O Serviço Social na trajetória do atendimento à infância e juventude ...
A TRAJETÓRIA DA INFÂNCIA ATÉ A CHEGADA DO HOMO … A TRAJETÓRIA DA INFÂNCIA... · A partir do...
Transcript of A TRAJETÓRIA DA INFÂNCIA ATÉ A CHEGADA DO HOMO … A TRAJETÓRIA DA INFÂNCIA... · A partir do...
A TRAJETÓRIA DA INFÂNCIA ATÉ A CHEGADA DO HOMO ZAPPIENS:
NOVOS RUMOS PARA A ESCOLA
BARBOSA, Raquel Firmino Magalhães – UFF
RESUMO
Observando a trajetória da infância, a criança apresentou diferentes características de
acordo com o período histórico, originando influências socioculturais, religiosas,
educacionais, familiares e tecnológicas. Para sustentar as discussões e reflexões que serão
aqui compartilhadas, serão apresentadas os principais conceitos de Ariès (2006), com a
construção sociocultural da infância; Heywood (2004), com a história da infância;
Kishimoto (1999) com as características da brincadeira; Bauman (2010; 2011), com a
metáfora da liquidez; Veen e Vrakking (2009), com as peculiaridades do homo zapping,
dentre outros. Assim, nesse estudo traçou-se uma reflexão sobre a construção
sociocultural da infância e a sua relação com a educação, trazendo algumas considerações
sobre o contexto sócio-histórico-cultural da infância desde a Idade Média até o momento
contemporâneo, com o objetivo de compreender a relação da geração zapping com a
instituição escolar e como esta pode interagir nesse processo. Este ensaio gira em torno
da infância e da necessidade dos atores escolares dialogarem com a realidade fora da
escola. O que motivou a investigação foi a seguinte indagação: a brincadeira, dentro deste
contexto, se modifica e/ou se adapta a esses novos tempos? Conclui-se que por meio da
metáfora do desconhecido, os professores-aventureiros poderão apreciar novas formas de
conhecimento e aprendizado, experimentar novos rumos, apresentando novos conceitos
e ideias, dentro de um processo cíclico por meio da educação. O desafio é encarar esse
novo mundo e todas as mudanças que vem com ele, a fim de nos aproximarmos o máximo
possível do “estado da arte” e conhecermos o mundo fora da caverna.
Palavras-chave: Infância. Educação. Professor.
Introdução
Dialogar sobre a infância, especialmente a sua trajetória, é uma maneira de
pensarmos sobre como essas mudanças influenciaram e influenciam a criança de hoje, e
ainda, como a escola se comporta neste cenário. Partindo desse ponto, este ensaio contou
com as perspectivas teóricas de Ariès (2006), Heywood (2004), Kishimoto (1999),
Bauman (2010; 2011), Veen e Vrakking (2009), dentre outros, no qual se traçou uma
reflexão sobre a construção sociocultural da infância e a sua relação com a educação,
trazendo algumas considerações sobre o contexto histórico da infância da Idade Média
até o momento contemporâneo, com o objetivo de compreender a relação da geração
zapping com a instituição escolar e como esta pode interagir nesse processo.
Didática e Prática de Ensino na relação com a Sociedade
EdUECE - Livro 300815
Este ensaio gira em torno da infância e da necessidade dos atores escolares
dialogarem com a realidade fora da escola, como uma possibilidade de refletirmos sobre
essa nova geração que possui uma grande interação com a tecnologia, e com professores,
de buscar diferentes conhecimentos e novos rumos para a escola, tornando possível
revelar uma escola fora da caverna, fazendo alusão ao “Mito da Caverna” de Platão.
De acordo com os poucos registros históricos, se mostrando muito ausente na
literatura, principalmente na fase medieval e em alguns períodos seguintes, a infância
percorreu um longo caminho para ter uma concepção sólida, principalmente pelo fato das
Ciências Humanas e Sociais demorarem para compreender o andamento da construção
sociocultural da infância (ARIÈS, 2006; CRUZ, 2008; SARMENTO e PINTO, 1997).
Entretanto, alguns historiadores se debruçaram sobre a temática da infância para
tratar sobre aspectos históricos da infância. Por meio desses apontamentos consegue
perceber a manifestação de diferentes rubricas conforme o período histórico: a criança
como um adulto em tamanho reduzido, no ambiente de trabalho, como o reflexo do
Menino Jesus, como um ser “engraçadinho”, a criança escolarizada até chegar à infância
que conhecemos hoje, a criança tecnologizada, juntamente com a influência sociocultural,
religiosa, educacional, familiar e tecnológica na vida das crianças (ARIÈS, 2006;
HEYWOOD, 2004; KISHIMOTO, 1999; VEEN e VRAKKING, 2009).
