A Última Batalha - Aulas Particulares · queixou-se o macaco. Œ Como se nªo soubesse...

291
C. S. LEWIS AS CRNICAS DE N`RNIA VOL. VII A ltima Batalha Traduªo Paulo Mendes Campos Martins Fontes Sªo Paulo 2002

Transcript of A Última Batalha - Aulas Particulares · queixou-se o macaco. Œ Como se nªo soubesse...

C. S. LEWIS

AS CRÔNICAS DE NÁRNIA

VOL. VII

A Última Batalha

TraduçãoPaulo Mendes Campos

Martins FontesSão Paulo 2002

____________________________________C.S.Lewis � Crônicas de Nárnia � Vol. VII

1

As Crônicas de Nárnia são constituídas por:

Vol. I � O Sobrinho do Mago

Vol. II � O Leão, o Feiticeiro e o Guarda-Roupa

Vol. III � O Cavalo e seu Menino

Vol. IV � Príncipe Caspian

Vol. V � A Viagem do Peregrino da Alvorada

Vol. VI � A Cadeira de Prata

Vol. VII� A Última Batalha

____________________________________C.S.Lewis � Crônicas de Nárnia � Vol. VII

2

ÍNDICE

1. No LAGO DO CALDEIRÃO

2. A PRECIPITAÇÃO DO REI

3. SUA MAJESTADE, O MACACO

4. O QUE ACONTECEU NAQUELA NOITE

5. CHEGA AUXÍLIO PARA O REI

6. UM BOM TRABALHO NOTURNO

7. VIVAM OS ANÕES!8. AS NOVAS QUE A ÁGUIA TROUXE

9. A GRANDE REUNIÃO NA COLINA DO ESTÁBULO

10. QUEM ENTRARÁ NO ESTÁBULO?11. ACELERA-SE O PASSO

12. PELA PORTA DO ESTÁBULO

13. OS ANÕES NÃO SE DEIXAM TAPEAR

14. CAI A NOITE SOBRE NÁRNIA

15. PARA CIMA E AVANTE!16. ADEUS ÀS TERRAS SOMBRIAS

____________________________________C.S.Lewis � Crônicas de Nárnia � Vol. VII

3

1

NO LAGO DO CALDEIRÃO

Nos últimos dias de Nárnia, lá para asbandas do Ocidente, depois do Ermo do Lampiãoe bem pertinho da grande cachoeira, vivia ummacaco. Ele era tão velho que ninguém selembrava quando foi que aparecera por aquelasbandas. E era o macaco mais enrugado, feio eastuto que se pode imaginar. Ele morava numacasinha de madeira coberta de folhas, empoleiradanum dos galhos mais altos de uma grande árvore.Seu nome era Manhoso.

Naquele recanto da floresta havia bempoucos animais falantes, homens, anões ouqualquer tipo de gente. Apesar disso, Manhosotinha um vizinho, que era também seu amigo, umjumento chamado Confuso. Pelo menos eles se

____________________________________C.S.Lewis � Crônicas de Nárnia � Vol. VII

4

diziam amigos. Na verdade, porém, Confuso eramais um empregado que amigo de Manhoso. Eraele quem fazia todo o serviço. Quando iam juntospara o rio, Manhoso enchia os alforjes de água,mas quem os carregava até em casa era Confuso.Quando precisavam de alguma coisa das cidades,que ficavam bem longe, rio abaixo, era Confusoquem descia com os paneiros vazios às costas evoltava depois com eles, pesados de tão cheios. Etudo que ele trazia de melhor e mais gostoso quemcomia era Manhoso, pois, como este costumavadizer: �Você bem sabe, Confuso, que eu nãoposso comer capim e forragem como você. Porisso é claro que eu preciso compensar de outrasformas...� E o jumento respondia: �Claro,Manhoso, claro. Eu sei disso.� Confuso nuncareclamava, pois sabia que Manhoso era muitomais sabido que ele, e até achava que, afinal decontas, era muito gentil da parte dele ser seuamigo. E se, por acaso, Confuso tentava discutircom ele sobre alguma coisa, Manhoso sempredizia: �Ora, vamos, Confuso, eu sei muito melhordo que você o que precisa ser feito. Você sabe

____________________________________C.S.Lewis � Crônicas de Nárnia � Vol. VII

5

muito bem que não é nada inteligente, não émesmo?� E Confuso concordava: �É verdade,Manhoso. Você tem toda a razão. Eu não sousabido mesmo.� E acabavam fazendo sempre oque Manhoso queria.

Uma manhã, no comecinho do ano, os doisandavam passeando à margem do Lago doCaldeirão. O Lago do Caldeirão é o grande lagoque fica logo abaixo dos penhascos naextremidade oeste de Nárnia. A enorme cachoeiraprecipita-se dentro dele com estrondo, como sefosse um eterno trovão, e o rio de Nárnia brotapelo outro lado. Por causa da cascata as águas dolago estão sempre dançando, agitadas,borbulhando e fazendo círculos como seestivessem continuamente fervendo. Por isso éque se chama Lago do Caldeirão. É no comecinhoda primavera que ele fica mais agitado, porque aságuas da cachoeira crescem muito mais com aneve que derrete nas montanhas do lado de lá deNárnia, na floresta ocidental, onde nasce o rio.

____________________________________C.S.Lewis � Crônicas de Nárnia � Vol. VII

6

Eles estavam olhando para o Lago doCaldeirão quando, de repente, Manhoso apontoucom seu dedo escuro e fininho, dizendo:

� Olhe! O que é aquilo?� Aquilo o quê? � perguntou Confuso.� Aquela coisa amarela que vem descendo

pela cachoeira. Olhe! Lá está ela de novo,flutuando na água. Precisamos descobrir o que éaquilo!

� Precisamos...? � disse Confuso.� E claro que sim � respondeu Manhoso. �

Pode ser alguma coisa útil. Vamos, seja camarada.Pule no lago e pegue aquilo lá, para a gente daruma olhada.

� Saltar no lago? � resmungou Confuso,repuxando as orelhas compridas.

� Bem... Como é que vamos pegá-lo sevocê não pular? � disse o macaco.

� Mas... Mas... Não seria melhor que vocêentrasse no lago? Afinal de contas, quem quer

____________________________________C.S.Lewis � Crônicas de Nárnia � Vol. VII

7

saber o que é aquilo é você, e não eu... E você temmãos, não é mesmo? Quando se trata de pegaralguma coisa, você é tão bom quanto qualquerhomem ou anão. Eu só tenho cascos...

� Puxa, Confuso! � exclamou Manhoso. �Nunca pensei ouvir uma coisa dessas. Nuncaesperei isso de você!

� Por quê? O que foi que eu disse deerrado? � indagou o jumento, numa vozinha muitohumilde, pois percebera que o amigo estava muitoofendido. � Eu só quis dizer...

