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A tragédia sem finalidade (A relação entre a cultura subjetiva e objetiva em Simmel) 06/07/2007 Ana Carolina Porto* Introdução Se houvesse a necessidade de inserção de Georg Simmel em uma rubrica, que não prejudicasse tanto a imensa complexidade de sua obra, sem dúvida esta seria a da versatilidade. Entretanto, esta característica, assim como grande parte dos conceitos de Simmel, não apresenta apenas um aspecto. Se por um lado, ela foi responsável pelo caráter atemporal da sociologia deste autor, por outro, ela trouxe consigo toda sorte de olhares de desconfiança quanto ao caráter sociológico de sua obra. Levando em consideração estes dois aspectos, tencionamos com este trabalho analisar o problema da alienação neste autor, inclusive observando de que maneira o conceito de tragédia em Aristóteles pode nos permitir extrair ou não uma perspectiva emancipatória da idéia de tragédia da cultura em Simmel. Princípio da dualidade: forma e conteúdo Ainda que no conjunto da obra de Simmel as suas influências permaneçam tácitas, poucos negariam o peso que a filosofia de Kant exerceu sobre a concepção simmeliana. Se Kant se indagava, na Crítica da Razão Pura, como era possível a natureza, Simmel se questionava sobre a possibilidade da sociedade (Moraes, 1983, p.20). E é justamente com relação a esta definição de sociedade (ou sociação[1] ) que a perspectiva de Kant se mostra de maneira mais clara, na medida em que o dualismo forma e matéria – ou para Simmel, forma e conteúdo – são os pilares deste conceito. No que concerne a esta questão, a análise da idéia de sociedade vai passar pela distinção entre forma e conteúdo, embora esta diferenciação seja realizada de maneira metafórica, já que na realidade estas duas concepções são indissociáveis. Isto é, “esta oposição deve ser entendida em seu sentido peculiar, sem se deixar levar pela significação que tais designações possam ter em outros aspectos” (Simmel, 1914 apud: Moraes Filho, 1983, p. 59). Dessa forma, podemos perceber que embora esta distinção, em realidade, não se concretize, ela se torna necessária como recurso metodológico, uma vez que permite compreender o que é a sociedade, ou, nas palavras de Simmel (1914 apud: Moraes Filho, 1983, p.61)., separar por abstração científica estes dois elementos, forma e conteúdo, que são na realidade inseparavelmente unidos; sistematizar e submeter a um ponto de vista metódico, unitário, as formas de interação ou sociação, mentalmente desligadas dos conteúdos, que só por meio delas se fazem sociais, me parece a única possibilidade de fundar uma ciência especial da sociedade como tal. Por matéria ou conteúdo, Simmel compreende tudo o que existe dentro do indivíduo, a saber: interesse, objetivo, instinto, ou seja, tudo que permita ação sobre os outros ou recepção de influências. No entanto, estas matérias isoladamente não constituem uma sociação. O fenômeno da sociação só se configura quando estas matérias se aliam às formas de colaboração, de cooperação, isto é, de interação social. Ora, esta relação entre as formas e os conteúdos – a qual Frédéric Vandenberghe (2005, p.55) denomina de o primeiro princípio da dualidade em Simmel – é

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A tragédia sem finalidade (A relação entre a cultura subjetiva e objetiva em Simmel) 06/07/2007 Ana Carolina Porto*

Introdução Se houvesse a necessidade de inserção de Georg Simmel em uma rubrica, que não

prejudicasse tanto a imensa complexidade de sua obra, sem dúvida esta seria a da versatilidade. Entretanto, esta característica, assim como grande parte dos conceitos de Simmel, não apresenta apenas um aspecto. Se por um lado, ela foi responsável pelo caráter atemporal da sociologia deste autor, por outro, ela trouxe consigo toda sorte de olhares de desconfiança quanto ao caráter sociológico de sua obra.

Levando em consideração estes dois aspectos, tencionamos com este trabalho analisar o problema da alienação neste autor, inclusive observando de que maneira o conceito de tragédia em Aristóteles pode nos permitir extrair ou não uma perspectiva emancipatória da idéia de tragédia da cultura em Simmel.