Os pesquisadores que se envolveram com o tema demonstraram a importância da
construção social da infância, a visão sobre a criança e suas brincadeiras e as concepções
e mudanças no que diz respeito à infância e sua ligação com a educação. Para Schultz, as
alterações no interesse de se estudar a história da infância se deu pelo fato de:
[...] cerca de 2 mil anos, desde a Antiguidade até o século XVIII, as crianças,
no Ocidente, eram consideradas como sendo meramente adultos imperfeitos.
Como elas eram consideradas “deficientes”, e totalmente subordinadas aos
adultos, essa etapa da vida provavelmente seria de pouco interesse, em si, para
os escritores medievais. Somente em épocas comparativamente recentes veio
surgir um sentimento de que as crianças são especiais e diferentes, e, portanto,
dignas de ser estudadas por si sós. (apud HEYWOOD, 2004, p. 10)
Ariès (2006) tenta elucidar algumas visões de mundo em relação à ausência da
infância e à construção da mesma como algo diferente da vida adulta. Fez um retrospecto
da concepção de infância a partir do século XII até o século XX, mostrando o modo como
a sociedade via a criança. Assim como Heywood (2004) que explora o tema da história
da infância, por meio de intensas investigações sobre obras e autores que já pesquisaram
sobre o tema, abordando sua pesquisa como um aprofundamento da trajetória da infância
Didática e Prática de Ensino na relação com a Sociedade
EdUECE - Livro 300816
e sua concepção desde Idade Média até o período contemporâneo, juntamente com o
relacionamento com a família e seus pares.
Durante a Idade Média, o conhecimento sobre a fase da infância não existia, havia
um total desconhecimento do significado de ser criança, isto é, não tinham descoberto o
sentiment de l’enfance, (Para Heywood, é uma expressão ambígua que transmite tanto a
ideia de uma consciência de infância quanto de um sentimento em relação a ela, 2004, p.
33) nada que distinguisse a criança do adulto. Não existia um período transitório para a
passagem da infância para a idade adulta, não havia consciência dessa etapa da vida. Para
Jacques Le Goff, “[...] a Idade Média utilitária não tinha tempo para compaixão ou
admiração pelas crianças, de forma que mal as notava” (apud HEYWOOD, 2004, p. 34).
A criança medieval era caracterizada com a rubrica de Homo faber, pois logo que
conseguiam sobreviver sem os cuidados da família eram lançadas ao terreno dos adultos.
Realizavam diferentes atividades desde brincadeiras à trabalhos manuais, adquiriam um
ofício e começavam a trabalhar cedo, ou seja, as crianças eram vistas como adultos em
menor escala (ARIÈS, 2006). Nesta fase, a brincadeira apresentava um caráter “não-
sério”, relacionado ao cômico, ao riso, ao lúdico e ao frívolo. Foi considerado como algo
que não justificava seriedade, pois estava estritamente relacionado aos jogos de azar,
praticados normalmente por adultos e imitado pelas crianças. Também havia a
característica de ser um passatempo, uma forma de relaxamento mental e físico e diversão
no tempo livre. Eram realizadas em locais abertos como ruas e praças, com grupos de
crianças e adultos de diferentes idades misturadas no mesmo ambiente, mostrando uma
infância ativa e dinâmica, rica em brincadeiras e liberdade, ou seja, apresentava uma
concepção de recreação (KISHIMOTO, 1999).
Durante o século XIII até o século XV, percebeu-se uma grande influência
religiosa e a mudança na percepção da infância, principalmente nos traços das esculturas
e pinturas de anjos, que ficaram com um aspecto de adolescentes e depois de rostos de
crianças, influenciado diretamente pela devoção da imagem do Menino Jesus,
apresentando uma maneira de se exaltar a infância. Para Heywood (2004, p. 11), “[...] os
românticos idealizavam a criança como criatura abençoada por Deus, e a infância como
uma fonte de inspiração que duraria a vida toda”, isto é, a idealização de uma infância
doce e sagrada. O brincar aparece como uma conduta típica da infância. Assumiu um
aspecto de espontaneidade, liberdade e prazer, comparando a criança à alma de um poeta
(KISHIMOTO, 1999).
