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Universidade Federal do Rio de Janeiro A TRADIÇÃO DA NARRATIVA NO JONGO Renato de Alcantara 2008

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Universidade Federal do Rio de Janeiro

A TRADIÇÃO DA NARRATIVA NO JONGO

Renato de Alcantara

2008

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A TRADIÇÃO DA NARRATIVA NO JONGO

Renato de Alcantara

Dissertação de Mestrado apresentada ao

Programa de Pós-Graduação em Ciência da

Literatura da Universidade Federal do Rio de

Janeiro como quesito para a obtenção do Título

de Mestre em Ciência da Literatura (Literatura

Comparada)

Orientador: Prof. Doutor Frederico

Augusto Liberalli de Góes.

Rio de Janeiro

Agosto de 2008.

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A TRADIÇÃO DA NARRATIVA NO JONGO

Renato de Alcantara

Orientador: Prof. Doutor Frederico Augusto Liberalli de Góes

Dissertação de Mestrado submetida ao Programa de Pós-Graduação em Ciência da

Literatura, Faculdade de Letras, da Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ, como

parte dos requisitos necessários à obtenção do título de Mestre em Ciência da Literatura

(Literatura Comparada).

Aprovada por: _______________________________ Presidente, Prof. Dr. Frederico Augusto Liberalli de Góes (Departamento de Ciência da Literatura UFRJ) _______________________________ Prof. Dra. Martha Alkimin de Araújo Vieira (Departamento de Ciência da Literatura UFRJ) _______________________________ Prof. Dr. Emerson da Cruz Inácio (Departamento de Letras Clássicas e Vernáculas Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas Universidade de São Paulo) _______________________________ Prof. Dr. Andre Luiz de Lima Bueno (Departamento de Ciência da Literatura da UFRJ) _______________________________ Prof. Dr. Eucanaã de Nazareno Ferraz (Departamento de Letras Vernáculas UFRJ)

Rio de Janeiro

Agosto de 2008.

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Alcantara, Renato de.

A tradição da narrativa no Jongo / Renato de Alcantara. - Rio de Janeiro: UFRJ / Faculdade de Letras, 2008.

xii, 105f.: il.; 31 cm. Orientador: Frederico Augusto Liberalli de Góes. Dissertação (mestrado) - UFRJ / Faculdade de Letras,

Programa de Pós-graduação em Ciência da Literatura, 2008. Referências Bibliográficas: f. 98-105. 1. Literatura. 2. Narrativa. 3. Jongo. I. Góes, Frederico

Augusto Liberalli de. II. Universidade Federal do Rio de Janeiro, Instituto de Pós-graduação em Ciência da Literatura. III. A tradição da narrativa no Jongo.

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AGRADECIMENTOS

Muitas são as pessoas a quem tenho enorme dívida de gratidão. Essa página é

insuficiente para externar todo o carinho e apreço que sinto por todos:

Vó Andreza, com doçura e rigidez de negra que veio da roça, sinto saudades...

Dona Helena, mãe que me ajudou a ser o que sou hoje. Jorge, Edson, Nice, Lourdes

meus irmãos que tanto me apoiaram. Bruno, Thaise, Taiane e Matheus, sobrinhos amados.

Rita Cláudia, Terezinha e Zé, meus cunhados prediletos. Minhas tias Irene e Edna

Anna... Como agradecer se o Amor é generoso?

Aos amigos Ailton Benedito, Wladmyr Edson, Sérgio Barbosa, Delcio Teobaldo,

Paulo Dias, Alberto Ikeda, Mestre Gil do Jongo, Dona Su, Perigo Campelo, Marcus Vinicius

Bezerra, Heraldo HB, Arnaldo Coelho, Helene Gomes, Henyse Valente, Ricardo Delfim,

Cássia Borges, Eva Lúcia, Cosme, Eliana e os jongueiros de Barra, Piquete, Serrinha,

Tamandaré, Jongados na vida, ao povo do Cachuêra, ao pessoal do Audiovisual do Museu

do Folclore, Rose Granja, Imaná Aguiar, Antônio C. França, Christian, Valdir, Viena, Fred

Góes, Luis Alberto Nogueira, Eduardo Gomes, Carla Koutsoukális, Maria Angélica, Jô,

Cristina Varandas Rubim, Jarley Frieb, Rita Floresta, Andrea Batalha, Bê, Max, Dani,

Silene, André, Tatiane Azeredo, meus amigos e alunos da E.T.E. Visconde de Mauá e C.E.

Evangelina Porto da Motta, Maria dos Santos Baptista, Gilceia Boret Florêncio, Genilce

Vidal e todos as meus professores da EE Euclides da Cunha... Muito obrigado por fazerem

parte de minha vida e que Deus os ilumine sempre e sempre!

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Mensagem

Ouvi tua canção distante Tua voz roucade saudade dos caminhos de nascença

Ouvi e guardei no coração..

E a tua voz minha voz nossa voz Não quer grades nem fronteiras

E distância também é grade Também é fronteira dentro de nós.

Ouvi tua voz rouca de saudade

E não encontrei ave solta dos dias E das noites da Munhuana

E venho aqui chamar teu sangue meu sangue nosso sangue Venho aqui chamar Carolina

Carolina...! Carolina...! Com a mesma voz minha voz, tua voz, nossa voz

mesmo sangueteu sangue meu sangue nosso sangue que saudade pode enrouquecer no cantar distante mas desespero tem que fazer flor em toda parte.

(José Craveirinha)

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RESUMO

A TRADIÇÃO DA NARRATIVA NO JONGO

Renato de Alcantara

Orientador: Prof. Doutor Frederico Augusto Liberalli de Góes

Resumo da Dissertação de Mestrado submetida ao Programa de Pós-Graduação em

Ciência da Literatura, Faculdade de Letras, da Universidade Federal do Rio de Janeiro -

UFRJ, como parte dos requisitos necessários à obtenção do título de Mestre em Ciência da

Literatura (Literatura Comparada).

Esta pesquisa procura aliar o jongo, manifestação artística oriunda dos povos bantu, à

narrativa, categoria estética da literatura. Para tanto analisamos a trajetória dos negros

africanos em África e na diáspora a que foram submetidos em terras brasileiras.

Verificamos que os elementos que o constitui, o terreiro, a fogueira , o tambor, a

dança e o ponto narram não só essa trajetória como todo os processos de (re) construção

identitária.

Com maior ênfase nos pontos, nossa pesquisa mostra o modo criativo, irônico e

metafórico com que o negro consegue construir as histórias de sua comunidades e criticar a

realidade social que o cerca sem perder a alegria, pois o jongo apresenta-se, antes de tudo,

como uma celebração à vida.

Palavras chave: Literatura, Literatura Africana de Expressão portuguesa, Bantu,

Jongo, Caxambu, Escravidão negra.

Rio de Janeiro

Agosto de 2008.

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ABSTRACT

JONGO AS A PIECE OF NARRATIVE

Renato de Alcantara Orientador: Prof. Doutor Frederico Augusto Liberalli de Góes

Abstract da Dissertação de Mestrado submetida ao Programa de Pós-graduação em

Ciência da Literatura, Faculdade de Letras, da Universidade Federal do Rio de Janeiro -

UFRJ, como parte dos requisitos necessários à obtenção do título de Mestre em Ciência da

Literatura (Literatura Comparada).

This research discusses the connections between the Jongo - a complex cultural

manifestation created by the African slaves in Brazil and cultivated up to now by theirs

descendents, and aspects of the Narrative as an aesthetic category of Literature. Moments

and aspects of life in Africa as well as in the trajectory of the Diaspora - the long process of

reconstruction of the slaves´ scattered social institution and identity are illuminated to justify

the propositions.

The court yard (o terreiro), the bonfire, the drums, the dance and the ponto (the

poetics phrases) tell us not only about this trajectory, but also about the identity

(re)construction process.

Focusing on the pontos, the research shows the creative, ironical and metaphorical

way the Black people have invented to rebuild their communal stories at the same time their

criticizing their social reality with joy. Above all, Jongo presents itself as a celebration of

life.

Keywords: Literature, African Literature, Narrative, Slavery in Brazil, Bantu, Jongo,

Caxambu.

Rio de Janeiro

Agosto de 2008.

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SUMÁRIO

ÍNDICE DE FIGURAS ............................................................................................... xi

INTRODUÇÃO...........................................................................................................13

CAPÍTULO 1: OUVIR, CANTAR, CELEBRAR. .....................................................22

1.1. - O narrar ...................................................................................................................22

1.2. - Atlântico: O lado de lá............................................................................................24

1.2.1. - Os bantu .......................................................................................................................... 25

1.2.2. - Dos Impérios à Diáspora................................................................................................. 28

1.2.3. - A Teia Africana............................................................................................................... 33

1.2.4. - Religiosidade Bantu ........................................................................................................ 35

1.3. - O lado de cá do Atlântico .......................................................................................38

1.3.1. - Os negros no Brasil ......................................................................................................... 39

1.3.2. - O Rio de Janeiro.............................................................................................................. 42

1.3.3. - A Territorialidade e o Jongo ........................................................................................... 43

CAPÍTULO 2: SOB O SOM DO TAMBU.................................................................49

2.1. - O Jongo ....................................................................................................................49

2.1.1. - O Jongo e o Caxambu. .................................................................................................... 50

2.1.2. - Os participantes............................................................................................................... 51

2.2. - Da África para a diáspora......................................................................................53

2.2.1. - Tambu no Jongo.............................................................................................................. 54

2.2.2. - A dança ........................................................................................................................... 59

2.2.3. - O ponto............................................................................................................................ 60

CAPÍTULO 3: A TRADIÇÃO....................................................................................63

3.1. - Definição de tradição ..............................................................................................63

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3.2. - A literatura sobre o Jongo......................................................................................64

3.2.1. - Exóticos........................................................................................................................... 64

3.2.2. - Exógenos......................................................................................................................... 66

3.2.3. - Brasil, Mestiço ................................................................................................................ 67

3.2.4. - Emancipatório ................................................................................................................. 68

3.2.5. - Parêntese ......................................................................................................................... 69

CAPÍTULO 4: A ÁGUA VAI EM RIBA E A PEDRA ESPIA..................................73

4.1. - A narrativa no Jongo ..............................................................................................73

4.1.1. - Tipos de pontos ............................................................................................................... 73

4.2. - Memória e ancestralidade ......................................................................................75

4.2.1. - Saudade ........................................................................................................................... 77

4.2.2 - O Cativeiro....................................................................................................................... 78

4.2.3. - Liberdade ........................................................................................................................ 81

4.2.4. - Demanda ......................................................................................................................... 86

4.2.4. - O tatu............................................................................................................................... 88

4.3. - Morre congo, fica congo .........................................................................................91

CONCLUSÃO ............................................................................................................97

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ........................................................................98

SÍTIOS NA INTERNET E REVISTAS ELETRÔNICAS........................................104

FONTES SONORAS ................................................................................................104

FONTES AUDIOVISUAIS ......................................................................................105

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ÍNDICE DE FIGURAS

Figura 1: Cartaz do 4º Encontro de Jongueiros, 1999, Rio de Janeiro, RJ........................18

Figura 2: Cartaz do 5º Encontro de Jongueiros, 2000, Angra dos Reis, RJ. .....................18

Figura 3: Cartaz do 6º Encontro de Jongueiros, 2001, Valença, RJ. .................................19

Figura 4: Cartaz do 7º Encontro de Jongueiros, 2002, Pinheiral, RJ.................................19

Figura 5: Cartaz do 8º Encontro de Jongueiros, 2003, em Guaratinguetá - SP. ................20

Figura 6: Cartaz do 9º Encontro de Jongueiros, 2004, no Rio de Janeiro. ........................20

Figura 7: Painéis do 9º Encontro de Jongueiros, 2004, no Rio de Janeiro. .......................20

Figura 8: Cartaz do 10º Encontro de Jongueiros, 2005, em Sto. Antônio de Pádua - RJ..21

Figura 9: Cartaz do 12º Encontro de Jongueiros, 2008, em Piquete - SP..........................21

Figura 10: Expansão dos bantu na áfrica 3000 a.C. - 500 d.C. .........................................25

Figura 11: Principais troncos lingüísticos africanos..........................................................26

Figura 12: Império de Gana. ..............................................................................................29

Figura 13: Império de Mali................................................................................................30

Figura 14: Império Songai. ................................................................................................31

Figura 15: Diáspora africana. ............................................................................................32

Figura 16: Origens das nações Africanas no Rio de Janeiro. ............................................38

Figura 17: Mapa da África Central ocidental: ...................................................................41

Figura 18: Mestre Gil, de Piquete e Dona Zezé Machado, jongueira de 84 anos..............45

Figura 19: Mapa do Espírito Santo e regiões de ocorrência de Jongo (adaptado).............46

Figura 20: Mapa do Rio de Janeiro e regiões de ocorrência de Jongo (adaptado). ...........47

Figura 21: Mapa de São Paulo e regiões de ocorrência de Jongo (adaptado)....................48

Figura 22: Jongo de Porciúncula. ......................................................................................56

Figura 23: Tambu e tablas de bananeira de Délcio Teobaldo............................................57

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Figura 24: Tambores do Jongo do Tamandaré. .................................................................57

Figura 25: Oficina de tambu no 12º Encontro de Jongueiros em Piquete - SP. ................58

Figura 26: Esticando a pele. - Oficina de tambu. ..............................................................58

Figura 27: Tambores são afinados na fogueira..................................................................58

Figura 28: Jongo. Artesanato de Maria Luiza Santos Vieira, de Taubaté - SP. ................59

Figura 29: Oficina de Jongo da Dona Su, Cabo Frio - RJ, em 13 de Julho de 2008. ........60

Figura 30: Apresentação de caxambu em Santo Antônio de Pádua, RJ............................74

Figura 31: Mestre Joviano, jongueiro de São Luís do Paraitinga......................................77

Figura 32: Mestre Darcy....................................................................................................94

Figura 33: Aniceto do Império Serrano. ............................................................................95

Figura 34: Tia Maria do Jongo da Serrinha no Quilombo São José da Serra....................95

Figura 35: Fátima (Fatinha do Jongo de Pinheiral) ...........................................................95

Figura 36: Dona Eva Lúcia, jongueira de Barra do Piraí toca e canta um jongo...............96

Figura 37: Jovem jongueiro de Porciúncula montado no tambu. ......................................96

Figura 38: Crianças do Quilombo São José.......................................................................96

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INTRODUÇÃO

Esta dissertação representa o empenho em demonstrar como as manifestações da

cultura popular, especificamente o Jongo, inserem-se no cânone literário, por serem

possuidoras de características e elementos que lhe dão feição estética.

No caso do Jongo, há grandes desafios: Pesquisas recentes de maior fôlego e

amplitude dão novos, interessantes e múltiplos nortes a serem seguidos, no campo histórico-

social, estético e simbólico. Existem, ainda, diversos nós a desatar e esperamos contribuir

para afrouxar alguns destes, dando visibilidade e voz às comunidades remanescentes de

escravos.

Com relação à origem e o significado da palavra jongo, temos três hipóteses: LOPES

(1996, p 142) indica uma dança dos ovimbundu, de nome onjongo, conforme consta no

Dicionário Português-umbundu, de Grégoire Le Gennec e José Francisco Valente. No

mesmo verbete, discorda de Antenor Nascentes que vê o vocábulo derivar de Jihungu,

instrumento musical.

No documentário Feiticeiro da palavra (2001), o jongueiro Zé Carlos afirma que

Jongo significa “saudade da África”. Já em Jongos, calangos e folias (2007), Robert Slenes,

aposta na palavra do kikongo nzongo, presente no umbundu e kimbundu na forma songo,

que significa flecha ou bala. Diz que há uma expressão em kikongo nzongo myannua, a bala

da boca, isto é, a palavra usada agressivamente e o provérbio umbundu “a palavra é como

uma bala”.

Finalmente, Antônio José do Espírito Santo1, traz o vocábulo kimbundu nongo,

enigma, adivinhação. Ji-nongonongo é o jogo de adivinhas, de charadas que, segundo o

1 RIBEIRO (1960, p. 26) Também aponta esse parentesco, mas não se aprofunda nem assume, pelo que entendemos, essa posição.

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etnolingüista suíço Hèli Chatelain possui caráter talvez sócio-educativo, praticado pelos

mais velhos de uma comunidade. Conclui afirmando que

sendo Jongo uma manifestação muito antiga, de caráter transnacional, bem mais complexa do que imaginávamos, podemos concluir também que a dança devia ter importância apenas acessória nos eventos (talvez até, meramente eventual) no âmbito de um atividade social, francamente, africana, muito ocorrente no Vale do Rio Paraíba do Sul, de meados do século 19 até hoje. (ESPÍRITO SANTO, 2008)

No que tange a origem do Jongo, duas correntes teóricas tentam explicar se é

brasileiro ou oriundo de África. A primeira corrente argumenta que ele toma forma no

contato entre a cultura dos cativos, série de saberes e fazeres destes, e a dos proprietários de

terras e senhores de escravos (GANDRA, 1995 - SIMMONARD, 2005).

A segunda, representada por LOPES (1988, 2003), MUKUNA (2000), SILVA (2006)

e outros, defende a origem no entorno da região Congo-Angola, trazida para o Brasil com os

negros bantu escravizados.

Não excluímos dogmaticamente a primeira abordagem, mas apoiamo-nos nas atuais

evidências de que o Jongo, além de traduzir as representações simbólicas dos escravos nas

relações às quais foram forçosamente sujeitados, à semelhança de uma língua franca, era elo

de união e resistência das diferentes culturas postas em contato na senzala frente à cultura do

opressor. (SLANES, 2008 - STEIN, 1990).

Neste sentido, entendemos, como se verá, que a primeira visão minimiza a

importância das comunidades negras na reconstrução de seus elementos culturais e mascara

o histórico abismo social entre as populações afrodescendentes e os de identificação

européia.

Como, ao nos apoiar na segunda corrente teórica, estamos refazendo o caminho dos

negros do Brasil até a África, muitas bifurcações nos surgem. As hipóteses do sentido da

palavra Jongo, por si sós exigiriam um trabalho à parte, tarefa que, cremos, ainda será feita.

Resta a nós - que nas palavras dos velhos jongueiros, somos "pinto pequeno" - perceber se as

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proposições apresentadas são ou não contempladas pelo Jongo: a dança, o adivinhar, a

palavra-bala que fere com o peso do enigma. Quem mais se aproxima do correto? Não

sabemos. Afinal de contas “segredo de parede, barata sabe tudo”, diziam os negros velhos.

