A Transformação Do Internamento Assistencial Em Internamento Por Negliegencia

26
A transformação do internamento "assistencial" em internamento por "negligência": tirando a cidadania dos pais para dá-la às crianças* Andréa Danielia Lamas Cardarello* N o Brasil, a criança hoje está no centro das atenções, devido ao novo Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA). Se, por um lado, o Estatuto garante o direito de a criança ou o adolescente "ser criado e educado no seio da sua própria família", por outro, exige que seja assegurado seu direito à saúde, à educação, à alimentação, ao lazer e ao esporte, dentre outros. Muitos dos agentes que trabalham na área de assistência à infância consideram que as famílias pobres, por não garantirem esses direitos, estão sendo "negligentes" com seus filhos. É por esse motivo que esses agentes, agindo em nome da criança, pelo seu próprio bem, podem acabar por afastá-la da sua família de origem. A partir de um estudo feito junto a assistentes sociais, psicólogas e pedagogas da FEBEM-RS, apontamos os caminhos pelos quais a categoria de internamento "problema sócio-econômico" de 10 anos atrás pôde transformar-se na categoria "negligência" pós-Estatuto. Com isso, observamos que hoje há uma ênfase nos motivos de ingresso que visa à proteção da criança (ênfase que se apresenta sob a fonna de "defesa dos seus direitos") em detrimento das famílias: se a criança se tornou "cidadão", seus pais parecem ter deixado de sê-lo. * Este trabalho faz parte da tese de mestrado Implantando o Estatuto: um Estudo sobre a Criação de um Sistema Próximo ao Familiar para Crianças Institucionalizadas na FEBEM/RS, defendida no Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social (PPGAS) da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). A pesquisa foi realizada a partir da observação das reuniões das equipes técnicas do Programa das Unidades Residenciais Transitórias da FEBEM-RS e do acompanhamento sistemático a uma das casas no período de setembro de 1994 a junho de 1995 Os nomes dos técnicos, demais funcionários e das crianças e adolescentes citados neste trabalho são fictícios ** Mestre em Antropologia Social pelo Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Professora horista de Ciências Sociais da PUC- -RS e membro do Núcleo de Antropologia e Cidadania (NACI) da UFRGS

description

A Transformação Do Internamento Assistencial Em Internamento Por Negliegencia

Transcript of A Transformação Do Internamento Assistencial Em Internamento Por Negliegencia

  • A transformao do internamento "assistencial" em internamento por "negligncia": tirando a cidadania dos pais para d-la s crianas*

    Andra Danielia Lamas Cardarello*

    N o Brasil, a criana hoje est no centro das atenes, devido ao novo Estatuto da Criana e do Adolescente (ECA). Se, por um lado, o Estatuto garante o direito de a criana ou o adolescente "ser criado e educado no seio da sua prpria famlia", por outro, exige que seja assegurado seu direito sade, educao, alimentao, ao lazer e ao esporte, dentre outros. Muitos dos agentes que trabalham na rea de assistncia infncia consideram que as famlias pobres, por no garantirem esses direitos, esto sendo "negligentes" com seus filhos. por esse motivo que esses agentes, agindo em nome da criana, pelo seu prprio bem, podem acabar por afast-la da sua famlia de origem. A partir de um estudo feito junto a assistentes sociais, psiclogas e pedagogas da FEBEM-RS, apontamos os caminhos pelos quais a categoria de internamento "problema scio-econmico" de 10 anos atrs pde transformar-se na categoria "negligncia" ps-Estatuto. Com isso, observamos que hoje h uma nfase nos motivos de ingresso que visa proteo da criana (nfase que se apresenta sob a fonna de "defesa dos seus direitos") em detrimento das famlias: se a criana se tornou "cidado", seus pais parecem ter deixado de s-lo.

    * Este trabalho faz parte da tese de mestrado Implantando o Estatuto: um Estudo sobre a Criao de um Sistema Prximo ao Familiar para Crianas Institucionalizadas na FEBEM/RS, defendida no Programa de Ps-Graduao em Antropologia Social (PPGAS) da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). A pesquisa foi realizada a partir da observao das reunies das equipes tcnicas do Programa das Unidades Residenciais Transitrias da FEBEM-RS e do acompanhamento sistemtico a uma das casas no perodo de setembro de 1994 a junho de 1995 Os nomes dos tcnicos, demais funcionrios e das crianas e adolescentes citados neste trabalho so fictcios

    ** Mestre em Antropologia Social pelo Programa de Ps-Graduao em Antropologia Social da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Professora horista de Cincias Sociais da PUC--RS e membro do Ncleo de Antropologia e Cidadania (NACI) da UFRGS

  • ' Plano de Ao - Sistema Gactio de Atendimento Criana e ao Adolescente - FEBEM (1991 / /1995, p 7) Nesse perodo, era Governador do Estado Alceu Collares, do PDT, e Ricardo Queiroga exercia a presidncia da FEBEM-RS

    ^ Estatuto da Criana e do Adolescente (1990, art, 92, incisos III, I e V)

    1 - As mudanas no atendimento da FEBEM provocadas pelo Estatuto

    Com o Estatuto da Criana e do Adolescente de 1990, o termo "menor" foi legalmente eliminado. Contestado na dcada de 80 pela sua conotao discriminatria em relao s crianas das camadas populares por grupos voltados em defesa da infncia e da adolescncia, a populao infanto-juvenil deixou, assim, de ser apresentada como objeto de tutela, para tornar-se sujeito cujos direitos devem ser garantidos (DOS SANTOS, 1992; ALVIM, VALLADARES, 1988; PEREIRA JNIOR, BEZERRA, HERINGER, orgs, 1992). Em vez de "menores", temos crianas e adolescentes, pessoas em condio peculiar de desenvolvimento, que tm reconhecida sua cidadania social ~- so, por isso, chamados de "cidados--crianas" e "cidados-adolescentes" (SEDA, 1990, p. 60; GOMES, 1990, p. 98).

    A Administrao da FEBEM do Rio Grande do Sul, no perodo 1991-95, teve como prioridade o "desmonte dos grandes prdios institucionais para pequenas unidades residenciais", que transfomiaria, a longo prazo, todas as grandes unidades de abrigo, que comportavam mais de 100 crianas, em Unidades Residenciais Transitrias (URTs). Essas unidades consistiam em pequenas casas projetadas inicialmente para abrigar 10 crianas e/ou adolescentes. Esses objetivos seguiram os princpios do Estatuto; atendimento personaiizado, em pequenos grupos, e a preservao dos vnculos familiares atravs do no-desmembramento de grupos de irmoscom o intuito de fortalecer os vnculos familiares, buscar-se-ia reunir, na mesma casa, os irmos institucionalizados.^ A "transitoriedade" prevista das crianas e dos adolescentes nessas pequenas casas obedeceu ao artigo 101 do Estatuto, pargrafo nico, que coloca o abrigo como "(...) medida provisria e excepcional, utilizvel como forma de transio para a colocao em famlia substituta, no implicando privao de liberdade".

    O incio do processo de desmonte dos grandes institutos deu-se com a extino, em mais de uma etapa, do Instituto Infantil SamirSqueff (IISS), a partir de dezembro de 1991, O IISS atendia mais de 100 crianas de zero at seis anos e 11 meses de idade, usando o mecanismo da transferncia para outra unidade da FEBEM quando atingissem sete anos (ROCHA, 1993, p. 30). Em setembro de 1993, com a transferncia das ltimas crianas do Instituto para as

  • ' o sistema de "lares substitutos", transitrios ou regulares, fundado h mais de 10 anos na FEBEI^-RS, socializa as crianas em uma famlia j existente, com o pagamento de per capitas aos responsveis pelas crianas at que a sua situao seja definida (lares transi-trios), ou at ela completar 18 anos (lares regulares).

    * Cada uma dessas casas recebe um nmero, pelo qual chamada Dessa forma, existe a "casa 1", a "casa 12", a "casa 18" e, assim, sucessivamente. As trs casas de adolescentes mascu-linos que fazem parte do Programa so originrias de um sistema anterior de "casas-lares".