Princípio da dualidade: forma e conteúdo

Ainda que no conjunto da obra de Simmel as suas influências permaneçam tácitas,

poucos negariam o peso que a filosofia de Kant exerceu sobre a concepção simmeliana. Se Kant se indagava, na Crítica da Razão Pura, como era possível a natureza, Simmel se questionava sobre a possibilidade da sociedade (Moraes, 1983, p.20). E é justamente com relação a esta definição de sociedade (ou sociação[1]) que a perspectiva de Kant se mostra de maneira mais clara, na medida em que o dualismo forma e matéria – ou para Simmel, forma e conteúdo – são os pilares deste conceito.

No que concerne a esta questão, a análise da idéia de sociedade vai passar pela distinção entre forma e conteúdo, embora esta diferenciação seja realizada de maneira metafórica, já que na realidade estas duas concepções são indissociáveis. Isto é, “esta oposição deve ser entendida em seu sentido peculiar, sem se deixar levar pela significação que tais designações possam ter em outros aspectos” (Simmel, 1914 apud: Moraes Filho, 1983, p. 59).

Dessa forma, podemos perceber que embora esta distinção, em realidade, não se concretize, ela se torna necessária como recurso metodológico, uma vez que permite compreender o que é a sociedade, ou, nas palavras de Simmel (1914 apud: Moraes Filho, 1983, p.61).,

separar por abstração científica estes dois elementos, forma e conteúdo, que são na realidade inseparavelmente unidos; sistematizar e submeter a um ponto de vista metódico, unitário, as formas de interação ou sociação, mentalmente desligadas dos conteúdos, que só por meio delas se fazem sociais, me parece a única possibilidade de fundar uma ciência especial da sociedade como tal.

Por matéria ou conteúdo, Simmel compreende tudo o que existe dentro do

indivíduo, a saber: interesse, objetivo, instinto, ou seja, tudo que permita ação sobre os outros ou recepção de influências. No entanto, estas matérias isoladamente não constituem uma sociação. O fenômeno da sociação só se configura quando estas matérias se aliam às formas de colaboração, de cooperação, isto é, de interação social.

Ora, esta relação entre as formas e os conteúdos – a qual Frédéric Vandenberghe (2005, p.55) denomina de o primeiro princípio da dualidade em Simmel – é

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intrinsecamente dialética dado que, a um só tempo, eles se contrapõem e se complementam. Se por um lado, as formas tencionam enquadrar os conteúdos que – tal qual a vida – estão cheios de pulsões, fluidez e energia vital, por outro, esta separação, ou oposição, só existe metodologicamente e, portanto, eles são essencialmente complementares. Ainda que haja uma oposição entre ambos, os conteúdos só existem quando se insinuam em formas, e estas só tem existência quando repletas de conteúdos.

É neste jogo entre oposição e complementação que devemos entender o princípio da dualidade – aqui exemplificado pela interação entre forma e conteúdo – que irá permear todo o conjunto da obra de Simmel. Sem a compreensão de como se estrutura esta idéia de dualidade seria difícil elucidar qualquer conceito do pensamento simmeliano e, logicamente, também o que nos interessa neste momento: a alienação.

A alienação

O processo de alienação em Simmel está muito próximo da idéia de alienação em

Marx – embora neste a alienação seja um processo histórico. No primeiro como no último, ela se define pelo sentimento de estranhamento que, por exemplo, ocorre quando o trabalhador não se reconhece no produto de seu trabalho, sobretudo porque este produto assume uma autonomia em relação ao indivíduo. Em Simmel, a divisão do trabalho em consonância com a economia monetária propicia o desenvolvimento da alienação, o que não quer dizer que o modo de produção capitalista seja responsável por este processo. Na perspectiva simmeliana há um espelhamento entre a divisão do trabalho e a alienação, sem que um tenha determinado o outro.

Isso acontece na medida em que a divisão do trabalho se caracteriza por ser uma atividade especializada, extremamente racional, que por tal estrutura exige do indivíduo apenas parte de si mesmo. Sendo assim, contribui infinitamente para o atrofiamento da personalidade do indivíduo, uma vez que só o trabalho completo – em contraposição ao especializado, em que cada um exerce apenas uma função na produção – permite ao indivíduo demonstrar a totalidade do seu eu.