Manifestação cultural complexa, que transita no campo do sagrado e do profano, o

Jongo é uma instituição social na medida em que o conceito abrange, simultaneamente, a

prática divinatória, dança, canto, canções, melodia, instrumentos, o momento da

confraternização e o grupo social dos jongueiros. Deste modo, grafamos a palavra com

maiúscula quando nessa abrangente significação. No plural enfatizam-se tanto os aspectos

particulares quanto gerais.

Sabemos, através dos Jongos, que os negros tiveram que pôr em prática suas

habilidades de dizer de modo indireto. Através de metáforas percebidas por seus iguais, os

antepassados e as forças metafísicas eram reverenciados:

Papai era negro da Costa, Mamãi era nega banguela, Papai começô gostá de mamãi, Foi e casô cum ela. (ARAÚJO, 1964, p. 203).

A dura vida no eito que obrigava os negros a acordar antes do nascer do sol, após

cinco ou oito horas de sono, era mencionada:

Aquele diabo de bembo zombou de mim Não tenho tempo de abotoar minha camisa, Aquele diabo de bembo zombou de mim (STEIN, 1990, p. 198)

O ponto era um deboche ao feitor que tocava o sino para acordá-los. A palavra

bembo2 parece referir-se a mbembo, do kikongo3: voz, nome próprio (homem ou mulher);

2 Na gravação feita pelo pesquisador norte-americano não fica claro se é dembo que, neste caso, viria do kimbunbu ndembu autoridade superior ou ndenbo, umbundu, rainha. (LARA E PACHECO, 2008, p.178) 3 Seguiremos a notação dos estudos internacionais sobre povos e línguas africanos. Grafaremos termos nas línguas de origem em itálico somente na primeira aparição.

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briga; ou do kimbundu mbembo, repetição de um som reenviado por um corpo duro, eco

conforme registram PACHECO e SLANES (2008, p. 178).

Em nossa opção metodológica, não nos fixamos em uma comunidade específica,

como grande parte das pesquisas sobre este tema. Comunidades tão distintas quanto

Porciúncula, no noroeste fluminense, e Guaratinguetá, no Vale do Paraíba paulista,

reconhecem-se como portadores das mesmas práticas culturais e, por isso, irmanam-se.

Além disto, muitos jongos são comuns a todas as comunidades, sofrendo

modificações de acordo com a situação ou contexto em que se apresentam, como no par

“pisei na pedra, a pedra balanceou”; “pisei na ponte, a ponte tremeu”.

Ainda sobre o método, houve pesquisa de campo em Barra do Piraí e Piquete, onde

estivemos entrevistando alguns jongueiros e assistindo suas apresentações. Participamos do

9º Encontro de Jongueiros no município do Rio de Janeiro, comparecemos às reuniões

iniciais da comissão organizadora do 10º Encontro realizado em Pádua. Por questões

pessoais, não pudemos participar deste evento, nem do 11º, no Quilombo de São José em

Valença; mas estivemos no 12º em Piquete, São Paulo, nos dias 25 e 26 de abril de 2008.

Durante os dias 6, 13 e 20 de novembro de 2007, participamos da conferência-

espetáculo JONGÁ - Cantos de fé, de trabalho e de orgia, criação de Délcio Teobaldo, nas

dependências da Caixa Cultural no centro do Rio de Janeiro. Findando nossas investigações,

participamos da oficina de Jongo com Dona Su4, esposa do saudoso Mestre Darcy da

Serrinha, no dia 13 de julho de 2008.

Produzimos alguns registros fotográficos e em vídeo digital no intuito de

recuperaremos gestos, entonações e compará-los a materiais produzidos por outros

4 Norma Sueli Pereira Arcanjo

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pesquisadores, além de termos feito diversas consultas informais através de correio

eletrônico.

Nosso olhar se fixa nos pontos e suas representações narrativas, suas construções

simbólicas e o modo pelo qual ele é constituído. A bibliografia consultada é multidisciplinar

com contribuições da Lingüística, Antropologia, Sociologia, História, Geografia e Música. A

pesquisa apresenta a seguinte distribuição:

O primeiro capítulo - Ouvir, cantar, celebrar - procura armar nossa percepção para

alguns aspectos funcionais da narrativa e seu papel frente à capacidade simbólica humana.

Além disso, focamos o olhar para a porção central ocidental da África onde encontramos as

diversas etnias bantu e chegamos às terras brasílicas quando o Jongo será observado.

Sob o som do tambu é o segundo capítulo. Descreve o jongo e seus elementos

constituintes: a roda, o ponto, os participantes e o tambu.

O terceiro capítulo - A tradição - aborda, além deste conceito, os paradigmas que

nortearam a visão dos estudiosos do assunto.

O quarto capítulo - A água vai em riba e a pedra espia - analisa alguns pontos de

jongo, selecionados a partir de seus temas: ancestralidade, memória do cativeiro, liberdade,

relações sociais, demanda, permanência e esperança. Seu título foi retirado de uma das

elucidativas conversas que tive com Délcio Teobaldo, utilizando a Internet. A frase, porém,

quanto a seu significado, segue sendo um grande enigma.

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Figura 1: Cartaz do 4º Encontro de Jongueiros, 1999, Rio de Janeiro, RJ.

- In: JONGO NO SUDESTE, 2005.

Figura 2: Cartaz do 5º Encontro de Jongueiros, 2000, Angra dos Reis, RJ.

- In: JONGO NO SUDESTE, 2005.

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Figura 3: Cartaz do 6º Encontro de Jongueiros, 2001, Valença, RJ.

- In: http://www.eefd.ufrj.br/redejongo/home.html

Figura 4: Cartaz do 7º Encontro de Jongueiros, 2002, Pinheiral, RJ.

- In: JONGO NO SUDESTE, 2005.

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Figura 5: Cartaz do 8º Encontro de Jongueiros, 2003, em Guaratinguetá - SP.

- In: (SILVA, 2006, p. 102)

Figura 6: Cartaz do 9º Encontro de Jongueiros, 2004, no Rio de Janeiro.

- In: JONGO NO SUDESTE, 2005.

Figura 7: Painéis do 9º Encontro de Jongueiros, 2004, no Rio de Janeiro.

- In: http://farm1.static.flickr.com/216/509754965_e3c4eba343_m.jpg

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Figura 8: Cartaz do 10º Encontro de Jongueiros, 2005, em Sto. Antônio de Pádua - RJ.

- In: http://encontrodejongueiros.zip.net/

Figura 9: Cartaz do 12º Encontro de Jongueiros, 2008, em Piquete - SP.

- In: http://www.daescola.com.br/2005/portal/uploads/geral/clipping/183174/thumb/cartaz_ encontro_2008.jpg

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CAPÍTULO 1: OUVIR, CANTAR, CELEBRAR.

1.1. - O narrar

Em seu clássico artigo sobre a narrativa de Nicolai Leskov, Walter Benjamin (1994,

p 198) nos diz que “a experiência que passa de pessoa a pessoa é a fonte a que recorreram

todos os narradores”. Tal passagem traz, para o conceito primevo de narrativa, a associação

com a arte de contar o mundo, apreendido através de saberes vindos de terras longínquas e

também acumulados na tradição. A transmissão destes conhecimentos se dava

principalmente pela oralidade.

À guisa de estabelecer a possível gênese do fenômeno narrativo, SCHOLES e

KELLOGG (1977) estudam um período nebuloso, anterior à tradição grega da epopéia e, no

mito, fixam a primeira forma de narrativa de que se tem conhecimento. Para eles, mito e

narrativa tradicional são sinônimos pois “mytos em grego tinha exatamente esse significado”

(Ibidem, p. 153).

Indo além, indicam três espécies distintas de narrativa tradicional primitiva que

observam na maioria das culturas: O conto popular imaginativo, com função de divertir uma

platéia; a lenda, conto quase histórico e o mito sacro “que é uma expressão e justificativa

para a teologia, maneiras e moralidades primitivas” (Ibidem, p. 153).

O contador de histórias, desta forma, narrava o mundo e sua ação de narrar se

revestia de autoridade, pois era possuidor do respaldo da experiência compartilhada por toda

uma comunidade. A narrativa tinha como fim a transmissão de algum ensinamento, de uma

proposição moral, um conselho ou o divertimento. Mantendo-se, durante muito tempo, pela

tradição oral, essa narrativa necessitava de um corpus coletivo, narrador e ouvintes, para

existir.

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Das formas apontadas anteriormente, o mito sacro é a mais antiga e mais arraigada à

tradição:

Antes que o relato de histórias houvesse alcançado um grau de sofisticação suficiente para fazer da diversão ou do registro histórico sua alçada, deve ter estado a serviço da teologia primitiva. Os mitos sacros acham-se arraigados nos mais vitais interesses da raça humana . (SCHOLES e KELLOGG, 1977, p. 154)

Esta narrativa caracteriza-se por ser fortemente cerrada, havendo em cada evento uma

significação que se encaixa nos demais. Ao final, o entrelaçamento de todos eles nos remete

a uma significação de ordem cósmica, universal, explicadora da origem de um fenômeno

natural. É a função etiológica do mito que sempre mantém uma relação significativa com a

vida humana e sua existência na Terra.

Essas facetas do mito sacro, e de sua narrativa, configuram-se enquanto tentativa de

apalpar o desconhecido, de o homem intervir no caos do universo, dando continuidade ao

descontínuo da doença, das catástrofes, do mistério da morte, através das palavras que, ao

serem transmitidas, adquirem valor de verdade e de sagrado. Narrar é uma forma de ordenar

a desordem, subjugar o desconhecido, anular o esquecimento, perpetuando a existência.5

A contaminação das narrativas originais por outras oriundas de culturas com que se

mantivessem contatos comerciais ou bélicos, por exemplo, acaba por diversificar a série de

eventos narrados.

O significado de ordenação cósmica não desaparece porque, a transmissão de

conhecimentos realizada, delineava narrador e narrativa enquanto mediadores das relações

efetuadas entre o mundo e os homens, operacionalizando uma ação de abrangência

totalizadora do real.

5 Há de se lembrar que, nos portos de embarque de escravos, havia a árvore ou portal do esquecimento. Homens e mulheres eram obrigados a dar, respectivamente, 9 ou 7 voltas ao redor deste e em sentido horário. As memórias, o passado, a cultura e a identidade eram ritualisticamente esquecidas, rompendo todos os vínculos, todos os laços de pertencimento. Deste modo, os cativos perdiam a condição de viventes, convertendo-se em mortos em vida.

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Nada escapava ao narrar, toda experiência narrada segue ao encontro do

reconhecimento. Os homens se reconheciam no ato de contar suas histórias. Recontá-las

infinitamente significava o domínio humano sobre o cosmo e a confirmação de que ele é

revelador de saberes, multiplicando-os. A linguagem é o meio pelo qual as coisas se

manifestam e adquirem significados. A realidade existe como tal porque o homem impõe às

coisas relações instauradoras de uma certa configuração.

Na medida em que as sociedades vão se tornando mais complexas, tornam-se

necessárias outras formas de mediação entre o homem e aquilo que o cerca. O canto, a

dança, a música, o gestual irão preencher lacunas deixadas pela narrativa. É na união do

corpo humano-natureza, que será reconfigurada a conjunção ancestral geradora do universo.6

1.2. - Atlântico: O lado de lá

Assim como todos os outros continentes, a África possui longa história7, geografias

peculiares que orientaram, muitas vezes, seus processos de ocupação e estruturas sócio-

políticas que nasceram, cresceram e desapareceram através de movimentos variados .

O deserto do Saara é um dos mais importantes marcos geográficos do continente.

Com área atual de 9 065 000 km2, pouco menor que a Europa, sua expansão, a partir do

período neolítico superior (2.000 a 500 anos a.C.) é responsável, à medida que se expande,

pela migração lenta e inconstante das populações circunvizinhas.

6 Nesse sentido, as experiências narrativas na diáspora revivificavam os cativos, anulando o ritual da árvore do esquecimento 7 Como o homem deu início a sua jornada no planeta neste local, podemos dizer que se trata da mais longa.

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1.2.1. - Os bantu

Figura 10: Expansão dos bantu na áfrica 3000 a.C. - 500 d.C.

- In: http:// www.africahjesempre.com/bantu.jpg

Antes de iniciarmos a caracterização dos bantu, cabe ressaltar que , partir a partir das

últimas décadas do século XX, pesquisas baseadas na análise do DNA podem contradizer as

solenes afirmações lingüísticas do século XIX, as quais nos apoiamos neste capítulo. Só para

se ter uma idéia da dimensão desta nova ciência, a “Genética Antropológica8”, pesquisadores

traçaram a existência do DNA mais antigo a mais de 60 mil anos atrás na África – provando

que a evolução humana começou muito mais recentemente do que se acreditava.

Ao passo que os estudos lingüísticos tomam por base a análise de fenômenos

culturais, biólogos, geneticistas e antropólogos passam a deitar a análise do genoma. Estas

pesquisas ainda principiam e causam polêmicas diversas que não nos cabe descrever. Assim,

8 Lançado pela National Geographic e pela IBM em abril de 2006, o Projeto Genográfico prevê a coleta de 100 mil amostras de DNA de indígenas de todo o mundo, para estudo da migração humana. Dez centros de pesquisa integram o projeto, sendo que oito já deram início às pesquisas na América do Norte, Europa, Ásia e África. No Brasil, o projeto será coordenado pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). (COM CIÊNCIA, 2006).

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os estudos tradicionais ainda são pertinentes e nos dão uma via mais segura para nossas

considerações.

Em 1862, o filólogo alemão Wilhelm Bleeck utiliza-se do termo bantu para designar

variados falares aparentados, nos quais a palavra que designa homens (ou povo) é

geralmente construída com o prefixo indicador de plural ba- e o radical –ntu (o singular é

muntu).

Figura 11: Principais troncos lingüísticos africanos.

- Percebe-se a extensão do tronco bantu. - In: http:// www.africahjesempre.com/lingua.jpg

Lingüistas como Joseph Greenberg, Malcom Guthrie e Bernd Heine irão, através de

estudos etimológico-comparativos, supor a existência de uma língua ancestral hipotética o

protobantu, da qual derivou o conjunto de cerca de 600 línguas faladas na região

subsaariana, em uma área que vai desde a fronteira entre Nigéria e Camarões até a África do

Sul. Não é demais atentarmos para a observação de SILVA (1992, p. 210):

(...) o conceito de protobanto é uma criação dos lingüistas e que não se pode falar em origem última, em sentido absoluto, de qualquer língua ou grupo humano - atrás de cada ancestral estão seus ancestrais (...)

Atentos a esta convenção, podemos distinguir a existência de um protobantu primevo

ou do noroeste e de outro secundário, ao sul.

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Pela recriação lexical, é possível perceber que esse povo era agrícola e dominava a

pesca, uma vez que há palavras que designam dendezeiro, legume, fava, azeite, bode,

galinha d’angola, cachorro, moita, matagal, anzol, fisgar, canoa e remo.

Por conta disto, deduz-se que seu habitat inicial seria semelhante à planície

Amazônica, com fartura de água, rios tranqüilos e bastante arborizados, provavelmente ao

norte e ao sul da selva congolesa.

À medida que avançam para o interior e para o sul do continente, travam contato com

tribos nômades e coletoras que são anexadas pela guerra ou por acordos escambo. A

população se miscigena, bem como o léxico e a sintaxe. Divergências internas provocam

rotas distintas de povoamento e o passar do tempo trata de diferenciar ainda mais as línguas.

Nos primeiros séculos depois de Cristo, chegam até a costa do Oceano Índico,

travando contato com povos indonésios, conhecendo, assim, a banana, o coqueiro e várias

espécies de inhame. Este tubérculo impulsiona sua agricultura pelos vales fluviais do Rufiji,

Lúrio, e Zambeze e, posteriormente para o interior da África. O coqueiro é rapidamente

adotado em todo o litoral juntamente com a banana, fruta que também se interioriza em

regiões de chuvas regulares.

Sem sombra de dúvidas, o contato e a disseminação destas plantas pelos bantu foram

decisivos na agricultura africana de terras úmidas, e, dada a importância delas para a

sobrevivência, estão presentes em todas as manifestações culturais sagradas ou profanas.

Nas comunidades jongueiras, relata-se que à meia-noite, ao mágico som dos

tambores, bananeiras germinavam e davam frutos como por encantamento, como relatou

Dona Luísa:

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Tinha vez que lá perto da fogueira,o finado Simão, o finado Zé Rosa, e o finado Cuca... eles eram velhinhos. Aí eles botaram um ponto que naquele toquinho de banana plantado perto da fogueira, de repente crescia aquela borracha[broto] e daqui a pouco aquela borrachaabria, dava banana e madurava por causa dos pontos que eles botava! Mas aquilo era só com só com eles... isso aí é dos cativeiros [negros que viveram a escravidão]. (TEOBALDO, 2003, colchete do autor)

Os jongueiros rememoram com as histórias de magia, a trajetória dos antepassados no

continente Africano.

1.2.2. - Dos Impérios à Diáspora

Com o intuito de dominar o comércio em toda região do Mediterrâneo, ocorrem,

durante o século VII, as invasões árabes na porção norte africana. As populações nativas são

subjugadas ou fogem para o Sul.

Atuando como fortaleza natural, o Saara permite o surgimento de Impérios negros

que irão contrapor-se ao domínio árabe: Gana (séc. X a XII), Mali (séc. XIII a XIV) e Songai

(séc. XIV a XV), todos localizados entre o Saara e o Sahel, zona de transição onde ocorre o

ecossistema natural chamado savana. Politicamente, esses três Reinos ou Impérios

alternaram seu domínio na medida em que um entrava em crise e o outro chegava a seu ápice

e, do ponto de vista econômico, controlarão as rotas comerciais de escravos, ouro e sal da

região.

O Império ganês é política e culturalmente complexo. Congrega uma grande

diversidade étnica em torno de um objetivo político comum: barrar o avanço dos

almorávidas para o sul da África. Apesar de a elite do Império converter-se ao islamismo,

todo o Império mantém suas práticas religiosas tradicionais: a islamização na região de Gana

foi superficial e atingiu sobretudo as elites dirigentes pois, estava em jogo a soberania

econômica na região do Mar Mediterrâneo.

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Figura 12: Império de Gana.

- In: KI-ZERBO, Joseph. História da África Negra I. Lisboa: Publicações Europa-América, s/d, p. 137.