    ' O tcnico em educao um pedagogo encarregado de todos os assuntos que se referem escolaridade das crianas e dos adolescentes abrigados

    casas, ele foi finalmente extinto. At o final da Administrao 1991-95, O Instituto Infantil Samir Squeff foi o nico dos grandes abrigos que conseguiu ser totalmente "desmontado". Os institutos para adolescentes apenas comearam esse processo durante a administrao anterior.

    Foi, portanto, no intuito de atender s exigncias do novo Estatuto da Criana e do Adolescente que, a partir de 1991, a FEBEM do Rio Grande do Sul criou o programa das URTs. Nos documentos sobre o novo atendimento, manifesta-se a preocupao de"(...) oportunizar s crianas uma vivncia saudvel, num sistema substituto, o mais prximo possvel do sistema familiar" (PROPOSTA..,, 1994, p. 2). Procura-se, dessa forma, oferecer uma residncia temporria a crianas de zero a sete anos, de ambos os sexos e consideradas como vtimas basicamente de abandono, negligncia e maus-tratos. As unidades so "transitrias", porque se tem por objetivo o retomo dessas crianas s famlias de origem, a lares substitutos, ou a adoo, ainda que algumas acabem por permanecer na instituio.'

    Em maro de 1995, o Programa das Unidades Residenciais Transitrias contava com 29 casas, que atendiam a uma populao de 359 crianas e adolescentes," Essas casas esto divididas em diversas reas geogrficas, na Regio Metropolitana de Porto Alegre e no Interior do Estado, chamadas de "complexos". Embora a proposta original das URTs fosse a de reunir crianas e adolescentes de faixas etrias variadas e de ambos os sexos, a necessidade de um tipo de clientela especfico que se adaptasse ao sistema das unidades residenciais e a falta de vagas foram responsveis por algumas modificaes nos critrios de faixa etria, que acabou sendo estabelecida, prioritariamente, em de zero a sete anos.

    O quadro de funcionrios dessas unidades composto por oito monitores em mdia (dois por turno) e uma cozinheira por casa, alm de uma servente para cada cinco unidades residenciais. Esses funcionrios so supervisionados por uma equipe tcnica interdisciplinar, da qual faz parte uma psicloga, duas assistentes sociais, um tcnico em educao e um tcnico em recreao (sendo que estes dois ltimos no existem em todos os complexos)^. Alm da

  • 2 - Alguns impasses

    Desde o incio do trabalho realizado junto a tcnicos e monitores do Programa, pudemos perceber que este era como uma "vitrine" da FEBEM-RS. O objetivo de um tratamento individualizado havia sido alcanado: todas as crianas e os adolescentes abrigados nas URTs tinham acesso a um atendimento especializado, com a atuao de profissionais de diversas reas, como nutricionistas, psiclogos, fonoaudilogos, fisioterapeutas, professores de educao fsica e pedagogos. Para reforar "os processos de integrao com a comunidade", tambm previstos na nova legislao (art. 92, incisos VII e XI do Estatuto), procuram-se utilizar os recursos externos disponveis as crianas e os adolescentes das URTs freqentam escolas prximas, so atendidos em postos de sade e vo a escolas de natao e academias do bairro durante o perodo em que permanecem abrigados. Por tudo aquilo que oferece, o Programa um dos mais caros da Fundao.'' O prestgio que tem junto a rgos como o Juizado da Infncia e da Juventude e os Conselhos Tutelares, somado falta de instituies para abrigar crianas na Cidade, faz com que vagas sejam constantemente solicitadas.^ Apesar do progressivo aumento de casas desde a

    ^ At o final de 1994, as reunies eram semanais. Com a nova administrao, as reunies passaram a realizar-se de 15 em 15 dias.

    ' Segundo a coordenadora de abrigos, o custo per capita de um adolescente nas URTs, no segundo semestre de 1995, era de seis salrios mnimos (R$ 600 reais), e o de uma criana ficava em torno de 10 salrios mnimos (R$1 000 reais).

    * O Conseltio Tutelar, rgo previsto no Estatuto encarregado de zelar pelo cumprimento dos direitos da criana e do adolescente, iniciou seu funcionamento em Porto Alegre a partir de agosto de 1992, atravs da eleio de 40 conselheiros, que atuam nas oito microrregies em que a Cidade foi dividida. Porto Alegre foi a primeira capital brasileira a regulamentar as estruturas previstas no Estatuto, criando o Conselho Municipal dos Direitos da Criana e do Adolescente, o Fundo Municipal e implantando os oito Conselhos Tutelares (Cidados Precisando de Conselho e II Eleio dos Conselhos Tutelares - Nosso Compro-misso Continua, publicaes do Conselho Municipal dos Direitos da Criana e do Adoles-cente, 1993). Sobre a criao dos Conselhos Tutelares em Porto Alegre, ver Ribeiro (1996).

    equipe, h um chefe e dois assistentes para o planejamento e o gerenciamento do atendimento de cada complexo. As equipes tcnicas, chefias e assistentes dos quatro complexos renem-se quinzenalmente, para discutirem os problemas e encaminharem as questes referentes ao Programa. Esse grupo, de aproximadamente 25 pessoas, constitua o Ncleo de Assistncia s Unidades Residenciais (NAUR), que, at 1994, era dirigido por um coordenador geral.

  • ' No incio, pensadas para abrigar grupos de at 10 crianas e adolescentes, os documentos sobre o Programa de julho de 1992 aumentavam a capacidade das casas para at 12 crianas; "O nmero de crianas por Unidade Residencial no deve ser superior a onze ou doze" (PROGRAMA . , 1992, p, 8), Porm, por questes de superlotao, em junho de 1995 cada casa abrigava 15 crianas em mdia.

    sua inaugurao e da sua superlotao a partir de 1994, as Unidades Residenciais no conseguem dar conta da demanda, e a falta de recursos impede a ampliao imediata do Programa.^

    Ainda que os relatrios dos tcnicos apontassem resultados positivos obtidos pelo novo tipo de atendimento especialmente na rea da sade e que ele sempre fosse considerado como melhor do que aquele que era dispensado nos grandes institutos, aos poucos pudemos observar, nas prprias falas dos tcnicos, dilemas e questionamentos sobre a natureza das URTs.

    Um desses dilemas referia-se tenso existente entre as famlias de origem e a instituio. Se, por um lado, o artigo 19 do Estatuto da Criana e do Adolescente garante a crianas e adolescentes o direito a "ser criados e educados no seio da sua prpria famlia", por outro, devem tambm ser assegurados seus direitos referentes ao acesso sade, educao, alimentao, ao lazer e ao esporte, dentre outros (art. 4). Em um pas como o Brasil, como exigir que as famlias pobres ofeream tudo isso a seus filhos? a famlia "negligente" ou mesmo "desorganizada" por no garantir esses direitos? Ou "negligente" o Estado? O entendimento diferenciado dessa questo entre os tcnicos fazia com que, dependendo dos casos discutidos, houvesse posicionamentos distintos. Pela legislao, o abrigamen'to de uma criana nas Unidades Residenciais Transitrias representa uma institucionalizao, que deve ser tomada como ltima medida. Mas, se, por um lado, as crianas que ingressavam nas URTs estavam sendo afastadas dos seus pais, sendo institucionalizadas, por outro, o programa garantia-lhes o restante dos seus direitos, dando a meninas e meninos provenientes das classes mais baixas uma vida de classe mdia.

    As Unidades Residenciais Transitrias eram ou no, afinal, "como uma famlia" para as crianas abrigadas? Essa questo, constantemente levantada pelos tcnicos, levou-nos a uma pergunta anterior: por que as crianas estavam sendo afastadas das suas famlias de origem? De que forma o Estatuto estava sendo implementado e quais mudanas ele havia provocado nesse sentido?

  • 1 Ver Rizzini e Rizzini (1991: 72); Corra (1982); Alvim e Valladares (1988); Fonseca (1989); Pereira Jnior, Bezerra e Heringer, orgs, (1992),

    3 - "Famlias desorganizadas" dentro da instituio

    Dentro das cincias sociais, diversos autores tm feito crticas noo de "desorganizao familiar".^ Pereira Jnior, Bezerra e Heringer (1992) afirmam que falar em "famlias desestruturadas" nas classes populares tomar como parmetro um padro dominante de famlia a famlia nuclear. A expresso "famlia desestruturada" reflete a busca da sociedade em encaixar a realidade numa lgica uniforme, orientada pelos padres familiares de classe mdia. A concepo da famlia burguesa no corresponde realidade de vida das camadas mais pobres da populao, na qual se do outras formas de sociabilidade. Nessas classes, a rua ocupada como espao de trabalho, lazer e moradia. Dentre outros fatores, isso origina arranjos familiares que contrastam com a idia burguesa e liberal de famlia, baseada na capacidade de auto-sustento, localizada numa casa onde os pais cumprem com a funo de assistir os seus filhos, que no precisam trabalhar, ao contrrio do que ocorre nas classes populares (PEREIRA JNIOR, BEZERRA, HERINGER, orgs. 1992, p. 27-32).