� Querendo que eu entre na água... �queixou-se o macaco. � Como se não soubesseperfeitamente quanto são fracos os pulmões dosmacacos e quão facilmente eles se resfriam. Tudobem, eu vou. Já estou mesmo tremendo de frio porcausa deste vento terrível. Mas vou assim mesmo.Pode até ser que eu morra. E aí você vai searrepender! (E aqui a voz de Manhoso soou comose ele estivesse prestes a chorar.)

� Não, por favor, não vá! Por favor, não! �disse Confuso, meio zurrando, meio falando. � Eu

____________________________________C.S.Lewis � Crônicas de Nárnia � Vol. VII

8

não quis dizer isso, Manhoso, juro! Você bemsabe o quanto sou idiota e que não consigo pensarem duas coisas ao mesmo tempo. Eu esqueci quevocê tem o peito fraco. É claro que eu vou. Nempense mais nisso. Prometa que não vai, Manhoso!

Então o macaco prometeu, e Confuso saiutrotando em volta da margem rochosa do lago,procurando um lugar de onde pudesse pular. Nãoera brincadeira saltar dentro daquela água agitadae espumejante � e isso para não falar do frio!Confuso ficou um tempão parado, tremendo,tentando criar coragem.

Mas aí Manhoso gritou lá de trás:� Talvez seja melhor eu ir, Confuso!

Ao ouvir isso, o jumento apressou-se:

� Não, não! Você prometeu! Já estou indo!� E pulou.

Um monte de espuma espirrou-lhe na cara,enchendo-lhe a boca de água e cegando-lhe osolhos. Durante alguns minutos ficou submerso, equando voltou à tona encontrava-se num ponto

____________________________________C.S.Lewis � Crônicas de Nárnia � Vol. VII

9

totalmente diferente do lago. Então o redemoinhoo pegou, e foi rodopiando cada vez mais rápido,carregando-o para mais e mais longe, até deixá-loexatamente debaixo da queda-d�água. E a força daágua arrastava-o cada vez mais para o fundo, detal forma que ele pensou que não conseguiria retero fôlego... Até que começou a subir novamente.Quando voltou à superfície e afinal conseguiuchegar perto da coisa que estava tentandoalcançar, esta saiu boiando para longe dele e foicair bem embaixo da queda-d�água, que a fezafundar também. Quando a coisa voltou à tona,estava muito mais longe do que nunca.Finalmente, quando já estava quase morto decansaço, todo doído e dormente de frio, conseguiuagarrá-la com os dentes. E lá veio ele pelo lago,carregando à frente aquela coisa enroscada naspatas dianteiras, pois era um pelego enorme,muito pesado, frio e cheio de lodo.

Confuso atirou a coisa aos pés de Manhosoe ali ficou, todo encharcado, tiritando de frio etentando recuperar o fôlego. O macaco, porém,nem sequer olhou para ele ou perguntou como se

____________________________________C.S.Lewis � Crônicas de Nárnia � Vol. VII

10

sentia. Manhoso estava muito ocupado dandovoltas e mais voltas ao redor da coisa. Esticava,alisava, cheirava... E de repente seus olhosbrilharam com um sorriso malicioso e eleexclamou:

� É uma pele de leão!� Eh... ha... ha... é... mesmo? � ofegou

Confuso.

� Eu só queria saber... o que será... seráque... � dizia Manhoso consigo mesmo, pensandoprofundamente.

� Quem será que matou o pobre do leão? �perguntou Confuso depois de alguns instantes. �Ele precisa ser enterrado. Vamos fazer umfuneral.

� Ora, não era um leão falante � replicouManhoso. � Nem precisa se preocupar com isso.Não existem mais animais falantes do lado de ládas cascatas, para as bandas da floresta ocidental.Esta pele deve ter pertencido a um leão mudo eselvagem.

____________________________________C.S.Lewis � Crônicas de Nárnia � Vol. VII

11

A propósito, era isso mesmo. Um caçadormatara o leão e arrancara-lhe a pele em algumaparte da floresta ocidental, já havia vários meses.Isso, porém, nada tem a ver com a nossa história.

� Tanto faz, Manhoso � disse Confuso. �Mesmo que seja a pele de um leão mudo eselvagem, por que não devemos dar-lhe umfuneral decente? Quer dizer, quando a genteconhece Ele, todos os leões são dignos derespeito, você não acha?

� Não comece a meter minhocas na cabeça,Confuso � retrucou Manhoso. � Você bem sabeque pensar não é o seu ponto forte. Vamos pegaresta pele e fazer uma capa bem quentinha paravocê usar no inverno.

� Ah, não! Nem pense nisso! � objetou ojumento.

� Ia parecer... quer dizer, os outros animaispoderiam pensar... isto é, eu não iria sentir-me...

____________________________________C.S.Lewis � Crônicas de Nárnia � Vol. VII

12

� Do que você está falando? � interrompeuManhoso, coçando-se como costumam fazer osmacacos.

� Eu acho que seria uma falta de respeitopara com o Grande Leão, para com o próprioAslam, se um asno como eu andasse por aí metidonuma pele de leão � explicou Confuso.

� Não me venha agora com argumentos,por favor � disse Manhoso. � O que é que umburro como você entende dessas coisas? Vocêbem sabe que não é um bom pensador, Confuso.Por que não me deixa pensar por você? Por quenão me trata como eu o trato? Eu não acho quesou capaz de fazer tudo. Sei que há certas coisasque você faz muito melhor do que eu. É por issoque o deixei entrar no lago: sabia que você fariaisso melhor do que eu. Mas por que eu não possoter uma chance quando se trata de fazer algo queposso fazer e você não? Por que será que nuncaposso fazer nada? Seja justo e me dê uma chance,vá...

� Está bem... se é assim que você pensa...

____________________________________C.S.Lewis � Crônicas de Nárnia � Vol. VII

13

� Sabe de uma coisa? � disse Manhoso. �Por que você não dá um pulinho até Cavacópolispara ver se encontra algumas laranjas e bananaspara nós?

� Mas, Manhoso, estou tão cansado! �implorou Confuso.

� Isso é verdade. Mas também estámolhado e com muito frio � disse o macaco. �Você precisa de alguma coisa que o aqueça, euma corridinha vem bem a calhar. Além do mais,hoje é dia de feira em Cavacópolis.

Nem é preciso dizer que Confuso acabouconcordando. Assim que se viu sozinho, Manhososaiu gingando, ora sobre duas patas, ora sobre asquatro, até chegar à árvore onde morava.

