A Tradução Cultural Na Literatura Latino-Americana

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 Fragmentos, número 39, p. 073/083 Florianópolis/ jul - dez/ 2010 Meritxell Hernando Marsal Universidade Federal de Santa Catarina [email protected] A tradução cultural na literatura latino-americana Resumo: Neste artigo, a partir de noções elaboradas por Antonio Candido, Ángel Rama e Antonio Cornejo Polar, compreende-se a literatura latino-ame- ricana como constitutivamente heterogênea, formada por âmbitos culturais distintos e línguas diversas, em comunicação e tensão constante, em que a tradução se revela como um processo chave para entender suas especicida- des. Nesse sentido, é apontado o exemplo de escritores, como Guamán Poma de Ayala e José Maria Arguedas, que evidenciam em suas obras os processos de tradução cultural desenvolvidos no in terior da literatura latino-americana. Palavras chave: literatura latino-americana , heterogeneidade, tradução cul- tural. Abstract: In this article, according to concepts elaborated by Antonio Candi- do, Angel Rama and Antonio Cornejo Polar, we understand the Latin Ameri- can Literature as a constitutively heterogeneous, composed by different cul- tural spheres and languages, in communication and constant strain, in which the translation appears as a key process to understand its particularity. Thus, it is pointed out the example of writers like Guaman Poma de Ayala and Jose Maria Arguedas, who present in their works the cultural translation processes developed in the Latin American literature. Keywords:  Latin American literature, heterogeneity, cultural translation. Neste artigo gostaria me aproximar aos poucos, com algumas ideias básicas, a um tema muito amplo que centra minhas pesquisas atuais: a tradução como prática na qual podem compreender-se algu- mas especicidades da literatura latino-americana. Para isso, gostaria de tomar como ponto de partida as contribui- ções de três grandes críticos desta literatura: Antonio Candido, Án- gel Rama e Antonio Cornejo Polar. Estes três pensadores fundaram a moderna crítica literária latino-americana durante os anos sessenta, setenta e oitenta. Em 1980, no Instituto de Estudos da Linguagem da Universidade de Campinas, organizou-se uma reunião de pesquisa

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Neste artigo, a partir de noções elaboradas por Antonio Candido, Ángel Rama e Antonio Cornejo Polar, compreende-se a literatura latino-americana como constitutivamente heterogênea, formada por âmbitos culturais distintos e línguas diversas, em comunicação e tensão constante, em que a tradução se revela como um processo chave para entender suas especificidades. Nesse sentido, é apontado o exemplo de escritores, como Guamán Poma de Ayala e José Maria Arguedas, que evidenciam em suas obras os processos de tradução cultural desenvolvidos no interior da literatura latino-americana.

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  • Fragmentos, nmero 39, p. 073/083 Florianpolis/ jul - dez/ 2010

    Meritxell Hernando MarsalUniversidade Federal de Santa Catarina

    [email protected]

    A traduo cultural na literaturalatino-americana

    Resumo: Neste artigo, a partir de noes elaboradas por Antonio Candido, ngel Rama e Antonio Cornejo Polar, compreende-se a literatura latino-ame-ricana como constitutivamente heterognea, formada por mbitos culturais distintos e lnguas diversas, em comunicao e tenso constante, em que a traduo se revela como um processo chave para entender suas especificida-des. Nesse sentido, apontado o exemplo de escritores, como Guamn Poma de Ayala e Jos Maria Arguedas, que evidenciam em suas obras os processos de traduo cultural desenvolvidos no interior da literatura latino-americana.Palavras chave: literatura latino-americana , heterogeneidade, traduo cul-tural.

    Abstract: In this article, according to concepts elaborated by Antonio Candi-do, Angel Rama and Antonio Cornejo Polar, we understand the Latin Ameri-can Literature as a constitutively heterogeneous, composed by different cul-tural spheres and languages, in communication and constant strain, in which the translation appears as a key process to understand its particularity. Thus, it is pointed out the example of writers like Guaman Poma de Ayala and Jose Maria Arguedas, who present in their works the cultural translation processes developed in the Latin American literature.Keywords: Latin American literature, heterogeneity, cultural translation.

    Neste artigo gostaria me aproximar aos poucos, com algumas ideias bsicas, a um tema muito amplo que centra minhas pesquisas atuais: a traduo como prtica na qual podem compreender-se algu-mas especificidades da literatura latino-americana.

