretes amáveis e . . . interessados :

Ao pôr do sol ! . . . Obrigado! . . .

Dez horas . . . Onze horas. . . Meio dia . . .O bázar desfaz-se pouco a pouco e enchem-se as

lojas dos chinas. Bebem-se sôfregamente canecas deaguardente, de alcool de arroz, de canipa e tuaka . Come-çam a surgir apostas para as lutas de galos e dirigem-sedesafios de grupos para grupos de aficionados . E,nos balcões, as agulhas dos gramofones vão riscandodiscos sôbre discos . Tocam-se canções javanêsas, senti-mentalistas, romanticas, em que há ocasos em mares queembalam, virações dôces, lamentos de fontes, espiraisdôces de fumo de sândalo-nos templos . Um canto hindúrecorda romanzas nórdicas, estrofes de baladas. Gritantes,sempre iguais, ecôam cânticos chinêses, em que se pres-sentem cenários de balões de papel, de casinhas de papelde pagodes com telhados cheios de bicos, de juncos vo-gando- em rios muito largos, por entre arrozais. E, nomeio de tudo isto, um Columbia ou um His Master's

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Voice, aventureiro perdido num mundo longínquo, quásiirreverente, dir-se-ía enlouquecido, traz-nos até às cerca-nias dos bázares Beethoven e Schubert, Wagner e Sara-zate, um tango argentino, uma morna caboverdeana, can-tares de Coimbra, peso-dobles espanhois ou um fox-trotamericano e desconexo.

Mas, de repente, a multidão, alucinada, corre para olargo ou para a estrada. Grita, salta, empurra-se num en-tusiasmo indescritível. Forma um circulo. E o silencio, aseguir, torna-se pesado . Quebram-o, agora uma, depoisoutra, vozes isoladas que falam em búfalos, em _picos decafé, em dinheiro. E dois galos, até então conservados adistancia um do outro, encontram-se no meio do circulo.Batem as azas, escarvam o solo, alongam os pescôços coma penugem eriçada. Depois saltam, embatem-se, espetamnas carnes os bicos e os esporões afiados. Fios de sanguecomeçam a deslizar pelas penas, salpicando o chão depontos encarnados . Tombam, voltam a erguêr-se, tornama cair,-enquanto a multidão delira, grita, se contorce, seespoja na terra e bate palmas numa manifestação de en-tusiasmo demoníaco. E, cada vez mais ferozes, os con-tendôres, ofegantes, ansiosos de extermínio, ébrios nacarnificina, vão-se dilacerando, prêsos um ao outro pelasgarras que profundamente se lhes enterraram nas entra-nhas. Pensar-se-ia que não são dois galos que lutam, masduas hienas, contempladas por duas centenas de tigresenfurecidos de prazêr . Até que um dos galos desfalece ecái em estertor. Então, na multidão há só duas expressões:a dos que ganharam apostas e a dos que perdêram . Osprimeiros riem, dirigem insultos ao galo vencido, agar-ram-o, esquartejam-o ainda palpitante, Os segundos afas-tam-se, derrotados . . .

Termina o bárbaro espectaculo�o unido bárbaracostume timos que as autoridades ainda não puderamproibir, e que, com o pagamento duma licença para a suarealização, constitui uma fonte de receita orçamental,

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o dia de bázar vai terminar tambem,0 sol, triunfal, aureolado por um clarão de carmim e

ouro, dirige-se vagarosamente para o poente, para ummar sereno que, ao fundo, se confunde no azul-desmaiadodo firmamento . . .

. . . e os indígenas, estancos

e silenciosos, em filas in-dianas, como autómatos, processionalmente, vão a cami-nho das povoações, sempre a direito, subindo e descendoas encostas esfumadas na penumbra do crepúsculo .

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A Cidade e as Serras

Quando, apoz dias de mar alto, se começa a divisar ailha verde de Timor, pensa-se em recantos paradisíacose em albergues de caminheiros. Nada ha mais belo eacolhedor do que Timor visto do mar. Encostas a pique,coloridas, erguendo nos cimos as silhuetas esguias doscoqueiros e das palmeiras ou as sombras largas dos in-gondoeiros . Planícies junto ao mar, junto às areias, sul-cadas pelos leitos faiscantes das ribeiras . Aqui e ali,casas brancas. Por toda a parte, casas pequeninas depalapa dos indígenas. E, sempre, uma expressão suávede serenidade a emergir das coisas . . .