Então começou a pular de galho em galho,tagarelando e arreganhando os dentes o tempotodo, e finalmente entrou na casinha. Lá dentropegou agulha, linha e uma enorme tesoura(inteligente como era, havia aprendido a costurarcom os anões). Enfiou o novelo de linha na boca(era uma linha muito grossa, que mais parecia

____________________________________C.S.Lewis � Crônicas de Nárnia � Vol. VII

14

corda), de forma que as bochechas ficaramestufadas como se ele estivesse chupando umcaramelo bem grandão. Com a agulha entre osbeiços e segurando a tesoura com a mão esquerda,desceu da árvore e saiu bamboleando até a pele deleão. Então, acocorado, pôs-se a trabalhar.

Manhoso logo percebeu que o corpo dapele de leão era grande demais para Confuso eque o pescoço era muito curto. Portanto, cortouum bom pedaço do corpo e emendou-o na partedo pescoço, fazendo uma gola comprida como opescoço do jumento. Depois arrancou a cabeça,costurando a gola entre esta e os ombros. Colocouumas tiras em ambos os lados da pele de leão, afim de amarrá-las por baixo do peito e do ventrede Confuso. De vez em quando um passarinhopassava voando e Manhoso parava de trabalhar,olhando ansiosamente para cima; não queria queninguém visse o que estava fazendo. Mas comonenhum dos passarinhos que viu era uma avefalante, não havia com que se preocupar.

____________________________________C.S.Lewis � Crônicas de Nárnia � Vol. VII

15

Quando Confuso voltou já era bem tarde.Ele não vinha trotando, mas caminhandolentamente, como fazem os jumentos.

� Não achei laranja nenhuma e bananatambém não. Estou é morto de cansado! � disse,atirando-se ao chão.

� Venha cá. Experimente a sua linda capanova, de pele de leão � chamou o macaco.

� Essa pele velha que se dane! � disseConfuso. �Amanhã eu experimento. Hoje estoucansado demais.

� Puxa, Confuso, como você é indelicado!� reclamou Manhoso. � Se você está cansado,imagine eu! Fiquei o dia inteiro aqui dando duropara lhe fazer uma capa, enquanto você trotavatranqüilamente pelo vale. Minhas mãos estão tãocansadas que mal consigo segurar a tesoura. Eagora você nem me diz obrigado... E nem sequerolha para a capa... Nem dá bola...

� Manhoso, meu querido � disse Confuso,erguendo-se de um salto. � Sinto muito. Como fui

____________________________________C.S.Lewis � Crônicas de Nárnia � Vol. VII

16

estúpido! É claro que eu adoraria experimentar acapa. Como é bonita! Vou prová-la agora mesmo.Coloque-a em mim, por favor!

� Bem, então fique quieto � disse o macaco.A pele era muito pesada para Manhoso erguê-lasozinho. Mas até que enfim, depois de muitopuxar, empurrar, soprar, bufar, conseguiu colocá-la no jumento. Amarrou-a por baixo do corpo deConfuso e atou as pernas e o rabo da pele naspernas e no rabo do jumento. Por dentro da bocaaberta da cabeça de leão ainda dava para ver umaboa parte do focinho e da cara cinzenta deConfuso. Quem já tivesse visto um leão deverdade jamais se enganaria ao vê-lo. Mas alguémque nunca vira um leão antes, ao ver Confusometido naquela pele, poderia muito bem tomá-lopor um leão, desde que ele não se aproximassemuito e que a luz não fosse muito boa, e, é claro,desde que ele não soltasse um zurro nem fizessenenhum barulho com os cascos.

� Confuso, você está maravilhoso! Ma-ra-vi-lho-so! � disse o macaco. � Se alguém o visse

____________________________________C.S.Lewis � Crônicas de Nárnia � Vol. VII

17

agora pensaria que você é o próprio Aslam, oGrande Leão!

� Oh, não! Isto seria terrível!� Nem tanto � disse Manhoso. � Todo

mundo iria fazer qualquer coisa que vocêmandasse.

� Mas não quero mandar ninguém fazernada!

� Imagine só quanta coisa boa a gentepoderia fazer � disse Manhoso. � Eu seria o seuconselheiro, é claro. Bolaria umas ordens bemsensatas para você dar. E todo mundo obedeceriaa nós � inclusive o próprio rei. Aí a gente ia darum jeito em Nárnia, botar tudo nos eixos.

� Mas já não está tudo nos eixos? �estranhou Confuso.

� Que nada! � respondeu Manhoso. � Tudonos eixos? Quando nem laranja ou banana seencontra?

____________________________________C.S.Lewis � Crônicas de Nárnia � Vol. VII

18

� Bem, você sabe... nem todos... aliás, achoque ninguém mais além de você gosta dessascoisas.

� E açúcar? � insinuou Manhoso.� Hmmm! Até que seria bom se houvesse

mais açúcar...� Então, está combinado � disse o macaco.

� Você vai fazer de conta que é Aslam, e eu lhedigo o que dizer.

� Não, não, não! � protestou Confuso. �Pare com essa história horrível, Manhoso. Vai sairtudo errado. Posso não ser muito inteligente, masisso eu sei muito bem. O que seria de nós se overdadeiro Aslam aparecesse?

� Acho que ele ia ficar muito satisfeito �respondeu Manhoso. � Quem sabe até foi elequem nos enviou de propósito a pele de leão, afim de que déssemos um jeito em Nárnia? Edepois, ele nunca aparece mesmo, você bem sabe.Pelo menos, não hoje em dia.

____________________________________C.S.Lewis � Crônicas de Nárnia � Vol. VII

19

Naquele momento um enorme trovãoribombou bem acima da cabeça deles e um ligeiroterremoto fez tremer o chão. Os dois animaisperderam o equilíbrio e se estatelaram de cara nochão.

� Viu? ! � gaguejou Confuso, assim querecuperou o fôlego. � E um sinal, um aviso. Eusabia que a gente estava fazendo uma coisaterrivelmente perigosa. Tire logo de uma vez essapele ordinária de cima de mim.

� Não, não � disse o macaco, cuja cabeçatrabalhava muito depressa. � É um outro tipo desinal. Eu ia justamente dizer que se o verdadeiroAslam, como você o chama, quisesse quelevássemos esta idéia avante, mandaria umatrovoada e um tremor de terra. Já estava napontinha da língua, só que o sinal veio antes queas palavras saíssem da minha boca. Agora vocêtem de fazer. E, por favor, não vamos maisdiscutir. Você bem sabe que não entende muitodessas coisas. O que é que um burro como vocêentende de sinais?

____________________________________C.S.Lewis � Crônicas de Nárnia � Vol. VII

20

2

A PRECIPITAÇÃO DO REI

Umas três semanas mais tarde, o último reide Nárnia estava sentado debaixo de um grandecarvalho que crescia à entrada do seu alojamentode caça, onde ele costumava passar uns dez diasdurante a primavera. O alojamento era umaconstrução baixa, coberta de sapé, não muitodistante do lado oriental do Ermo do Lampião eum pouco acima do encontro dos dois rios. O reiadorava aquela vida tranqüila e relaxada, longedas preocupações e das pompas de Cair Paravel, acidade real. Chamava-se Tirian e tinha entre vintee vinte e cinco anos. Seus ombros eram largos efortes e os membros rijos e musculosos, mas abarba era ainda bem rala. Tinha olhos azuis e umaexpressão honesta e corajosa.