    Para isso, gostaria de tomar como ponto de partida as contribui-es de trs grandes crticos desta literatura: Antonio Candido, n-gel Rama e Antonio Cornejo Polar. Estes trs pensadores fundaram a moderna crtica literria latino-americana durante os anos sessenta, setenta e oitenta. Em 1980, no Instituto de Estudos da Linguagem da Universidade de Campinas, organizou-se uma reunio de pesquisa

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    onde os trs participaram junto com outros estudiosos. Em palavras de Beatriz Sarlo, que dedicou o nmero 8 da sua revista Punto de Vista ao encontro, foram discutidas nele las dificultades expuestas por el cor-pus de la literatura latino-americana a una crtica que se esfuerza por pensar tanto la heterogeneidad como la unidad de textos, funciones y tradiciones culturales (SARLO, 1980, p. 4). A renovao crtica que se d nesse momento funda-se neste paradoxo, pensar a literatura latino--americana como uma unidade na diversidade de textos, funes e tradies culturais, entendendo-a como um processo dinmico.

    Uma das contribuies fundamentais de Antonio Candido no evento foi a firmao do conceito de sistema literrio. Mas neste artigo quero retomar uma ideia mais geral que ele expressou em referncia Antropofagia no artigo Digresso sentimental sobre Oswald de An-drade. Nele, Candido integra o movimento antropofgico dentro de uma corrente constante na literatura brasileira constituda pela refle-xo sobre o choque de culturas:

    difcil dizer no que consiste exatamente a Antropofagia, que Oswald nunca formulou, embora tenha deixado elementos suficientes para vermos embaixo dos aforismos alguns princpios virtuais, que a integram numa linha cons-tante da literatura brasileira desde a Colnia: a descrio do choque de cultu-ras, sistematizada pela primeira vez nos poemas de Baslio da Gama e Santa Rita Duro. O Modernismo deu seu cunho prprio a este tema, que de certo modo se bifurcou num galho ornamental, grandiloquente e patrioteiro com o Verde-amarelismo e todas as perverses nacionalistas decorrentes; e num galho crtico, sarcstico e irreverente, cuja expresso maior foi a Antropofa-gia (englobando Macunama). [...] Ele e Mrio (mas no Bopp, que entrou por outro filo) exploraram com originalidade o tema bsico do encontro cultu-ral, manipulando o primitivismo de maneiras diferentes. (CANDIDO, 1995, p. 99-100)

    Esse tema bsico do encontro entre culturas diversas encontra-se tambm na literatura latino-americana, e faz da traduo um dos pro-cedimentos essenciais. A formulao da Antropofagia a que se referia Candido mostra a centralidade do processo de traduo, ao situar a devorao como forma de se relacionar com o estrangeiro e a mo-dernidade. Esta devorao simblica, ingesto e digesto do forneo, constitui uma operao de assimilao crtica da diferena, que integra a traduo no cerne de seus processos criativos, como evidencia o gri-to de guerra dos Antropfagos: Tupi or not tupi, that is the question. Este lema constitui a reivindicao do livre exerccio da citao e mon-

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    tagem de fontes alheias como fonte de criao e conhecimento, e inau-gura a analogia entre a devorao canibal e os processos de produo, circulao e apropriao cultural (JAUREGUI, 2008, p. 39).

    Mas as relaes que estabelecem os antropfagos no s se reali-zam em direo ao exterior; o impulso por traduzir e apreender cul-turas diversas refere-se tambm s diferentes expresses culturais do Brasil: A antropofagia identifica o conflicto existente entre o Brasil caraba, verdadeiro, e o outro que s traz o nome. Porque no Brasil preciso distinguir a elite, europea, do povo, brasileiro. Ficamos com este, contra aquela (Revista de Antropofagia, 2, n 2). Entre os moder-nistas surge o interesse por captar um universo cultural que at esse momento tinha sido rejeitado, com referncias na Revista de Antropofa-gia ao padre Ccero, Lampio, Piolim, o sambista Sinh, e a recriao do universo popular tanto nos poemas de Jorge de Lima e Raul Bopp, como nos desenhos de Tarsila, Pagu, Di Cavalcanti ou Ccero Dias.