Didática e Prática de Ensino na relação com a Sociedade
EdUECE - Livro 300817
A partir do século XV, o sentimento e a figura da criança começaram a serem
notadas, principalmente devido às descobertas sobre a graça, a alegria, os hábitos e as
falas enquanto eram pequeninas, em suas primeiras brincadeiras, “[...] ao tratar as crianças
como uma fonte de prazer e relaxamento, deleitando-se com sua doçura, sua simplicidade
e seus gracejos” (HEYWOOD, 2004, p. 33). Os adultos daquela época gostavam de
apreciar gestos, facécias e “[...] o gosto pelo pitoresco e pela graça desse pequeno ser, ou
o sentimento da infância “engraçadinha”, com que nós, adultos, nos divertíamos para o
nosso passatempo, assim como nos divertimos com os macacos” (ARIÈS, 2006, pp. 22-
23).
Contudo, a partir do século XVII, lançaram um olhar mais educativo para a criança
e o brincar, com a influência do cristianismo e um interesse pela educação, servindo para
diferenciar a infância de etapas futuras da vida. Utilizaram a escolarização e o emprego
de jogos educativos como instrumento rico para o processo de ensino-aprendizagem e
para o desenvolvimento das crianças. A forma lúdica de ensinar surgiu para
contrabalancear o ensino com a palmatória, ensinando valores e comportamentos,
favorecendo a aprendizagem por meio de jogos e brincadeiras (LAUAND, 2000). E
também passaram a apresentar o fator da intencionalidade como um fim pedagógico, para
estimular a aprendizagem das crianças (KISHIMOTO, 1999). Assim,
A infância tornou-se pedagogizada: o objetivo básico dos pedagogos dentro
das instituições e das famílias era o de criar o novo homem. (...) A brincadeira,
considerada como um vício no começo da Idade Moderna foi introduzido nas
instituições educacionais por filantropistas, com o intuito de tornar esses
espaços prazerosos e também como um meio educacional. (FRIEDMANN,
1998, p. 24)
A partir do século XIX, surgiram diversos estudos para caracterizar a brincadeira
durante a infância como: pré-exercício (teoria de Groos), motor do auto-desenvolvimento
(Claparède), expressão de conduta (Piaget) e construção social (Vygotsky).
Com os movimentos da Escola Nova do início do século XX, proporcionou que a
criança fosse vista de forma ativa e com todos os seus traços e comportamentos lúdicos,
buscando preservar e valorizar a espontaneidade e o caráter recreativo das mesmas
durante suas brincadeiras infantis, principalmente dentro das escolas.
A concepção escolanovista preserva a brincadeira com todo o seu arcabouço livre,
espontâneo e autotélico, que contribuiu para uma educação que estimulasse a formação e
a compreensão das crianças como um ser ativo. Seu principal método era a grande
Didática e Prática de Ensino na relação com a Sociedade
EdUECE - Livro 300818
utilização do uso de brinquedos e brincadeiras centradas na recreação como uma maneira
de ter uma educação baseada no brincar.
Já na fase industrial, as crianças passaram por um processo de afastamento das
brincadeiras, devido à inserção da criança no mundo adulto, utilizando a mesma como
mão-de-obra barata para o trabalho infantil (FRIEDMANN, 1998). Porém, para proteger
as crianças, foi incentivado a estima e a remoção das mesmas do mundo do trabalho:
“[...] para estimular a retirada das crianças dos locais de trabalho, os
reformadores norte-americanos promoveram uma “sacralização da infância”...
lucrar a partir do trabalho de crianças era ‘tocar de forma profana em algo
sagrado’. A consequência foi um aumento muito grande no valor sentimental
das crianças, tanto nos círculos de classe trabalhadora quando de classe
média”. (HEYWOOD, 2004, p. 42)
Embora os esforços para se estudar a infância tenham ganhado força a partir do
século XIX e XX, ainda persistiam ideias sobre a criança como um ser incompleto, com
o pressuposto que a idade adulta era a fase fundamental da vida e que a infância era apenas
uma preparação, ou seja, prolongou-se por muitos anos a infância como algo natural,
influenciado diretamente pelo aspecto biológico e não como uma construção social que
se transforma ao longo do tempo.