Se esta atividade não possibilita ao indivíduo desenvolver-se inteiramente, fica difícil pensar em uma relação harmônica entre o sujeito e o objeto. Neste sentido, o estranhamento do trabalhador em relação ao produto de seu trabalho é inevitável. O curioso é que até a força de trabalho se coisifica e se transforma em um objeto independente do indivíduo, contribuindo assim para engordar o sentimento de estranhamento e impulsionar o processo de alienação. O trabalhador, desprovido dos meios de produção, não tem outra saída a não ser vender a sua força de trabalho, isto é, coisificá-la, transformá-la em mercadoria que passa a ter uma vida própria independente da vontade dos indivíduos Para explicar este tipo de alienação, nada melhor que as palavras do próprio Simmel (p.583 apud: Vandenberghe, 2005, p.184): O trabalhador “não se vê mais em sua ação, que revela uma força estranha a todo psiquismo pessoal, e ele não a sente mais descer até a raiz de seu sistema global”.

Aqui mais uma vez a divisão do trabalho movimenta este processo, mas desta vez por meio da separação entre o trabalhador e os seus meios de produção.

Ora, trabalhador possui os meios subjetivos de produção – já que estes são indissociáveis do indivíduo – mas, com o desenvolvimento da divisão do trabalho, os meios objetivos passam a pertencer ao capitalista. Esta divisão estende sua atuação até ao universo científico, em que freqüentemente se tem os meios subjetivos, porém, ao cientista não é dada a possibilidade de criar seus próprios meios objetivos de produção, ou seja, os métodos de pesquisa, que são, na maioria das vezes, adotados a partir do que já existe.

Outro exemplo que pode ilustrar o problema da alienação é o das mercadorias, não mais no que diz respeito aos seus produtores, porém no que concerne aos consumidores, sem esquecer a questão do estilo e da moda.

As mercadorias, antes do desenvolvimento da divisão do trabalho, eram confeccionadas sob medida para o consumidor. Havia inclusive uma relação muito íntima entre os produtores e os consumidores e, conseqüentemente, uma forte identificação entre a mercadoria e o seu comprador. Todavia, com o advento da divisão do trabalho é

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humanamente impossível que o consumidor tenha um contato, mesmo que mínimo, com todos os trabalhadores que fazem um produto.

Dessa forma, as mercadorias passam a ser produzidas não mais tencionando um determinado indivíduo, mas uma massa sem definição. Então, não é difícil pensar que a partir daí quase não há identificação entre produtos e consumidores, e claro, o sentimento de estranhamento é cada vez maior. É bom lembrar que Simmel também considera a profusão crescente de estilos, oriunda do alargamento do conhecimento histórico, como um elemento que contribui para a ausência de identificação entre o sujeito e o objeto.

Conforme dissemos, Simmel aponta que o fenômeno da alienação atingiu também a moda. O desenvolvimento e, sobretudo, o papel da moda sempre esteve atrelado a um mecanismo de identificação e de diferenciação, ou, sendo fiel aos conceitos de Simmel, de aproximação e distanciamento. A um só tempo ela buscava unificar as camadas mais abastadas e distingui-las das de menor poder aquisitivo.

No entanto, na modernidade, o surgimento de novos recursos tecnológicos possibilitou o falseamento[2] de objetos que até então ficavam restritos às classes ditas “superiores”. Assim, embora os indivíduos de menor poder aquisitivo não tivessem acesso aos artigos originais da elite, eles poderiam desfrutar de cópias, algumas vezes, quase tão perfeitas, que um olhar menos atento não seria capaz de fazer uma distinção.

Como uma das funções da moda era justamente diferenciar as camadas sociais, tornou-se necessário um ritmo mais acelerado, que permitisse às camadas superiores se distinguirem das demais.

Neste sentido, a moda alcança uma cadência frenética, que faz com que o indivíduo não se identifique com ela. Quando há a sinalização de uma intimidade entre pessoa e objeto, a nova estação traz tendências completamente diferentes e a adesão é quase espontânea. O resultado é que a sensação de estranhamento surge e com ela o completo alheamento dos indivíduos em relação aos objetos e vice-versa.

Podemos perceber claramente que o problema da alienação está a todo o momento permeando as obras de Simmel. Entretanto, falar de alienação, neste autor, sem discutir a liberação é ir de encontro ao princípio da dualidade tão presente em todos os seus trabalhos.

Quando Simmel analisa a economia monetária, ele mostra que o dinheiro, que a princípio surgiu para mediar a interface entre o sujeito e o objeto, torna-se cada vez mais o equivalente de mercadorias distintas e, assim, passa a ser concebido não mais como um meio, mas como um fim em si mesmo. Se o dinheiro, por esta perspectiva, contribuiu para o fomento da alienação, por outra, ele, ao se interpor na interação sujeito-objeto, permitiu a desvinculação entre o indivíduo e a sua propriedade, imprimindo um caráter impessoal às atividades econômicas e liberando os indivíduos dos constrangimentos de uma relação muito íntima com os objetos.