    Desta maneira a Antropofagia enuncia de maneira afirmativa e emblemtica o tropo do canibalismo como senha de identidade. As-sim, a identidade brasileira se define no como essncia, mas como um conceito relacional: no dilogo com a diferena, no gesto antropo-fgico, se define a identidade, como operao de apropriao criativa de bens culturais distintos, que reivindica uma iniciativa e compreen-so de abaixo, e ao mesmo tempo uma distncia, uma posio crtica e irreverente. Trata-se, como assinalou Haroldo de Campos, de um nacionalismo modal, diferencial (1992, p. 236). De forma excepcional nos anos trinta (em que os nacionalismos caminhavam perigosamente perto do fascismo), a Antropofagia situa a traduo cultural como a oportunidade de uma identidade dinmica e compreensiva que, frente s diversas formas de imposio e dependncia cultural, busca insti-tuir novas relaes de poder, em que as interaes entre expresses culturais diversas no sigam uma nica direo vertical, mas que se configurem em mltiplas trajetrias.

    Por isso, apesar da caducidade de algumas formas vanguardistas, a Antropofagia continua sendo nossa contempornea e recuperada por alguns tericos da traduo, como Haroldo e Augusto de Campos, Else Vieira ou Dora Sales, como perspectiva tradutria que, conscien-te dos fenmenos e presses da colonizao, que provoca a tenso e relao desigual de sistemas lingusticos e culturais, enfatiza a iniciati-va devoradora do tradutor e o processo de interao mtua, criao e compreenso intercultural que se produz na traduo (CHAUME; GARCA, 2010, p. 76-78).

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    A professora Dora Sales concebe a traduo vinculada ao conceito de transculturao que tambm procede da teoria literria latino-ameri-cana. Foi proposto nos anos setenta pelo crtico uruguaio ngel Rama, que o tomou do antroplogo cubano Fernando Ortiz e o reformulou para a literatura na sua obra La transculturacin narrativa en Amrica La-tina. Para Rama a transculturao narrativa quer dar conta do processo de incorporao e transformao de elementos culturais regionais e po-pulares dentro de formas narrativas modernas, na tenso interna das sociedades latino-americanas entre regionalismo e modernizao.

    No seu livro, Rama assinala a transformao que sofrem as formas literrias regionalistas ao enfrentar-se com as inovaes introduzidas pela narrativa urbana a partir da dcada de trinta. Para este crtico, neste momento o regionalismo expressa o conflito entre duas foras culturais diferentes, isto , entre as sociedades regionais que procuram preservar seu conjunto de valores e tradies locais e a modernizao imposta a partir das cidades. Rama procura entender este choque e as formas narrativas que produz a partir do conceito antropolgico de transculturao enunciado por Fernando Ortiz: segundo ele o contato cultural no passivo nem efeituado em uma nica direo, mas dinmico e no processo se produzem destruies, reafirmaes e aqui-sies dos elementos em contato. Assim, os escritores que segundo Rama realizam este movimento transculturador so capazes de inte-grar, na sua obra literria, tanto a tradio como as novidades. No en-tanto, este processo no se reduz simples sntese: os escritores trans-culturadores no se limitam a um sincretismo por mera conjugao de contribuies de uma e outra cultura, mas compreendem que, sendo cada uma delas uma estrutura, a incorporao de novos elementos de procedncia externa deve ser obtida mediante uma rearticulao total da estrutura cultural prpria (regional), apelando para novas focali-zaes dentro de sua herana (RAMA, 2001, p. 215). Segundo Rama, este movimento transculturador encontra-se no processo criativo dos grandes romances latino-americanos de Gabriel Garca Mrquez, Juan Rulfo, Jos Mara Arguedas, Augusto Roa Bastos e Joo Guimares Rosa. Frente diversidade lingustica da Amrica Latina estes autores optariam pelo reconhecimento da necessidade de uma lngua liter-ria, especfica da criao artstica, que desenvolvesse um discurso lin-gustico homologante, no qual se pode perceber a absoro de um trao da modernidade (RAMA, 2001, p. 219).

    A considerao do material popular uma das caratersticas fun-damentais destes narradores:

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    Ter reconhecido a existncia e a importncia desse material uma das particu-laridades desses escritores que testemunham seu processo de enraizamento nas culturas internas, voltadas para suas origens e substncias da Amrica Latina, porque s um contato muito estreito com seu funcionamento podia permitir--lhes dar ateno a elementos lingusticos e literrios carentes de valorao ar-tstica. E ao mesmo tempo, s uma percepo esttica renovada que vinha da modernizao do continente podia autoriz-los a recompor sobre aqueles ele-mentos um discurso superior que se confirmava e enfrentava os produtos mais hierarquizados de uma literatura universal. (RAMA, 2001, p. 237)