    Ainda que diversas crticas idia de "desorganizao familiar" tenham sido feitas no campo das cincias sociais, dentro da FEBEM-RS, bem como de outras instituies de assistncia infncia, o conceito de "famlias desorganizadas" ou "desestruturadas" continua a ser reproduzido. A famlia "desorganizada" definida basicamente pelos agentes que lidam com a assistncia infncia como um modelo familiar "marcado pela ausncia paterna e geralmente chefiado pela me" (ALVIM, VALLADARES, 1988, p, 19; PEREIRA JNIOR, BEZERRA, HERINGER, orgs., 1992), No programa das URTs, tcnicos e monitores acrescentam a isso a falta de "empenho" dos pais em "se organizar", o que consiste, fundamentalmente, em conseguir um emprego fixo, fornecer uma casa e garantir a alimentao e a escolarizao dos filhos: "Tem que ser uma famlia organizada; e a a gente no est pedindo freezer, no sei o qu, uma casa, com duas peas, um emprego fixo, onde ela possa comprar leite pra essa criana, depois arroz e feijo, e depois botar na escola",

    Ainda que, aps as nossas consideraes, a tcnica afirme: "Eu sei que tem esse sistema social desgraado", ela coloca a questo sob o prisma da responsabilidade individual: "Por que tem gente que trabalha e consegue? Famlia

  • 4 - A criana como refm do Estado

    4.1 - Disciplinando as famlias pobres

    Apesar de a famlia ser vista, desde o in leio do sculo, por polticos, mdicos e juristas como o locus da moralidade e o meio ideal para a socializao de crianas, em detrimento da rua e das instituies, nem todas as famlias so consideradas como adequadas para o crescimento sadio dessas crianas (LONDONO, 1991; RIZZINI, 1993; ALVIM, VALLADARES, 1988). Desde que o problema da infncia pobre discutido no Brasil, a famlia de origem culpada pela situao em que se encontram seus filhos: ela "desorganizada", "desajustada", "desagregada". Como transformar essas famlias em "famlias organizadas"? A adequao a um modelo familiar aceito pode ser feita atravs de duas vias, ao menos. Uma delas o disciplinamento das famlias. Caso isso no se concretize, a outra via possvel a adoo, atravs da entrega das crianas a famlias "organizadas". Enquanto, em pases europeus, como a Frana, o Estado forneceu meios para que o "disciplinamento" das famlias pobres fosse realizado, isso nunca se concretizou no Brasil."

    " Isso no quer dizer que no tenham havido no Pais experincias de disciplinamento de famlias de baixa renda o trabalho de Alvim (1985) relatando a constituio de famlias em uma vila operria um exemplo disso. Mas essas experincias de "disciplinamento" no significaram uma poltica estatal voltada para esse fim e bem-sucedida, tal como ocorreu na Frana.

    desorganizada no d". As psiclogas do Programa ressaltam a ausncia do modelo nuclear: uma famlia "desorganizada" seria aquela em que ti "indefinio de papis, instabilidade, que muda de me e pai toda hora".

    A "organizao" tambm associada a uma rotina e higiene. Justificando o porqu de algumas crianas quererem voltar para as URTs aps terem retornado s suas famlias de origem, diz uma monitora:

    "Eram felizes e nem sabiam. Quando esto aqui, querem sair; quando esto fora, querem voltar. sempre assim. Como que no iam querer voltar? Eu ia querer. Quem no gosta de organizao? Ter uma hora pra levantar, uma hora pra comer. Chega na casa deles aquela baguna, aquele fedor, aquela sujeira. No tem hora pra nada, no tem organizao nenhuma".

  • Na Europa, o movimento descrito por Aries (1981) de reorganizao da famlia em torno da criana, que acabou por destruir a antiga sociabilidade das "sociedades tradicionais" e se consolidou no sculo XVIII, iniciou-se pelas classes abastadas, estendendo-se, posteriomnente, para todas as camadas. A forma como essa extenso se deu nas camadas populares, particularmente na Frana, tratada por Meyer (1977) e bonzelot (1980, p.81) como um processo de "disciplinarizao". Essa "disciplinarizao" consistiu, a partir do sculo XVIII, em uma verdadeira "guerra" empreendida pelo Estado contra as famlias in^egulares, contra as famlias "sociveis" demais (MEYER, 1977, p.24). A famlia popular foi reorganizada, desse modo, em torno da iigiene domstica, do refluxo para o espao interior e da criao e vigilncia das crianas (DONZELOT, 1980, p. 88). Fazem-se essas imposies atravs da criana, que, para Meyer (1977, p.24), no representa mais que um pretexto e um refm. Retirar a criana dos seus pais, ou ameaar faz-lo, a arma absoluta nas mos do Estado e das sociedades de beneficncia para impor as suas regras. A norma estatal e a moralizao filantrpica colocam a famlia diante da obrigao de reter e vigiar seus filhos, se no quiser ser, ela prpria, objeto de uma vigilncia e de "disciplinarizao" (DONZELOT, 1980, p. 81).

    As leis de proteo infncia, surgidas na Frana a partir da dcada de 40 do sculo passado at o final do sculo XIX, organizaram progressivamente uma transferncia de soberania da famlia "moralmente insuficiente" para um corpo de filantropos, magistrados e mdicos especializados (DONZELOT, 1980, p. 80). Pela Lei de 1889, foi possvel penetrar nas famlias por meio de duas vias: atravs dos delitos cometidos por crianas, e em nome da vigilncia e da preveno dos delitos cometidos contra crianas, pelo qual puderam organizar um sistema de delao legtima das pessoas prximas a elas e receber a misso de verific-las. Essas leis, de 1889, 1898 e 1912, autorizam os primeiros educadores e assistentes sociais a passar por cima da autoridade paterna.

    A poltica de orientao s famlias pobres deu-se em duas direes: quer para uma promoo controlada, quer para a sua destruio pura e simples. A promoo controlada prometida pelas assistentes sociais poderia significar facilidades para a obteno de uma moradia, ou uma regularizao do trabalho do marido. J se tratando da "destruio" da famlia pobre, procedeu-se a uma internao sistemtica das crianas, disseminando-as em diversos centros, colocando os pais em hospitais psiquitricos ou na priso, ou decretando, atravs de um tribunal, a perda do ptrio poder (MEYER, 1977, p. 117-118; DONZELOT 1980, p. 141). Para recuperar seus filhos, os "assistidos" esforaram-se em produzir todos os sinais exteriores de moralidade que deles se esperava: tratamento de desintoxicao, faxina na casa nos dias em que se suspeitava receber uma visita da assistente social, mudana para um novo apartamento (ainda que no pudesse pag-lo), era preciso mostrar sinais de cooperao.

  • 4.2 - Disciplinamento no Brasil: "vocs tm que se ajudar"

    Atravs dos relatos contidos nos processos da Corte da Cidade de Douai, analisados por Meyer nos anos de 1973 e 1974, podemos ver como as assistentes sociais francesas tm meios de realizar o disciplinamento, negociando com as famlias que esto sendo assistidas. Ao serem apoiadas por todo um programa estatal de habitao popular, as assistentes sociais podem fazer com que as famlias se mudem para apartamentos arejados, com mais de um quarto; conseguem emprego para os pais "ociosos", mudam as famlias de cidade, colocam as crianas em centros educativos, encaminham pais alcolatras para tratamento. No Brasil, a situao bem diferente. Embora as assistentes sociais tentem "disciplinar" as famlias populares, exortando os pais a "se organizarem", conseguirem um emprego, ou constru irem uma casa maior, elas no tm muito a oferecer em troca. No h nenhum respaldo estatal a garantir novas moradias e empregos: tudo extremamente precrio. Sem ter o que "negociar", resta apenas o recurso da ameaa de retirar as crianas dos pais, ou impedir suas visitas.