O Império Máli, ou Sosso, como também é conhecido, projetava a ascendência da

etnia sosso com o consentimento, porém, das demais etnias da região, formando uma grande

federação étnica. Começa a entrar em decadência a partir do século XV, por causa do

acirramento da disputa mundial entre islamismo e cristianismo, de que resulta maciça

presença islâmica na África. Mas o cristianismo manifestará interesse em adentrar nestas

terras. Esta conjuntura regional provocará, por sua vez, brigas inter e intraétnicas que

instabilizam definitivamente o império.

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Figura 13: Império de Mali

- In: KI-ZERBO, Joseph. História da África Negra I. Lisboa: Publicações Europa-América, s/d, p. 165.

Mais bem organizado e estruturado que o império de Máli, Songai estava fundado em

torno da pessoa do imperador com definida estratificação social e vasta organização

burocrática: os altos funcionários (os koy, os fari), ministros e governadores das montanhas

(tondi-fari), feiticeiras (que tinham a permissão de se dirigirem ao imperador pelo nome),

entre outros, são nomeados e demitidos pelo imperador.

A formação do exército, dividido em vários corpos, reestruturou a sociedade. Sem ter

que ir, compulsoriamente, à guerra, o povo trabalhava na terra, na produção artesanal e no

comércio.

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Figura 14: Império Songai.

- In: KI-ZERBO, op. cit., p. 181.

Mais uma vez as guerras regionais e a conjuntura internacional vão intensificar a

prática da escravização no Songai. Agora, porém, a lógica própria da escravidão africana,

que permitia ao cativo a manutenção de sua identidade clânica e, em certos casos, exercer

funções de desataque na hierarquia da tribo onde era cativo, transforma-se, contaminada pela

visão euro-asiática de escravidão, que considera o cativo como coisa, um bem material entre

outros objetos. (SILVA, 1992)

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Figura 15: Diáspora africana.

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1.2.3. - A Teia Africana

As manifestações culturais dos escravos negros no Brasil não seguem o paradigma

ocidental, marcado pela divisão social do trabalho que modifica as relações entre os homens

e destes para com o conhecimento e a produção de mercadorias. Para tal divide-se em nichos

ultra-especializados à procura de maior eficiência. O trabalho especializado torna-se a

síntese de uma percepção da realidade não mais baseada no todo e na integração.

O consumo diviniza-se e comprar torna-se um fim em si próprio. Como sabiamente

aponta José Saramago em Ensaio sobre a cegueira, o futuro reserva a cegueira da alienação.

Na cultura ancestral africana, o universo articulava-se de modo cosmogônico, isto é,

em autocriação integrada: suas partes respondendo pelas relações entre os homens, a

natureza e os Deuses. De maneira oposta, a tradição judaico-cristã, da qual somos herdeiros,

dualmente faz a separação matéria-espírito. Na tradição estudada, essa dicotomia inexiste:

céus, terras, natureza, trabalho, homens, ancestrais e Deuses, todos interagem e se

complementam ou, nas palavras de DIAS, (2001, p. 866):

Num universo sacralizado, qualquer ação do homem ganha caráter ritual, direcionando-se para equilibrar a sua força vital com as demais energias do cosmo. E convivem em continuum o mundo dos homens, da materialidade, e o mundo invisível, dos ancestrais e divindades. Sendo, pois, a vivência do sagrado total e cotidiana, ela não exclui as emoções humanas, o prazer e a alegria: a fé com festa que tanto intrigava os cronistas.

Nas sociedades da África subsaariana, caracterizadas pela predominância da

oralidade, o detentor da palavra possui a função de ser o guardião das histórias e transmissor

do conhecimento de seu povo. A estrutura organizacional destas sociedades garante-lhe

poderes especiais, pois é através das suas palavras que os caminhos serão iluminados e que

as tradições são perpetuadas.

Cabe aos mais velhos esse papel, devido às experiências acumuladas durante sua

trajetória existencial, cabendo-lhes a obrigação de veicular o conhecimento aos mais novos a

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fim de perpetuar não só a cultura, como também a História, conforme nos relata PADILHA

(1995, p. 16):

O feito vivido - lutas internas, dissensões, genealogias, casamentos intertribais, criações de novos grupos clânicos, etc. - nas sociedades africanas não letradas passava a ter estatuto de fato contado e, com isso, preenchia-se o vazio lacunar da não escrita e a História se disseminava pela voz.

É nessa comunhão que o mundo passa a ter sentido e a sabedoria pode ser transmitida

para toda a comunidade. Ação coletiva, fruto dos diversos relatos aos quais se tem acesso, é

identificatória, pois, conforme diz BENJAMIN (1994, p 200), “o narrador é um homem que

sabe dar conselhos”.

Para a existência de um aconselhamento, faz-se necessária a aproximação entre a

vida e aquilo que se conta, tornando aquele que narra em sábio, em função de seus conselhos

serem tecidos “na substância viva da existência” (ibidem, p. 200).

Ronilda Ribeiro refere-se ao universo africano como uma imensa teia de aranha: “não

se pode tocar o menor de seus elementos sem fazer vibrar o conjunto. Tudo está ligado a

tudo, solidária cada parte com o todo. Tudo contribui para formar uma unidade” (1996, p.

41)

Essa unidade fundamental do universo realça o cuidado com a ecologia e com o bem-

estar das pessoas. Tanto o mundo natural, ecologia, quanto o mundo social, isto é, o bem-

estar das pessoas, está em harmonia no que tange a uma visão unificada do universo. Sem o

respeito e a preservação aos elementos naturais não é possível ter uma vida social saudável

e, inversamente, a vida social sã é impossível sem uma natureza também sã.

Tudo está em tudo. Tudo participa de tudo. Tudo influencia tudo. O todo é cada uma

das partes, cada parte participa do todo; é o todo. O todo é a unidade de todas as partes. As

diferenças, no esquema da autora, são respeitadas. O africano tem sempre em vista o

conjunto, o Universo do qual faz parte e do qual é dependente/interdependente. Ele é o

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Universo na medida em que faz parte de seu todo, e o Universo não existiria sem que o

Homem dele participasse.

A terra é lugar da celebração entre homens, ancestrais e natureza. Conforme nos diz

SILVA (2006, p. 41), “era guardiã dos mortos, a servidora dos vivos e a promessa dos

vindouros. Pertencia a todos eles, no tempo e na eternidade.”

Dessa forma, os territórios que passam de uma tribo a outra não perdem os laços com

o ocupante anterior. Pode existir, no seio da tribo ocupante, um descendente da etnia que

outrora habitava aquele solo e este será conselheiro com poder de veto. Caso não haja um

descendente vivo ou a terra conquistada agora já tenha pertencido a outro povo, são feitas

oferendas para os antepassados destes.

As cerimônias dos candomblés da Bahia e do Rio de Janeiro iniciam-se pela saudação

aos orixás africanos e aos caboclos, considerados como donos da terra. Na Umbanda

ocorrem ritos iniciais semelhantes e no Jongo, temos os chamados pontos de abertura, no

qual os antigos jongueiros são reverenciados.

1.2.4. - Religiosidade Bantu

Ao contrário do que se imagina, a religiosidade bantu é diversa da iorubana, ou nagô,

de maior visibilidade no Brasil por conta do Candomblé.

Para aqueles, o cerne da teogonia encontra-se no movimento da força vital. Todas as

coisas existentes são constituídas por energias que podem diminuir, ocasionando malefícios

para a coletividade, e devem ser mantidas em equilíbrio. A forca vital é, ao mesmo tempo, a

realidade última das coisas, o que as anima e a própria vida. Dessa forma, trata-se de uma

metafísica do dinamismo.

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Por se calcar na dinâmica e na coletividade, o pensamento bantu não se preocupa com

o problema da origem, da finalidade, da essência, do ser. Conforme nos mostra OLIVEIRA

(2003, p. 38):

Utilizando-se dos termos da própria filosofia européia, pode-se dizer que a filosofia banta é mais uma ontologia dinâmica que uma metafísica do ser. Na verdade a noção de “Ser” não tem correlato na cultura banto. Lá se fala em força.

A cultura dos bantu visa, dessa feita, encontrar meios para aumentar essa força e lutar

contra possíveis decréscimos, constituindo-se como filosofia da abundância e da

generosidade, na qual não há espaço para a culpa ou punições. Morrer significa a diminuição

da força mas, os ritos funerários funcionarão não como ato de despedida, e sim de ritual de

permanência: a energia do morto é transposta para a comunidade isto é, da esfera pessoal

para o âmbito coletivo.

Por isso canta Mãe Zeferina, jongueira do Quilombo de São José da Serra (2005):

Quando eu morrer Não precisa me enterrar Me joga na Paraíba Deixe as águas me levar A carne o peixe come O osso deixa afundar.

Os rios representam uma das moradas dos gênios da terra e da água, como veremos

adiante. A fusão corpo-rio (Paraíba do Sul), presente no terceiro verso, significa alcançar o

panteão dos ancestrais fundadores. A morte torna-se uma etapa do círculo da vida

continuamente em movimento. Vida e morte são fases de evasão e restituição da energia que

anima o universo:

O pensamento banto busca compreender e experimentar essa movimentação da vida. Por isso, os ritos funerários não enterram defuntos, mas geram ancestrais. O nascimento de um ancestral é um aumento qualitativo de Força Vital no mundo. Os rituais manipulam a Força Vital numa relação de troca contínua. O sacrifício de animais, a utilização de folhas, o uso dos minerais são elementos simbólicos constantemente ofertados porque plenos de energia vital.

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Um pacto de restituição e promoção da vida foi selado entre os ancestrais e seus descendentes. Vida é movimento. Para que haja movimento é preciso haver troca. Os sacrifícios e oferendas são as trocas essenciais para a restituição da energia vital. As trocas simbólicas são ritualmente controladas para que seus efeitos sejam pragmaticamente sentidos pela comunidade. (OLIVEIRA, 2003, p. 40)

Para os bantu da região do antigo Reino do Congo, a Força Vital é um elemento tão

incorporado no cotidiano que os nomes das pessoas ganham as insígnias desta energia: o

primeiro nome é o recebimento da dádiva da Força Vital. Do segundo nome em diante será o

acréscimo de todo feito realizado para aumentar a energia da comunidade e do Preexistente.

O indivíduo só terá outros nomes ao realizar façanhas que ampliem a energia vital do grupo

e, conseqüentemente, a própria.

Podemos dizer que a filosofia religiosa bantu estrutura-se conforme a seguinte

disposição rígida, não admitindo misturas:

• Ser Supremo e fonte da vida.: Nzambi, Zambiapungo, Mulunga, Unkululu;

• Fundadores do primeiro clã humano;

• Fundadores dos grupos primitivos;

• Heróis civilizadores;

• Espíritos tutelares e gênios da natureza: habitantes de lugares especiais como

os rios, lagos, pedras, fundo da terra, os ventos, as tormentas e exercem

controle sobre a caça, pesca agricultura e alguns aspectos abstratos da vida

humana como a alegria ou tristeza. Tais seres são essências, não possuindo

forma humana, da mesma forma que Nzambi;

• Antepassados qualificados: conseguiram ascender, por causa de seus feitos

notáveis, a uma condição de divindade, tornando-se ancestrais;

• Antepassados simples: preservaram-se humanos, mas se destacam pelo

empenho em aumentar a força vital de suas famílias e comunidade;

• Humanos vivos.

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O Ngombo, sistema divinatório, é a forma mais precisa de comunicação entre

humanos e antepassados. Basta sonhar para que a consulta ao Kambuna, adivinhador, se

torne necessária e, dependendo da resposta do Ngombo, ritos propiciatórios serão realizados.

É importante observar os rituais de matiz africana não separam o profano do sagrado

e a comunhão com o divino se dá através do canto e da dança. Se as religiões cristãs

necessitam de um templo para suas libações, bantu e outros povos de África terão na própria

natureza seu local de encontro com as forças metafísicas.

Com a escravidão, as relações entre o homem e a natureza são alteradas. Num

ambiente novo, sem a proteção da coletividade, com novas regras de condutas e a sujeição

ao eito, suas práticas identitárias serão refeitas.

1.3. - O lado de cá do Atlântico

Figura 16: Origens das nações Africanas no Rio de Janeiro.

- In: KARASH, Mary A vida dos escravos do Rio de Janeiro, São Paulo, Companhia das letras, 2000, p. 53.

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1.3.1. - Os negros no Brasil

Em 1584, segundo estimativas do Padre Anchieta, a Bahia contava com três mil

negros e o comércio escravista só se intensificaria com o passar dos anos, a fim de alimentar

a demanda da indústria açucareira e, posteriormente, o do ciclo minerador.

Negros originários da Guiné pertencentes, entre outras, às etnias mandinga, berbecim,

felupe, ashantis e berbere, genericamente conhecidos como bantu, constituíam a

predominância inicial devido ao domínio luso na costa da região congo-angolana. Esse

mercado se altera em 1725 com a mudança do ponto de irradiação de cativos para a Costa da

Mina e o envio de iurubás, jejês, nagôs, e também de etnias islâmicas como haussas, e

malês, inimigas das primeiras.

O negro escravizado não perde seus hábitos coletivistas, mas seus vínculos de

linhagem e família são quebrados: mortos na viagem, no cativeiro, separados entre diversos

compradores, com uma quantidade maior de homens adultos, por serem comercialmente

mais rentáveis do que crianças e mulheres, são raros os núcleos de africanos mantidos na

nova terra. Assim, conforme nos diz MOURA (1995, p. 20)

Aqui se torna necessário, uma vez que a cultura trazida é desprendida das formas sociais africanas, que sejam recriados os meios de convívio e organização da religião e fora da órbita de controle dos escravagistas, onde é proibida.

A própria sobrevivência do indivíduo escravizado dependia de sua repersonalização, da aceitação relativa das novas regras do jogo, mesmo para que pudesse agir no sentido de modificá-la, ou pelo menos de criar alternativas para si e para os seus, dentro das possibilidades existentes na vida dos escravos.

Pesquisas mais recentes dão conta que, a região compreendida entre o Gabão e o

norte da Namíbia, forma uma única zona cultural, não só por fazerem parte do grupo bantu,

mas por seus povos compartilharem das mesmas ideologias políticas e visões de mundo.

Tais descobertas movem o olhar de etnólogos, antropólogos e historiadores para o

fato de os diversos grupamentos tribais que chegavam cativos ao Brasil possuíam mais

afinidades do que outrora se imaginava. Como as línguas se aparentavam, é provável que a

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uniformização lingüística tenha-se dado a partir de uma língua oriunda da África,

provavelmente o kimbundu, e aprendida durante a viagem da diáspora e não o Português.

Tal fato significa que o processo de escolha temática e estruturação coletiva do Jongo

remete-se à rememoração ou reatualização das tradições ancestrais comuns a esses escravos.

Devido às trocas simbólicas na diáspora, tais elementos e situações vão se modificando para

se adequar às novas demandas.

A narrativa, como dissemos, se fazia necessária na etiologia isto é, na busca da

origem e causas da vida humana e, para os bantu essa narrativa viria carregada da

musicalidade. O missionário Karl Laman, ao pesquisar os costumes dos integrantes do grupo

kongo ao norte do Rio Zaire, diz que homens e mulheres “irrompem ao canto pelo mais

mínimo pretexto em qualquer ocasião” (The Kongo, vol. IV, pp. 83-4; apud SLANES 2008,

p. 126).

Ele também percebe que os corifeus compositores de novos versos são respeitados,

acenando para a cumplicidade necessária entre assistência e solista. A habilidade no canto

não se restringia às atividades lúdicas ou religiosas, uma vez que estava presente nas

demandas jurídicas, envolvendo desafio e réplica, conforme Willian Holman Bentley:

Nos tribunais as canções transmitiam advertências, instruções e admoestações, assim como também alusões ao andamento e desfecho do caso. Freqüentemente um homem [enfrenta] outros homens que cantam e agitam seus chocalhos (apud SLANES, 2008, pp. 126-7)

Como os cativos em África passavam cerca de três anos juntos antes da seleção e

embarque rumo ao Novo Mundo (MUKUNA 2000), havia tempo hábil para permitir a

construção de um estoque cultural entre os escravos que já chegavam, por exemplo, falando

uma ou várias línguas comuns, seja kikongo, kimbundu ou umbundu, usadas no comércio de

escravos, sendo que estudos mais recentes indicam a proeminência da primeira como o

idioma falado nas senzalas do sudeste. (SLANES, 2008)

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Figura 17: Mapa da África Central ocidental:

A fronteira da escravização 1830-50 e grupos lingüístico-culturais. - In: (SLANES, 2008, p. 119)

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1.3.2. - O Rio de Janeiro

Diferentemente do que ocorre na Bahia, a partir da conquista da Costa da Mina o Rio

de Janeiro recebe seu maior contingente de escravos do centro-oeste africano, região

habitada por nações do tronco bantu. Segundo KARASH (2006, p. 58) “pelo menos dois

terços dos africanos que viviam no Rio tinham suas terras natais no centro-oeste africano.”

Após 1830, o eixo desloca-se ligeiramente para a direção da África Oriental e a região de

Moçambique passa a responder com cerca de 25 a 30% de escravos. Os negros da África

Ocidental, de origem iorubana ou islamizados, não passam, até 1850, de sete por cento do

total.

A partir de 1808, com a chegada da Família Real, a cidade torna-se centro do poder

político. Com a decadência da indústria açucareira e os ciclos da mineração e café no

Sudeste, acompanhada pelo fim do tráfico negreiro em 1857, a Bahia passa a vender a maior

parte do contingente negro para as Minas Gerais e, posteriormente, para a região cafeeira do

Vale do Rio Paraíba do Sul fluminense e paulista.

O ciclo do café também move grande parcela de escravos urbanos do Rio para a

região do Vale do Paraíba e, após 1850, epidemias de febre amarela e cólera dizimam um

número tão grande de escravos que os sobreviventes são enviados para o interior para que o

prejuízo de seus donos não fosse total.

A feição negra da cidade, com seus escravos e libertos, muda radicalmente: o trabalho

urbano, outrora realizado quase exclusivamente por negros, passa a ser realizado, em sua

maioria, por imigrantes brancos ou nativos pobres.

Há, com a Abolição, uma nova reviravolta na vida do negro. Seu posicionamento

como escravo, longe de ser cobiçado, consegue piorar: entregue à concepção liberal de

trabalho livre, sem salvaguardas governamentais e acesso aos requisitos mínimos da

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cidadania (educação, moradia, saúde e participação eleitoral). Disputam, no ambiente

urbano, as poucas oportunidades de trabalho com brancos na mesma situação.