Encontrei, pela primeira vez, Timor nas luzes veladasduma manhã, esfumada nas névoas cinzentas do alvo-recer. Um manto de frescura caia sobre a superfície domar, fluídico e acariciante . O marulhar da água, duma aguapastosa, ondulando pesadamente, era uma harmonia estra-nha e embaladora. Depois, primeiras visões nítidas de ter-ra . Umfarol lançando ao longe os seus ultimos avisosde luz :A baía de Dili, longa, profunda, doce, deixando, de onde aonde, sobressair os baixios de coral e espelhando os ingon-

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doeiros gigantes das praias . Reflexos. Sombras a dilui-rem-se em claridades côr de cinza. E uma cidade que seadivinha escondida sob a verdura, de que só se vê umou outro pedaço de parede branca ou dc gradeamentocoberto de trepadeiras.

Então, senti essa cidade a acordar. . . Houve unsremos que bateram a agua, um gasolina que se aproxi-mou com o piloto, um grupo de escolares que foi lan-çar-se ao banho matinal. E uma sensação de princípioassoberbou-nos o espirito . Na verdade, vivia o princípiodum novo dia e duma nova vida . . . Dum novo dia queacabou depressa para dar lugar a outro igual, com umamanhecer identico . Duma nova vida que não sabiabem quando havia de terminar. . .

Estas ruas de Dili, rudimentares, rectas, sombreadase limpas, fazem esquecer o aspecto pobre e vulgar dosedifícios. A cidade está ainda na primeira faie do urba-nismo. E tudo, nela, exteriorisa um ar de resignaç*ão .Dir-se-ía que a cidade prescinde de edifícios luxuosos,porque crê mais urgente a construção duma estradapara o interior, duma nova linha de telefones ou dumanova obra de fomento na Montanha. Mas, depois de seconhecer Timor, pensa-se que Dili tem motivos paraprotestar. Percorre-se a ilha e encontram-se construçõescomo Dili não possui, desde os dos bázares aos das es-colas. Porque? Dili podia passar sem o monumental,sem a grandiosidade. Entretanto, passa tambem sem oímprescindivel . A mediocridade generalizou-se, 0 pro-prio Palacio do Governo e quartel General, com as pare-des esburacadas e os tetos apodrecidos, fala-nos daausencia de boa vontade e de inteligencia a orientarem avida publica da colonia. 0 desleixo é norma. W, tambem,um contrasenso em colonisação . Mas que importa? Timoré um paraíso perdido, um paraíso que a idiotía exportadapela Metrópole e pela India vai estragando cada vez

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mais . A Gamara Municipal, a Escola Municipal, o Quartelde Artilharia e, perto, o presídio de Aipêlo, são as unicase relativas notas de grandêza oficial, pouco a pouco apo-drecendo com o abandono . 0 resto, exceptuando-se algu-mas casas particulares, constitúi uma vergonha que en-tristece .

A culpa, porém, não é da cidade .

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.Tudo que é triste se esquece, principalmente quandose encontra um pouco de beleza que reconforte . . .E junto de nós está a baía de Dili e está Tibar� dois

poemas de côres, duas paisagens grandiosas. Pensar-se-ía-que a montanha, com as suas florestas, com os vales exu-berantes e as encostas abruptas, quere acabar

ábeira-mar

num grito de harmonia . E ela desce os declives e vemextinguir-se dôcemente nas praias, com os seus derra-deiros bosques e as suas ultimas côres.

Extensas, em anfiteatro, as baías de Dili e Tíbar im-pressionam pela beleza que encerram. E Tíbar, com assuas ilhas de verdura, e Dili, com os fundos de coral, umae outra espelhando a aridez ou aexuberancia dos montes,são a gloria da capital de Timor.

Quando sôbre a terra cai o luar em eflúvios de refle-xos e as estrelas brilham na palidez doente das noitesbrancas, Dili e Tíbar são visões de sonho. As águas cinti-lam em vias lácteas trémulas . As silhuetas dos barcos dis-tendem-se e apagam-se ao longe. Os recifes parecememergir do sono das águas quiétas. E, então, a aragemmarinha deslisa mais leve e suáve, arrastando consigo osperfumes das hortas e doscafezais . Caminha-se . Caminha-sesempre. E, á sombra dos ingondoeiros de Bidau e Lecidéreou nos flancos de Tibar, sempre se encontra alguem . . .

Estamos no Oriente, onde, quer sob os raios fortes dosol -quer nas sombras das noites luarentas, jámais deixa,de haver alguem que espera!. . .