A biologia certamente cumpre um papel no desenvolvimento psicológico, bem
como físico da criança... Qualquer ideia a respeito de uma criança puramente
natural se torna difícil de sustentar uma vez que se compreenda que as crianças
se adaptam prontamente a seus ambientes, o produto de forças históricas,
geográficas, econômicas e culturais diversificadas. (HEYWOOD, 2004, p. 21)
Steinberg e Kincheloe (2004, p. 11) complementam esta afirmação quando
ressaltam que o contexto social e o período histórico tiveram grandes influências sobre a
vida das crianças, pois para estes autores “[...] a infância é um artefato social e histórico,
e não uma simples entidade biológica (...), é moldada por forças sociais, culturais,
políticas e econômicas que atuam sobre ela”. E Sarmento e Pinto (1997, pp. 26-27)
também destacam a importância de se estudar a realidade da infância, principalmente pelo
fato de terem percorrido um caminho árduo até serem considerada protagonistas em
pesquisas sobre a criança:
[...] Isto significa, no essencial, duas coisas: a primeira, que o estudo da
infância constitui esta categoria social como o próprio objeto da pesquisa, a
partir do qual se estabelecem as conexões com os seus diferentes contextos e
campos de ação; em segundo lugar, que as metodologias utilizadas devem ter
por principal escopo a recolha da voz das crianças, isto é, a expressão de sua
Didática e Prática de Ensino na relação com a Sociedade
EdUECE - Livro 300819
ação e da respectiva monitorização reflexiva. (SARMENTO e PINTO, 1997,
pp. 26-27).
A partir de todos esses elementos que influenciaram a trajetória da infância — a
influência histórica, sociocultural, educacional, religiosa e cuidadora da família —
chegamos ao período contemporâneo, agora com estudos sedimentados sobre a infância,
sendo entendida como culturalmente construída, variando através dos diferentes períodos
e lugares. Agora havia uma preocupação em cuidar das crianças e de sua educação: “[...]
a criança de hoje tem a chave para o reino de amanhã”: (palavras de um jornal britânico
de 1910, “The Child Welfare Annual”, p. vii, citado por Woolridge, Measuring the Mind,
p. 23 in HEYWOOD, 2004, p. 44).
Com a fase industrial e o progresso pelo qual o mundo passou e está passando e
assistindo a evolução tecnológica a cada dia e cada vez mais perto, a criança na sociedade
de hoje consome informações e imagens, passa por mudanças diárias e se adapta a todos
os artefatos dessa nova era, isto é, “[...] não perde de vista as formas mutantes de infância
como constructo social” (HEYWOOD, 2004, p. 45).
Assim, surge uma nova geração, com a capacidade de lidar com a tecnologia de
forma natural e com o aprendizado rápido. São indivíduos que transparecem tranquilidade
frente às transformações que surgem a cada dia e usam a tecnologia ao seu favor,
conseguindo se adequar facilmente a sociedade contemporânea, pois nasceram,
cresceram e descobriram o mundo através da tela da TV, do computador, dos celulares e
dos tablets, além disso, não tentam controlá-las, apenas fazem uso e exploram as mesmas.
E em meio a essa grande mistura de capacidades, nasceu o Homo zappiens, com a
capacidade de estar “antenado”, revelando-se um ser tecnologizado (VEEN &
VRAKKING, 2009).
A presença da tecnologia, mais especificamente da mídia televisiva, na vida dessa
geração infantil cada vez mais expõe uma realidade que prioriza o momento, o glamour
e o espetáculo proporcionado pela magia da TV. A mídia televisiva é a grande nave-mãe
que dissemina seus programas, personagens e produtos dos mais variados, incentivando
cada vez mais a sua inserção na vida das crianças.
E a brincadeira, dentro deste contexto, se modifica e/ou se adapta a esses novos
tempos? A direção que a brincadeira tem seguido está diretamente ligada ao estilo de vida
e a cultura que a criança está inserida, principalmente com as mudanças que ocorreram
na sociedade ao longo dos séculos, que por sua vez, refletiu na trajetória do homem.
Didática e Prática de Ensino na relação com a Sociedade
EdUECE - Livro 300820
Deste modo, o ser humano passou por diversas fases ao longo da sua trajetória de
vida, definindo características antagonistas e complexas como explicita Morin (2000, p.