____________________________________C.S.Lewis � Crônicas de Nárnia � Vol. VII

21

Não havia ninguém com ele naquela manhãde primavera, exceto seu amigo mais íntimo, ounicórnio Precioso. Os dois amavam-se comoirmãos e, em guerras anteriores, ambos já haviamsalvo a vida um do outro. O nobre animal estavabem pertinho do rei e, com o pescoço encurvado,ocupava-se em lustrar o belo corno azul,esfregando-o contra a brancura cremosa dopróprio flanco.

� Hoje não tenho a mínima disposição paratrabalhar ou praticar esporte, Precioso � disse orei. �Não consigo pensar em outra coisa a não sernessa maravilhosa notícia. Você acha que aindahoje ouviremos algo mais sobre isso?

� São as novas mais maravilhosas que jáouvimos em nossos dias, ou mesmo nos dias dosnossos pais e dos nossos avós, senhor � respondeuPrecioso. � Se é que são verdadeiras.

� E como poderiam não ser verdadeiras? Jáfaz mais de uma semana que os primeirospassarinhos chegaram voando e nos disseram queAslam está aqui, que Aslam está de volta a

____________________________________C.S.Lewis � Crônicas de Nárnia � Vol. VII

22

Nárnia. Depois disso foram os esquilos. Não oavistaram, mas disseram que era certo que eleestava na floresta. E aí chegou o cervo e disse queo vira com seus próprios olhos, bem de longe, aoluar, no Ermo do Lampião. Depois veio aquelemoreno barbudo, o mercador da Calormânia. Oscalormanos não ligam muito para Aslam comonós, mas a maneira como o homem falou nãodeixa dúvida alguma. E na noite passada foi otexugo, que também viu Aslam.

� De fato, senhor � disse Precioso �, euacredito. Se parece que não acredito é porque aminha alegria é tão grande que não consigoacreditar em mim mesmo. É quase bonito demaispara ser verdade.

� Pois é � disse o rei com um grandesuspiro, quase um estremecimento de prazer. � Émuito além do que eu poderia imaginar em toda aminha vida.

� Ouça! � exclamou Precioso, voltando acabeça para um lado e empinando as orelhas.

� O que é isso? � perguntou o rei.

____________________________________C.S.Lewis � Crônicas de Nárnia � Vol. VII

23

� Cascos, senhor � respondeu Precioso. �Um cavalo a galope. Deve ser um dos centauros.Veja, lá está ele.

Um grande centauro de barbas douradas,com suor de homem na testa e suor de cavalo nosflancos, precipitou-se em direção ao rei, parou einclinou-se numa reverência. �Salve, Majestade!�,exclamou, numa voz profunda como a de umtouro.

� Ei, vocês! � disse o rei, olhando por cimados ombros na direção da porta do alojamento decaça.

� Uma taça de vinho aqui para o nobrecentauro. Bem-vindo, Passofirme. Recupere ofôlego primeiro e depois transmita-nos a suamensagem.

Um pajem saiu da casa trazendo umagrande taça de madeira curiosamente entalhada eentregou-a ao centauro. Este ergueu a taça,dizendo:

____________________________________C.S.Lewis � Crônicas de Nárnia � Vol. VII

24

� Bebo a Aslam e à verdade em primeirolugar, senhor, e depois à saúde de VossaMajestade!

Bebeu o vinho de um trago (a quantidadeera suficiente para seis homens fortes),devolvendo ao pajem a taça vazia.

� E agora, Passofirme � disse o rei. � Seráque nos traz alguma notícia de Aslam?

O centauro fitou-o muito sério, franzindoum pouco as sobrancelhas.

� Senhor � disse ele �, bem sabeis háquanto tempo venho estudando as estrelas, poisnós, os centauros, vivemos mais do que vós,homens, e ainda mais do que vós, unicórnios.Jamais, em toda a minha vida, vi coisas tãoterríveis escritas nos céus quanto as que vêmaparecendo a cada noite, desde o início deste ano.As estrelas nada dizem sobre a vinda de Aslam,nem sobre paz ou alegria. Pelos meusconhecimentos, sei bem que, nestes quinhentosanos, jamais ocorreu tão desastrosa conjunção deplanetas. Já estava pensando em vir prevenir

____________________________________C.S.Lewis � Crônicas de Nárnia � Vol. VII

25

Vossa Majestade de que algum grande mal estápor abater-se sobre Nárnia. Mas na noite passadaouvi rumores de que Aslam encontra-se emNárnia. Senhor, não acrediteis nessa história. Nãopode ser. As estrelas nunca mentem, mas oshomens e os animais, sim. Se Aslam estivesserealmente vindo para Nárnia, os céus o teriampredito. Se ele estivesse mesmo por vir, todas asestrelas mais formosas estariam reunidas em suahomenagem. É tudo mentira!

� Mentira! � explodiu o rei. � Quecriatura, em Nárnia ou no mundo inteiro, ousariainventar uma mentira dessas? � E, sem nempensar no que estava fazendo, levou a mão àbainha da espada.

� Isso eu não sei, meu senhor � disse ocentauro. � Só sei que na terra existemmentirosos; nenhum, porém, entre as estrelas.

� Eu me pergunto � interveio Precioso � seAslam não poderia vir de qualquer forma, mesmosem ter sido previsto pelas estrelas. Ele não éescravo das estrelas, mas, sim, o criador delas.

____________________________________C.S.Lewis � Crônicas de Nárnia � Vol. VII

26

Não é o que se diz em todas as narrativas antigas,que ele não é um leão domesticado?

� Isso mesmo, Precioso, isso mesmo! �exclamou o rei. � São exatamente estas aspalavras: ele não é um leão domesticado. Issoaparece em inúmeras histórias.

Passofirme ergueu a mão e ia fazendo umareverência para dizer ao rei algo muito grave,quando de repente os três se voltaram, poisacabavam de ouvir um som de lamentação que seaproximava cada vez mais rápido. Do lado direitode onde eles estavam, a mata era tão espessa queainda não dava para enxergar quem vinha vindo.Logo, porém, distinguiram as palavras.

� Ai, ai, ai! � gemia a voz. � Ai de meusirmãos e minhas irmãs! Ai das árvores sagradas!As matas estão arrasadas. O machado voltou-secontra nós. Estamos sendo derrubadas. Árvoresenormes estão caindo, caindo, caindo...