    Pudemos ver isso claramente em uma "visita domiciliar" que conseguimos acompanhar em novembro de 1994. Antes de sermos levadas pelo motorista da FEBEM at a casa dos pais de uma criana abrigada, perguntamos assistente social, Betina, de que se tratava. "Os pais so de rua, para mim eles no tm condies de ficar com a criana. A filha nem dele, mas ele aceita porque ama muito ela, a me. Ele disse isso para a psicloga. Eles largam na rua a roupa que no serve mais, um mau cheiro, uma sujeira! As crianas pedem comida na rua, so mendigos". Aim da menina internada Daniela, de oito meses ,o casal tem mais trs crianas, de quatro, nove e 11 anos. Daniela entrou na FEBEM por "negligncia", mas, segundo o relato da assistente social, houve uma briga de vizinhos. "Foi a me que fez a denncia para o Conselho Tutelar. Porque a criana estava na vizinha." Pergunto o motivo, se a criana no estava bem. "Sim, estava, mas deu briga quase de morte. Avizinha tirou a criana do casal e nem deixava a me ver."'

    Ironicamente, depois de alguns meses, a disputa entre os adultos pela criana parecia ter acabado, mas Daniela continuava abrigada na FEBEM. Sobre esse uso do Estatuto pela populao, que inspira denncias nos Conselhos Tutelares causadas antes por uma briga entre adultos do que por uma defesa dos direitos da criana, ver Ribeiro (1996).

    Apesar de o caso brasileiro refeletir outro contexto e outro momento hist-rico, o disciplinamento de famlias pobres na Frana jogou luz sobre certos aspectos da implantao do Estatuto no Brasil contemporneo.

  • Nos dirigimos, ento, para o "Beco do Bito", localizado em um bairro popu-lar na periferia da Cidade. Aps demorarmos em achar o endereo, o motorista finalmente estacionou a l
  • processo [para retorno famlia]. Porque j faz tempo isso, n? Desde quando, desde maio que a menina est l [abre o processo, olha a primeira folha com a data de entrada]".

    A me concordou, repetiu ", faz tempo j; ela t grande". Braos cruzados no peito, no olhou para o rosto de Betina. J o pai, sim.

    Assistente social: " Vocs tm que pensar bem, se querem ficar com a menina ou no [os dois ficaram assentindo com a cabea]. Mas se quiserem ficar, o juiz no vai deixar naquela casa, tem que arrumar. Porque esses aqui j esto grandes, se viram sozinhos, mas ela nen. Fazer um quarto para as crianas, outro pra vocs".

    O menino maiorzinho, que escutava a conversa, disse:" Meus pais tm um colcho de casal". A me sorriu.

    Assistente social: " Pois , a FEBEM d madeira; ela d um empurrozinho, mas vocs tambm tm que se ajudar, se no no adianta, n? O senhor sabe construir?".

    Pai:" No, eu no, mas esse vizinho ali de trs, ele sabe, ele j disse que me ajudava. E esse outro tambm, vrias pessoas j disseram".

    Assistente social:" Pois ento, quem sabe faz um mutiro. Vocs esto trabalhando?".

    Me:" Ele guarda carro no centro, eu vou conseguir uma faxina, uma mulher, nosbado.(...)".

    Assistente social:" A gente est aqui para ajudar, no para dar as coisas assim, porque se vocs no se ajudarem...(..) Mas a gente consegue, vamos ver, vamos ver como que fica".

    Ainda que Betina tenha falado para eles irem l v-la, suas exortaes ambivalentes, como as das suas colegas, acabam carecendo de convico. " muito difcil. A gente teria que conseguir um emprego para essas pessoas, e isso tu no consegue. O Estado no d condio nenhuma", queixa-se uma psicloga. No caso de pais alcolatras, a afirmao da chefe de complexo segue essa mesma linha: " que o acompanhamento no pode ser assim, no adianta tu ir l para essa mulher e falar: 'pra de beber', e tal, de tempos em tempos, voltar l depois de um tempo. Ela no vai parar". O Juizado da Infncia e da Juventude, por sua vez, concede um tempo de seis meses para que as famlias "se organizem" para no perderem seus filhos, inclusive no caso de pais com "doenas mentais". Os tcnicos, em muitos casos, reconhecem que esse prazo intil e defendem as famlias, dizendo que essa "organizao" impossvel. "Se d um prazo, d mais um prazo, da tu no te organiza. Tu tem certeza que

  • 5 - Quando alguns direitos so mais Importantes do que outros

    Nas reunies dos tcnicos, apesar de todos os participantes estarem norteando-se aparentemente pelo Estatuto na discusso dos novos "direitos da criana e do adolescente", no existia consenso. Dessa forma, muitas vezes, colocavam-se em confronto interesses das famlias de origem com os das Unidades Residenciais e das famlias adotivas. A tenso entre esses diferentes plos pode ser bem observada atravs do relato a seguir.

    Deise, quatro anos, Valria, trs anos, e Igor, um ms, entraram na Febem por motivo de negligncia, atravs do Conselho Tutelar. Seus pais eram "andarilhos" em uma cidade do interior do Estado. Quando estavam em Porto Alegre, visitavam as crianas e mostravam-se preocupados com a possibilidade de que lhes fossem tirados seus filhos.

    " A impotncia sentida pelos tcnicos frente a essas situaes a mesma relatada por Ribeiro (1996) em relao aos Conselheiros Tutelares,

    " Em Porto Alegre, como na maioria das grandes cidades brasileiras, a insuficincia de vagas crnica em outras instituies pblicas, como hospitais psiquitricos e prises Isso provoca situaes nas quais pais avaliados por psiquiatras como "doentes mentais" no recebem tratamento algum alm do diagnstico, ou situaes em que, segundo o relato de uma das coordenadoras, aps ter estado alguns meses abrigada nas URTs, uma criana acabe voltan-do a conviver com o primo ou o padrasto que abusou dela sexualmente, sem que nenhuma providncia tenha sido tomada contra o agressor. Prises ou hospitais psiquitricos so utilizados, nesse quadro de falncia institucional, apenas nos casos mais extremos.

    eles no vo se organizar nunca" (Tcnica de educao)." Aqui no se trata de uma questo de tempo, mas de falta de qualquer oportunidade para uma populao totalmente excluda.

    O casal mencionado acima tinia, alm de Daniela, mais trs filhos, tambm crianas. Podem os pais de Daniela ser negligentes apenas com ela? Se as condies de moradia e a situao em termos de trabalho dos pais no so convenientes para o nen, tampouco o seriam para os outros trs meninos. No entanto a assistente social no pode, mesmo que queira, abrigar os quatro irmos no existem vagas para isso no Programa. O que acaba ocorrendo que, ao no haver suficientes unidades residenciais para abrigar todas as crianas das famlias pobres, opta-se por retirar dos pais as crianas menores, "salvando", ao menos, estas de uma vida miservel.^"

  • ' Se colocados em adoo, dificilmente os irmos ficariam juntos, haveria poucas chances de conseguir uma famlia que estivesse disposta a assumir trs crianas ("Trs s pra adoo internacional, e olhe l", lembra uma assistente social So os casais estrageiros que cos-tumam adotar grupos com mais de dois irmos) Caso se concretizasse a adoo, provavel-mente a menina mais velha no seria adotada, ficando na FEBEM.

    A Assistente Social Magda, que cuida do caso, o exps na reunio geral dos tcnicos, por estar em dvida sobre qual o melhor procedimento a ser tomado. Essas crianas devem ficar junto aos seus pais, ou estes devem perder o ptrio poder, sendo os meninos colocados para adoo?

    Magda:" O que fazer? Porque a gente est mexendo com a vida das pessoas. Vai separar esses irmos? E houve visitas da me"'^

    Betina (assistente social): " Eu no sei, eu j fiz isso, e fiquei depois com a conscincia muito pesada. Eu venho me questionando sobre isso; os andarilhos, essa populao da rua, tm uma forma de viver, uma liberdade, e uma forma de educar as crianas que a gente no concorda, nem a que est no Estatuto, mas outra forma".