O preconceito racial e a dificuldade de competição no mercado de trabalho fazem

com que grande parte deles se incorporem à massa de desocupados e vivam do subemprego

ou na marginalidade.

1.3.3. - A Territorialidade e o Jongo

Originário dos batuques e danças de rodas da tradição Bantu, o Jongo apresenta-se

como dança comunitária de origem rural que remonta à época da escravidão. Pesquisadores

do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional - IPHAN, registram, em 2004,

cerca de 15 comunidades jongueiras nos estados de São Paulo, Espírito Santo e Rio de

Janeiro. Mas percebem indícios de que haveria aproximadamente 20 comunidades e cerca de

25 grupos.

Dentre as comunidades catalogadas, destacamos o Jongo de núcleos do Morro do

Carmo e Bracuí (Angra dos Reis) - RJ, Barra do Piraí - RJ, Campelo (Bom Jesus de

Itabapoana ) - RJ, Miracema - RJ, Pinheiral - RJ, Santo Antônio de Pádua - RJ, Serrinha

(Rio de Janeiro) - RJ, São José da Serra (Valença) - RJ, Guaratinguetá - SP, Cunha - SP,

Piquete - SP, São Luís do Piraitinga - SP, Lagoinha - SP e Taubaté - SP.

Sempre situado num panorama adverso, o negro brasileiro guardou um traço

fundamental das culturas africanas e que lhe garantiu a possibilidade de reconstruir novos

laços identitáros e de solidariedade: a relação coletiva com a terra.

Conforme já dissemos, para os povos de África, a relação entre a o homem e a terra

se dá de modo coletivo. Na diáspora a posse da terra é vedada, mas os cativos constroem,

tomam posse e defendem o terreiro, espaço de chão batido enfrente às senzalas, onde se

canta e dança.

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O terreiro difunde e recria, através de suas atividades, não uma cultura monolítica,

mas conhecimentos, concepções filosóficas e estéticas, formas alimentares, música, dança:

um patrimônio de mitos, lendas, refrões, em constante recriação, pois são respostas às

demandas da realidade vivenciada por negros reunidos no cativeiro.

É pólo irradiador de complexo sistema cultural no qual as manifestações orais,

histórias sagradas, contos, adivinhas, lendas, expressões do canto, constituem um de seus

elementos, que deve ser compreendido em função do todo, isto é, do momento em que

ocorrem, dos partícipes, os instrumentos utilizados e demais nuances.

À medida que as repressões aumentam, o negro abriga-se na roda para cantar,

dialogar, e discutir a reconquista do terreiro e da liberdade, como mostra esse ponto de

Guaratinguetá:

Foi na beira do mar Eu vi ogum guerrear Ele jurou bandeira Ele tocou clarim Com seu exército todo Ele lutou por mim (DIAS, 2001, p. 874)

Disto sabiam as tias baianas do início do século, sendo Ciata a mais famosa delas.

Também eram sabedoras do segundo pilar das tradições africanas: a família. Não se trata da

noção ocidental e/ou burguesa de família. Para as comunidades de terreiro, os membros da

família não só possuem laços consangüíneos, mas espirituais.

A casa está sempre aberta e acolhe a todos que a procuram, tornando-se núcleo de

resistência e abrigo. Todos, em vida comunitária, comungam e partilham o pão, as dores,

tristezas e alegrias e reavaliam seus códigos comunicativos.

TEOBALDO (2003, p. 11) ao perceber que, a partir de 1970, ocorre a fragmentação

na vida social das comunidades do trecho entre Campos e Paraty, desalojadas por conta da

especulação imobiliária, mostra que tal fato “exigiu das culturas orais-rítmicas como Jongos

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- que têm seus fundamentos assentados nos laços familiares - uma reavaliação urgente de

seus códigos de comunicação”.

A migração para a cidade provoca, nestas culturas, a incorporação de novos temas no

seu universo, a fim de serem mantidas as suas funções:

Não há outra forma de compreender as culturas de terreiro, se não pela sua utilidade. Cantos de trabalho, terços cantados, rodas de Jongo, tudo isso é utilitário. Simplesmente porque é necessário. Socializa ações. Comunga identidades. (...) a cultura oral sobreviveu e ainda sobrevive, como no caso do Jongo rural de Angra dos Reis, porque aprendeu a superar os limites geográficos ou políticos que poderiam enfraquecer a sua resistência. (TEOBALDO, 2003, p. 12)

As culturas de terreiro narram, segundo princípios de uma estética singular, as

transformações sofridas nas suas realidades particulares. Na comparação entre elas pode-se

perceber as semelhanças e diferenças de seus processos de identificação e resistência.

As ferramentas tradicionais de análise literária, porém, não nos permitiriam observar

tais fenômenos, uma vez que constroem sentidos a partir de relações singulares calcadas na

territorialidade, nas relações familiares, na cosmogonia, ancestralidade e no encantamento.

Figura 18: Mestre Gil, de Piquete e Dona Zezé Machado, jongueira de 84 anos.

- In: www.mauxhomepage.com/imagens2/jongo002.jpg

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Figura 19: Mapa do Espírito Santo e regiões de ocorrência de Jongo (adaptado).

- In: SILVA, 2006, p. 13. Base Cartográfica IBGE 2000. Projeto Geográfico e Cartográfico by Geog. Rafael Sanzio A. dos Anjos - CREA 15604/D - Projeto Geografia Afro-Brasileira - Centro de Cartografia Aplicada e Informação Geográfica. Apoio Técnico: Marcelo Silva e Adailton da Silva - Deptº de Geografia - Universidade de Brasília. Brasília - DF. 2006. E-mail: [email protected].

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Figura 20: Mapa do Rio de Janeiro e regiões de ocorrência de Jongo (adaptado).

- In: SILVA, 2006, p. 20. Base Cartográfica IBGE 2000. Projeto Geográfico e Cartográfico by Geog. Rafael Sanzio A. dos Anjos - CREA 15604/D - Projeto Geografia Afro-Brasileira - Centro de Cartografia Aplicada e Informação Geográfica. Apoio Técnico: Marcelo Silva e Adailton da Silva - Deptº de Geografia - Universidade de Brasília. Brasília - DF. 2006. E-mail: [email protected].

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Figura 21: Mapa de São Paulo e regiões de ocorrência de Jongo (adaptado).

- In: SILVA, 2006, p. 15. Base Cartográfica IBGE 2000. Projeto Geográfico e Cartográfico by Geog. Rafael Sanzio A. dos Anjos - CREA 15604/D - Projeto Geografia Afro-Brasileira - Centro de Cartografia Aplicada e Informação Geográfica. Apoio Técnico: Marcelo Silva e Adailton da Silva - Deptº de Geografia - Universidade de Brasília. Brasília - DF. 2006. E-mail: [email protected]

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CAPÍTULO 2: SOB O SOM DO TAMBU

Não se pode considerar as manifestações de origem africana, bem como suas

ressignificações em território brasileiro, sem percebê-las em sua totalidade. O pensamento

analítico ocidental, como já dissemos, é poucas vezes capaz de percebê-las integralmente, ao

dividi-las em partes no momento da análise.

Afirmamos aqui que o movimento descritivo que ora realizaremos sobre o Jongo, ao

ilumina-lo o destrói. A escrita não é capaz de apresentar a multiplicidade de temas,

referências, alusões, gestos e entonações que são invocados durante uma roda de Jongo.

Sabedores de nossos limites, é nosso dever descrever o Jongo e suas múltiplas significações.

2.1. - O Jongo

O Jongo mata, Jongo não é brincadeira, o Jongo é das almas, e é importante que a senhorinha saiba que está conversando com uma pessoa do santo, eu sou do santo, aquilo ali é a casa das Almas e casa de Exu. É difícil eu me encanar, sabe, se eu lhe disser que sois linda é porque é, talvez não lhe diga que és linda porque é falta de princípio, mas também não lhe digo que és linda, fico na minha. Então o seu interesse de pesquisar é mais para ter patenteado, ter gravado como arquivo a declaração de a, b, ou c, mas não é maior no sentido da palavra. Mas como diz o baiano, ‘não é buruburu de ofidam’ diz ele , burro, burra, burra. Estou lhe falando de cadeira, estou lhe autorizando, estou lhe dando autorga, me desminta, me chame de mentiroso se puder. O Jongo é das almas, o Jongo deve ser iniciado à meia noite, o Jongo exige uma fogueira, nesta fogueira uma vasilha com algo dentro, deve ser acesa uma vela, ao lado desta vela um copo d’água virgem, liso. O Jongo deve ser dançado com a indumentária branca, na falta de branca, alva. Mas eu tenho medo, sem força de expressão, o Jongo deve ser dançado descoberto, se é homem descoberto. São três atabaques em ordem crescente segundo o tamanho, candongueiro é pequeno e tem o som bem agudo, depois o angoma puíta, e depois desse o caxambu. Porque caxambu não é dança, não é ritual: o caxambu é um instrumento, e o ritual é o Jongo. O Jongo é pai de muitas outras músicas que existem por aí, o Jongo é pai de tudo isso ou mãe. O Jongo é muito respeitado, o Jongo mata, o Jongo carece até de cabeças maduras, pelo seguinte motivo: o Jongo é deitado no metá-metá, o linguajar do caboclo e eu falar consigo dirigindo-me a ele. E tem que saber desamarrar, desatar aquilo, entender que é consigo o que eu estou falando. (apud MOURA, 1995, p. 139)

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O depoimento de Aniceto do Império9 nos dá a dimensão que o Jongo possuiu, e

ainda possui, para as comunidades negras onde se manifesta: é elemento de reunião,

divertimento, mas também carrega força mística, unindo homens com a religiosidade.

2.1.1. - O Jongo e o Caxambu.

O Jongo não era dançado em data específica: poderia ser ao final da colheita do café,

em homenagem a pessoa importante, ou nas grandes festas, geralmente religiosas, tais como

São Sebastião, Nossa Senhora do Rosário, São José, São Jorge, 13 de maio e festas juninas,

em pagamento de promessa do santo de devoção, como demonstra o ponto de Darcy

Monteiro10:

Bendito louvado seja, é o rosário de Maria. Bendito louvado seja, é o rosário de Maria. Bendito pra Santo Antônio, bendito pra São João, senhora Santana, saravá meu “zirimão”. Saravá angoma-puíta, saravá meu candongueiro, abre caxambu, saravá jongueiro. Bendito louvado seja meu “zirimão”, agora mesmo que eu cheguei foi pra saravá. Bendito louvado seja Senhora Santana, agora mesmo que eu cheguei foi pra saravá. (JONGO DA SERRINHA, 2001)

RIBEIRO (1960, p. 8), observa que:

o.Jongo se dança em terreiro e note-se essa denominação, que também serve para os locais onde se praticam ritos feitichistas, macumbas, Candomblés, etc. Essa é uma das indicações do sentido religioso da dança..

Como prática afrodescendente, comunga o aspecto cosmogônico da relação entre os

seres, na qual é impossível estabelecer fronteiras firmes entre o sagrado e profano.

9 Aniceto de Menezes e Silva Junior um dos fundadores da Escola de Samba Império Serrano e morador da Comunidade da Serrinha. 10 Posteriormente conhecido como Mestre Darcy, será o principal introdutor de mudanças no Jongo,como a presença de crianças, primeiro da Serrinha e que depois irão espalhar às demais comunidades.

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Mais um ponto desta conexão sagrado-profano está na informação que Dona

Laurides, jongueira de Barra do Piraí, dá à equipe de pesquisadores do IPHAN: no final de

novembro até a quaresma, os tambores estão fechados, não se podendo tocá-los. Na

Umbanda e no Candomblé ocorre o mesmo preceito.

Ao contrário da fala de Aniceto, atualmente há consenso entre as comunidades

jongueiras em considerar sinônimos os termos Jongo e Caxambu, sendo esse último

largamente utilizado nas regiões do Vale do Paraíba Fluminense e Paulista.

2.1.2. - Os participantes

Em uma roda, os participantes são a assistência, composta por convidados da

comunidade ou, atualmente, espectadores comuns, os instrumentistas e os jongueiros

dançarinos. Não eram admitidas crianças e os mais jovens ficavam de fora observando. A

roupa, branca ou alva, poderia ser especialmente reservada para a atividade ou ser roupa

comum. Os pés, descalços em contato com o chão de terra batida. As mulheres sempre

usavam saia rodada.

2.2. - O som do tambu

Perceber o tambor como um dos principais elementos da cultura afro-brasileira nos

leva a uma viagem no tempo e no espaço. Não se pode pensá-lo como produto genuíno de

um povo sob pena de isolá-lo, apagar sua história, catalogando-o como simples bem

material. Sua existência e função primeva relacionam-se com a necessidade de o ser humano

integrar e superar a phisis, isto é, a matéria, a natureza explícita.

Por esse motivo, tambor, para o negro africano torna-se elo relacional entre os planos

terreno e metafísico, pois agrega a força vital do animal que fornece o couro, do vegetal que

cede a madeira e a da terra, que fornece o alimento para os últimos e a fixação de tudo com o

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uso de minerais metálicos. Por último, o fogo, além de ser utilizado para escavar o tronco, é

fundamental para garantir a afinação do couro.

Como bem afirmou Délcio Teobaldo11, o tambor é vazio, oco por dentro. Abre-se a (e

para) uma nova dimensão absorvendo e transmitindo as energias armazenadas nele e da

comunidade que o invoca.

Dessa recombinação emerge um ser de energia plena, capaz de encapsular a alma dos

antepassados e a essência das divindades: É a partir do toque dos atabaques que será possível

o transe, (re) ligação entre os planos da existência.

A presença dos tambores, porém, não se restringe ao universo estritamente sagrado:

O som dos atabaques também ecoa nas festividades profanas visando diversão,

fortalecimento dos laços sócio-econômicos, de amizade e união.

A Arqueologia registra o aparecimento de tambores durante o período neolítico. Um

tambor encontrado na escavação na Morávia12, foi datado de 6.000 anos antes de Cristo e na

antiga Suméria13 com a idade de 3.000 a.C. Tambores com peles esticadas foram descobertos

dentre os artefatos egípcios, a 4.000 a.C.

No sudoeste africano, evidências pré-históricas dão conta do uso de peles de peixes e

répteis, colocadas na boca de troncos ocos que eram percutidos com as mãos. Com o passar

do tempo, peles de mamíferos como burros, ovelhas, cabras, passam a ser empregados. Tais

materiais, além de mais abundantes, produziam efeito sonoro de maior potência e eram mais

resistentes que os feitos com animais aquáticos, permitindo o uso de varetas.

11 Informações colhidas durante ciclo de palestras: Jongá, cantos de trabalho e orgia, no auditório da Caixa Cultural, Rio de Janeiro, entre 06 e 20 de novembro de 2007. 12 Área da atual República Tcheca. 13 Onde atualmente localiza-se o Iraque.

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Para a fixação das peles, pregos e/ou cordas eram utilizados, bem como cola de resina

vegetal ou animal. A afinação torna-se possível pelo uso de cunhas nas cordas ou, como

dissemos, através do aquecimento do couro em fogueira.

2.2. - Da África para a diáspora

O desenvolvimento da metalurgia e das técnicas de esculpir, na África e na Arábia,

permitem o surgimento de uma gama variada de formatos, tamanhos, materiais e dimensões,

possibilitando uma multiplicidade tonal de cada tambor, que passa a receber várias

denominações.

Com a diáspora africana, mais uma vez esse panorama transforma-se: No cativeiro, o

negro, para reconfigurar sua identidade, reconstrói os elementos básicos desta representação.

Os tambores passam a ser construídos a partir de barricas e troncos de árvores

(re)descobertas.

Tornam-se necessárias novas formas de mediação entre o homem e as coisas que o

cercam e isto reflete-se na religiosidade: o panteão de divindades no Brasil é extremamente

reduzido se comparado às nações africanas de origem iorubana ou bantu. Temos Orixás

essencialmente guerreiros.

Desse modo, a valorização do caráter festeiro dos negros, comum na antiga

historiografia do Brasil escravista, oculta a fortíssima e engenhosa matiz de resistência

manifestada através da música dos tambores (a capoeira e maculelê não eram simplesmente

danças inocentes), do canto (invocavam-se os orixás relacionados à luta, além de se

combinarem rebeliões em festas profanas como o Jongo) e da gestualidade da dança. A

união ancestral geradora do universo é reestruturada em função da situação objetiva do

cativeiro, superando-o.

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Se o corpo é cativo, o imaginário, ente intangível, coletivamente constrói saberes,

ofícios, modos de fazer, lugares e formas de expressão.

2.2.1. - Tambu no Jongo

Oi Tambu, oi tambu Quando eu for me embora pra bem longe Quando eu for me embora pra bem longe, eu levo comigo Ah esse som bate forte em meu coração Tim tim tim tim tim , oi tambu Tim tim tim tim tim oi tambu

Tanto esse ponto cantado pela comunidade de Guaratinguetá, quanto o relato de

Totonho14, um de seus jongueiros, mostram a importância vital do tambor para as

comunidades negras:

O tambor é realmente um instrumento muito respeitado no Jongo. Porque ele recebe um nome, também significa como se fosse um orixá pra gente ali. Então ele tem que ser saravado, ele tem que ser respeitado, ele tem que ser cumprimentado na roda de Jongo, porque ele é um respeito. Sem o tambu o Jongo não sai. (...) É o tambu que fala. E a gente transmite tudo que pode através do som pra eles lá. É uma mensagem. (DIAS, 2001, p. 870)

A quantidade de tambores no Jongo é assunto controverso. Grande parte dos

pesquisadores indica que são dois ou três os tambores do timbre grave para o agudo.

Délcio Teobaldo, no entanto, afirma que originalmente havia apenas um único

tambor. Os demais timbres seriam executados com uma tabla de folha de bananeira seca

percutida diretamente no chão, ou com uma vara de madeira batida diretamente no corpo do

tambu, prática ainda realizada por várias comunidades.

Ressalta ainda que, dadas as condições de sujeição dos escravos no eito, era

impossível, na prática, conseguir escavar, em madeira, dois ou três tambores diferentes e

prepará-los sem a perda de desempenho produtivo dos envolvidos com esta tarefa. Ele

percebe que a constante reiteração dos entes que compõe a comunidade de terreiro, o mais

14 José Antônio Marcondes Filho.

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novo, o mais velho e o ancestral, fez com que essas três vozes, primeiramente existentes no

plano simbólico, fossem relacionadas, posteriormente, aos tambores.