E, junto com o último �caindo�, apareceu odono da voz. Parecia uma mulher, mas era tão altaque sua cabeça ficava no mesmo nível da do

____________________________________C.S.Lewis � Crônicas de Nárnia � Vol. VII

27

centauro. E ela própria parecia uma árvore. Paraquem nunca viu uma dríade é difícil explicar. Masquem já viu uma não se engana, pois há algodiferente nela, na cor, na voz, no cabelo... O reiTirian logo percebeu que se tratava da ninfa deuma faia.

� Misericórdia, senhor rei! � chorava ela. �Venha em nosso auxílio! Proteja nosso povo!Estão nos derrubando no Ermo do Lampião.Quarenta árvores grandes dentre as minhas irmãsjá estão por terra.

� O quê? ! Derrubando o bosque doLampião? Assassinando as árvores falantes? ! �exclamou o rei, dando um salto e sacando aespada. � Como ousam? Quem se atreve a fazerisso? Pela Juba do Leão, vou...

� Ah-h-h! � ofegou a dríade, estremecendocomo se sentisse dores. E de instante em instanteestremecia novamente, como se estivesserecebendo golpes contínuos. Então, de súbito, caiude lado, tão de repente como se alguém lhe tivessearrancado de um golpe ambos os pés debaixo do

____________________________________C.S.Lewis � Crônicas de Nárnia � Vol. VII

28

corpo. Durante alguns segundos eles a viram ali,estirada na grama, morta; depois ela sedesvaneceu. Sabiam o que havia acontecido: aárvore dela, a quilômetros de distância, tinha sidoderrubada.

O rei ficou tão furioso que, por algumtempo, nem conseguiu falar. Por fim disse:

� Venham, meus amigos. Vamos subir o rioe descobrir quem são os vilões que estão fazendoisso, o mais depressa possível. Não deixaremosnem um deles vivo!

� Sim, senhor, com todo o prazer! �concordou Precioso.

Mas Passofirme retrucou:

� Senhor, cuidado com a vossa justa ira.Coisas muito estranhas andam acontecendo. Seexistirem rebeldes armados lá para as bandas doErmo do Lampião, nós três somos muito poucospara enfrentá-los. Caso vos dignásseis a esperarum pouco, enquanto...

____________________________________C.S.Lewis � Crônicas de Nárnia � Vol. VII

29

� Não vou esperar nem um décimo desegundo! � interrompeu o rei. � Mas enquanto eue Precioso seguimos, galope o mais rápido quepuder até Cair Paravel. Tome aqui o meu anelcomo garantia. Arranje-me um batalhão dehomens armados, todos bem montados, e tambémum batalhão de cães falantes, dez anões (todoseles excelentes arqueiros!), um leopardo ou coisaparecida e ainda o gigante Pé-de-Pedra. Levetodos eles ao nosso encontro o mais depressapossível.

� Com todo o prazer, senhor � dissePassofirme, voltando-se de uma vez para oOriente. E disparou a galope na direção do vale.

O rei afastou-se a passos largos, ora falandosozinho, ora cerrando os punhos. Precioso seguiaao seu lado, sem dizer nada; entre os dois não seouvia som algum, a não ser o leve tilintar de umarica corrente de ouro que o unicórnio trazia aopescoço e o barulho de dois pés e quatro patas.

Logo alcançaram o rio e começaram a subirpor uma estrada coberta de grama. Agora tinham a

____________________________________C.S.Lewis � Crônicas de Nárnia � Vol. VII

30

água à sua esquerda e a floresta à direita. Poucodepois chegaram a um lugar onde o terreno eraainda mais irregular e uma mata espessa desciaaté a beira da água. A estrada � aliás, o querestava dela � seguia agora pela margem sul e elestiveram de vadear o rio para alcançá-la. A águadava quase nos ombros de Tirian. Precioso, quepor ter quatro pernas tinha muito maisestabilidade, colocou-se à sua direita a fim dequebrar a força da corrente. Com seus braçosfortes Tirian agarrou-se ao potente pescoço dounicórnio e assim os dois chegaram a salvo dooutro lado. O rei ainda estava com tanta raiva quemal se deu conta do frio da água. Mesmo assim,logo que chegaram à outra margem, ele enxugoucuidadosamente a espada na manga da capa, queera a única parte seca em todo o seu corpo.

Agora avançavam para o Oeste, tendo àdireita o rio e, bem à sua frente, o Ermo doLampião. Ainda não haviam caminhado umquilômetro quando ambos pararam, falando aomesmo tempo:

____________________________________C.S.Lewis � Crônicas de Nárnia � Vol. VII

31

� O que é isso? � perguntou o rei, enquantoPrecioso exclamava:

� Olhe!� É uma balsa � disse Tirian.E era mesmo. Uma meia dúzia de troncos

de árvores, todos recém-cortados e cujos galhosacabavam de ser podados, tinham sido amarradosum ao outro formando uma balsa e vinhamdeslizando velozmente rio abaixo. Na frente ia umrato-d�água, dirigindo-a com um varapau.

� Ei, rato-d�água! O que está fazendo? �gritou o rei.

� Levando estes troncos rio abaixo paravender aos calormanos, senhor � respondeu o rato,fazendo uma continência e tocando na orelhacomo quem toca no chapéu.

� Calormanos? ! � vociferou Tirian. � Oque você quer dizer com isso? Quem deu ordempara derrubar essas árvores?

O rio corre tão rapidamente nessa época doano que a balsa já tinha passado pelo rei e por

____________________________________C.S.Lewis � Crônicas de Nárnia � Vol. VII

32

Precioso. Mas o rato-d�água olhou para trás egritou por cima dos ombros:

� Ordens do Leão, senhor. Do próprioAslam! �Ele ainda disse mais alguma coisa, maseles não conseguiram entender.

O rei e o unicórnio se entreolharam. Nunca,em nenhuma batalha, pareceram tão assustadosquanto agora.

� Aslam � disse finalmente o rei, numa vozquase inaudível. � Aslam. Será verdade? Serápossível que Ele esteja derrubando as árvoressagradas e matando as dríades?

� A não ser que todas as dríades tenhamfeito algo terrivelmente errado... � murmurouPrecioso.

� Mas vendê-las para os calormanos? ! �pasmou o rei. � Será possível?

� Não sei... � disse Precioso, desolado. �Ele não é um leão domesticado...

____________________________________C.S.Lewis � Crônicas de Nárnia � Vol. VII

33

� Bem � suspirou o rei, depois de algunsinstantes. �Vamos em frente e vejamos queaventura nos espera.

� É a única coisa que nos resta fazer, senhor�disse o unicórnio.

Naquele momento, nem ele nem o rei sederam conta da loucura que estavam fazendo,indo avante só os dois. Sua precipitação, noentanto, acabaria por trazer muitos males.

De repente, o rei inclinou-se, encostando-seno pescoço do amigo, e disse, abanando a cabeça:

� Precioso, o que será de nós? Pensamentoshorríveis começam a me perturbar. Ah, setivéssemos morrido antes de hoje! Teria sidomelhor para nós.