    Magda:"- Pois , o que eu tentava discutir com a conselheira; porque essas crianas tinham afeto, os pais eram afetuosos. Eu dizia: desliga [desinterna] a Deise! [primeira criana a ser internada] Por que no se desliga? Mas o entendimento da Conselheira Tutelar era esse, preferiu tirar os outros dois dos pais".

    Betina:" Vocs sabem o que o juiz disse: melhor uma criana com a me debaixo da ponte do que uma criana numa instituio".

    Magda:" que no o que est no Estatuto". Betina:" Mas no pode ir pela legislao". O coordenador geral deu a sua opinio:" A gente tem que pensar o que

    melhor: que os trs fiquem na FEBEM ou que os menores vo para uma famlia? Eu digo, no importa para onde essas crianas vo, mas desde que estejam com uma famlia". Um outro tcnico acrescentou:"A gente sabe o que uma adoo, como importante". Ressaltando os benefcios para a criana de uma adoo, disse uma chefe de complexo:"- Todos sabemos o que acontece depois [se no for para adoo]: vai ter 14 anos puxando caninho, sem escola". Uma das psiclogas colocou que tem suas dvidas:" Eles [os pais] tm afeto, eu no sei".

    "Estamos separando innos", femlias esto sendo desmembradas, "estamos mexendo com a vida das pessoas", disse a assistente social. Ela tem razes suficientes para sentir-se sob o peso de uma grande responsabilidade. com base no seu parecer, junto ao parecer da conselheira tutelar e de tcnicos do Juizado da Infncia e da Juventude, que o juiz ir tomar a sua deciso. As possibilidades so vrias nesse caso: primeiro, as crianas podem voltara viver

  • junto a seus pais, ou no, caso se d a destituio do ptrio poder, Se liouver destituio, os trs irmos podero viver juntos na FEBEiVi ou em uma famiia adotiva, ou, ainda, separados, indo os menores para adoo e permanecendo a menina mais veltia na instituio, at completares 18 anos (caso ela no seja adotada tambm), Na reunio observada acima, podemos perceber duas posies (ainda que acabem no sendo assumidas inteiramente por nentium dos tcnicos):

    a) as crianas devem ficar junto a seus pais Essa populao de rua tem uma "forma de viver" e uma forma de "educar as crianas" que diferente, por isso, "(,..) no se pode ir pela legislao" (Assistente Social Betina). " melhor uma criana com a me debaixo da ponte do que uma criana numa instituio" carncia econmica no justifica a institucionalizao de crianas e a separao dos seus pais (juiz). E, nesse caso, destaca-se uma situao em que os pais "so afetuosos" (Assistente Social IVIagda, psicloga);

    b) as crianas devem ser retiradas dos seus pais (deve se dar a perda do ptrio poder). Os meninos tm que ser colocados em adoo, e, mesmo que isso no seja possvel, melhor que fiquem na FEBEM do que junto famlia de origem. Antes uma criana institucionalizada do que "puxando carrinho, sem escola" (chefe de complexo e conselheira tutelar). Mas o ideal que os meninos sejam adotados. Quando o coordenador diz:"(..) no importa para onde essas crianas vo, mas desde que estejam com uma famlia", a famlia de origem j est excluda, no sendo exatamente considerada como uma "famlia" nesse momento. Resta decidir, ento, se os irmos ficaro juntos, ou no, avaliando as possibilidades dessa adoo sem que haja um desmembramento do grupo.

    "No o que est no Estatuto", diz uma assistente social, Mas o que est no Estatuto, afinal? Isso vai depender da interpretao dos agentes envolvidos juizes, conselheiros tutelares e assistentes sociais, dentre outros. Segundo quem forem esses agentes, certos direitos sero priorizados em detrimento de outros.

    O debate sobre a suspenso ou a perda do ptrio poder , nesse contexto, caracterizado por uma falta de consenso. As discusses sobre quais so os "direitos da criana e do adolescente" implicam diferentes conceitos do que seja uma "famlia" e de como ela pode ser "negligente". O que "ser criana" nas classes populares? A noo de infncia est construda nesses grupos da mesma forma que nas classes mdias? Esse debate tambm traz tona concepes de infncia divergentes, de acordo com classes sociais enormemente distanciadas por fatores tanto econmicos quanto culturais.

  • "Maus-tratos" utilizado aqui no sentido mais amplo dado a child abuse nos EUA. A utilizao do termo maus-tratos num sentido mais amplo no Brasi pode ser vista na Associao Brasileira Multiprofissional de Proteo Infncia e Adolescncia (Abrapia), fundada em 1988, onde so considerados formas de maus-tratos os maus-tratos fsicos, o abuso sexual, os maus-tratos psicolgicos e a negligncia (MAUS-TRATOS ., 1992, p 10-11)

    6 - Maus-tratos infncia: a construo de um problema social

    6.1 - Um processo de definio coletiva

    A abordagem interacionista/"construcionista" do estudo de problemas sociais surgiu da insatisfao de alguns socilogos com a perspectiva objetivista dominante, a partir da publicao do artigo de Herbert Blumer com o ttulo Social problems as collective behavior, em 1971 (BEST, 1990, p. 240; CONRAD, SCHNEIDER, 1992, p. 2, 279). Nesse artigo, Blumer afirma que os socilogos tinham se equivocado em situar os problemas sociais em termos de condies objetivas. Um problema social existe principalmente em termos de como ele definido e concebido em uma sociedade. Esse autor sustentava ser um grande erro pensar que qualquer tipo de condio social ou organizao prejudicial se torna automaticamente um problema social para uma sociedade. Condies sociais dadas podem ser ignoradas em uma certa poca e, sem que tenham havido mudanas em sua composio, tornam-se matria de sria preocupao em outra poca. Os problemas sociais, portanto, so, fundamentalmente, produtos de um processo de definio coletiva que altamente seletivo. Esse processo determina quando eles iro surgir, quando se tornam legitimados, como so colocados em discusso, como so remetidos poltica oficial e como eles so reconstitudos em aes planejadas levadas a efeito (BLUMER, 1971, p.298-302).

    esse tipo de abordagem interacionista/"construcionista" o utilizado por autores como Best (1990) e Johnson (1989) para analisar o surgimento dos maus-tratos infncia como um problema social nos Estados Unidos.' Nesse pas, as primeiras leis especificamente formuladas a respeito de maus--tratos em crianas {cliilcl abuse) foram aprovadas em 1963, e, a partir de ento, em trs anos, 47 dos 50 estados norte-americanos haviam aprovado algum tipo de legislao sobre o assunto (de FRANCIS apud JOHNSON, 1989, p.6). Alm dos avanos tecnolgicos (por exemplo, no campo da

  • 6.2 - A constituio do problema no Brasil

    As ltimas mudanas na legislao brasileira, com o processo de implantao do Estatuto da Criana e do Adolescente e, junto com ele, com a formao de grupos em defesa dos direitos da infncia e da adolescncia, demonstram que o reconhecimento dos maus-tratos s crianas como um probiema social comea a constituir-se no Brasil. por essa razo que a comparao com pases onde esse problema j est legitimado revela semelhanas interessantes.

    No Brasil, o movimento de incluso de "motivos adicionais" (como negligncia e maus-tratos psicolgicos) alm das primeiras reclamaes (como crianas brutalmente espancadas por seus pais) pode ser observado atravs tanto do uso mais abrangente de certos termos como tambm de uma especificao maior de categorias. O primeiro processo pode ser exemplificado pelo significado dado categoria "crianas vtimas de violncia" (ou mesmo categoria "maus-tratos") por organizaes no governamentais

    radiologia peditrica como especialidade ocupacional), organizaes como a The American Human Association (AHA) desempenharam papis importantes nos primeiros esforos para estabelecer o movimento contra a negligncia e os maus-tratos s crianas. Tudo isso fez com que aumentasse de forma significativa o nmero oficialmente reconhecido e classificado de crianas vtimas de maus-tratos e negligncia. Em 1963, um estudo realizado pela AHA pde registrar apenas 662 casos de leses no acidentais em crianas em todo o pas, porm, em 1980, cerca de 700.000 casos obtiveram sfafws e reconhecimento oficial (JOHNSON, 1989, p. 6).