Não existem provas documentais ou relatos que corroborem sua argumentação; ela é

calcada no aspecto pragmático da vida sob o cativeiro. Além disso, muitos jongueiros

informam existir uma série de preceitos de cunho religioso na confecção de um tambor que

vão desde a lua certa para se derrubar a árvore15, o tempo de secagem, o momento de se

matar o animal que fornece o couro.

A atual literatura sobre o Jongo, sobretudo os relatos nas pesquisas de Stanley Stein

mostram que, quando era dada permissão para o Caxambu, escravos e negros-forros de

várias regiões compareciam às rodas. Podemos especular que seria perfeitamente provável

que levassem seus instrumentos.16

Divergências à parte, a denominação genérica do tambor da área dos bantu é

angoma17. Essa palavra deriva do termo ngoma, oriunda do kimbundu ou kikongo. Por

ampliação, a própria roda de Jongo, às vezes, recebe esse nome.

O tambu, maior de todos, apresenta outros nomes dependendo da região, como

caxambu, papai, ou guanazamba. As madeiras preferidas para sua execução eram suinã,

canjerana, bico de pato, orelha de negro, ou algumas espécies de cedro. Escavado, tem

comprimento de 80 centímetros (mais utilizado por razões acústicas) até mais de 1,5 metros

e cerca de 40 centímetros de diâmetro.

15 A confecção de um tambor é um grande segredo. Os jongueiros velhos sempre desconversam e os mais novos dizem não saber como fazê-los. Ouvi de vários jongueiros que não se cortava a árvore, deveria esperar que ela caísse. 16 Uma das coisas mais espetaculares da pesquisa nas tradições orais negras é o fato de que uma série de elementos permanecem ocultos, aguçando a imaginação e a curiosidade. 17 Também chamado de ingoma, engoma, angona, angomba

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Normalmente, o tambu é colocado no chão, e o tocador monta nele, percutindo-o com

as mãos. O couro é molhado com pinga, de maneira carinhosa, e aquecido na fogueira para

manter a afinação.

Candongueiro é o nome dado ao tambor médio medindo entre 40 a 60 centímetros e o

menor chamado de guzunga ou cadete. A confecção destes é semelhante à do tambu.

Figura 22: Jongo de Porciúncula.

- In: http://www.flickr.com/photos/lulassant3 - Foto: Luis Santana

Algumas comunidades18 utilizam-se da puíta ou angoma-puíta: Uma barrica, sem fundo,

encourada na boca. No seu interior, preso ao centro do couro, há um pequeno cilindro de

madeira ou bambu, friccionado com um pedaço de pano úmido ou com a própria mão molhada,

com isso se consegue um som surdo, por isso é conhecida como boi ou onça. Seu tocador é

também chamado de maquinista. É a precursora da cuíca.

18 A comunidade de Santo Antônio de Pádua é uma das poucas que vi utilizando-a.

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Além disso, também já foi observado a presença da guaiá, inguaiá, ingolá ou angraiá, um

chocalho em formato cônico com seixos no seu interior e confeccionado de várias maneiras em

função da disponibilidade material19.

Atualmente, várias comunidades utilizam-se de instrumentos industrializados, como o

Jongo de Piquete; no interior paulista, porém, a maioria das comunidades possui e utiliza

instrumentos artesanais.

Figura 23: Tambu e tablas de bananeira de Délcio Teobaldo.

- Foto: Renato de Alcantara

Figura 24: Tambores do Jongo do Tamandaré.

- Foto: Renato de Alcantara

19O Jongo de Pinheiral, por exemplo, faz uso desse instrumento.

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Figura 25: Oficina de tambu no 12º Encontro de Jongueiros em Piquete - SP.

Em abril de 2008. - Foto: Renato de Alcantara

Figura 26: Esticando a pele. - Oficina de tambu.

12º Encontro de Jongueiros em Piquete - SP, abril de 2008.- Foto: Renato de Alcantara

Figura 27: Tambores são afinados na fogueira.

- In: JONGO NO SUDESTE, Brasília: IPHAN, 2007 (Dossiê IPHAN 05, p. 43). Foto: Thiago Aquino.

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2.2.2. - A dança

Dispostos em círculo, os jongueiros movimentam-se no sentido anti-horário20. O

primeiro passo sempre é dado com o pé direito acompanhando a batida do tambu. Segundo a

descrição de RIBEIRO (1960) e GANDRA (1995), podem executar os seguintes passos

A) Jongo de roda: Os pares dançam em conjunto na própria roda, obedecendo a mesma

coreografia;

B) Jongo carioca ou de corte: Enquanto a roda se desloca, um par dança no meio dela. É

o mais executado nas apresentações atuais, já que facilita a observação de

espectadores;

C) Jongo paulista: Os dançadores movimentam-se num ajuntamento compacto,

realizando, simultaneamente, a coreografia do Jongo de roda.

Os dançarinos, conforme observa RIBEIRO (1960, p.47), “fazendo um balance de dois

ou três passos e viram à direita e esquerda” numa espécie de simulação de abraço. Um casal

realiza, no centro da roda, um solo até que seja substituído por outro.

É importante ressaltar que tais descrições funcionam apenas como um esquema dos

possíveis movimentos ou configurações que os participantes poderiam executar, uma vez que a

espontaneidade era e ainda é, a marca fundamental no bailado.

Figura 28: Jongo. Artesanato de Maria Luiza Santos Vieira, de Taubaté - SP.

- In: JONGO NO SUDESTE, Brasília: IPHAN, 2007 (Dossiê IPHAN 05, p. 2) Acervo do Museu de Folclore Edison Carneiro. Foto: Francisco da Costa.

20 O sentido é o oposto ao do realizado no ritual da árvore do esquecimento, conforme falamos (Cf nota 5).

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Figura 29: Oficina de Jongo da Dona Su, Cabo Frio - RJ, em 13 de Julho de 2008.

- Foto: Renato de Alcantara

2.2.3. - O ponto21

Do mesmo modo que na Umbanda e no Candomblé, o cântico entoado pelo jongueiro

chama-se ponto. Ao contrário das primeiras, no Jongo há somente os símbolos orais e,

portanto, pode ser falado ou cantado primeiramente pelo solista, com versos livres

improvisados e tem o refrão respondido por todos.

Deve-se atentar para o fato de os jongueiros utilizarem as expressões tirar ou jogar

um ponto quando se referem a iniciar o canto. Entendemos tal procedimento situado no

código de coletividade que a roda exige: Ninguém o faz. Fazer significaria ato solitário e

individual e a dinâmica do processo não fixa autores e sim o próprio grupo. Dessa forma, a

autoria dos pontos não é mais importante do que nenhum dos partícipes que precisam

reconhecer nele a força de fazer a roda girar.

21 Durante trabalho de campo em Barra do Piraí, alguns jongueiros rechaçaram este nome, preferindo o termo Jongo. Algumas justificativas procuravam afastá-lo das práticas religiosas. Era o meu primeiro contato com os Jongueiros de Barra, e fui advertido incisivamente. Argumentei que a literatura e vários jongueiros utilizavam o termo, mas não os dissuadi. Porém o incidente não atrapalhou o ambiente cordial e receptivo de nosso contato, característica comum às comunidades jongueiras.

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Além disso, quando se “tira” algo é porque ele já existia, era imanente à comunidade

que comunga, toma parte do que é dito. Jogar está no campo semântico da diversão e, ao

mesmo tempo da destreza. Só joga aquele que bebeu bastante da tradição jongueira,

aprendendo e apreendendo seus mistérios, preceitos, metáforas e malícias.

Cheguei na angoma

Tinha muita diferença

Quero cantar meu pontinho

E meus pais velhos dão licença.

Tia Luiza e os demais jongueiros de Angra dos Reis costumam abrir assim suas

rodas. Avisam que chegaram para o Jongo e pedem licença aos mais velhos. É um ato de

respeito às regras de comportamento.

Quando algum jongueiro deseja cantar outro ponto, interrompendo o anterior, grita:

“Machado!” ou “Cachuêra!”. Ambos são elementos de corte, interrupção. Os tambores

imediatamente se calam e a dança cessa até que se tire um novo ponto.

No período escravista, o espaço criado com a dança no terreiro representava um raro

momento de comunicação da comunidade cativa. Todas as mensagens de apelo, críticas

articulações e pedidos eram executados através do ponto que, metaforicamente, se torna

ímpar ao tirar partido da percepção de a cultura hegemônica considerar o negro incapaz de

maiores refinamentos expressivos:

Junta, junta mosquito-polva Marimbondo chegou agora.

Era desse modo que os escravos sabiam que algum outro cativo estava sendo

castigado e corriam para acudi-lo, conforme relatou uma jongueira de Santo Antônio de

Pádua, infelizmente não identificada (INVENTÁRIO DO JONGO DO SUDESTE, 2005).

Mas o ponto nunca converge para uma única direção, uma vez que nele passam

infinitas retas. Deste modo, podemos ler a metáfora do ponto de outro modo: apesar de ser

diminuto e frágil, por isso comparado aos escravos, o mosquito-pólvora ou maruim,

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endêmico nas regiões de manguezal, possui uma picada dolorosa que provoca inchaço e, em

alguns casos, febre.

Em oposição a ele, está o marimbondo, representação do feitor ou do Senhor. Muito

maior que o mosquito e dono de um ferrão que inocula veneno poderoso, tem hábito

solitário. O ponto exorta a união guerreira dos pequenos contra o grande opressor.

A linguagem dos jongueiros é dúbia, com imagens aparentemente simples, tomadas

da realidade próxima (natureza, plantas, o trabalho da roça, os animais). O sentido atribuído

a entes é movediço, pois as decifrações dos códigos cantados eram exclusivas às

comunidades, vigiadas continuamente por feitores, intendentes ou por brancos que se

aproximavam da roda para buscar diversão, como nos informa D.ª Zé, jongueira de

Guaratinguetá (apud DIAS, 2001, p. 875):

os escravo, num podia comunicá com ninguém, eles não tinha liberdade, né? Então, quando eles entrava na senzala é que eles iam participá um co outro. Então, no meio eles faziam a roda de Jongo e, ali, cada um cantava o Jongo falando o que queria falá, mas sobre... pela canção. Daí, um entendia o que tinha que sê feito. As vezes o que se passô no dia, o que ia acontecê. Então, um já avisava o outro. E, era por meio de ponto de Jongo que era comunicado as coisa.

Algumas danças de escravos, como o lundu, chegavam aos salões da casa grande. Do

lado de fora, ganha corpo e se desenvolve uma poética de compreensão interna que ainda

hoje se atualiza nos obscuros pontos de jongo.

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CAPÍTULO 3: A TRADIÇÃO.

3.1. - Definição de tradição

Como definir tradição? A questão, espinhosa, resvala em vários outros conceitos

contíguos a este. Gerd Bornheim, levantando sua etimologia diz que

vem do latim: traditio. O verbo é tradire, e significa precipuamente entregar, designa o ato de passar algo para outra pessoa, ou passar de uma geração a outra geração. Em segundo lugar, os dicionaristas referem a relação do verbo tradire com o conhecimento oral e escrito. Isso quer dizer que, através da tradição, algo é dito e o dito é entregue de geração a geração. (BORNHEIM, 1987, p. 18)

A construção de uma tradição é um ato coletivo, comunitário. Se a tradição ocorre em

um passado, sua feitura e aperfeiçoamento são processuais e permanentes, estando em

choque constante com a novidade. Dessa forma, o movimento é uma necessidade inerente à

tradição, mesmo que isso não seja percebido externamente.

Como exemplo, podemos verificar a existência cada vez menor de pontos de desafio

ou gurumenta no Jongo ou sua linguagem ser menos cifrada que à época da escravidão.

Mudam-se as diversas variáveis sociais com que as comunidades estão em contato e, as

tradições irão, paulatinamente responder a estas mudanças.

Eduardo Granja Coutinho, ao estudar o sentido de tradição na obra de Paulinho da

Viola, faz distinção entre as definições de tradição e tradicionalismo. Segundo ele, tradição,

para estar viva, deve articular organicamente o sujeito e o objeto, “o povo e seu patrimônio

histórico-cultural” (2002, p. 15). Já o tradicionalismo procura “neutralizar o aspecto cultural

da tradição, ao aprisionar o legado ancestral no campo do sagrado, no campo de algo que é

maior do que a capacidade humana de transformar a natureza.” (LIMA, 2003, p. 135).

Deste modo, o pensamento tradicionalista considera a tradição como uma relíquia do

passado, objeto imutável. Quanto a isto, Coutinho nos adverte que

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a ideologia conservadora opera no sentido de naturalizar a cultura, de esvaziá-la de sua história, o pensamento revolucionário não pode deixar de se orientar pela consideração de que a tradição, longe de ser um objeto natural ou uma revelação divina, é a objetivação da ação humana, e de que a transmissão no tempo das formas culturais não se realiza como mera reprodução mecânica, objetiva, e sim como um processo de reconstrução no qual a cultura é afetada e redefinida pelo esforço do sujeito (2002, p. 21).

Aplicando-se este conhecimento ao Jongo, pode-se afirmar que ele só se mantém

ativo porque seus praticantes sentem-se agentes criadores no ritual e não apenas reprodutores

de um costume ancestral. Isto é, a prática jongueira se dá sempre como um revelar de novos

sentidos, independente de se estar repetindo os mesmos pontos.

3.2. - A literatura sobre o Jongo

Faremos a seguir um quadro resumido a respeito da bibliografia sobre o Jongo

estudada. Seu objetivo é perceber os discursos sobre o Jongo dentro dos contextos histórico-

político em que foram produzidos. Deste modo, evidenciamos os paradigmas sobre a

nacionalidade e a visão que estes pesquisadores têm do afrodescendente

3.2.1. - Exóticos

Os relatos dos viajantes estrangeiros do século XIX a respeito das manifestações dos

escravos do Rio de Janeiro não se preocupavam em estabelecer diferenças ente elas. Com

uma visão eurocêntrica de civilizações em progresso, causavam-lhes estranhamento as

danças a que assistiam e, assim, seus relatos impregnavam-se de preconceitos.

Sob o termo batuque, era chamado qualquer “reunião de pretos”. Tal termo também

foi muito utilizado pelas posturas municipais de várias cidades do Brasil e nos jornais da

corte no decorrer daquele século.

Porém, alguns memorialistas e viajantes registraram além do batuque, uma variedade

de danças executadas tanto por escravos como pelos libertos.

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Hebe Mattos e Martha Abreu relatam que Rugendas, ao assistir em 1820, o batuque

em uma área rural próxima à cidade do Rio de Janeiro, menciona “a batida cadenciada das

mãos, movimento expressivo dos corpos, a direção de um dançarino para o centro do circulo

onde os outros repetiam um refrão” (MATTOS e ABREU, 2008, p. 75). O que

positivamente assemelha-se a uma descrição do Jongo.

Também os norte-americanos Elizabeth e Luiz Agassiz viram, entre 1865-6, numa

ilha próxima à capital, uma dança em circulo com características do Jongo: Segundo seus

relatos, havia um cantador, coro responsorial e dança que se assemelhava à dos negros das

plantações dos Estados Unidos e movimento dos braços do fandango espanhol.

Por volta de 1868-70, a francesa Tousaint-Samson conta que assistira a uma

“estranha” e “selvagem” festa no batizado do dono da fazenda São José em Piedade. Ela

“reparou o grande fogo que a tudo iluminava, os dois músicos, com tambores diferentes

emitindo sons surdos, a dança em círculos, os cantos e as palavras que, para ela, tinham o

objetivo de aumentar a excitação da dança e do amor” (apud MATTOS e ABREU, 2008, p.

76).

Os batuques relatados ocorriam em dias de festas dos senhores, dos santos, ou nos

sábados e domingos. A permissão para o divertimento dos escravos funcionava como uma

espécie de administração do poder a fim de diminuir as tensões inerentes às relações de

sujeição. Além disso, pode-se pensar que essas apresentações funcionavam como uma

espécie de espetáculo para os visitantes, seja demonstração de generosidade do bom senhor

ou dos próprios escravos que exibiam sua presença, guardando para si os significados mais

profundos dos cantos e danças.

Assim, através do Jongo, as informações circulavam tendo por veículo uma dança,

geralmente percebida como sensual ou lasciva. Críticas irônicas aos senhores e feitores eram

realizadas, disputas, referências ao passado e até tentativas de fuga eram cantadas de modo

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metafórico, cifrado para não serem percebidos. Lograram êxito pois, nem no século XX,

alguns folcloristas notaram os sentidos contidos na imanência dos versos.

3.2.2. - Exógenos

As descrições sobre o Jongo do inicio do século XX, aproximadamente 1960,

informam basicamente que ele era executado por ex-escravos e seus descendentes

vinculados a um modo africano de vida. Nesse sentido, os relatos tratam tais populações não

inclusas no conceito de nacionalidade brasileira, como bem observa Adailton da Silva:

Aqueles descritos como membros do Jongo eram, em relação aos autores, não-brancos e parcialmente brasileiros. Os jongueiros descritos pertenciam a um grupo racial identificado como diferente (talvez até mesmo inferior) do grupo racial a que pertenciam os autores e eram reconhecidos como portadores de uma identidade nacional próxima, mas não idêntica a aquela que os escritores traziam consigo. (SILVA, 2006, p. 47)

Deste modo, quando o músico e folclorista Luciano Gallet diz, no primeiro trabalho

onde o Jongo é detidamente analisado, que “as velhas tradições pretas encontram-se, ainda,

muito restritamente, entre gente velha, em lugares afastados dos centros populosos, fazendas

e roças longínquas, em cerimônias negro-fetichistas”, (1955, p. 54) demonstra muito mais

seu distanciamento em relação a tais práticas do que uma preocupação em compreendê-las:

“o material negro entre nós, e o luso também, já começam a constituir passado, tradição,

folclore” (ibidem, p. 54).

Seu pensamento segue uma lógica extremamente ofensiva às populações negras, mas,

por outro lado, está vinculado à proposta de construção da brasilidade. Como em seus

paradigmas as expressões orais negras não produziam os elementos da nação por ele

imaginada, culmina por observar que “no jongo, a letra do canto não tem importância”

(ibidem, p. 75).

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Arthur Ramos segue uma linha similar. Para ele o Jongo e as danças de origem

africana eram “sobrevivência folclórica”. Assistia-se “a criação de alguma coisa nova que

será brasileira” (RAMOS, 1954, p. 147).