� Sim � disse Precioso. � Acho quevivemos demais. Não poderia ter nos acontecidocoisa pior.

Ficaram ali parados durante uns doisminutos e depois seguiram em frente. De longepodiam ouvir o barulho dos machados devastando

____________________________________C.S.Lewis � Crônicas de Nárnia � Vol. VII

34

a floresta, embora ainda não conseguissem vernada, pois o terreno elevava-se logo à frente deles.Quando alcançaram o topo, avistaram o Ermo doLampião; o rosto do rei ficou branco como cera.

Bem no meio daquela antiga floresta � amesma floresta onde, muitos anos atrás, cresciamárvores de ouro e de prata e onde certa vez umacriança do nosso mundo plantara a Arvore daProteção � já fora aberta uma vasta clareira. Erauma faixa horrorosa, parecendo uma ferida abertana terra, cheia de sulcos barrentos por onde asárvores derrubadas eram arrastadas para o rio.Havia uma porção de gente trabalhando em meioao estalar de chicotes; cavalos resfolegavam ebufavam arrastando as toras de madeira. Aprimeira coisa que o rei e o unicórnio notaram foique pelo menos metade dos trabalhadores eramhomens e não animais falantes. Depoisperceberam que aqueles homens não eram oslouros narnianos, mas, sim, barbudos e morenoshomens da Calormânia, o país grande e cruel quefica para lá da Arquelândia, ao sul do deserto. Nãoexistia, é claro, razão alguma para não haver

____________________________________C.S.Lewis � Crônicas de Nárnia � Vol. VII

35

calormanos em Nárnia, fossem eles mercadoresou embaixadores, pois naqueles dias havia pazentre Nárnia e Calormânia. O que Tirian nãoconseguia entender era por que havia tantos delesali, nem por que razão estavam abatendo asflorestas narnianas. Apertou ainda mais o punhoda espada, enrolando a capa sobre o braçoesquerdo, e em questão de segundos já seencontravam no meio daqueles homens.

Dois calormanos montavam um cavalo aoqual haviam atrelado um tronco. O rei os alcançoujusto no momento em que o tronco atolara numapoça de lama.

� Vamos, filho de uma lesma! Puxa, seuporco preguiçoso! � gritaram os calormanos,estalando os chicotes. O cavalo já se esforçara aomáximo; seus olhos estavam vermelhos e o corpocoberto de espuma.

� Trabalhe, sua besta molenga! � berrou umdos calormanos, açoitando selvagemente o cavalocom o chicote.

Aí então uma coisa terrível aconteceu.

____________________________________C.S.Lewis � Crônicas de Nárnia � Vol. VII

36

Até aquele momento Tirian imaginara queos calormanos estivessem usando seus próprioscavalos: animais mudos e irracionais como oscavalos do nosso mundo. E, embora detestasse verqualquer cavalo, mesmo mudo, sendo maltratado,naquele momento estava mais preocupado com oassassinato das árvores. Nunca lhe passara pelacabeça que alguém teria a ousadia de atrelar umdos livres cavalos falantes de Nárnia, e muitomenos de chicoteá-lo. O cavalo, porém, ao seratingido por aquele golpe selvagem, empinou-se esoltou um grito estridente:

� Seu tirano idiota! Não vê que estou meesforçando ao máximo? !

Ao verem que o cavalo era um dos seuspróprios narnianos, tanto Tirian quanto Preciosoforam tomados de tamanha fúria que perderamtotalmente a noção do que estavam fazendo. Aespada do rei subiu e o corno do unicórnio desceu.Os dois avançaram de uma vez. Em questão desegundos os dois calormanos jaziam mortos nochão, um decepado pela espada de Tirian e o

____________________________________C.S.Lewis � Crônicas de Nárnia � Vol. VII

37

outro com o coração traspassado pelo corno dePrecioso.

____________________________________C.S.Lewis � Crônicas de Nárnia � Vol. VII

38

3

SUA MAJESTADE, OMACACO

� Mestre cavalo! Mestre cavalo! �exclamou Tirian, cortando-lhe apressadamente osarreios. � Como é que esses estranhos oescravizaram? Houve porventura alguma batalhaem Nárnia? Alguém a conquistou?

� Não, senhor � respondeu o cavaloofegante. �Aslam está aqui. É tudo por ordemdele. Foi ele quem mandou...

� Cuidado, senhor rei! � gritou Precioso. �Tirian levantou os olhos e viu que, de todas asdireções, começaram a aparecer calormanos e,junto com eles, alguns animais falantes. Como osdois homens tinham morrido sem dar um únicogrito, algum tempo se passou antes que os outros

____________________________________C.S.Lewis � Crônicas de Nárnia � Vol. VII

39

percebessem o que havia acontecido. Mas agora jásabiam. A maioria deles já vinha com a cimitarradesembainhada.

� Rápido! Em minhas costas! � gritouPrecioso.

O rei montou de um salto o velho amigo,que se virou e partiu a galope. Assim que se viramfora das vistas dos inimigos, mudaram de direçãoumas duas ou três vezes. Depois de atravessaremum riacho, Precioso gritou, sem diminuir avelocidade:

� E agora, senhor, para onde vamos? ParaCair Paravel?

� Agüente firme aí, amigo, que vou descer�disse Tirian, escorregando do lombo dounicórnio e colocando-se frente a frente com ele.

� Precioso � disse o rei �, o que fizemos foiterrível!

� Fomos cruelmente provocados, senhor �replicou o unicórnio.

____________________________________C.S.Lewis � Crônicas de Nárnia � Vol. VII

40

� Mas atacá-los desprevenidos... Semdesafiá-los... E, ainda por cima, desarmados...Que vergonha! Somos dois assassinos, Precioso.Estou desonrado para sempre.

Precioso baixou a cabeça. Ele tambémestava envergonhado.

� E o cavalo disse que eram ordens deAslam � continuou o rei. � E o rato disse a mesmacoisa. Todo mundo diz que Aslam está por aqui. Ese for verdade?

� Mas, senhor, como é que Aslam iria darordens tão terríveis?

� Ele não é um leão domesticado � retrucouTirian. � Como poderíamos saber o que elepretende? Logo nós, uns assassinos. Precioso, vouvoltar. Vou entregar minha espada, render-meàqueles calormanos e pedir-lhes que me levem àpresença de Aslam. Que Ele mesmo me façajustiça.

� Mas assim estará caminhando para amorte!

____________________________________C.S.Lewis � Crônicas de Nárnia � Vol. VII

41

� E você acha que eu me importo se Aslamme condenar à morte? Isso ainda seria pouco,muito pouco. Melhor morrer do que viver comesse terrível temor de que Aslam voltou e não énada parecido com o Aslam em quem sempreacreditamos e por quem tanto esperamos. É comose de repente a gente acordasse e visse o solnascer escuro...