Até aqui, o conceito de alienação em Simmel está intrinsecamente relacionado à idéia de liberdade[3]. Diferentemente de Marx, que condiciona a emancipação à superação do modo de produção capitalista, Simmel não vê o dinheiro – principalmente pela ausência de particularidade deste – como um empecilho à emancipação do indivíduo. Pelo contrário. Para o autor, o nexo pecuniário, ao separar e distanciar os sujeitos e os objetos, permite inclusive que os primeiros se voltem para si e cultivem o plano da alma.

A leitura dos três ensaios de Simmel: “A metrópole e a vida mental”, “O dinheiro na cultura moderna” e “A divisão do trabalho como causa da diferenciação da cultura subjetiva e objetiva”, deixam a sensação de que a esfera de emancipação do indivíduo está no próprio jogo dialético alienação-liberação, isto é, até aqui Simmel coloca toda a responsabilidade sobre o indivíduo.

A análise que o autor faz sobre o dinheiro e a divisão do trabalho permanece coerente com a sua proposta metodológica, ou seja, com o princípio da dualidade. Se a economia monetária e a divisão do trabalho podem contribuir para o distanciamento entre o sujeito e o objeto, isso não quer dizer que este movimento só tenha um sentido. O autor deixa muito claro que a “ausência de particularidade” do dinheiro permite que

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ele trabalhe tanto quantitativamente, quanto qualitativamente. Em vez de atar as mãos dos indivíduos, como fazem os fatalistas, ele os coloca diante de possibilidades múltiplas, o que nem de longe é menos angustiante. Todavia, esta perspectiva de possibilidades se encerra com a conceituação de tragédia, e o pior, de uma tragédia sem catarse.

A tragédia sem finalidade

O que Simmel chama de “tragédia da cultura” é o que anteriormente já havíamos

mencionado: a prevalência da cultura objetiva sobre a subjetiva. O emprego do termo tragédia não é por acaso. O intuito do autor é demonstrar que o germe que tenciona destruir uma existência é imanente a esta existência. Nas palavras de Simmel (apud: Souza e Öelze, 1998, p. 108)

Antes, uma vez que este caminho como caminho cultural é condicionado pela autonomização e objetivação dos conteúdos da alma, surge a situação trágica de a cultura abrigar em si, em seus primeiros momentos de existência, aquelas formas de seu conteúdo que estão determinadas, por meio de uma inevitabilidade imanente, a desviar, dificultar e tornar perplexo e conflitante o caminho da alma em si como algo inconcluso para si mesma, algo perfeito – que corresponde a sua essência interior.

Aqui, tal qual em Édipo, por exemplo, a força que se direciona à destruição do

herói trágico, que no caso são os indivíduos – ou melhor, as suas almas – emerge da própria essência da tragédia. Se Édipo, ao maldizer o assassino do rei, desconhece que maldiz a si mesmo, a cultura subjetiva, ao se relacionar constantemente com a cultura objetiva, desconhece que esta última pode se tornar autônoma e simplesmente negligenciar o papel que lhe é próprio: cultivar as almas individuais.

A explicação sobre de que maneira este processo ocorre passa indubitavelmente pelas já mencionadas divisão do trabalho e economia monetária. Antes, no entanto, cabem algumas considerações sobre a idéia de cultura subjetiva e objetiva.

Quando Simmel fala em cultura subjetiva, ele se refere à cultura dos indivíduos, isto é, àquela, cuja maior parte do conteúdo, nós adquirimos a partir do conhecimento acumulado em nossa espécie (por meio das relações que desenvolvemos na sociedade), e a outra parte é pré-constituída e se oferece à realização nos indivíduos. Por outro lado, encontramos a cultura objetiva, ou seja, a cultura que os indivíduos depositam nos objetos, que ao se cristalizar, constitui a cultura da humanidade. Não podemos deixar de perceber que esta oposição trágica entre a cultura subjetiva e objetiva é mais uma feição do princípio da dualidade que utilizamos como exemplo: a oposição entre forma e conteúdo. (Vandenberghe, 2005, p. 59)

Esta constante interação entre ambas, este movimento ininterrupto de aproximação e distanciamento tem o intuito de engrandecer a cultura subjetiva, ou melhor, as almas individuais. Aqui, a cultura objetiva funciona como um meio pelo qual a cultura subjetiva garante o desenvolvimento do que lhe é mais importante: o plano da alma.