    Reclamantes procuram convencer seu pblico de que X um problema social, ou de que Y uma soluo (BEST, 1990, p. 24). Quando as primeiras reclamaes so validadas (como, por exemplo, crianas brutalmente espancadas pelos seus pais), elas oferecem uma base sobre a qual reclamaes adicionais podem ser construdas negligncia, maus-tratos psicolgicos, etc. (ibid., p. 80). Como afirma Best (1990, p. 66), foi isso o que aconteceu em relao ao problema dos maus-tratos infncia nos Estados Unidos. Ao longo de quase 30 anos, child abuse foi definido e redefinido. Usado originalmente para descrever brutalidades fsicas dos pais contra seus filhos pequenos, o termo veio a englobar negligncia, contatos sexuais e, ao menos de acordo com alguns "reclamantes", uma miscelnea de outros atos que podem causar diferentes tipos de danos a pessoas jovens.

  • " A Abrapia define-se como uma organizao no governamental sem fins lucrativos, reunin-do psiclogos, assistentes sociais, advogados, mdicos, pedagogos e outros profissionais dedicados ao atendimento de crianas e adolescentes 'Vitimas de violncia" (MAUS-TRA-T O S , 1992, p. 4) Devemos salientar que constam na bibliografia dos seus panfletos diversos artigos publicados em revistas norte-americanas.

    Incluindo os motivos de ingresso de adolescentes e vrias categorias referentes "insufi-cincia de dados quanto a (..,)", o nmero total de grupos chegou a 45, subdivididos em 381 motivos. Essa classificao estava sendo comparada pelo setor de informtica da FEBEM com a Tabela de Codificao do Sistema de Informao para a Infncia e Adolescncia (SIPIA). Devemos salientar que cada uma dessas subcategorias criadas pela Fundao consistiu praticamente no motivo de ingresso especifico pelo qual cada criana havia entra-do na instituio, como "Comendo no cho com ces', "Me bate com faco" ou "Abandono em quarto de hotel". Por essa razo, no incio de 1996, as categorias ainda estavam sendo discutidas, para sofrerem uma nova classificao.

    como a Abrapia. Para a Associao, seriam tambm vtimas de violncia as crianas atingidas pela falta de acesso sade e educao:"(...) e a (na categoria vtimas de violncia) no s esto includos os maus-tratos fsicos e o abuso sexual, como tambm o abandono, a violncia psicolgica, discriminao, e at falta de acesso sade e educao (grifo nosso)" (MAUS-TRATOS..., 1992a, p.4).'^

    J quanto especificao mais detalhada de categorias, podemos citar o prprio exemplo da FEBEM-RS. Durante o ano de 1985, num estudo feito por tcnicos sobre o Instituto Infantil Samir Squeff, os motivos de ingresso das crianas na instituio foram agrupados em 10 grandes grupos, os quais, por sua vez, eram divididos em subitens, onde constavam mais 19 categorias (ESTUDO..., 1986). Dez anos depois, em 1995, a FEBEM preparou um levantamento sobre motivos de ingresso de crianas nas Unidades Residenciais Transitrias, onde dos 10 grandes grupos de 1985 se passou para 19, que se subdividiram em nada menos que 251 subitens.

    A forma como essas categorias acabaram subdivididas pode ser vista no caso do termo "abuso sexual". O relatrio da FEBEM de 1985 colocava a tentativa de estupro como um tipo de mau-trato, inserindo-a, portanto, dentro do conceito mais abrangente de "maus-tratos". J o Estatuto da Criana e do Adolescente instaurou, fora os "maus-tratos", a categoria "abuso sexual" no seu artigo 130: "Verificada a hiptese de maus-tratos, opresso ou abuso sexual (..)". Hoje, na FEBEM, "maus-tratos" e "abuso" so dois motivos diferentes de ingresso.

  • 7 - Do ingresso por "probiema scio-econmico" para ingresso por "negligncia"

    A comparao entre os motivos de ingresso no Instituto Samir Squeff em 1985 com os motivos de ingresso ps-Estatuto nas URTs leva-nos a outras questes elucidativas, questes estas que podem ser observadas no quadro abaixo.^^

    MOTIVOS DE INGRESSO DE 350 CRIANAS QUE ENTRARAM NO

    IISS EM 1985

    os 10 PRIMEIROS MOTIVOS DE INGRESSO DAS 207 CRIANAS

    QUE ENTRARAM NAS URTs EM 1994

    Problema scio-econmico: 42% Abandono: (1)26,08%

    Perdido, perambulao, ou fuga do lar: 13% Assistncia: 16,42%

    Situao de abandono: (2)13% Maus-tratos: 12,56%

    Problema de sade dos responsveis: 11 % Negligncia: 11 ,11%

    Abandono: (3) 6% Risco de vida: 10,62%

    Maus-tratos: 5% Abuso: 4,83%

    Desintegrao familiar: (4) 3% Me na Febem: 2,89%

    Mendicncia: 3% Abandono mais maus-tratos: 2 , 4 1 %

    Doenas do menor: 2 % Pais doentes mentais: 2 , 4 1 %

    Menor excepcional: 0,5% Perdido: 2 , 4 1 %

    (1) No Manual de Instrues para Preenchimento da Ficha de Tabulao Referente ao Perfil da Clientela nos Abr igos da FEBEM, define-se que o abandono pressupe "( .) existncia de pais ou responsveis localizados que se negam a assumir os cuidados dos filhos" (MANUAL,.,1994 P 2). (2) Situao de abandono: " ( . ) menor que, possui femflia ou responsveis; sem condies e capacidade de mant-los, no localizados ou, ainda, que demonstram desinteresse em assumi-los" (ESTUDO..., 1986 P 22). (3) Abandono: "Menor que, aps, verificao de situao in-egular pela Equipe de Colocao Familiar do Juizado de Menores, deaetado abandonado e encaminhado para internamente com vistas adoo" (ESTUDO. , 1986, p, 22) (4) Desintegrao femiliar "Abandono do lar por um, ou pelos dois cnjuges, levando ao que permanece, ou a terceiros, a dificuldade de prover o sustento dos menores; diegada de novo(a) companheiro(a) que rejeita os filhos do(a) companheiro(a); no caso de um, ou dos dois cnjuges se configurarem nocivos estrutura familiar" (ESTUDO,,, 1986, p24).

    ' Os dados sobre o IISS esto baseados no documento Es tudo do A tend imen to na Faixa Etria de O a 6 Anos , que relata que, embora no ano de 1985 tenham ingressado no Instituto Samir um total de 405 crianas, a defasagem de 55 pronturios no localizados fez com que a populao analisada se restringisse a 350 crianas. Em 1 % dos casos, no constam dados. J as informaes referentes s URTs tm como fonte o Relatr io das At iv idades d o S e r v i o Soc ia l 1994 (1994), elaborado pelo conjunto de assistentes sociais do NAUR, Lembramos que os critrios utilizados para a elaborao dessas categorias no so os mesmos que os usados pelo setor de informtica da FEBEM, referidos acima.

  • 20 "( ) casos considerados como indicao especifica para internamento, face a dispositivos legais, e serem clientela prioritria do Instituto" (ESTUDO , 1986, p.34)

    A lista de motivos elaborada pela equipe de assistentes sociais do Pro-grama das Unidades Residenciais Transitrias segue com mais 12 motivos de ingresso. Ainda que o aumento do nmero de categorias seja evidente, deve-mos lembrar que isso acaba por influir nas porcentagens, j que os casos se pulverizam no mais em 10 grupos, mas em 22. Por outro lado, necessrio que a comparao das categorias de h 10 anos atrs com as de hoje seja feita tomando certas precaues, porque, ainda que tenham o mesmo nome, como "maus-tratos" ou "abandono", seria preciso um estudo especfico dessas categorias para examinar suas diferenas e de que forma se imbricam umas com as outras. No entanto o mais interessante da comparao acima talvez esteja na anlise dos motivos de ingresso "problema scio-econmico", "assistncia" e "negligncia".