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No fundo, Dili é uma transigencia forçada da selvacom a colonisação. E' uma cidade adormecida na floresta .Só se vê quando estamos dentro dela . De resto, árvores,árvores. Escondida debaixo das árvores, imersa nas som-bras, prolonga as ruas extensas entre as casas, entre ospagáres floridos e os quintais . Nas ruas centrais ainda sepodem vêr os edifícios . Nos bairros excentricos, a cidadedeixou de existir . Existe apenas um bosque imenso, comruas e casas escondidas na verdura .

Mas uma população barulhenta, nervosa, perfeita-mente oriental, vem ás portas dos quintais e vem á rua,recordando-nos que a cidade é uma realidade - porque,pelo menos, é um aglomerado de gente .

E esta gente representa vinte raças diferentes, vestede vinte maneiras, fala vinte linguagens, tem vinte filo-sofias ou vinte modos de vêr e sentir a vida . Agora, passao árabe fatalista, com o seu fêz branco, a sua pele morenae os seus gestos serenos . Ali, o chinez, pequeno com avida prêsa nos olhos oblíquos e inquietos, ri á porta datenda, fuma em compridos cachimbos ou lê os jornais dePequim e Cantão . Mais adiante, o timor, o javanêz, o,kisseriano, o malaio de Makassar ou de Samatra, miúdos,quási pretos, com as lias garridas, falam em gritos, riemem gargalhadas, andam em correrias. Ao lado, os pretosde Africa, expedicionarios de Moçambique, parecem bo-necos feitos a nanquin, são bibelots gigantes de arte colo-nial . 0 indiano europeísado e o europeu completam oquadro . E este conjunto, certo em todas as cidades doOriente, em Dili - miniatura de cidade oriental - éuma característica colorida e sonóra da capital timo-rense .

Grandiosos e maternais, abrindo toneis de folhagem,os ingondoeiros espalham sombra e abrigam os ninhosdos morcêgo's . Estes erguem vôo aos bandos e, seme-lhantes a nuvens, marcam no solo os rastos efémerosdas suas sombras . -Gritam . Gritam pungentemente nos

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instantes de - lubricidade. Isolados, de azas abertas, pare-cem aviões, ao longe, num deslizar sereno .

Nas esquinas, os polícias indígenas, vestidos de caquiamarelo, parodiando autoridade, quási solenes, destri-búem o transito - que vai desde o automovel à charrettee ao cavalo assustado com o trepidar dos motores.

De quando em quando passam filas de crianças a ca -minho das escolas . Crianças de muitas raças, como oshomens, como as mulheres. Vestidas de cambati e cabaiade seda, as mulheres indígenas, com os séquitos dascriadas, visitam os estabelecimentos . As chinezas, roliçasdentro dos quimonos e dos pijamas, marcham apressa-das . As árabes, uma vez por outra, quebram a clausurae mostram ao sol e aos homens as faces veladas . E, en-costados às colunas dos átrios, os europeus olham quempassa . . . Mas tudo isto, que é simples, só se conseguefazer em Dili com muitos ruidos, com muitos gritos egargalhadas .

A' volta, o Sol cai em inundações de luz e calor . . .E' assim a Cidade.Mas, Timor, Timor sugestivo, não é sòmente Dili .

Mais do que Dili é a Montanha, são os horizontes, é apaisagem e a vida indígena, as povoações e a floresta, asribeiras, as cascatas e os cafézais . E nisto, Timor é ummundo de motivos, um universo de sugestões,

Os climas e as paisagens variam de altitude em alti-tude, de lugar para lugar. Desde o litoral, quente e doen-tio, aos cimos do Teta-Mai-Lau e do Cablac, com o frio,os nevoeiros, a neve, há uma infinidade de climas, umainfinidade de panoramas, uma infinidade de sugestões.Naquele pico do Teta-Mai-Lau está a máxima altitude dePortugal, o ponto onde Portugal, materialmente, fica maispróximo das estrelas . Tem mais mil metros do que aSerra da Estrela, quasi dois mil metros mais do que oMarão . E, só por si, já estes numeros são sugestivos.Pensemos, contudo, que se gastam três e mais dias para

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atingir o Teta-Mai-Lau ; pensemos nos perigos das tra-vessias de precipícios e dos nevoeiros, na variedade doshorizontes que, a cada passo que damos, se sucedemdiferentes ; pensemos no inéditismo da viagem . . . Con-cluiremos que só com uma noção de batalha ganha gosa-remos aquele momento em que, de cima das nuvens,vemos as duas costas desta ilha de mais de três dezenasde milhar de quilómetros quadrados, vemos, dum lado, oMar de Timor e, do outro, o Mar de Sonda .