No entanto, com a divisão do trabalho e a economia monetária, há uma dissociação e “autonomização” de ambas, dando corpo ao que Simmel denomina de tragédia da cultura. Isso acontece quando os conteúdos culturais não mais desempenham o papel de cultivo das almas individuais. Ou seja, a partir do momento em que a objetivação da cultura não é mais positiva, ela se transforma em alienação. (Vandenberghe, 2005, p.179)

A forma especializada de divisão do trabalho, em conjunto com a economia do dinheiro, exige do indivíduo apenas uma parte de si, só que, enquanto cada indivíduo se aperfeiçoa em apenas um aspecto, os objetos guardam a energia de vários indivíduos,

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mesmo que não inteiros. É por isso, sem dúvida, que a cultura objetiva evolui em progressão geométrica, enquanto a subjetiva cresce a passos aritméticos.

E este crescimento da cultura objetiva torna-se ainda mais nocivo, na medida em que, para Simmel, tanto a liberdade quanto a alienação estão ligados à sensação de ser livre e de ser alienado. Com isso, a sensação de impotência dos indivíduos diante das incontáveis produções da cultura objetiva contribui para a intensificação do sentimento de alienação e, portanto, para a própria alienação.

Embora o nexo pecuniário ainda atue na relação entre a cultura subjetiva e a objetiva, no jogo de proximidade e distância entre ambas, fica claro que em Simmel elas assumem autonomia uma em relação à outra. Por exemplo, ainda que a compra de um aparelho celular garanta a aproximação da cultura cristalizada nele – que antes a divisão do trabalho, também por meio do dinheiro, havia distanciado – com a cultura dos indivíduos[4], a sensação de estranhamento, ou a alienação do indivíduo em relação ao objeto parece ser irreversível.

Ainda que o autor, ao esboçar sua teoria sobre o dinheiro, retire deste boa parte da responsabilidade pelo processo de alienação – cabe ao indivíduo toda a ação de ou se render completamente ao culto do deus dinheiro, ou se voltar ao cultivo do que lhe há de mais caro: a alma – quando ele constrói a noção de tragédia, o indivíduo fica praticamente sem ação.

É bom lembrar que a concepção simmeliana de cultura está intrinsecamente relacionada a esta constante interação entre a cultura subjetiva e a objetiva. Ainda que o dinheiro não obstaculize o trabalho de cultivo da alma, este mesmo trabalho somente se torna cultura quando a alma interage com a cultura objetiva. Ou seja, há duas alternativas: ou permanecer buscando este cultivo da alma nos objetos – que devido à divisão do trabalho não possuem nada que é próprio da alma, e portanto, nada têm para engrandecê-la – ou se voltar para o cultivo da alma, sem passar pelo objeto. Neste último caso, encontramos um outro problema enunciado por Simmel: a alma caminhando em direção a si mesma, o que significa que também não há este movimento de troca entre sujeito-objeto, e então, não há cultura.

Neste ponto, Simmel se aproxima bastante de Nietzsche, ao mostrar que o indivíduo pode se libertar de sua dependência pessoal, contudo, ele irá permanecer sempre na busca de um sentido para a vida. Até a obra de arte, que poderia suscitar um sentido – já que ela oferece resistência à divisão do trabalho – ao se cristalizar em cultura objetiva menospreza a cultura subjetiva por meio do ideal da “arte pela arte”, isto é, a arte cultivando a si mesma independentemente de sua função de cultivar as almas individuais.

Trocando em miúdos, o dinheiro pode não impedir a liberdade do indivíduo, mas o nexo pecuniário em consonância com a divisão do trabalho constitui um ambiente mais que propício ao fomento do germe destruidor que canaliza todas as suas forças em direção à cultura subjetiva.