    No documento feito sobre o IISS em 1985, os tcnicos queixavam-se: embora a institucionalizao do menor s devesse ocorrer para casos onde o internamento fosse imprescindvel, como o abandono, apenas 18,5% das crianas internadas diziam respeito a menores abandonados ou em situao de abandono.^" A maior incidncia acabava por recair sobre a categoria "problemas scio-econmicos": esse era o motivo principal de ingresso em 42% dos casos, e, exceto o ingresso por abandono e por situao de abandono, o restante dos motivos, isto , 81,5% de todos os casos, caracterizava-se por problemas scio--econmicos ou em decorrncia direta dos mesmos. Conclua que, "(...) se houvesse uma maior integrao com recursos da comunidade, poderiam ser evitados os internamentos temporrios por motivos que no pressupem recolhimento; possibilitando a estes menores a continuidade do vnculo familiar" (ESTUDO..., 1986, p.35).

    O relatrio elaborado quase 10 anos depois pelas assistentes sociais do Programa das URTs apresenta queixas semelhantes:

    "Em Porto Alegre quase inexistem recursos de atendimento a crianas e adolescentes, sendo do Estado, atravs da FEBEM, a competncia de atendimento a esta populao, uma vez que ainda no foram criados equipamentos sociais ao nvel municipal. Em virtude disso os Conselhos Tutelares, no contando com recursos comunitrios disposio, tendem sempre a encaminhar as crianas para as URTs. Isso inadequado, uma vez que a unidade de abrigo deveria ser

  • 2 ' o projeto do censo feito em todos os abrigos da FEBEIVI em 1994 tinia como justificativa o fato de que "(. ) muitos encaminhamentos se do de forma inadequada, sendo o abrigo utilizado como primeira medida, ferindo o ECA, art. 101 - inciso VIII, pargrafo nico" (PRO-JETO . , 1994, p 3).

    ocupada por situaes caracterizadas como de "direito de Estado" (abandono). (Rei. Ativ, Serv. Soe, 1994, p. 6-7)

    Como uma das sugestes para "facilitar a ao", o Relatrio recomenda "(...)viabilizar entendimentos polticos que propiciem a criao de recursos municipalizados para assistncia de crianas/famlias, afim de serem evitados os abrigamentos transitrios" (ibid., p.12).2' Nas duas reclama-es feitas pelos tcnicos em 1985 e 1994, a FEBEIVI coloca sua funo de receber apenas os "abandonados". Poderamos crer que a nica diferen-a que, se h 10 anos os tcnicos se queixavam por atender a muitas crianas que ingressavam por "problemas scio-econmicos", hoje se queixam por receber no s esses casos de "assistncia", como tambm de "maus-tratos", "negligncia" e "risco de vida" os quatro motivos de ingresso que vm logo depois do "abandono" (ver quadro). Mas, se olharmos mais de perto, notaremos que mesmo essa diferena no to grande assim.

    O conceito de "negligncia" continua muito vago. No IVIanual de Instrues elaborado para um censo sobre os abrigos da FEBEM em 1994, a "negligncia/ /omisso" definida como "Ato ou efeito dos responsveis de no fazer aquilo que moral ou juridicamente deveriam fazer. Portanto, inexiste preocupao com os cuidados" (MANUAL..., s.d., p.3). Entretanto o Relatrio da rea de Servi-o Social do Programa das URTs de 1994 assimila "negligncia" categoria "casos assistenciais"; "O abandono totalizou 29,49% do total de ingressos [so-mado com motivo abandono mais maus-tratos], ndice semelhante aos casos assistncias (soma de assistencial e negligncia), que foi 27,53%." (Rei. Ativ. Serv. Soe,1994, p.5).

    Quando perguntamos a uma das assistentes sociais que elaborou o Relatrio a razo para essa forma de classificao, ela responde:

    "Isso porque a gente conhecia os casos. s vezes chama de negligncia, mas assistencial, se confunde. Depende da concepo de quem colocou o motivo, da conselheira tutelar ou assistente social, entendeu? O que assistencial para uns pode ser negligncia para outros. Por isso a gente somou".

  • 8 - Afastando as crianas das famlias de origem "para o seu prprio bem"

    De acordo com o Estatuto, dever da famlia, da comunidade, da sociedade em geral e do Poder Pblico assegurar a efetivao dos direitos da infncia e da juventude (art. 4). No entanto comum, na mdia e mesmo entre agentes sociais, culpar em primeiro lugar a famlia de origem, se no est cumprindo o seu papel adequadamente. Em outras palavras, diretamente a famlia que pode ser mais facilmente punida, e no o "Poder Pblico" ou "a sociedade em geral". Agora, a criana um "cidado", que no pode ficar ao lado de pais negligentes.

    inegvel que programas como o das Unidades Residenciais Transitrias garantem escolarizao, sade, alimentao e lazer para crianas pobres, oferecendo um nvel de vida que seus pais nunca poderiam lhes dar. Mas ser que retir-las de suas famlias, dando-as muitas vezes em adoo, a soluo para o problema?

    Aparentemente, o Estatuto da Criana e do Adolescente no se presta para abusos de poder. Tudo parece j estar l: "Toda criana ou adolescente tem direito a ser criado e educado no seio de sua famlia e, excepcionalmente.

    Totalizando cerca de 30% dos motivos de ingresso em 1994, os casos "assistenciais" ou de "problema scio-econmico" parecem, assim, continuar sendo um problema para a FEBEM. O que parece ter mudado em uma poca ps-Estatuto" que os motivos de ingresso por "problema scio-econmico" esto, em parte, sendo chamados de "negligncia".

    A passagem do "problema scio-econmico" para a "negligncia" revela uma mudana de enfoque na viso da infncia pobre e da sua famlia no Brasil. Se, em 1985, se considerava que, fora os casos de abandono, motivos como "mendicncia", "maus-tratos", "desintegrao familiar" e "doenas do menor" eram decorrncia direta de "problemas scio-econmicos", hoje, mais do que nunca, a famlia pobre, e no uma questo estrutural, culpada pela situao em que se encontram seus filhos. ela que "negligente", maltrata as crianas, as faz mendigar, no lhes proporciona boas condies de sade, enfim, "no se organiza". Sendo considerada a criana "sujeito de direitos que tem prioridade absoluta" pela legislao, vemos, no quadro comparativo de motivos de ingresso, um deslocamento das categorias em direo aos "direitos de crianas e adolescentes" violados ("negligncia", "abuso", "risco de vida"), custa de enfoques que levem em considerao questes estruturais da sociedade brasileira enfrentadas pelas famlias de origem.

  • em famlia substituta" (art. 19). "A falta ou carncia de recursos materiais no constitui motivo suficiente para a perda ou a suspenso do ptrio poder" e, no existindo outro motivo que, por si s, autorize a decretao da medida,"(...) a criana ou adolescente ser mantido em sua famlia de origem" (art. 23). O abrigo, ainda, " medida provisria e excepcional" (art. 101, pargrafo nico).

    No entanto, tendo o ECA pouco tempo de vida, sero necessrias discusses mais aprofundadas para que seus preceitos sejam seguidos de uma forma mais coerente. Entre juizes, conselheiros tutelares e especialistas de diversas reas, como assistentes sociais e psiclogos, o grande nmero de pessoas com concepes divergentes envolvidas na garantia desses direitos dificulta um parmetro comum. Sem um consenso mnimo, a nova legislao fica demasiadamente aberta para interpretaes muito diferentes. Tem-se, ento, a impresso de que tudo acaba sendo avaliado "caso a caso", de acordo com os pareceres individuais desses agentes.

    Alguns autores, como Albergaria (1989) e Becker (1994) reclamam inclusive critrios mais claros no prprio ECA, Segundo Albergaria (1989, p. 95), a enumerao dos procedimentos para regular o exerccio do ptrio poder, ordenar a entrega judicial do menor e converter, revogar e rever adoo, dentre outros, incompleta no Estatuto. Becker (1994, p.74) tambm recomenda o estabele-cimento de critrios mais claros para casos de perda ou suspenso do ptrio poder. Lembra, porm, (e concordamos com ela) que no se pode assumir a posio de "(...) manter o vnculo [com a famlia biolgica] a qualquer preo" (ibid., p.65). H casos em que crianas devem ser retiradas dos seus pais. A questo definir quais casos devem ser estes. Os artigos do Estatuto que prevem a suspenso ou a perda do ptrio poder quando os pais, injustificadamente, deixarem de cumprir seus deveres de sustentar, ter sob sua guarda e educar os filhos, submeterem-nos a abusos e maus-tratos, ou, ainda, deixarem de cumprir determinaes judiciais no seu interesse (artigos 22 e 24) resumidos de certa forma no conceito de "negligncia" no parecem, como vimos, suficientemente claros.