    No entanto, da perspectiva crtica atual, que incorpora as contri-buies do ps-colonialismo e dos estudos culturais, podem ser feitos alguns questionamentos a esta definio da transculturao, por rele-gar os elementos populares falta de iniciativa e ao exotismo. Pois a teoria da transculturao ao integrar o indgena ou o popular em um discurso superior e homologante em certa maneira anula sua es-pecificidade. Existe na transculturao uma inteno conciliadora que procura assimilar a constitutiva heterogeneidade cultural latino-ame-ricana a um corpus literrio culto, unitrio e homogneo, que respon-de aos padres da modernidade. Deste lugar, o latino-americano pode comparar-se com os produtos mais hierarquizados de uma literatura universal. Alberto Moreiras avalia a transculturao sublinhando pre-cisamente isto: um modelo produtivo, mas tambm um modelo que deve funcionar e mesmo se alimentar da rasura sistemtica do que no cabe nele (2001, p. 234).

    A formulao da transculturao tem que ver com as necessidades polticas dos intelectuais dos anos setenta. Seu projeto cultural consistia na construo de um espao identitrio de resistncia capaz de se opor influncia cultural norte-americana e a partir do qual poder integrar--se no processo modernizador sem perder a prpria especificidade. No entanto, este projeto estava marcado por um conceito de integrao nacional que tentava apagar os conflitos internos, a hegemonia dos in-telectuais urbanos e a confiana na ideologia do desenvolvimento.

    Todas estas ideias foram continuamente repensadas por Rama. Na ltima entrevista que ele deu antes da sua prematura morte em 1983, assinala a importncia do fenmeno da plasticidade cultural, em ter-mos prximos Antropofagia brasileira:

    Yo creo que es una hazaa de los pueblos del Tercer Mundo, la capacidad que tienen para transformar todo esto. Yo alguna vez dije que la operacin que haca Borges con la informacin universal para elaborar sus cuentos vale

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    decir la manera en que l cita cosas reales, soadas o inventadas; la manera en que l maneja la bibliografa y hace con ella cualquier cosa, transformndola en cuentos era una operacin de bricolage, [...] es lo que hace un indgena peruano al cual le traen las tijeras, que son para cortar, y las transforma en instrumento de msica. Toda la msica peruana india est hecha con instru-mentos espaoles, pero con ellos los indgenas han hecho otra cosa. Ese es el fenmeno de creatividad que me parece importante. La idea de esconderse y ponerse rgido dentro de las tradiciones no sirve de nada. El problema es esa plasticidad, esa capacidad para responder al desafo que presentan todos esos materiales y hacer con ellos una cosa nueva. (RAMA, In: DAZ, 1991, p. 29)

    E a transculturao continua irradiando pensamento crtico. As-sim, esta noo ressignificada nos anos setenta pela crtica literria de ngel Rama, ganha atualidade no Manifesto transculturale, lanado em Roma em maio de 2011 pelo professor italiano Armando Gnisci, publicado em numerosos meios digitais, e no Brasil traduzido para o portugus por Patricia Peterle. Frente ao desgaste das noes de multi-culturalismo e interculturalidade, Gnisci prope explicitamente a recu-perao do pensamento latino-americano como modelo e projeto:

    A Transculturao ajuda a reconhecer como evidente a histria particular de cada cultura para hibridizar com outras culturas e gerar novas formas criou-las e imprevisveis. Assim como nos ensinaram Fernando Ortiz, Oswald de Andrade, Aim Csaire, Frantz Fanon, douard Glissant, Walter Mignolo, Roberto Fernndez Retamar, Eduardo Galeano, Sub-comandante Marcos, Le-onardo Boff e tantos outros. O pensamento e a prxis transculturais indicam que isto acontece na mutualidade da troca e na transformao imprevisvel, alm da violncia e do comando. Seguindo o pensamento latino-americano, queremos nos propor como aqueles que respondem pela parte europeia, em contraponto e em relao. Ns identificamos e articulamos o projeto da Trans-culturao em trs movimentos, no tanto sucessivos, mas contemporneos e coevolutivos: Descolonizao, Crioulizao e Mundializao, todas mtuas. (GNISCI, 2011, s/p)

    Finalmente, a contribuio de Antonio Cornejo Polar para os es-tudos literrios latino-americanos tambm est vinculada aos fen-menos de interao cultural no seio da literatura. Ele pensou questes vinculadas ao processo literrio no Peru e a escritores como Garcilaso de la Vega Inca e, sobretudo, Jos Mara Arguedas. A noo crucial para Cornejo Polar heterogeneidade, que para ele caracteriza a lite-ratura latino-americana:

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    [...] uma literatura que somente se reconhece em sua radical e insolvel he-terogeneidade, como construo de vrios sujeitos social e etnicamente dis-smeis e confrontados, de racionalidades e imaginrios distintos e inclusive incompatveis, de linguagens vrias e dspares em sua mesma base material, e tudo no interior de uma histria densa, em cuja espessura acumulam-se e desordenam-se vrios tempos e muitas memrias. (CORNEJO POLAR, 2000, p. 296)

    Esta definio nos leva necessidade de ampliar o conceito de li-teratura, que at pouco tempo atrs s atendia s produes cultas em lngua europeia. Qu pasa con las literaturas orales de Amrica Latina?, preguntava-se Antonio Cornejo Polar numa entrevista rea-lizada por Beatriz Sarlo, junto a ngel Rama, durante o encontro em Campinas. E constatava: Han sido doblemente negadas: por un lado, con frecuencia, se las niega como literatura, a partir de un concepto de literatura culta que supone la escritura; y, por otra parte, se les niega la categoria de literatura nacional o latino-americana, puesto que no las incorporamos al conjunto de los textos (CORNEJO POLAR, In: SAR-LO, 1980, p. 10). Estas afirmaes envolvem a necessidade de um novo paradigma crtico para pensar a produo literria de Amrica Latina que seja capaz de articular a tradio literria europeia com as formas autctones nas suas diversas manifestaes. No artigo Unidade, plu-ralidade, totalidade: o corpus da literatura latino-americana, Antonio Cornejo Polar assinalava:

    A necessidade de repensar e reformular o corpus da literatura latino-america-na deriva da certeza de que sua delimitao atual obedece, em ltima instn-cia, a uma viso oligrquico-burguesa da literatura, viso que foi transmuta-da em base crtica quase axiomtica, mediante operaes ideolgicas que s recentemente so discernveis como tais. Deriva tambm da convico de que o desenvolvimento real das contradies sociais na Amrica Latina permite ensaiar outras alternativas que se vinculem aos interesses e cultura popula-res. (2000, p. 25)

    Para Cornejo Polar a tenso entre as esferas oral e escrita, entre criadores, pblicos e setores de circulao distintos, entre funes e ins-tituies literrias diversas, e, em ltima instncia, entre imaginrios e formas de expressar o mundo dissmeis, corresponde, no seio do pro-cesso literrio, s fortes tenses sociais e histricas que caracterizam as sociedades profundamente desiguais da Amrica Latina. Trata-se do

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    [...] conflito implcito numa literatura produzida por sociedades internamente heterogneas, inclusive multinacionais dentro dos limites de cada pas, ainda marcadas por um processo de conquista e uma dominao colonial e neoco-lonial que apenas uma vez, em Cuba, se pde romper de maneira definitiva. Uma literatura produzida por sociedades assim constitudas no pode deixar de refletir e/ou reproduzir os mltiplos nveis de um conflito que impregna a totalidade de sua estrutura e sua dinmica. (CORNEJO POLAR, 2000, p. 21)

    Nesta perspectiva, as concepes da traduo que salientam a questo do poder no mbito cultural podem ser produtivas para a re-flexo sobre a literatura latino-americana. Entre elas destacam as con-sideraes de Gayatri Chakravorty Spivak, que vincula a traduo em um contexto ps-colonial a um imperativo tico, situado num limiar de impossibilidade:

    A traduo , portanto, no somente necessria, mas inevitvel. Entretanto, na medida em que o texto guarda seus segredos, ela se torna impossvel. A tarefa tica nunca realizada de fato [...] Fetichizar a lngua aborgine no faz desaparecer essa tarefa fundadora da traduo. s vezes leio e ouo que o subalterno pode falar em suas lnguas nativas. Eu gostaria de poder ter essa autoconfiana to firme e inabalvel que tm o intelectual, o crtico literrio e o historiador que, alis, afirmam isso em ingls. Nenhuma fala fala enquanto no ouvida. esse ato de ouvir-para--responder que se pode chamar de o imperativo para traduzir.Frequentemente confundimos isso com ajudar pessoas em dificuldade, ou com pressionar pessoas para que aprovem boas leis, at mesmo para que insistam, em nome de outra, que a lei seja implementada. Mas a traduo fundadora entre as pessoas um ouvir atentamente, com afeto e pacincia, a partir da normalidade do outro, o suficiente para perceber que o outro, silen-ciosamente, j fez esse esforo. (SPIVAK, 2005, p. 58)

    A referncia crtica ps-colonial para pensar a literatura latino--americana se sustenta na persistncia, aps dois sculos da indepen-dncia, de condies sociais e culturais de dominao, como apontava Antonio Cornejo Polar. o que o socilogo peruano Anbal Quijano define com o termo colonialidade: um especfico padro de poder cara-terizado pela relacin jerarquizada y de desigualdad entre tales iden-tidades europeas y no europeas y de dominacin de aquellas sobre estas, en cada instancia del poder, econmica, social, cultural, intersub-jetiva, poltica (QUIJANO, 2000, p. 140).