� Eu sei � disse Precioso. � Ou como se agente bebesse um copo d�água e esta fosse seca.Tem razão, senhor. É o fim de tudo. Vamos voltare entregar-nos.

� Não é preciso irmos os dois, Precioso.� Pelo amor que sempre nos uniu, Tirian,

deixe-me ir com você agora � implorou ounicórnio. � Se você morrer, e se Aslam não formesmo Aslam, de que me adianta continuarvivendo?

Os dois retomaram o caminho de volta,chorando amargamente. Quando chegaram aolugar onde os homens estavam trabalhando,ouviu-se uma gritaria e os calormanos avançaram

____________________________________C.S.Lewis � Crônicas de Nárnia � Vol. VII

42

para cima deles de armas na mão. O rei, porém,ergueu sua espada com o punho voltado contraeles, dizendo:

� Eu, que era o rei de Nárnia e sou agoraum cavaleiro desonrado, rendo-me à justiça deAslam. Levem-me à presença dele.

� Eu também me rendo � disse Precioso.Viram-se, então, cercados por uma enorme

multidão de homens escuros, cheirando a alho ecebola, os olhos brancos faiscando terrivelmentenos rostos morenos. Passaram uma corda em voltado pescoço de Precioso. Tomaram a espada do reie amarraram-lhe as mãos às costas. Um doscalormanos, que usava um elmo em lugar deturbante e que parecia estar no comando, arrancouo diadema de ouro da cabeça de Tirian, fazendo-odesaparecer sutilmente por entre suas roupas.Depois os prisioneiros foram conduzidos colinaacima, até chegarem a uma clareira. E eis o que osdois viram.

No centro da clareira, que era também oponto mais alto da colina, havia uma pequena

____________________________________C.S.Lewis � Crônicas de Nárnia � Vol. VII

43

cabana coberta de palha. A porta estava fechada.Na frente desta, sentado na grama, encontrava-seum macaco. Tirian e Precioso, que esperavam verAslam e nunca tinham ouvido coisa alguma arespeito de tal macaco, ficaram completamentedesnorteados ao verem aquela cena.

Nem é preciso dizer que o macaco era opróprio Manhoso. Só que agora ele parecia dezvezes mais feio do que quando vivia no Lago doCaldeirão, pois estava trajado a rigor. Vestia umajaqueta escarlate que não lhe assentava muitobem, pois fora feita para um anão. Nas patastraseiras ele enfiara umas sandálias cheias de jóiasque o deixavam ainda mais ridículo, porque, comotodo mundo sabe, as patas traseiras de um macacomais parecem mãos. Na cabeça colocara algoparecido com uma coroa de papel. Havia ao seulado um montão de nozes, e ele ficava o tempotodo quebrando-as com os dentes e cuspindo ascascas no chão. E toda hora levantava a jaquetaescarlate para se cocar. De pé, voltados para ele,havia uma porção de animais falantes, epraticamente cada rosto naquela multidão trazia

____________________________________C.S.Lewis � Crônicas de Nárnia � Vol. VII

44

uma expressão aturdida e preocupada. Assim queviram quem eram os prisioneiros, começaram agemer e a soluçar.

� O, grande Manhoso, porta-voz de Aslam�disse o chefe calormano. � Trazemosprisioneiros. Graças à nossa coragem e habilidadee com a permissão do grande deus Tash,capturamos vivos estes dois perigosos assassinos.

� Dêem-me a espada daquele homem �ordenou o macaco.

Eles pegaram a espada do rei e aentregaram, com tiracolo e tudo, para o macaco,que a pendurou em seu próprio pescoço, o que ofez parecer ainda mais ridículo.

� Sobre esse dois conversaremos mais tarde� resmungou o macaco, cuspindo uma casca denoz na direção dos prisioneiros. � Tenho outrosassuntos a tratar primeiro. Esses aí podem esperar.Agora ouçam-me todos vocês. A primeira coisaque quero dizer é sobre as nozes. Onde está oesquilo-chefe?

____________________________________C.S.Lewis � Crônicas de Nárnia � Vol. VII

45

� Aqui, senhor � disse um esquilovermelho, adiantando-se nervosamente e fazendouma ligeira reverência.

� Ah! Aí está você. Pois bem � falou omacaco com um olhar de desdém �, quero... istoé, Aslam deseja... mais nozes. Essas que você metrouxe não dão nem para o cheiro. Você tem quetrazer mais, ouviu bem? Duas vezes mais! E elastêm de estar aqui amanhã, antes do pôr-do-sol. Ecuide para que não haja entre elas uma única nozpequena ou estragada.

Ouviu-se entre os esquilos um murmúrio dedesânimo, e o esquilo-chefe muniu-se de toda acoragem para dizer:

� Por favor, será que o próprio Aslam nãopoderia conversar conosco sobre isso? Se aomenos nos fosse permitido vê-lo...

� Bem, isso não vai dar � respondeu omacaco. � Mas pode ser que ele, num ato de muitagenerosidade, resolva sair um pouquinho hoje ànoite, embora isso seja muito mais do que amaioria de vocês merece. Aí todos poderão dar

____________________________________C.S.Lewis � Crônicas de Nárnia � Vol. VII

46

uma espiadinha nele. Mas nada de aglomeraçõesao redor dele ou de incomodá-lo comperguntinhas tolas. Tudo o que quiserem dizer-lheterá de ser por meu intermédio � isso se eu acharque é algo que valha a pena. Enquanto isso,esquilos, é melhor vocês irem se virando paraarranjar as nozes. E dêem um jeito de trazê-lasaqui até amanhã à noite, senão vão se arrepender!

Os pobres esquilos saíram todos emdisparada, como que perseguidos por um cão decaça. Aquela nova ordem era o fim para todoseles: as nozes que haviam armazenadocuidadosamente para o inverno já tinham sidoquase todas comidas; e do pouco que ainda lhesrestava já haviam dado ao macaco muito mais doque podiam dispensar.

Subitamente, do outro lado da multidão,ouviu-se uma voz muito profunda. Era um grandejavali peludo e de presas enormes.

� Mas por que nós não podemos ver Aslame falar com ele? � perguntou o javali. � Quandoele aparecia em Nárnia, antigamente, qualquer

____________________________________C.S.Lewis � Crônicas de Nárnia � Vol. VII

47

pessoa podia vê-lo face a face e conversar comele.

� Isso é pura conversa! � disse o macaco. �E mesmo que fosse verdade, os tempos mudaram.Aslam disse que tem sido generoso demais comvocês, mas que agora não vai mais ser tão mole.Desta vez vai colocá-los todos nos eixos. Vaiensiná-los a não pensar mais que ele é um leãodomesticado e bonzinho.

Ouviu-se entre os animais um murmúriosurdo, entremeado de suspiros, e a seguir houveum silêncio de morte, ainda mais terrível.