58): “[...] sapiens e demens (sábio e louco), faber e ludens (trabalhador e lúdico),
empiricus e imaginarius (empírico e imaginário), economicus e consumans (econômico
e consumista), prosaicus e poeticus (prosaico e poético)” e mais recentemente, nasceu o
Homo zappiens, com a capacidade de lidar com este mundo que está em uma verdadeira
metamorfose.
O Homo zappiens está sempre cercado por muitos recursos tecnológicos e
midiáticos, se mostrando sempre atualizado com o que está acontecendo e com o que
supri suas necessidades. E essa realidade é visualizada facilmente quando se observa uma
criança vendo TV e conversando espontaneamente sobre todos os produtos relativos aos
seus desenhos animados e filmes favoritos, ou seja, “[...] o Homo zappiens é um
processador ativo de informação, resolve problemas de maneira muito hábil, usando
estratégias de jogo, e sabe se comunicar muito bem” (VEEN & VRAKKING, 2009, p.12).
A “escola conservadora”, nos dias de hoje, sente dificuldade de obter espaço na
sociedade contemporânea, devido à sua maneira de ensinar com conhecimentos objetivos,
nunca antes criticados, de longa duração e com transmissão passiva. Antes tínhamos a
ideia que o conhecimento e a memória escolar eram um patrimônio para a vida toda, algo
que teria mais valor com o tempo.
Entretanto, para alguns professores que pensam e agem desta forma, dentro dos
sistemas inflexíveis, parecem ser induzidos a armadilhas do próprio tempo, entrando em
desvantagens com a geração zapping, que está em constante transformação e apresentam
novos comportamentos, isto é, “[...] facilidade de convivência e comunicabilidade,
abertura de espírito e curiosidade” (BAUMAN, 2011, p. 120) com o que está ao seu redor,
isto é, parecem que estão sempre fazendo downloads em si mesmas. Para Bauman,
devemos ter cuidado em relação a esse tipo de conhecimento sólido para não se tornar
obsoleto na sociedade “líquido-moderna”:
As separações podem ser impermeáveis e impenetráveis, como no labirinto do
antigo laboratório dos behavioristas — só que elas se sustentam sobre rodas e
se movem constantemente, inutilizando durante os movimentos os caminhos
testados e explorados na véspera. Ai daqueles que guardam tudo na memória:
as trilhas confiáveis de ontem poderão dar amanhã em becos sem saída ou em
areia movediça, e os padrões habituais de comportamento, antes à prova de
erros, podem levar ao desastre, e não ao sucesso. (2011, p. 115).
Didática e Prática de Ensino na relação com a Sociedade
EdUECE - Livro 300821
Na verdade, precisamos é de instituições escolares e um corpo docente que
estejam conectados e atualizados com o que de fato faz parte dessa nova era, dessa
geração zapping, se interessando pelo que a criança faz no seu dia-a-dia e as informações
que recebem a todo o momento e trazem para dentro da escola. Elas trazem a tecnologia
bem como suas informações para utilizarem em qualquer situação, seja na tarefa da escola
ou no momento de diversão.
Nota-se que a aprendizagem nos dias de hoje é algo que necessita de constantes
atualizações, visto que as informações surgem com muita rapidez e não se pode negar que
vivemos em um mundo de consumo, de descarte, de fruição instantânea e imediata, e fica
bem mais informado aquele que dispõem de recursos tecnológicos ao menor alcance. Isso
mostra a metáfora da velocidade dos processos na sociedade “líquido moderna”:
No mundo volátil da modernidade líquida, onde as coisas raramente mantém a
sua forma por tempo suficiente para garantir segurança e confiabilidade a
longo prazo (além do mais, não se pode dizer quando e se esses valores se
cristalizarão, e é pouco provável que o façam), caminhar é melhor que sentar,
correr é melhor que caminhar, surfar é melhor que correr. A prática do surfe
tira vantagem da rapidez e da vivacidade dos surfistas, ajuda se eles não forem
muito exigentes quanto às ondas que se formam e se estiverem sempre
dispostos a deixar de lado suas antigas preferências. (BAUMAN, 2011, p.
115).
Com isso, o professor deve ter o poder e a perspicácia de mediar às informações
trazidas pelas crianças, simplicidade para aprender com elas e o mesmo tempo transmitir
o seu conhecimento, de modo a criar um misto de reflexão e significação no processo de
ensino e aprendizagem. E acima de tudo, levar em consideração os pontos de vista e a
maneira de ver o mundo das crianças.