O negro e sua cultura tornam-se um problema. Transparece a paradoxal idéia que a

solução é transformá-los em brasileiros.22

3.2.3. - Brasil, Mestiço

Paralelamente à visão exógena do negro, o paradigma da mestiçagem traz uma

resposta conciliatória à questão da integração deste à cultura nacional. Se não há brancos,

negros ou índios, se todos estamos mesclados - somos parte de algo único, irmanados em

uma construção social sem problemas aparentes.

É o que transparece na leitura de Samba de Umbigada (CARNEIRO, 1961); Barra do

Piraí, cronologia histórica (BAUMGRATZ, 1991); Silas de Oliveira: do Jongo ao samba

enredo (SILVA e OLIVEIRA FILHO, 1981); Jongo da Serrinha, do terreiro aos palcos

(GANDRA, 1995); Jongo (ROSA, 2004); CD-Livro Jongo da Serrinha (2002); CD-Livro

Jongo do Quilombo São José (2004). O enfoque dado pelos autores é calcado no conceito de

cultura nacional, descolando-o das comunidades as quais está inserido.

Curiosamente, a última produção que segue este paradigma é o cd livro Jongos do

Brasil que registra cantos de 11 comunidades jongueiras (pouco mais da metade do total

estimado) situadas no eixo Rio - São Paulo que, como sabemos, não representa 20% da

extensão territorial do país.

A mestiçagem, ao mesmo tempo, é lenitivo e solução para as tensões e preconceitos

raciais. O que poderia (ou deveria) ser apresentado como produção de um grupo específico

com História, Memória e Identidades cunhadas em circunstâncias socialmente desfavoráveis,

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mascara-se no deslocamento destes temas para o termo cultura, previamente despolitizado.

Pior ainda se tomado como folclore estrangeirado, simulacro, geralmente reelaborado para se

adequar aos padrões anglo-saxões de entretenimento.

Neste movimento, os autores

podem então se dizer tão brasileiros quanto aquelas comunidades que estudam, mesmo que grasse entre a vida cotidiana de um e dos outros um imenso abismo de desigualdade social e preconceito. Mais do que isso, os autores podem dizer que o Jongo é tão seu, quanto o é de um descendente de africano membro de uma família que o vem guardando desde o século anterior. O Jongo, segundo este discurso, então pertence a todos os brasileiros graças a mestiçagem que iguala a identidade racial e minimiza a importância da afrodescendência. Pode ser inclusive um orgulho da nação e não mais uma vergonha da raça. Impede-se assim que se possa distinguir o sentido do discurso contido no relato de um intelectual autodeclarado negro ou afro-descendente em comparação com um outro autodeclarado não-negro. Se somos todos mestiços mesmo, então para que ouvir os negros falarem sobre negros? Não faz nenhuma diferença, ou melhor, esta diferença não tem nenhuma importância... Dessa maneira, é possível que continuem os brancos (agora autodeclarados mestiços recebendo todos os privilégios de sua branquidade) falando por todos, e aos negros colocarem-se como mestiços abrindo mão de sua especificidade (SILVA, 2006, pp. 48 -9).

3.2.4. - Emancipatório

Várias vozes se lançam contra o discurso anterior, sejam de intelectuais brancos tais

como Paulo Dias, Alberto Ikeda, José Jorge de Carvalho, Elisabeth Travassos, Letícia

Vianna, ou negros como Nei Lopes, Helena Teodoro, Délcio Teobaldo e Gilberto Augusto

da Silva, este último jongueiro da comunidade de Piquete, São Paulo.

Se antes

os africanos e seus descendentes eram patrimônio (no sentido de item do acervo museológico) do Brasil e não eram donos de nada. Num segundo momento, a cultura dos africanos e seus descendentes que vivem no Brasil passa a ser patrimônio do Brasil (no sentido de que os representantes da nação devem ser seus tutores); os africanos não mais existem no imaginário do presente, seus descendentes tornam-se patrimônio (no sentido de bem valioso a ser cuidado) de ninguém e continuam sem ser donos de nada jogados à própria sorte. Em um terceiro contexto os africanos e seus descendentes reivindicam que o Brasil é também seu patrimônio (no sentido de haverem feito no país um enorme investimento ao longo de séculos que ainda não foi usufruído) e são eles os únicos donos de si mesmos e de sua cultura. (SILVA, 2006, p. 51)

22 .SOUSA,2004, diz que essa situação é paradoxal porque não se pode tornar brasileiro quem criou o Brasil.

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Um novo enfoque tenta traçar o contorno das populações passadas com intuito de

trazer outro sentido, emancipatório e da busca pela inserção plena na sociedade23. O Jongo

como instrumento de luta contra o racismo e melhoria das condições de vida das

comunidades que o produzem e preservam, toma corpo, conforme diz IKEDA,

(...) quando falamos em salvaguarda nesse sentido, de salvar, de guardar, de preservar e valorizar expressões e tradições, nós continuamos com o pensamento viciado que o ocidente, "branco", produziu e que continuamos duplicando até hoje. Mais do que salvar as expressões em si, é necessário guardar, ter carinho, guardar as pessoas e as comunidades que são portadoras desses saberes. É o mesmo vício do pensamento que valoriza a mulher pela sua beleza apenas. Continuamos com o pensamento do século XIX. Então, é preciso avançar. E, nesse aspecto, quando falamos em samba, Jongo, Candomblé, Umbanda e todas essas manifestações que reconhecidamente temos como herança de grupos afro-brasileiros, necessitamos lembrar, obrigatoriamente, que isso está ligado diretamente com o negro, com a população excluída da sociedade brasileira até hoje. A realidade é que essa é a população que sempre foi impedida de participar da construção dos destinos do País. Então ternos de lembrar, sim, junto com o Jongo e com as outras manifestações mencionadas, dos negros, da exclusão social, da pobreza, da falta de oportunidade de acesso à educação e ao trabalho. Devemos lembrar, ao mesmo tempo, da resistência política destes, da teimosia em dizer: "mesmo que eu não tenha condições, eu vou ser alegre, eu vou rir, eu vou dançar". Precisamos lembrar que isso é um processo de luta política e não somente arte e espetáculo, que colocamos no palco, com luzes e refletores, e que serve para produzirmos CDs, para serem vendidos nas lojas, para acesso das pessoas. (2004, p. 1):

Desafiadoramente, mesmo que as populações negras sejam as mais excluídas do

processo da construção da cidadania no Brasil o Jongo (r)existe.

3.2.5. - Parêntese

Como já dissemos, não estamos traçando um quadro fixo e homogêneo, impossível

quando se abordam fatos sociais. Cabe-nos, por último, apresentar três estudos que fogem

aos paradigmas apresentados.

Maria de Lourdes Borges Ribeiro, em O Jongo, elabora não só um panorama mais

extenso que o anterior, como também percebe o sentido religioso e os sentidos ocultos nos

pontos. Também nota que

23 Querem formar uma nação cujo patrimônio(aqui entendido como bens de natureza material e imaterial) seja legado exclusivo dos europeus. Quando esse bem não provém desta origem eus o problema (ou paradoxo)

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(...) em quase todos os estudos sobre o Jongo, referências apenas à coreografia e à música. O texto foi relegado a segundo plano. (...).E que tornaram notas, escreveram versos e melodias, registraram passos, mas... a alma do cantador, o seu comportamento na dança, a inteligência que aflora em seus versos, a sutileza da linguagem com seu enigmático requinte simbólico e lírico, o sabor dos termos, a razão de ser da dança, tudo, enfim, que é a própria essência do Jongo, escapa à análise de uma noite de fogueira e tambus. Só quem tem vivido com jongueiros é capaz de ouvir e de entender o Jongo... (RIBEIRO, 1960, p. 19).

Então, ela percorrerá a região do Rio Paraíba colhendo depoimentos, coletando e

decifrando pontos, ouvindo e relatando histórias de jongueiros.

Lavinia Raymndt em sua tese de Doutoramento na USP, em 1945,.procura dar

sentido novo ao que chama de “Danças Populares do Estado de São Paulo”. Questionar sua

persistência, as relações entre os de dentro, negros em sua esmagadora maioria, e os de fora,

a importância das relações familiares, da liderança religiosa, das comemorações do 13 de

maio.

Em particular, nota que no Jongo de São Luís do Paraitinga, "(...) como no batuque

do Tietê, a predominância do canto sobre a dança se evidenciou muito nitidamente. E em

particular a predominância do 'desafio' como elemento de prestígio social, como marcando a

vitória de um grupo sobre outro" (apud MATTOS e ABREU, 2008, p. 90).

Finalmente temos Stanley J. Stein. Em Vassouras - Um Município brasileiro do café,

o historiador avalia os aspectos econômicos e sociais do município durante o ciclo cafeeiro

até sua decadência. Fugindo da visão exótica ou da pura consulta as fontes oficiais, a

pesquisa tem como alvo principal o modo como aventureiros, fazendeiros, mascates, libertos

e escravos viviam e negociavam suas relações sociais neste cenário.

Desse modo os dados textuais são cotejados e entremeados com depoimentos e

entrevistas que destacam um painel da vida dos escravos, das práticas dos senhores e dos

aspectos culturais naquela sociedade para mostrar como processos nacionais manifestavam-

criado. Na verdade, há de se pensar em que tipo de pacto a nação brasileira pretende, mesmo que tardiamente, fazer com seus membros, especialmente os negros.

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se em uma comunidade específica, procurando “buscar evidências que permitissem

compreender a cultura escrava e como tradições e saberes específicos haviam conseguido se

desenvolver no mundo das fazendas escravistas” (LARA, 2008, p. 63).

É pioneiro na utilização do Jongo como fonte de pesquisa historiográfica. Descreve a

roda e seus preparativos, mostrando o modo como as informações eram transmitidas pelos

escravos;

Dias antes de um caxambu ser realizado, com a permissão do senhor, a notícia circulava entre os escravos da fazenda. As notícias se espalhavam entre escravos de fazendas próximas através de conversas numa taberna ou venda na beira da estrada, quando um escravo visitava outra fazenda a serviço do senhor, ou então circulavam sutilmente disfarçadas em versos enigmáticos de Jongo cantados por grupos de fazendas; vizinhas, enquanto trabalhavam nas encostas de café. Nessas ocasiões escravos não esperavam convite formal. Depois que as tarefas estivessem terminadas, acendia-se a lenha empilhada no terreiro de secagem. (STEIN, 1990, p. 244)

Apresenta, na disposição da roda, a fogueira, os tambores e a presença de idosos:

Um casal de tambores, às vezes acompanhado de um terceiro tambor ou "chamador", ocupava um lado da fogueira; no outro lado sentavam-se negros idosos, geralmente africanos, chamados por um ex escravo da macota ("pessoas da África, pessoas sábias"). Ao grande, estrondoso tambor do "casal" os escravos davam o nome de caxambu; o tambor acompanhante, menor e de som mais agudo (embora um tocador de tambor tivesse dito que “ele falava mais forte que o tambor maior”), era chamado de candongueiro. (Op.Cit. , p. 244)

Mostra, também, a presença de um rei do caxambu que, algumas vezes era

acompanhado de sua rainha,

Para supervisionar a sessão havia o ‘rei’ do caxambu, às vezes, acompanhado de sua ‘rainha’. O rei e a rainha usavam nos pulsos e tornozelos, nguizus, que produzia um acompanhamento; às batidas do tambor quando eles dançavam. Os participantes primeiro cumprimentavam rei e beijavam sua mão. Em seguida o rei começava o caxambu, vestido com o que um ex-escravo qualificou como roupa de flanela vermelha e um chapéu com uma cruz, o rei entrava na roda e, aproximando-se dos tambores de maneira respeitosa, ajoelhava-se com a cabeça inclinada e os cumprimentava. De pé, cantava; duas linhas enigmáticas do Jongo, os tambores percutiam na batida enquanto os escravos repetiam o refrão (Op.Cit., p. 245).

A existência do rei, além de rememorar as tradições sociais das nações bantu, garantia

a tranqüilidade da festa, uma vez que, pela descrição apresentada, haveria pontos de onde

uma disputa poderia culminar em briga:

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no entanto, se aparecesse algum problema entre os versejadores que se contestavam, o rei retomava imediatamente e silenciava os tambores colocando suas mãos sobre eles. ‘ele não desejava que houvesse qualquer distúrbio na roda’ explicou um filho de um rei de caxambu (Op.Cit. , pp. 245-6).

O que foi enigma para os senhores e para os primeiros pesquisadores brasileiros, é

percebido por Stein:

caxambu era uma oportunidade de se cultivar o comentário irônico, hábil, freqüentemente cínico, acerca da sociedade dentro da qual os escravos constituíam um segmento tão importante. O sistema de polícia e supervisão constante tendiam a abalar o ânimo e a disposição do imigrante africano e de seus filhos; o caxambu com seus ritmos poderosos, com a quase completa ausência de supervisão do fazendeiro, com o uso de palavras africanas para disfarçar ali alusões óbvias e os ocasionais tragos de cachaça morna, proporcionavam aos escravos a oportunidade de expressar seus sentimentos em relação a seus senhores e feitores e comentar acerca das fraquezas de seus companheiros. Dentro desse contexto, os Jongos eram canções de protesto, reprimidas mas de resistência. A forma do Jongo - aquela do desafio - expressava bem as reações dos escravos, pois, assim como com todos os desafios, o objetivo era ocultar o sentido com palavras, expressões ou situações com mais de uma interpretação possível. As palavras geralmente eram africanas, tanto mais no século XIX, quando nas fazendas de Vassouras havia muitos africanos que falavam sua própria língua entre si e um português atrapalhado com seus senhores e feitores. As pessoas eram substituídas por árvores, pássaros e animais da floresta. Havia uma recompensa pela concisão; quanto menos palavras, quanto mais obscuro o sentido, melhor o Jongo; que não fosse prontamente decifrado pelos jongueiros contestadores ou que pudesse ser repetido para retratar diversas situações. (Op.Cit. , pp. 246-7)

Para a felicidade dos pesquisadores das manifestações negras, ele ainda registrou, em

um pesado gravador de fio, popular até os anos de 1940, recentemente encontrado em seus

arquivos pessoais, enviado ao Brasil, vertido em CD e encartado em Memória do Jongo

(LARA e PACHECO, 2008).

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CAPÍTULO 4: A ÁGUA VAI EM RIBA E A PEDRA ESPIA

4.1. - A narrativa no Jongo

Traçamos os fios que nos permitem a melhor visão das culturas de terreiro, e em

particular do modo com que o Jongo foi percebido pelo outro, sejam o Senhor, seus

convidados, folcloristas e demais estudiosos do assunto. É chegado o momento de analisar

como o negro, através dos pontos percebeu a si próprio, a realidade a qual se inseria e

construiu suas identificações.

Já dissemos que os negros eram possuidores de um grande cabedal de tradições e que,

antes da viagem pelo atlântico, já iniciava as trocas simbólicas de (re)identificação e busca

de similaridade entre as diversas etnias cativas. Com língua, aspectos sociais e religiosos

comuns, o negro bantu estará narrando suas dores, disputas, amores e saudades, sob proteção

da roda, fogueira e tambus.

4.1.1. - Tipos de pontos

As descrições sobre as rodas de Jongo costumam classificar os pontos de acordo com

o momento em que eles ocorrem ou assunto principal. (RIBEIRO, 1960; GANDRA,1995):

• Abertura ou licença: cantado no início dos trabalhos para pedir licença;

• Louvação: saudação dirigida a algum antepassado jongueiro, ao dono da casa

e/ou o local da roda;

• Visaria ou bizarria: para alegrar e divertir os participantes;

• Demanda, porfia ou gurumenta: desafio, exige que outro jongueiro decifre seu

código demonstrando sabedoria. Atualmente esses pontos não são cantados

em apresentações públicas;

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• De encante: carregado de magia e capaz de enfeitiçar o oponente que não

consegue desatá-lo. Há registros de jongueiros que ficam desacordados ou

catatônicos e, no dia seguinte, não se lembram de nada que ocorreu. A

preocupação de Aniceto do Império, citada no início deste capítulo, encerra-se

nesta característica do ponto;

• De encerramento ou despedida: cantado ao amanhecer, saudando a chegada

do dia e encerrando a festa.

Do ponto de vista da dinâmica da roda de jongo, os pontos de licença e louvação

encontram-se em um mesmo momento, o início do Jongo ou da chegada do jongueiro a este.

Os pontos de visaria expressam o cotidiano da comunidade e seguem em um segundo

momento24. Os pontos de demanda, gurumenta, gromenta ou gorumenta, corruptela de

argumento (DIAS, 2001, p. 878), incluem os de encante. Sua diferenciação estaria apenas

calcada na intenção do jongueiro em desafiar ou enfeitiçar alguém25.

Figura 30: Apresentação de caxambu em Santo Antônio de Pádua, RJ.

- Em 1976: José Fonseca toca o candongueiro, José Rezende, o tambu e Vardevino Félix, a angoma-puíta. Ao centro, Mestre Orozimbo Maciel, jongueiro cumba. - In: JONGO NO SUDESTE, Brasília: IPHAN, 2007 (Dossiê IPHAN 05, p. 58) Foto: José Moreira Frade.

24 Essa seqüência é feita sem pausas ou explicações que rompam a unidade da roda. 25 Acreditamos que dificilmente uma pessoa mal intencionada ficaria impune em uma roda de jongo. Alguém acudiria o injustiçado.

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4.2. - Memória e ancestralidade

Como dissemos, não há fronteiras entre as práticas de fé e orgia na mentalidade dos

bantu. Deste modo, o primeiro ato em uma roda de Jongo é o de louvar os antepassados, o

tambor, o terreiro e os santos do dia:

Bendito, louvado seja É o Rosário de Maria, Bendito pra Santo Antônio Bendito pra São João Senhora Sant’Ana Saravá meus irmãos (JONGO DA SERRINHA, 2001, p. 46) Peço licença a Deus Nesta terra que eu piso Nesta terra que eu piso, (Jongo de Pinheiral. In: JONGO DO SUDESTE, 2004, p. 39) Saravá São Benedito Nossa Senhora do Rosário, (JONGO DO QUILOMBO DE SÃO JOSÉ, 2004, p. 52) Cheguei na angoma Tinha muita diferença Quero cantar meu pontinho E meus pais velhos dão licença. (Tia Maria Luíza, de Angra dos Reis In JONGO DO SUDESTE, 200, p. 39) Quando eu aqui cheguei Padre, Filho, Espírito Santo Se eu me benzer primeiro Por causa de algum quebranto. Um quebranto, Se eu me benzer primeiro Por causa de algum quebranto (idem, p. 41)

A abertura mostra a ligação entre o jongo e as práticas religiosas bantu que vão se

cristalizar na umbanda e no candomblé.