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    As consideraes da centralidade do encontro cultural na litera-tura latino-americana, assinalada por Antonio Candido, e das relaes de interao cultural que fundamentam a noo de transculturao de ngel Rama, juntamente com as implicaes literrias da heterogenei-dade constitutiva das sociedades latino-americanas, salientadas por Antonio Cornejo Polar, levam a apreciar a traduo como procedimen-to heurstico para compreender esta literatura.

    Dentro da literatura latino-americana encontramos expresses li-terrias que evidenciam na sua constituio formal a tenso entre m-bitos culturais diversos e que respondem a uma vontade de dilogo e intercmbio. Para estas obras a noo de traduo cultural bsi-ca. Estas obras implicam a compreenso e re-escritura de elementos culturais distintos e tambm, em muitas ocasies, a passagem de uma lngua para outra. Estas expresses literrias, que no constituem a to-talidade da literatura latino-americana, mas uma parte significativa, so aquelas que se implicam no dilogo cultural e lingustico, e tentam responder s tenses provocadas pela condio colonial, numa din-mica de intercmbios e reescrita de matriz tradutria. Desta maneira, a traduo pode ser entendida como um fazer, uma prtica, assumida em diversos graus na literatura latino-americana e que explica algumas das suas especificidades.

    Na regio andina, os exemplos so abundantes. Paradigmtico o caso de Waman Puma, tradutor de profisso a servio das autoridades coloniais do sculo XVII, que escreve uma longa carta ao rei espanhol Felipe III, a Nueva cornica y buen gobierno, relatando os desastres da conquista. Nesse documento extraordinrio, as aproximaes e relu-tncias entre as culturas andina e ocidental so muito marcadas, do ponto de vista histrico (a concepo do tempo), cultural (a organiza-o da vida, da religio, do espao), lingustico (Waman transforma o espanhol num idioma hbrido, com frequentes interpolaes do qu-chua e fragmentos extensos sem traduo) e formal (o autor utiliza o gnero hispnico da crnica, mas interfere nele impondo a preeminn-cia da imagem sobre a letra).

    As obras de Jos Mara Arguedas e de Gamaliel Churata mostram tambm a importncia destes procedimentos. Fora da rea andina, Juan Rulfo, Rosario Castellanos, Wilson Bueno ou Augusto Roa Bastos poderiam ser estudados sob esta perspectiva.

    O estudo da traduo cultural na literatura latino-americana teria pois, como objeto de pesquisa, aquelas construes literrias que ten-tam recriar e traduzir as prticas do outro-prximo latino-americano, e onde podem ser observadas atitudes diversas, desde a motivao ideo-

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    lgica a que responde a imagem da alteridade, ou a apreenso exotista de sua linguagem e costumes, at a procura no limiar da impossibilida-de de uma aproximao receptiva. nestas ltimas produes onde a heterogeneidade constitutiva da cultura latino-americana pe prova a lngua, no sentido apontado por Walter Benjamin, e o esforo da tra-duo cultural permite, como assinala Homi Bhabha, que o novo entre no mundo:

    Se hibridismo heresia, blasfemar sonhar. Sonhar no com o passado ou o presente, e nem com o presente contnuo; no o sonho nostlgico da tradio nem o sonho utpico do progresso moderno; o sonho da traduo, como sur-vivre, como sobrevivncia, como Derrida traduz o tempo do conceito benjaminiano da sobrevida da traduo, o ato de viver nas fronteiras. Rushdie traduz isto como o sonho de sobrevivncia do migrante: um interstcio inicia-trio; uma condio de hibridismo que confere poder; uma emergncia que transforma o retorno em reinscrio ou redescrio; uma iterao que no tardia, mas irnica e insurgente. Isto porque a sobrevivncia do migran-te depende, como afirma Rushdie, da descoberta de como o novo entra no mundo. (BHABHA, 1998, p. 311)

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