Poderemos chegar à conclusão que as crianças de hoje de fato possuem
estratégias e habilidades de aprendizagem que são cruciais para dar significado
às informações, e que essas habilidades e estratégias são vitais para a
aprendizagem futura em uma economia intensamente baseada no
conhecimento. Podemos questionar se tais habilidades são suficientemente
reconhecidas ou valorizadas pelas escolas. (VEEN & VRAKKING, 2009, p.
13).
A chegada do Homo zappiens trouxe mal-estar e uma série de complicações com
a estrutura da “escola conservadora”, que por séculos permaneceu sem nenhuma ou com
pouca alteração em seu cotidiano. “[...] Ao que parece, a velocidade de mudança agora
governa as condições em que vivemos, com pessoas em permanente e acelerado
movimento” (BAUMAN, 2010, p. 154). Principalmente, quando deixamos que o aspecto
conservador continue prevalecendo sem interagir com o mundo fora das escolas e se
Didática e Prática de Ensino na relação com a Sociedade
EdUECE - Livro 300822
satisfazer com o que fazem sem procurar saber se esse contentamento é recíproco entre
professor e aluno.
No mundo líquido moderno, a solidez das coisas, assim como a solidez das
relações humanas, vem sendo interpretadas como ameaça: qualquer juramento
de fidelidade, qualquer compromisso de longo prazo (para não falar nos
compromissos intemporais), prenuncia um futuro sobrecarregado de
obrigações que limitam a liberdade de movimento e a capacidade de agarrar
no voo as novas e ainda desconhecidas oportunidades que venham a surgir. A
perspectiva de assumir pelo resto da vida algo ou uma relação difícil de
controlar é pura e simplesmente repugnante e assustadora. (BAUMAN, 2011,
pp. 112-113)
Em contrapartida, o desafio está lançado: a inserção do Homo zappiens na escola
é uma forma dos professores e a própria instituição escolar aprenderem com as
experiências trazidas e vivenciadas pelas crianças, oferecendo oportunidade de conhecer
melhor o mundo infantil e o seu comportamento relacionando às brincadeiras de hoje.
Permanecer antenado com o que esta acontecendo na vida das crianças e aproveitar o
aprendizado que elas trazem para dentro da escola, é uma maneira de refletir e interpretar
as suas atividades e seus comportamentos para melhor ajustar ao cotidiano escolar.
Em tempos de mudança, percebemos que a utilização da tecnologia é algo
imprescindível bem como alguns produtos que deixaram as nossas vidas mais fáceis,
tornando o mundo algo mais próximo. Vendo pelo aspecto da infância, percebemos que
há uma forte tendência das crianças se apegarem a esse universo tecnológico, entretanto,
temos que considerar esse novo olhar e como o Homo ludens e o Homo zappiens vão se
ajustar.
O contato com outras culturas e as possíveis modificações na cultura infantil é
trazido o tempo todo pelos meios de comunicação em massa, como é o caso da TV e os
seus acessórios: videogame, DVD, internet, aplicativos, dentre outros. Isso faz parte do
nosso dia-a-dia e que se mantém disponível a todo o momento, construindo e
reconstruindo a vida de adultos e das crianças.
Apesar de todos esses aspectos influenciarem a vida de toda a sociedade, o que
realmente importa é o que valorizamos atualmente, já que tudo ficou mais fácil e mais
acessível, a tecnologia é o que chama a atenção e o que se torna importante e desejado
para qualquer idade.
O Homo zappiens utiliza e valoriza os recursos tecnológicos com diferentes fins,
para se divertir, estudar, trabalhar, interagir, sobretudo, para se comunicar. “[...]
Precisamos de mídias para sustentar nosso estoque crescente de informação, da mesma
Didática e Prática de Ensino na relação com a Sociedade
EdUECE - Livro 300823
forma que a fala e a escrita foram desenvolvidas para transferir nossas descobertas aos
outros e para protegê-las da passagem do tempo” (VEEN & VRAKKING, 2009, p. 20).
Entretanto, tudo que é novo causa desconfiança e receio de não saber lidar, e essa
sensação é percebida em maior intensidade nos adultos do que nas crianças, e isso se
reflete em aparelhos tecnológicos que estão presentes no cotidiano, como o
funcionamento da TV, celular, computador, tablets, o uso da internet, de um jogo de
videogame, o crescimento das redes sociais, entre outras coisas.