Dali, os nossos olhos podem observar todo o terri-torio do Timor português, onde dificilmente se poderádistinguir um só dos seus seiscentos mil habitantes,como se nos curvassemos sôbre um mapa . As cidades,as povoações, as ribeiras e as florestas passam comomanchas coloridas . Bobonaro, Bázar-Téte, Ermera, Mau-bara, Fatu-Bésse, Fatu-Bilicu, Lautem, Baucau, Pulo-Jaco,Pulo-Cambing, 'esfumam-se na distancia . Mais longe, oTimor holandez, as ilhas de Kisser, Alôr, Solôr, Flóres . . .Mais longe ainda, nos círculos dos binóculos, a Austrá-lia . . . Perto, as nuvens e o nevoeiro . . .

Mas, olhemos as paisagens . . . Onde estão os pintoresdeste paiz estranho? Porque não deixam as imagens ba-fientas dos salões, das almas conselheiráticas e das ma-donas decrépitas, as naturezas mortas e as perspectivasque tôda a gente vê todos os dias, - e não buscam asravinas escorrendo seiva e a vegetação gritando vida,uma vida que ainda ninguem interpretou?

Olhemos um pouco a paisagem . . . As espécies flores-tais são um campo infindo de expressões plásticas, tra-duzindo-se em coloridos fantásticos, cheios de sol,cheios de luz. Aqui, os eucaliptos australianos, perdidosna desolação das clareiras, lembrando alucinações e de-sespêros nas contorções dos ramos, imagens de paralíti-cos e de aleijados em romaria . Depois, as plantações decoqueiros esguios, ansiedades de altura, teorias de para-

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lelas erguidas ao alto, em busca do ceu. Além, os cafe-zais em flôr, espalhando estonteamento, semelhantes ajardins onde as plantas se alinhassem como soldados emparada . Sôbre ê1es cái a sombra das árvores protectoras,de ramos abertos como braços de cruzes. A seguir, a selva,os bosques fechados, cheios de labirintos e frescura, sa-las de museu com quadros, muitos quadros, óleos, agua-relas, gouaches. Guardam os ninhos como se fôssem ma-ternidades e azilos das aves. São poemas de côres epoemas de sons : de manhã, no alarido do acordar, des-fazendo-se em gritos e em largadas de vôos ; á tarde, naserenidade das penumbras e dos silencios nostálgicos;ao anoitecer, na orquestração plangente dos ruídos va-gos, indefinidos, com reflexos de sol-posto em horizon-tes de vermelho e ouro sôbre as águas quietas do Indicoe do Pacífico . Mais adiante, as extensões do capim e doscactos . . . E em toda a parte, côres, claridade, sombras. . .

São assim as Serras de Timor, muito mais belas doque a Cidade .E nelas vivem seiscentas mil almas ao sabor das ho-

ras que passam . . .

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Elucidário(das palavras de uso local empregadas no têxto)

Barlaque � Casamento gentílico.Bázar - Mercado.Beiro - Embarcação indígena, feita em tronco de ár-

vore escavado .Cabáia -Espécie de blusa do vestuário indígena.Cambati- Espécie de saia do vestuário indígena.Canipa -Aguardente .Catúas - Velho.Corcóra-Pequena embarcação á vela .Dató-Chefe de povoação .Estilo -Festa correspondente aos batuques africanos.Firraco -Indígena montanhêz.Lábarac - Rapaz.Lipa - O mesmo que cambáti.Liurdi - Chefe.Lúlic -Sagrado, pertencente às superstições .Malai - Estrangeiro.Maromac-A principal divindade dos cultos indíge-

genas.Moradôres-Indígenas em serviço dos postos e coman-

dos, constituíndo o chamado «Exército de 2.a linha» .Néli -Arroz por descascar.Nona -Mulher indígena que vive com europeu ou

indiano.Pagar- Sébe feita de plantas.Pico-Medida de pêso - correspondente a 63 quilo-

gramas, aproximadamente.Suco-Povoação .Tébedai - O mesmo que estilo .Toqué -Pequeno

reptíl

do

arquipélago

malaio,muito disseminado em Timor, e cujo nome deriva, ono-matopaicamente, dos gritos com que se manifesta nasárvores e nos telhados .

Tuaka--Bebida fermentada. ._. .

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