Isso não quer dizer que o conceito de tragédia – da maneira que se encontra em Aristóteles – não deixe margem de ação ao indivíduo. O próprio Édipo mesmo tendo se perdido nas emaranhadas malhas do destino, ainda assim, encontrou na desgraça e, sobretudo, na sua cegueira voluntária, o caminho para a compreensão de si mesmo. No entanto, em Simmel, o indivíduo pode perder a possibilidade de se engrandecer devido ao crescimento absurdo da cultura objetiva:

O grande empreendimento do espírito – superar o objeto como tal por meio da criação de si mesmo como objeto, para retornar a si mesmo com o enriquecimento alcançado mediante esta criação – é bem sucedido inúmeras vezes; mas ele paga esta autoperfeição – condicionada à conformidade às leis próprias do mundo criado por ele mesmo – com a chance trágica de ver uma lógica e uma dinâmica serem produzidas, levando os conteúdos da cultura a se afastarem continuamente e com uma

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aceleração acrescente das finalidades da cultura. (Simmel apud: Souza e Öelze, 1998, p. 108).

Este é o caráter trágico da cultura que em Simmel extrapola o nível da esfera da

cultura e representa a própria essência trágica da vida. O que ocorre na cultura representa, metonimicamente, a tragédia inerente à vida que busca se fluidificar na formas, mas encontra, também nesta, o veneno que impede o cultivo da alma, tencionando sugar a energia vital desta. “A vida pressupõe a forma para existir, ainda que a forma se oponha à vida” [5]. (Vandenberghe, 2005, p.165)

Se em Aristóteles (1997, p. 38) a função da tragédia é obter a emoção trágica, por meio dos sentimentos de pena e temor, para então operar a catarse destes sentimentos; em Simmel ficamos nos perguntando se a catarse da alienação é possível, caso contrário, a tragédia neste autor parece não ter finalidade.

Assim, trançando uma incoerência na sua proposta metodológica, a concepção de cultura em Simmel tende à autodestruição, e a possibilidade dialética da renovação fica praticamente nula. Resta-nos apenas esperar que este brilhante sociólogo tenha se enganado, e que a dialética permanente de sua obra, agora sob a forma da alienação-emancipação, encontre seu substrato na destruição da forma de cultura que rompe com a dualidade e deixa a “dialética interrompida”.

Notas [1] Para Simmel, o mais apropriado seria o termo sociação, na medida em que esta expressão se solidariza com a idéia de processo. [2] Um exemplo concreto desta situação é a feira da “Sulanca”, em Pernambuco, que se especializou em falsificar roupas e assessórios de grifes internacionais. Aqui, podemos observar a ilusão da quebra da barreira entre os segmentos sociais. [3] Para Simmel, a liberdade não deve ser compreendida em sua acepção absoluta. Na verdade, ela sinaliza para uma dependência em relação a muitos, e o seu contrário seria a subordinação a poucos ou a um indivíduo – na medida em que a multiplicidade de relações é inclusive pré-condição para o surgimento da idéia de indivíduo. Só quando o homem se vê diante de uma infinidade de vínculos é que ele começa a conceber a sua individualidade em contraposição ao social. [4] Se observarmos, quando compramos um aparelho celular estamos aproximando a cultura subjetiva da cultura objetiva cristalizada nele. Neste caso, a alienação é representada pela sensação de estranhamento do indivíduo em relação ao objeto, isto é, pela dificuldade de assimilação da tecnologia inerente a este mesmo objeto, que parece possuir uma energia extra-humana. [5] Observamos, aqui, a junção que Simmel fez entre o kantismo, que valoriza a forma e negligencia a fluidez da vida, e o vitalismo que enfatiza a energia vital, mas descarta as formas. (Vandenberghe, 2005, p. 165) Referências: BRUNA, Jaime. A poética clássica/ Aristóteles, Horácio, Longino. São Paulo: Cultrix, 1997. MARX, Karl e ENGELS, Friedrich. A ideologia alemã. São Paulo: Grijalbo, 1977. MORAES FILHO, Evaristo de (Org.). Georg Simmel: Sociologia. São Paulo: Ática, 1983. SIMMEL, Georg. A metrópole e a vida mental. In: VELHO, Otávio G. (org.) O fenômeno urbano. Rio de Janeiro: Ed. Guanabara, 1987.

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SOUZA, Jessé; ÖELZE, Berthold (Org.). Simmel e a modernidade. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1998. VANDENBERGHE, Frédéric. As sociologias de Georg Simmel. Bauru, SP: Edusc; Belém: EDUPFA, 2005. *Ana Carolina Porto é graduada em Comunicação Social, habilitação Jornalismo, pela Universidade Federal da Paraíba. Mestranda em Sociologia da Cultura, pela mesma Universidade e bolsista CAPES.

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