Há profundas ligações entre a umbanda e o Jongo: Em diversas comunidades os

participantes são seus adeptos, como Vovó Maria Joana Rezadeira, da Serrinha - RJ, Mãe

Teté, do Quilombo de São José - RJ, Dona Mazé, do Jongo do Tamandaré - SP. Porém, isto

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não representa uma restrição aos participantes e há muitos que se autodeclaram católicos,

mesmo que exibam símbolos das religiões de matiz africano.

Tal fato mostra o papel híbrido das relações religiosas brasileiras. O catolicismo, que

se impôs ao escravo, não conseguiu destruir suas crenças. Aquilo que, à primeira vista

parecia um rito católico era subvertido através do fingimento, conforme relato de Carmo

Moraes: “Eu entrava no jongo, primeiro me benzia: Bendito louvado seja, bendito seja

louvado. Bendito louvado seja, bendito seja louvado. Quer dizer tá benzendo e

desbenzendo” (MORRE CONGO, FICA CONGO).

Assim, não se louvam os elementos do opressor. A festa é dos negros e de suas

simbologias:

Eu vou abrir meu Cangoê Eu vou abrir meu Cangoá Primeiro eu peço a licença A rainha lá do mar Pra salvar a povaria Eu vou abrir meu Cangoê (Jongo do Tamandaré. In: Feiticeiros da palavra, 2001)

Eu vim aqui E não vim pra demorar Eu vim cumprimentar O povo desse lugar Eu cheguei aqui no Jongo de pé no chão No balanço dessas ondas vim lá de Angola Arrastei o pé na´ngoma poeira sumbiu Pra pedir a proteção de Mamãe senhora La, la, ê, ia, la, i,ê l,a la, eiê

É importante notar a presença de verbos de movimento nos pontos. A louvação é o

momento da chegada que é breve, somente no período do Jongo, mas sempre se está fazendo

algo, seja um gesto, um pedido. Os corpos estão no movimento da dança ritmado pelos

tambores e as vozes fazem coro para o ponto tirado. O Jongo é o próprio tambor, ngoma

onde se arrastam os pés descalços e a poeira do terreiro sobe. O congo se abre.

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4.2.1. - Saudade

Figura 31: Mestre Joviano, jongueiro de São Luís do Paraitinga.

- In: Encarte do Cd do Batuques do Sudeste. São Paulo: Cachuêra: Itaú cultural, 2002.

O jongueiro Zé Carlos traduziu Jongo como saudade. Provável que seu pensamento

tenha sido influenciado por uma série de pontos em que ela transpareça. A saudade da terra

natal, dos antepassados, daqueles que ainda estão entre os vivos e que chamamos de irmão,

amigo:

Oi, amigo meu eu quero cantar um pontinho memo que tudo pode cantar e depois tudo pode gatinhá, pra nóis brincá sossegado. Oi quando eu sai de casa, eu moro no bairro do Selado desse memo município Natividade da Serra, mai conversa com São Lui do Pairaitinga e tem contato com São Lui do Paraitinga. Oi, meus amigo

Eu num vim aqui pra mais nada Eu vim aqui pra sentir saudade Eu vim aqui mai nada Eu vim pra senti saudade (refrão) (Mestre Joviano, 29/05/93 Festa do Divino. In: BATUQUES DO SUDESTE,

2002)

A primeira parte desse ponto é falada, com um eventual toque do tambor e o

chocalhar do inguaiá. Nele, Mestre Joviano louva aos presentes na festa e inicia seu canto

em tom de lamento. Ele conta de onde vem, um município próximo mas que aparentemente

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o afasta de seus amigos. Na segunda parte de seu ponto, onde haverá o canto propriamente

dito, falará da saudade.

Quando o ponto firma, ou seja, é repetido pelo coro, improvisa novos versos

respontidos pelo refrão: “Converso com meus amigos”, “No toco de jongueiro”, “Em São

Luís do Paraitinga”, “O reino é do Divino, gente”. Agora a saudade , diverte, une. O ponto

seguinte, do Jongo do Tamandaré (SP), faz da saudade louvação: É a partir dela que os

jongueiros mortos da comunidade do Tamandaré serão invocados:

Sinto saudade De quem se foi (bis) saravá Canário Zumba n’Aruanda Sinto saudades de quem se foi Saravá o meu filho n’Aruanda (as Alma Preta) (Zé capelão) (Dito Prudente) (...) nAruanda

Vovó Teresa jongueira e mãe de Mestre Fuleiro, um dos fundadores da Escola de

Samba Império Serrano, conta a sua saída de Paraíba do Sul até Madureira. Vendo a fumaça

do trem de ferro, lembrava das chaminés dos navios no Rio Paraíba:

Vapor da Paraíba Vapor berrou na Paraíba, chora eu, chora eu Vovó. Fumaça dele na Madureira, e chora eu. O vapor berrou piuí, piuí. Ô irê, irê, irê, ô irê, irê, irê . (JONGO DA SERRINHA, 2002)

4.2.2 - O Cativeiro

Lá vem o navio Apinhado de escravo, Vem da África trazendo Esse povo maltratado!... (AGUIAR, s/d)

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O tempo do cativeiro é relembrado em uma série de pontos. Neles podemos perceber

o uso de expressões em kinbundu, bem como as sutilezas metafóricas dos cativos para

informar a presença repentina do Senhor na roça:

Ei campo, quimô Ei campo quimô Piquira ta curiano Piquira ta curiano ê... (Ribeiro 1960, p. 24)

Ribeiro informa que piquira significa peixe pequeno e se mimetiza no escravo.

LOPES (2004) informa que curuar origina-se do kimbundu Ku-dia, com correspondente ao

umbundu Kulya e significa comer. Os versos anteriores significavam perigo pois o campo

queimou. Como os peixes poderiam ficar se refestelando? Nesse sentido, os escravos

intensificavam o trabalho. Caso não houvesse tempo de se avisar os companheiros, cantava-

se:

Cumbi viro ei, ei, ei Cumbi ,a ,a ,a. (Ibidem, p. 24)

Cumbi vem de Kumbi, o sol, símbolo de autoridade e que representava o Senhor ou o

portador do chicote, portanto revestido de autoridade. SLANES (2008, p. 130) nos informa

da existência desse vocábulo em kimbundu e umbundu, bem como da expressão o “sol

virou” ou “o sol nasceu” que significa “acorde, tome cuidado”.

Deve-se observar que se há o uso de expressões em kimbundu, os escravos, além de

entendê-las, dela fazem uso. Significa dizer que há indícios de que a língua das senzalas do

Vale do Paraíba era uma versão simplificada do kikongo e não a Língua Portuguesa, como a

historiografia da escravidão assiná-la.

Questões lingüísticas à parte, os pontos vão desvelando mais aspectos da vida

escrava, inclusive este, presente no romance Til de José de Alencar, cuja primeira edição é

de 1872:

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Na roça estavam os pretos no eito, estendidos em duas filas, e no manejo da enxada batiam a cadência de um canto monótono, com que amenizavam o trabalho:

Do pique daquele morro Vem descendo um cavaleiro Oh! Gentes, pois não verão Este sapo num sendeiro? Adubavam o mote com uma descomposta risada e logo após soltavam um riso

gutural: - Pxu! Pxu! Tem os pretos o costume de entressacharem nas toadas habituais, seus

improvisos, que muitas vezes encerram epigramas e alusões. Bem desconfiavam, pois, o feitor de que a tal cantiga bulia com ele, e o sapo não era outro senão um certo sujeito bojudo e roliço, de seu íntimo conhecimento; mas fingia-se despercebido da coisa.

(ALENCAR, s/d, p. 29)

O canto serve ao trabalho, mas também à ironia. A desconfiança do feitor deixa

transparecer o uso da palavra irônica como arma. A possibilidade de compreensão do ponto

se dá pela permissão do cativo que poderia usar de uma expressão mais cifrada ou em

kikongo.

Quando proibido de usar expressões africanas já era especialista em modificar o

sentido das coisas para planejar fugas, como neste ponto relatado por Salvino Pereira

Rodrigues, jongueiro já falecido de São Matheus, Espírito Santo:

O galo já cantô bem cedo, Levanta que chegô a hora, Capitão-do-Mato tá durmindo, Não chora por mim, não chora!... (AGUIAR, s/d)

O “galo” aqui, com certeza, representa outro escravo que lidera a fuga sinalizando o

momento em que ela deve ocorrer. Recapturado, serviria de exemplo para intimidar. Porém,

o castigo cantado, transforma-se em foco de resistência:

O chicote cumeu no lombo, Coitado do nêgo fujão, Mais vale tentá fugí Que vivê na provação! (AGUIAR, s/d) No dia 13 de maio Quando o senhor me batia Eu gritava por Nossa Senhora, meu Deus Quando a pancada doía. (Caxambu de Santo Antônio de Pádua In: JONGO DO SUDESTE, 2007).

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O sofrimento do eito é bastante recorrente nos pontos que apresentam a escravidão.

Neste da comunidade de Pádua, temos um 13 de maio anterior à abolição. E o castigo ao

negro. Mas o sonho de liberdade permanecia vivo, conforme diz Salvino Rodrigues,

"se ficasse aceitando o chicote do sinhô, ele ia passá a vida toda apanhando, então era priciso tentá a fuga pros mato, onde vivia outros nêgo em liberdade nos quilombo. Se o Capitão-do-Mato pegasse ele e trouxesse de volta pra fazenda, ele ia apanhá na frente de todos, mais se não fugisse ele tombém ia apanhá pra sirví de exemplo; então era melhó tentá fugí".(AGUIAR, s/d.).

Era correta essa observação, uma vez que fugitivos reincidentes eram acorrentados

uns aos outros e levados aos campos:

O canarinho tão bonitinho, que está preso na gaiola Pra quê correntinha no pé, pra quê? (STEIN, 1990, p. 172)

Paulatinamente, teremos a valorização dos símbolos da negritude. A África é

apresentada como mãe, uma metáfora bastante recorrente. Os sons do tambu e do

candongueiro são comparados ao choro e soluços. As memórias do cativeiro se transformam

em símbolo de resistência cultural negra:

O Mãe África Vem lembrar seu cativeiro O como chora meu Tambu (ai meu tambu) Oi como chora o Candongueiro (ai candongueiro) De tanto soluçar, soluçar, soluçar Vai molhar o meu terreiro Axé

4.2.3. - Liberdade

Sinhô, não bate no preto, Tenha pena, tenha dó, Um dia esse preto liberta E vai lhe fazê o pió!... (AGUIAR, s/d)

STEIN (1990, pp. 302-3) conta que ao saber da proclamação da Lei Áurea, os

tambores reverberaram por três dias e três noites, tocando o caxambu. Ouviam-se pontos

inspirados na hesitação do Imperador contrastando com o ato assinado pela filha:

Pisei na pedra A pedra balanceou

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O mundo estava torto A rainha endireitou.

É notável a construção metafórica deste ponto. A forma verbal “pisei” tem sentido de

confiar ou apoiar-se em algo ou alguém. Associando o nome Pedro à pedra, já que são

sinônimos temos uma crítica ao Imperador e elogio à firmeza de sua filha. Outro ponto vai

indicar a surpresa com que a notícia foi anunciada:

Tava durumindo angoma me chamou Ô se levanta povo o cativeiro acabou. (Op. Cit., p. 302)

O cativo dorme e quem o acorda é o tambor. É o maior símbolo da ancestralidade que

lhe fala mostrando o novo tempo. E não fala só para o indivíduo. Sua voz é o chamamento a

toda povaria que se levante e seja livre.

Estes pontos emblemáticos vão possuir formas variantes, seja pela introdução de

novos elementos ou pela mescla de versos entre eles:

Pisei na pedra Pedra balanceou Levanta meu nego Cativeiro se acabou! (FEITICEIROS DA PALAVRA, 2001) Pisei na pedra, a pedra balanceou Falou mal da rainha ta me fazendo Falsidade Pisei na pedra, a pedra balanceou Falou mal da rainha ta me fazendo Falsidade (PACHECO e SLENES, 2008, p. 186)

Nesse ponto em particular, nota-se a simpatia com que o povo negro passa a ter com

a Princesa Isabel. O que não ocorre com seu pai:

Tava no genheco Quando o imperador passo Respondo bom dia se quisé Pruque lovado já cabo. (RIBEIRO, 1960, p, 34)

Um Jongo de Angra dos Reis mostra que o negro deseja destruir os elementos que

lembram o cativeiro:

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Oi bota fogo na senzala Onde negro apanhou. (JONGO DO SUDESTE).

Com o passar do tempo, a realidade inquieta o liberto: Sua nova condição social o faz

desempregado. Os mais velhos mendigam, os jovens migram para regiões de melhor salário,

como no Rio ou São Paulo. Muitos permanecem no Vale do Paraíba fazendo acordos com os

antigos senhores. E o Jongueiro, criticamente cantou:

Ahi não deu banco p’ra nos sentar Dona Rainha me deu cama, não deu banco p’reu me sentar. (STEIN, 1990, p. 304)

Além do seu sofrimento, os jongueiros lançavam críticas às estruturas políticas que

percebiam:

Com tanto pau no mato Imbauva é coroné (RIBEIRO, 1960, p. 31 e STEIN, p. 248)

Esse ponto relaciona a embaúba (Cecropia peltata) árvore de caule oco e considerada

pobre por essa razão, e o coronel, é aquele que manda. A união dos dois elementos

comparados ao primeiro verso “com tanto pau no mato” mostra o sarcasmo do jongueiro. No

mato há madeiras mais nobres que a embaúba e na comunidade, pessoas mais capazes na

região, mas quem manda é o néscio.

Os pontos podem ter a significação alterada dependendo do contexto onde está. Em

Angra dos Reis, o Carmo Moraes canta um ponto similar que se refere às intromissões de

pessoas desconhecedoras dos fundamentos do Jongo;

Com tanta madeira de lei nessa mata E umbaúba é coronel. (TEOBALDO, 2003, p. 72)

As disputas políticas foram assim cantadas:

Água com areia Não pode cumbiná Água vai embora Areia fica no lugá (RIBEIRO, 1960, p. 31)

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A água é o fazendeiro novo, inexperiente, que não pode medir forças com o velho e

poderoso fazendeiro, metaforizado na areia. Do embate, o mais forte vence. Observando a

perseguição de movimento político vencedor com seus adversários, dirá o jongueiro:

Macaco subiu no gaio Os cachorro ta acuando Ai uê i uê (Idem, p. 33)

Os pontos vão desvelando a vida social das comunidades, suas inquietações, as

histórias e memórias. As relações de trabalho, sempre desfavoráveis para o negro lembram a

escravidão, conforme os pontos de Santo Antônio de Pádua:

Trabalhei numa fazenda Que não tem trabalhador Perereca corta cana Marimbondo é moedor Trabalhei numa fazenda Tem vergonha de contar Canjiquinha no almoço Pela égua no jantar (BATUQUES DO SUDESTE, 2002)

Tais pontos apresentam um padrão de cifra que caracteriza os pontos de jongo.

Perereca aqui é o negro e marimbondo, o engenho. No segundo, canjiquinha e péla-égua são

sinônimos, isto é, uma sopa de milho partido com carne e verduras.

A assimetria das relações de trabalho também é assinalada por este ponto do

Quilombo de São José (2004):

Eu plantei café de meia Eu já plantei canaviá Canaviá não dá lucro Canaviá cachaça dá.

Na cidade, as coisas não mudam muito. Um jongueiro fôra convidado para trabalhar

em uma farmácia em Piedade, zona norte do Rio de Janeiro. À noite, tirou esse ponto na

Serrinha:

Eu num é doutô, Eu num é “fermêro”. Como vai tomá conta de butica na Piedade?

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Eu num sabe lê, Eu num sabe “crevê”. Como vai tomá conta de butica na Piedade? (GANDRA, 1995)

A ironia e a metáfora são, sem dúvidas, armas estético-retóricas amplamente usadas

nos pontos. Nas festividades há aqueles que servem para comunicar jocosamente ao anfitrião

de que os jongueiros desejam comer e beber alguma coisa. Em Angra dos Reis, Tia Maria

Luiza recorda:

Zé, ô Zé, ô Zé Saco vazio não se põe em pé, ô Zé, ô Zé, saco vazio não se põe em pé.

Ou este:

Tanta chuva que choveu Na goteira não pingou Tanta chuva que choveu, Na goteira não pingou Não pingou, não pingou, Tanta chuva que choveu, Na goteira não pingou. (JONGO DO SUDESTE, 2007)

Segundo Terezinha Maria de Jesus, do Quilombo de São José, ouve-se:

Bombeiro da bomba, Bombeiro da bomba , me da um copo d'água A sede me tomba (QUILOMBO DE SÃO JOSÉ, 2004)

Em conversa pessoal, com Dona Su, lembrou-se um ponto:

Vovó me disse que hoje não vai chover Vovó me disse que hoje não vai chover Só toco o candongueiro se der água preu beber Só toco o candongueiro se der água preu beber.

Em Angra dos Reis, Rosalvo Bernardo diria:

Carro sem boi não anda E eu não canto sem beber. (TEOBALDO, 2003)

Mas há também os pontos de demanda, onde o assunto é mais sério. É o que veremos

a seguir.

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4.2.4. - Demanda

Alguns são desafios à inteligência dos participantes, que devem decifrar os enigmas

ocultos nas metáforas, enfeitiçando aqueles que não os desatem.

Delcio Bernardo, de Angra dos Reis, diz também que há os pontos de demanda

branda que adverte a respeito das tradições ou para manter a ordem na festa:

Galinha assanha, não meche cum pinto (Quilombo de São José, 2004)

Neste ponto deseja-se proteger uma pessoa querida que está sendo incomodada. O

jongueiro diz que o problema passará a ser dele que é mais forte e protegerá o amigo tal qual

a galinha faz com seus pintos.

Se um jongueiro chega depois de o Jongo ter começado e não louve os antepassados

ouvirá a advertência:

Quem entra no meu terrero Sem licença me pedi Papai engole a casca E não pode mais saí. (Ribeiro, 1960, p. 42)

A folclorista conta a história de um jongueiro que estava abobado em uma roda de

jongo em Cunha, SP, e que não encontrava sua capa. Sua mulher e seus filhos, fora da roda o

aguardavam apreensivos e ele estava amarrado no Jongo. Seu companheiro decifrou o ponto:

Papai era o tambu, onde a capa estava escondida.