As crianças afloram o seu Homo zappiens, e então, de forma mais natural possível,
conseguem entender mais facilmente as funcionalidades de diversos aparelhos e o que
eles podem proporcionar. Isso acontece por um motivo óbvio, elas simplesmente usam!
E as brincadeiras e os brinquedos que as crianças trazem para dentro da escola
também acabam causando uma sensação de insegurança nos professores, de não saber
como trabalhar com essas novas mudanças, como alterações na estrutura e nos nomes das
brincadeiras, e também, o acréscimo de personagens, de estratégias e de regras dentro dos
jogos. Por isso, a necessidade de interagirmos com elas, tentar observar essa geração
zapping, que traz objetos, informações e comportamentos novos para escola, compartilha
com outras crianças e que deveriam ser conhecidas e pesquisadas pelos professores. O
desafio da escola nesse período “líquido moderno” é “[...] lidar com o tempo e com a
incerteza, com a mudança e o desenvolvimento que está se tornando a atividade mais
valorizada: essa atividade é a aprendizagem” (VEEN & VRAKKING, 2009, p. 24).
Quando começarmos a procurar coisas para mudar e quando a mudança vem
até nós, precisamos lembrar o que de fato valorizamos como indivíduos,
comunidades e organizações, como sociedade e como espécie. (...) Devemos
aprender a encontrar objetivos naquilo que valorizamos e saber como atingi-
los. À medida que vemos a tecnologia, o conhecimento e as sociedades
expandirem-se rapidamente, devemos passar a perceber que sempre haverá
estruturas, uma história e limites para o que fazemos; a lição que temos de
aprender é a de sermos criativos e ignorarmos obstáculos. (VEEN &
VRAKKING, 2009, p. 25).
É impossível não se ater e não se preocupar com essa revolução na educação,
realmente mexe com os ânimos dos educadores. É uma massa enorme de informação, que
provoca uma verdadeira desordem e caos e essa mesma massa chega e flui com a mesma
intensidade. Podemos nos esquivar, porém, ela pode nos tocar e nos deixar desacordados.
A educação assumiu muitas formas no passado e se demonstrou capaz de se
adaptar-se às mudanças das circunstâncias, de definir novos objetivos e
elaborar novas estratégias. Mas, permitiam-me repetir: a mudança atual não é
igual às que se verificaram no passado. Em nenhum momento crucial da
história da humanidade os educadores enfrentam desafio comparável ao
Didática e Prática de Ensino na relação com a Sociedade
EdUECE - Livro 300824
divisor de águas que hoje nos é apresentado. A verdade é que nós nunca
estivemos antes nessa situação. Ainda é preciso aprender a arte de viver num
mundo saturado de informações. E também a arte mais difícil e fascinante de
preparar seres humanos para essa vida. (BAUMAN, 2011, p. 125).
Talvez a força que precisamos está em estimular os professores a se
automonitorar, para se cobrarem sobre seus aperfeiçoamentos, realizarem autoavaliações
de suas práticas, e também, ter interesse em pesquisar sobre seus alunos, para saber com
o quê brincam e como interagem. É uma forma de nos aproximarmos da vida dessas
crianças, da infância atual e trazer esse aprendizado para dentro da escola.
Considerações Finais
Por meio dos paradigmas apontados, percebemos que a infância apresentou
diferentes características de acordo com a sociedade, o contexto social e o período
histórico vigente.
Assim, este ensaio apresentou a trajetória da infância e da brincadeira com
diferentes facetas ao longo dos séculos, desde a ausência do sentiment de l’enfance no
período da Idade Média até a chegada do Homo zappiens, nessa fase contemporânea. E a
brincadeira pôde ser apreciada pelo âmbito da recreação, como artifício pedagógico e
conduta autotélica.
É esse conjunto de ações que fazem dessa trajetória e transformação social da
infância, uma maneira de vermos tanto a criança como a brincadeira com um olhar mais
apurado, “[...] a infância tem formas próprias de ver, pensar, sentir, e, particularmente,
sua própria forma de raciocínio, sensível, pueril, diferentemente da razão intelectual ou
humana do adulto” (ROUSSEAU apud HEYWOOD, 2004, p. 38), possuindo uma
natureza única, sua própria visão de mundo, fortalecendo o seu zeitgeist (espírito de um
tempo) e estruturando novas configurações para a construção da infância contemporânea.