    No h como negar que o Estatuto representa uma mudana na concepo da infncia e da adolescncia no Brasil. Mas, se em termos da viso da criana houve inovaes, o mesmo no parece ter ocorrido em relao s famlias de origem. Devemos lembrar que, se a nossa legislao sobre a proteo infncia de "Primeiro Mundo", a maioria das famlias brasileiras no o so, o que causa um descompasso muito grande, Com uma legislao considerada to avanada, poderamos iniciar de uma vez por todas algo que nunca parece ter se realizado: o dilogo com as famlias populares, levando, dessa forma, a cidadania no apenas para seus filhos como tambm para esses "cidados adultos" seus pais.

  • Bibliografia

    ALBERGARIA, Jason (1989). Breve exposio do Estatuto da Criana e do Adolescente. Revista da Escola do Servio Penitencirio do Rio Grande do Sul, Porto Alegre ; Escola do Servio Penitencirio, n.5, out./dez.

    ALVIM, Maria Rosilene (1985). Constituio da famlia e trabalho industrial: um estudo de caso sobre trabalhadores txteis numa fbrica com vila operria. Rio de Janeiro : UFRJ/PPGAS/ Museu Nacional (Tese de doutoramento).

    ALVIM, Maria Rosilene Barbosa, VALLADARES, Licia do Prado (1988) Infncia e sociedade no Brasil: uma anlise da literatura. Bib, Rio de Janeiro, n.26, p.3-37, 2.semest.

    ARIES, Philippe (1981). Histria social da criana e da famlia. Rio de Janeiro: Ed. Guanabara.

    BECKER, Maria Josefina (1994). A ruptura dos vnculos: quando a tragdia acontece, In: FAMLIA brasileira: a base de tudo, A. So Paulo : Cortez; Braslia: UNICEF p.60-76.

    BEST, Joel (1590). Threatened children: rethoric and concern about child -victims. Chicago : University Chicago.

    BLUMER, Herbert (1971). Social problems as collective behavior. Social Problems, v i 8 , n.3, p.298-306.

    COLLIER, Jane, ROSALDO, Michele, YANAGISAKO, Silvia (1992). Is there a family? New anthropoligical views. In: THORNE, Barrie, YALOM, Marilyn, orgs. Rethinking the family. Boston : Northeastern University.

    CONRAD, Peter, SCHNEIDER, Joseph W. (1992). Desviance and medicalization: from badness to sickness. Philadelphia: Temple University.

    CORRA, Mariza (1982). Repensando a famlia patriarcal brasileira. In: ALMEIDA, et al. Colcha de retalhos: estudos sobre a famlia no Brasil. So Paulo: Brasiliense.

    DONZELOT, Jacques (1980). A polcia das famlias. Rio de Janeiro: GraaI.

    DOS SANTOS, Benedito Rodrigues (1992). A implantao do estatuto da criana e do adolescente In: PEREIRA JNIOR, Almir, BEZERRA, Jaerson Lucas, HERINGER, Rosana, orgs Os impasses da cidadania: infncia e adolescncia no Brasil, Rio de Janeiro: IBASE. p.66-79.

  • ESTATUTO da Criana e do Adolescente: lei 8069/90 (1990). Braslia.

    ESTUDO do atendimento na faixa etria de 00 a 06 anos (1986). FEBEIVI.

    FONSECA, Claudia (1989). Pais e filhos na famlia popular (inicio do sculo XX). In: AMOR e famlia no Brasil. So Paulo: M.dincao: Achiam. p.95-128.

    FONSECA, Claudia (1995). Nos caminhos da adoo. So Paulo : Cortez

    FRANCIS, Vicent (1963). Parents who abuse children. PTA IVIagazine, n.58, p.16-18, Nov.

    GOMES, Antnio Carlos da Costa (1990). Infncia, juventude e poltica social no Brasil. In: BRASIL, criana, urgente: a lei 8069/90 - o que preciso saber sobre os novos direitos da criana e do adolescente. So Paulo : Columbus Cultural, p.69-105.

    JOHNSON, John M. (1989). Horror stories and the construction of child abuse. In: IMAGES of issues. New York : De Gruyter. p.5-19.

    LONDONO, Fernando Torres (1991). A origem do conceito menor. In: DEL PRIORE, Mary, org. Histria da criana no Brasil. So Paulo: Contexto. (Caminhos da histria), p.129-145.

    MANUAL de instrues para preenchimento da ficha de tabulao referente ao perfil da clientela nos abrigos da FEBEM. (s.d.).

    MAUS-TRATOS contra crianas e adolescentes: proteo e preveno - guia de orientao para professores (1992). Rio de Janeiro: Autores & Agentes & Associados.

    MAUS-TRATOS contra crianas e adolescentes: proteo e preveno - guia de orientao para profissionais de sade (1992a). Rio de Janeiro: Autores & Agentes & Associados.

    MEYER, Philippe (1977). Uenfant et la raison d'tat. Paris : Seuil.

    PEREIRA JNIOR, Almr, BEZERRA, Jaerson Lucas, HERINGER, Rosana, orgs. (1992). Os impasses da cidadania: infncia e adolescncia no Brasil. Rio de Janeiro: IBASERJ.

    PLANO de Ao: sistema gacho de atendimento criana e ao adolescente (1991-1995). FEBEM.

    PROGRAMA unidades residenciais transitrias (1992). FEBEM.

    PROJETO levantamento do perfil das crianas e adolescentes do programa de abrigo da FEBEM (1994). FEBEM.

  • PROPOSTA de atendimento ao programa unidades residenciais transitrias (1994). FEBEIVl/DAUR.

    REIJ\TRIO DAS ATIVIDADES DO SERVIO SOCIAL -1994 (1994). FEBEM/ DAUR.

    RIBEIRO, Fernanda (1996). A insero do conselho tutelar na construo do problema social da infncia e adolescncia: um estudo de caso a partir do Conselho Tutelar da microrregio 3 de Porto Alegre. Porto Alegre: UFRGS. (Dissertao de mestrado em sociologia).

    RIZZINI, Irene, RIZZINI, Irma (1991). Menores institucionalizados e meninos de rua: os grandes temas de pesquisa na dcada de oitenta. In: TRABALHO e a rua - criana e adolescentes no Brasil urbano dos anos 80, O. So Paulo : Cortez. p.69-90.

    RIZZINI, Irma (1993). Assistncia infncia no Brasil: uma anlise de sua construo. Rio de Janeiro : Universitria Santa Ursula. (Estudo de pesquisa).

    ROCHA, Zilma Bons (1993). A prtica de estgio de servio social junto ao reordenamento do Instituto Infantil Samir Squeff para unidades residenciais transitrias - FEBEM. Canoas, RS: ULBRA. (Monografia de concluso de curso).

    SCHNEIDER, David (1984). A critique of the study of kinship. Ann Arbor: University of Michigan.

    SEDA, Edson (1990). A mutao municipal. In:: BRASIL, criana, urgente: a lei 8069/90 - o que preciso saber sobre os novos direitos da criana e do adolescente. So Paulo : Columbus Cultural, p.54-61.

    ZALUAR, AIba (1994). Cidados no vo ao Paraso. So Paulo : Escuta/ UNICAMP

  • Abstract In Brazil, children are today at the center of attention thanks to the

    new Estatuto da Criana e do Adolescente. If, on the one hand, this legislation guarantees the right of children and adolescentes to be raised and educated in their own families, on the other, it demands thattheir right to health, education, food, leisure and sports be assured. Many social workers who deal with children consider than since poor families do not guarantee these rights, they are being negligent with their offspring. Thus, acting in the name ofthe child, for its own good, they may withdraw it from its original family. On the basis of a study of social workers, psychologists and pedagogues employed by the state orphanage in Rio Grande do Sul, we examine how "socio-economic problems" - the category which ten years ago justifled most internments, has been transformed in the post-Statute period into the category of "negligence". Today, the idea of protecting children is given top priority, even if it involves infringing the parents' rights. In other words, although children may have gained in "citizenry", the aduits they will soon become - lower-income men and women - appear to have lost ground.