No meio de jongueiros mais velhos, o jovem jongueiro deve respeitá-los, conforme

mostrou Eva Lúcia, jongueira de Barra do Piraí:

Oi dá licença galo velho pinto novo quer saravá

Ou Delcio Bernardo:

Cheguei na ingoma Tive muita diferença Quero cantar meus pontinhos Meus pai veio dá licença (JONGOS, CALANGOS E FOLIA, 2007).

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Caso contrário ouviriam uma das seguintes reprimendas:

Galo cantou mentira não é dia Cadê aquele galo que cantou no claro dia? (JONGOS, CALANGOS E FOLIA, 2007). Bate tambor grande Repinica no candongueiro Pinto pequeno ta cantando no poleiro. (JONGOS, CALANGOS E FOLIA, 2007).

Essas demandas brandas servem para indicar que há uma ordem nas coisas. As ações

dos jongueiros são reguladas por códigos de conduta que são inscritos na própria prática

jongueira. Assim, o jovem apreende o jongo no interior dele próprio, não havendo uma

escola formal de jongo.

O universo dos pontos de Jongo é feito, assim, de associações. Semelhante ao ponto

“segredo de parede, barata sabe tudo” que remete ao ponto "quentura de panela, só colher

conhece” ou ao “segredo de camisa quem sabe é paletó”, como falam os jongueiros de

diversas comunidades.

Ora, em roda de Jongo, de samba, de capoeira ou quaisquer outras de batuques ou

artimanhas de pretos, há os de dentro e os de fora. Então, é preciso estar dentro para saber o

que acontece e saber é respeitar, caso contrário, a demanda começa a se tornar mais pesada:

Vovó não quer casca de coco no terreiro Porque lhe faz lembrar Dos tempos de cativeiro

Outra variação deste ponto fala que vovó não quer palha de cana no terreiro. Terreiro é o

espaço mínimo reconquistado pós-Abolição e quase sempre roubado. Sendo assim, a negra ex-

escrava reconquista seu direito à terra e a dar as ordens. Neste espaço ela quer fixar a lembrança

em outros fragmentos que não sejam os que lembrem o cativeiro. Isto fica claro noutra variação:

Pega a vassoura Varre a páia do terreiro Vovó num qué Se alembrá do cativeiro.

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A palha, a casca de coco, aqueles que vêm às tradições com o intuito de se locupletar.

Délcio Teobaldo contou um fato ocorrido em 2000 durante uma roda de Jongo. Os olhares

cúmplices dos jongueiros condenavam, claramente, os que estavam de fora e cantavam,

filmavam, batiam palmas e até ensaiavam rufar o tambor, sem se dar conta do rito dos

pontos e da roda. Com este ponto, fizeram uma provocação mais pesada para eles:

Tatu tá cavucano A catacumba do meu pai Pra baixo ele não desce Pra cima ele não sai

O ponto adverte duramente os que tentam penetrar, como o tatu, numa cultura que

desconhecem. Ele não pode atingir os mistérios da ancestralidade, a que se refere a

catacumba; nem é capaz de voltar à tona, com a informação incompleta, para passá-la

adiante. Assim, o aventureiro fica no limbo, amarrado, parado.

4.2.4. - O tatu

A presença de animais nos pontos de Jongo é bastante comum. Burro e o boi, por

exemplo, quase sempre representam o jongueiro ou o negro. A referência reside no fato, de

serem utilizados no transporte ou tração de cargas, assim como o escravo. Galo, galinha,

pinto e demais aves são sempre representativas do elemento humano, ora de modo positivo

ora negativamente. Mas, de todas as referências animais, a mais significativa é a do tatu.

Slenes (2008) vê na associação entre o mestre jongueiro, chamado de cumba, e o tatu

uma metáfora que certamente provenha da África Central, onde os animais que faziam seus

ninhos em baixo da terra, eram vistos como mediadores entre os homens e o mundo dos

mortos.

O roedor Cricetomys gambianus, ou rato gigante da Gâmbia era conhecido entre os

Kongo como nkümbi, derivado de kùmba, cavar, e aplica-se, metaforicamente, a um

patriarca “que conhece vários países, usos e costumes” (p. 143).

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Vejamos uns pontinhos para perceber essa discussão entre os jongueiros:

Jongueiro cumba Jongueiro cumbambá O cravo tá na roseira E a rosa, onde tá?

Cumba é o mestre que ensina o mestre, o feiticeiro da palavra. No segundo verso a

palavra cumba está aglutinada a outra palavra de origem bantu, bambá que significa,

segundo relato de Délcio Teobaldo, mingau ou pessoa sem ação, indolente.

A palavra cumbambá contempla o universo simbólico africano, onde é comum a

visão ternária, isto é com as coisas resolvendo em três. Assim, cumbambá possui três signos:

Cumba, o feiticeiro; bamba, destemido e bambá, o indiferente.

Deste modo, os dois versos do ponto chamam a atenção do jongueiro, não importa a

sua posição hierárquica ou física, para o fato de, ao observar quaisquer imprevistos, estar

atento. "O cravo está na roseira/ e a rosa, onde tá?". Num mundo em mutação, mesmo diante

do belo, é necessário manter o olhar crítico e atento.

Tatu mineiro, cavuca terra de cacunda Tatu mineiro, cavuca terra de cacunda Cavuca terra de cacunda, tatu mineiro Cavuca terra de cacunda (PACHECO e SLENES, 2008, p. 182)

Jongueiros mineiros, que acompanhavam os tropeiros descendo de Minas para os

portos, tinham fama de cumbas temíveis; o tatu mineiro até podia cavucar terra para trás. O

tatu possui a habilidade de correr de costas em seu túnel quando é ameaçado. Tal destreza o

relaciona ainda mais com o Outro Mundo, considerado, pelos kongo, reflexo espelhado do

nosso, onde todos os espíritos movem-se como o animal.

Eu sou mineiro mal Não bule comigo não. (PACHECO e SLENES, 2008, p. 182)

Se o cumba mineiro é poderoso, sua força seria provada nos terreiros onde tomasse

parte. Caso viesse em paz cantaria este ponto, avisando os demais jongueiros de suas

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intenções, mas se provocado não deixaria barato, como neste desafio entre uma jongueira de

Taubaté e um jongueiro desconhecido, que diziam ser de Minas Gerais, conforme RIBEIRO,

(1960, p. 37):

Minêro veio de mina Com fama de domadô É mentira de minero Minêro nunca domo

E a resposta:

Minêro veio de mina Minêro não quer domá Minêro veio comprá terreno Pra ponha vaca no currá

Retornando aos nossos cavucadores, o tatu pode personificar o órgão sexual

masculino, o tambu, ou, como dissemos, o próprio cumba:

Mestre Lico: Tatu tá véio Mai sabe negá o carreiro Zé de Toninho: Olha lá senhor jongueiro Pra mim ocê é um home fraco Esse tatu tá véio Mai é acostumado no buraco. João Rumo: Eh, meu Deus do céu Esse tatu pode tá véio Mai não cai nessa gaiola. Zé de Toninho: Meu senhor jongueiro Escute o que eu to falano Esse tatu é véio Mai ele véve cavucano Aia , aê,iê, ia Esse tatu tá veio Mai ele véve cavucano. (BATUQUES DO SUDESTE, 2002)

Note-se a destreza dos jongueiros que a todo instante ampliam o sentido do tatu.

Inicialmente se diz cumba, pois nega, vence outro jongueiro experiente, o carreiro isto é, o

guiador do carro de boi. No segundo, mantém sua destreza, sabe cavar, conhece seu ofício e,

por isso não cai em armadilhas. Por último ele é velho mas viril, fecunda a terra, produz

pontos.

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Neste ponto de Pádua, o tatu pode representar, inicialmente, o tambor ou a festa e

depois um jongueiro atrasado:

O tatu tá cavucano Na casa de dona Aurora Não cavuca muito não, gente Que o tatu chegou agora (BATUQUES DO SUDESTE)

Durante o 9º Encontro de Jongueiros, Mestre Gil de Piquete e Dona Mazé, de

Guaratinguetá lembraram-se do seguinte ponto, onde tatu, originalmente, era a mãe solteira:

Tatu ta de cangalha O mantimento de quem é?

Na ocasião, a intenção de Gil era descobrir intenções ocultas de determinado

participante do encontro, num claro exemplo de recontextualização do ponto.

Mas tatu também personifica a dor, como neste ponto pesado, utilizado para encerrar,

amarrar contenda:

O tatu tá cavucando, E a terra tá sumindo; Quero que o mestre jongueiro diz, Pra onde a terra tá indo

ou em

Você corta ponto de Jongo Mas não corta cemitério

4.3. - Morre congo, fica congo

Se as demandas com os velhos tatus cumba foram sendo esquecidas, seguiu-se o

perigo de o Jongo desaparecer. As transformações do ambiente rural, a expulsão contínua

das comunidades jongueiras que, paulatinamente, foram perdendo a posse das terras a que

teriam direito, para grileiros, o desinteresse dos mais jovens, influenciados pela cultura de

massa e seus ritmos descartáveis foram diminuindo o número de rodas jongueiras que

desapareceram de determinadas localidades.

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O fenômeno das religiões pentecostais e neopentecostais, muitas baseadas no

fundamentalismo dogmático e na intolerância para com os cultos africanos, agravaram ainda

mais o quadro.

Mas o Jongo resistiu, modificando algumas de suas estruturas, conforme veremos no

diálogo entre os pontos dos paulistas Nico, de Piquete, e Jefinho, de Guaratinguetá:

Ô Galo Rosa Tenha dó do meu penar Minhas penas são douradas, galo sereno Tenho medo de molhar na ingoma Deixa cantar o bem-te-vi Bem te vi canta cedinho A tarde toda quem canta é a juriti

Paulo Dias, em conversa pessoal, afirma que no primeiro, o jongueiro velho lamenta

não ter interlocutores nas rodas atuais à altura de entender e valorizar a fineza do legado

jongueiro “penas douradas” que recebeu do pai “galo rosa”, manifestando o receio de que

esta herança seja mal compreendida “tenho medo de molhar na ingoma”.

No outro ponto, Jefinho pede licença para os jongueiros mais jovens poderem entrar

na roda “deixa cantar o bem-te-vi”, que pela tradição era exclusiva dos mais velhos “a tarde

toda quem canta é a juriti”.

Dias vê que há hoje duas tendências entre as quais transita a tradição jongueira nas

comunidades: Jongo antigo, de demanda, ou “com pergunta e resposta”, como diz Mestre

Cabiúna, de Pinheiral - RJ, e o Jongo mais voltado ao lazer da comunidade, mais inclusivo

no aspecto etário e geracional, ao passo que o Jongo antigo era reservado a uma confraria de

conhecedores em geral masculina.

Rio de Janeiro, década 1980. Mestre Darcy Monteiro revoluciona a estrutura

tradicional do Jongo, transformando as rodas em espetáculos. Convence sua mãe, Vovó

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Maria Joana Rezadeira, da necessidade de haver crianças nas rodas26, tabu que impede a

renovação.

Atualmente, coexistem espetáculo e resistência. As crianças fazem suas rodas e

cantam seus pontos, como o Caxambu mirim, de Miracema, RJ.

Canta beija-flor Canta sabiá Caxambu mirim Que acabou de chegar

Ou no Bairro do Tamandaré, em Guaratinguetá - SP:

Meu cachorrinho foi pro mato caçá O que é que ele trouxe boa sinhá Boa sinhá, boa sinhá O que é que ele trouxe boa sinhá?

Mestre Darcy propôs que o Jongo descesse o morro para procurar abrigo no circuito

cultural carioca, mobilizando novos agentes sociais, na maioria universitários, como

tentativa de sobrevivência. Claro que este movimento provocou fortíssimas reações dos mais

velhos, como Aniceto.

A resposta deste ao Mestre não se deu em um Jongo, como fez o velho Nico de

Piquete, mas um samba intitulado “A morte do Jongo”:

Ele tá morrendo Eu tá caluturai27 Perengando28 tô, peregando tô Reze por mim quem me gosta Pro Zâmbi nosso sinhô Cheguei de terra distante Radiquei-me no Brasil Vivi mais de quatro séculos To morrendo nesse instante Eu e o Jongo já me chamam caxambu Eu tá virando petisco de orubu Quem me entendia morreu já não vive mais Buru, buru29de ofidã vivem mi roubando a paz

26 Aqui o Jongo se afasta do candomblé. Neste é a presença da criança santifica o lugar. Nemhuma entidade, nem Exu mexe com elas. Temos mais um indício de diferenças entre as tradições bantu e iorubanas. 27 Pessoa muito acabada. 28 Doente, sofredor. 29 Burro.

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Não sou folclore seu é o rei da magia Sô arquivo de mistério, mestre de feitiçaria Pedro de Sá Maria-Manoel Pesado-Elói Lindolfo da Barra-Vieira e Castolino Hoje quem canta é menino Tio Luiz-Celina-Nascimento da Eulália Tio Anjo-Antenor- Maria- Napoleão Doze bambas então. (Acervo particular de Seu Aniceto. In: FERNANDES, 1986)

Muito mais pungente que estas duras palavras é o modo da resposta. Com um samba,

Aniceto enfatiza a total falta de interlocutores: o formato de espetáculo, proposto por Darcy,

quebra o caráter sagrado do Jongo, para ele, o golpe de misericórdia.

TEOBALDO (2003, p. 13), concorda com o velho e saudoso fundador do G.R.E.S.

Império Serrano: “quando folclorizada, ensaiada, agendada e se definem espaço e hora para

acontecer, a cultura popular, essencialmente espontânea é imobilizada. Fica repetitiva,

medíocre, vira simulacro. Cópia malfeita de si mesma”.

Sem entrar no mérito desta demanda, uma vez que somos “pinto pequeno”, para usar

uma fala jongueira, o fato é que o jongo permanece vivo, como cantam os Jongueiros do

Morro do Carmo, em Angra dos Reis:

Morre o Rei do Congo E a Rainha Cabundá Morre congo, fica congo Tem congo no lugar. (TEOBALDO, 2003. p., 11)

Figura 32: Mestre Darcy

- In: SARAVÁ JONGUEIRO, 2003. Imagem extraída do DVD.

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Figura 33: Aniceto do Império Serrano.

- In: www2.uol.com.br/cliquemusic/imgfotos/1154.jpg

Figura 34: Tia Maria do Jongo da Serrinha no Quilombo São José da Serra.

- In: http://anapinta.multiply.com/photos/album/10/Quilombo_Sao_Jose_da_Serra_#5.JPG - Foto: Ana Pinta.

Figura 35: Fátima (Fatinha do Jongo de Pinheiral)

- In: www.brevescafe.oi.com.br/jongo_04.jpg

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Figura 36: Dona Eva Lúcia, jongueira de Barra do Piraí toca e canta um jongo.

- In: http://www.flickr.com/photos/ceudearuanda/page2/ - Foto: Junior Nascimento.

Figura 37: Jovem jongueiro de Porciúncula montado no tambu.

- In: http://www.flickr.com/photos/lulassant3 - Foto: Luis Santana

Figura 38: Crianças do Quilombo São José.

- No 12º Encontro de Jongueiros em Piquete - SP, abril de 2008.- In: http://www.flickr.com/ photos/lulassant3 - Foto: Luis Santana

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CONCLUSÃO

Adeus, povo bom adeus Adeus, que eu já vou embora Pelas ondas do mar eu vim Pelas ondas do mar, eu vou embora.

Chegamos ao final de nossa jornada. Claro que não conseguimos esgotar todo potencial

narrativo e inventivo contido nas palavras dos jongueiros. Assonâncias, aliterações, metáforas,

paradoxos e demais figuras de linguagens estão lá nas demandas, louvações e provocações

jocosas, esperando para serem pronunciadas. Novos sentidos são introduzidos e o Jongo segue

em sua dinâmica de sedutora e mágica inovação.

No convívio com Jongueiros, notamos a força com que vivenciam a solidariedade e a

esperança. Como bem cantou Dona To, velha jongueira do Tamandaré:

Bate, bate coração pode bater Não treme não oh coração Pára de tremer Bate, bate coração Que nossa vida inda tem solução - Graças a Deus - (Feiticeiro da Palavra),

Pudemos perceber que decifrar um ponto depende da contextualização. O mesmo ponto,

sem mudar uma letra, pode ter intenção completamente diferente, se aplicado à outra

necessidade.

Na verdade, os pontos são charadas, mas não pedem recursos semânticos sofisticados

para entendê-los. A força destes enigmas reside nesta simplicidade, vivida diariamente por

pessoas que lutam pela sobrevivência, sem deixar de sorrir ou celebrar a dádiva da existência.

Jefinho, jongueiro do Tamandaré fez um ponto aos 20 anos de idade, conquistando o

respeito dos velhos cumbas. Atava ele as pontas da vida. Aqui também o fazemos:

Saravá jongueiro velho Que veio pra ensinar Que Deus dê a proteção Pra jongueiro novo Pro Jongo não se acabar (Feiticeiro da palavra).

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FONTES SONORAS

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JONGOS DO BRASIL (CD-livro.). Rio de Janeiro: Associação Brasil-Mestiço, 2006.

JONGO DO QUILOMBO DE SÃO JOSÉ (CD-livro.). Rio de Janeiro: Jongo do Quilombo de São José, Associação Brasil-Mestiço, Sesc Rio Som, 2004.

JONGO NO SUDESTE (CD-ROM), Rio de Janeiro: MINC-IPHAN, 2005.

FONTES AUDIOVISUAIS

FEITICEIRO DA PALAVRA. Direção Rubens Xavier. São Paulo: TV Cultura/ Associação CulturalCachuera! , 2001.

JONGOS, CALANGOS E FOLIAS. MÚSICA NEGRA, MEMÓRIA E POESIA. Direção Geral Hebe Mattos e Martha Abreu. Rio de Janeiro: LabHoi/UFF, 2007.

O JONGO NA SERRINHA - Um tributo a Mestre Darcy . Direção Beatriz Paiva. Rio de Janeiro, Rob Digital, 2005

SARAVÁ JONGUEIRO. Direção Bianca Brandão, Cecília de Mendonça e Luisa Pitanga. Rio deJaneiro: 2003.