Por isso, a necessidade de conhecer a história da infância para entender a geração
zapping e como a escola pode interagir e intervir nesse processo. Faz-se necessário que o
mundo dentro da escola converse com a realidade fora da escola, no sentido de gerar um
aprendizado exógeno, que provém do exterior. E quando os professores perceberem, já
estarão embebidos nessa nova realidade, e a curiosidade, a vontade de aprender e de se
atualizar os farão conhecer esse novo mundo — o grande desconhecido —, territórios
talvez nunca antes visitados.
Didática e Prática de Ensino na relação com a Sociedade
EdUECE - Livro 300825
A intenção é nos aproximarmos do mundo que nos rodeia, contudo, esse mundo é
repleto de incertezas, de fluidez, de neblina e de mistérios. Esse desconhecido mundo em
que a escola, o processo de ensino-aprendizagem e alguns professores ainda estão
inseridos, é ambíguo, ao mesmo tempo se torna ameaçador e também desperta
curiosidade, especialmente para aqueles que sentem necessidade de se aventurar por esse
novo mundo.
Para esses aventureiros, que buscam novas e contínuas formas de aprendizado,
entrarão em um mundo novo e constantemente atualizado, e não terão como voltar para
a caverna — aludindo à alegoria platônica —, pois estarão em uma fase de descobertas,
reflexões e experiências, que ficarão arraigadas em seu ser, e ainda poderão contagiar
outros sujeitos, apresentando novos conceitos e ideias, dentro de um processo cíclico por
meio da educação. Com isso, poderão se livrar das correntes e dos paradigmas pré-
estabelecidos que os prendem dentro da caverna. Aparentemente haverá uma sensação de
ofuscamento ao sair da caverna, mas logo conseguirão ver um mundo rico em
possibilidades de ensino e de aprendizagem.
Nesta perspectiva, os professores devem valorizar a aprendizagem e o que a
enriquece. Se os alunos podem ajudar nesse processo, por que não utilizá-los como uma
grande ferramenta para essa aprendizagem em tempos de mudanças? Basta que nos
conformemos com uma realidade que não mais existe e tenhamos curiosidade, vontade,
empenho e criatividade para encarar esse novo mundo e todas as mudanças que vem com
ele, a fim de nos aproximarmos o máximo possível do “estado da arte” e conhecermos o
mundo fora da caverna.
REFERÊNCIAS
ARIÈS, P. História social da criança e da família. 2ª. ed. Rio de Janeiro: LTC, 2006.
279 p.
BAUMAN, Z. Aprendendo a pensar com a sociologia. Rio de Janeiro: Zahar, 2010.
304 p.
______. 44 cartas do mundo líquido moderno. Rio de Janeiro: Zahar, 2011. 228 p.
CRUZ, S. H. V. A criança fala: a escuta de crianças em pesquisas. São Paulo: Cortez,
2008.
FRIEDMANN, A. A Evolução do brincar. 4. ed. São Paulo: Abrinq, 1998. 212 p.
HEYWOOD, C. Uma história da infância: da Idade Média à época contemporânea no
Ocidente. Porto Alegre: Artmed, 2004.
Didática e Prática de Ensino na relação com a Sociedade
EdUECE - Livro 300826
KISHIMOTO, T. M. Jogo, brinquedo, brincadeira e a educação. São Paulo: Cortez,
1999. 184 p.
LAUAND, L. J. Deus Ludens: O Lúdico no Pensamento de Tomás de Aquino e na
Pedagogia Medieval. Texto da prova pública de erudição para o concurso de Professor
Titular - História da Educação, Depto. de Filosofia e Ciências da Educação - Faculdade
de Educação da Universidade de São Paulo, dezembro de 2000. Disponível em:
<http://www.hottopos.com/notand7/jeanludus.htm>. Acesso em: 8 jul. 2011.
MORIN, E. O Paradigma Perdido: A Natureza Humana. 6 ed. Publicações Europa-
América, 2000. 222 p.
SARMENTO, M. J. & PINTO, M. As Crianças: Contextos e Identidades. Braga,
Portugal: Centro de Estudos da Criança, 1997.
STEINBERG, S. R.; KINCHELOE, J. L. Cultura Infantil: a construção corporativa da
infância. 2 ed. Rio de janeiro: Civilização Brasileira, 2004. 415 p.
VEEN, W.; VRAKKING, B. Homo Zappiens: educando na era digital. Trad. De
Vinícius Figueira. Porto Alegre: Artmed, 2009.
Didática e Prática de Ensino na relação com a Sociedade
EdUECE - Livro 300827