� E tem mais uma coisa que acho bomvocês saberem � continuou o macaco. � Ouvidizer que andam falando por aí que sou ummacaco. Pois bem, não sou, não. Sou um homem.Se pareço com macaco é só porque já vivi demais:tenho centenas e centenas de anos nas costas. Ejustamente por ser tão velho é que sou tão sábio. Eé porque sou muito sábio que sou o único comquem Aslam sempre vai falar. Ele não pode dar-seao incômodo de andar por aí falando com um

____________________________________C.S.Lewis � Crônicas de Nárnia � Vol. VII

48

monte de animais bobocas. Ele me dirá o quevocês têm de fazer e eu o transmitirei a todos. Eacho bom escutarem meu conselho e agirem duasvezes mais rápido, pois Aslam não está parabrincadeira.

O silêncio era mortal, a não ser pelobarulho de um pequenino texugo que chorava e damãe tentando acalmá-lo.

� E agora tem mais uma coisa � continuouo macaco, enfiando uma noz fresquinha na boca.� Alguns cavalos andam dizendo por aí: �Vamosnos apressar e acabar de carregar essa madeira omais rápido possível, e assim ficaremos livres denovo.� Pois bem, é melhor tirarem essa idéia dacabeça de uma vez. E não só os cavalos. Daquipara a frente, todo mundo que tem condições detrabalhar vai ter o que fazer. Aslam já acertoutudo com o rei da Calormânia, o Tisroc, como échamado pelos nossos amigos calormanos. Todosvocês � cavalos, touros e burros � serão enviadosà Calormânia para trabalhar pelo resto da vida...puxando carroças e transportando coisas, igual aos

____________________________________C.S.Lewis � Crônicas de Nárnia � Vol. VII

49

outros animais de carga do mundo inteiro. Equanto a vocês, toupeiras, coelhos e os outrosbichos que cavam buracos, irão todos juntos comos anões para trabalhar nas minas do Tisroc. Etambém...

� Não! Não! Pare! � interromperam osanimais. � Não pode ser verdade! Aslam nuncanos venderia como escravos para o rei daCalormânia!

� Esperem aí! � rosnou asperamente omacaco. � Para que essa barulheira toda? Quemfalou em escravidão? Vocês não vão ser escravoscoisa nenhuma. Serão pagos, aliás, muito bempagos. Quer dizer, o salário de vocês irá para otesouro de Aslam e ele utilizará tudo para o bemde todos.

Então olhou de soslaio e deu uma piscadelapara o chefe calormano, que fez uma reverência ereplicou, à pomposa maneira dos calormanos:

� Ó, sapientíssimo porta-voz de Aslam! OTisroc (que ele viva para sempre!) está

____________________________________C.S.Lewis � Crônicas de Nárnia � Vol. VII

50

perfeitamente de acordo com Sua Excelência noque diz respeito a esse sábio plano.

� Viram só? � disse o macaco. � Está tudoacertado. E é tudo para o bem de vocês. Com todoesse dinheiro que irão ganhar poderemos fazer deNárnia um país digno de se viver. Haverá laranjase bananas à vontade... Haverá estradas, cidadesgrandes, escolas, escritórios, como tambémautoridades e armas, e selas, e cadeias, canis,prisões... Tudo, tudo!

� Mas não queremos nada disso! � bradouum velho urso. � Queremos ser livres. E queremosque o próprio Aslam fale com a gente.

� Não comecem a discutir agora, pois nãovou tolerar isso � esbravejou o macaco. � Sou umhomem e você não passa de um urso velho, gordoe bobo. E o que é que você entende de liberdade?Pensa que liberdade significa fazer o que a gentebem entende? Pois está muito enganado. Isso nãoé a verdadeira liberdade. Liberdade de verdadesignifica fazer aquilo que eu lhes digo.

____________________________________C.S.Lewis � Crônicas de Nárnia � Vol. VII

51

� Rrrrrr! � grunhiu o urso, cocando acabeça. Para ele essas coisas eram muito difíceisde entender.

� Por favor! Por favor! � exclamou umaovelhinha felpuda, tão novinha que todos seadmiraram de que ela tivesse coragem de dizeralguma coisa.

� E agora, o que se passa? � estranhou omacaco. � Seja rápida!

� Por favor � disse a ovelha. � Eu nãocompreendo. O que temos nós a ver com oscalormanos? Nós pertencemos a Aslam; elespertencem a Tash. Têm um deus chamado Tash.Dizem que ele tem quatro braços e cabeça deabutre, e que humanos são mortos em seu altar.Não acredito que esse tal de Tash exista, mas, seexiste, como é que Aslam pode ser amigo dele?

Todos os animais se voltaram e todos ospares de olhos chamejaram na direção do macaco.Todos sabiam que aquela era a melhor perguntaque alguém ali já fizera.

____________________________________C.S.Lewis � Crônicas de Nárnia � Vol. VII

52

O macaco deu um salto e cuspiu na ovelha.

� Sua fedelha! Bebezinho chorão! Por quenão vai para casa mamar? ! O que é que vocêentende dessas coisas? Agora, vocês todos,escutem aqui. Tash é apenas um outro nome deAslam. Toda aquela velha história de que nósestamos certos e os calormanos errados é purabobagem. Agora já sabemos melhor das coisas.Embora os calormanos falem uma outralinguagem, querem dizer a mesma coisa. Tash eAslam, são apenas dois nomes diferentes, vocêsbem sabem de quem... Por isso é que nunca podehaver qualquer discórdia entre eles. Metam issona cabeça de uma vez por todas, seus brutosidiotas: Tash é Aslam, e Aslam é Tash.

Quem tem um cachorrinho sabe muito bemcomo ele pode ficar com a carinha triste de vezem quando.

Agora pensem nisso e depois imaginemcomo ficou a cara de cada um dos animaisfalantes, naquela hora. Imaginem todos aquelespássaros, ursos, texugos, coelhos, toupeiras e

____________________________________C.S.Lewis � Crônicas de Nárnia � Vol. VII

53

ratos, tão leais e humildes, agora desconcertados emais tristes do que nunca. Todos os rabinhosestavam caídos e todas as orelhas, murchas. Só deolhar cortava o coração. De todos eles, apenas umparecia não estar triste. Era um gato ruivo � umbichano enorme, no vigor dos anos � que sepostara todo empinado, com a cauda enrolada emvolta dos pés, entre os animais que estavam nafileira da frente. Ficara o tempo todo ali,encarando firmemente o macaco e o chefecalormano, sem piscar uma única vez.

� Queira me desculpar � disse o gato compolidez �, mas isto realmente me interessa. Seráque o seu amigo calormano também pensa amesma coisa?

� Certamente � disse o calormano. � Oiluminado macaco... quero dizer, homem... estáabsolutamente certo. Aslam significa nada mais,nada menos que Tash.

� E, principalmente, Aslam significa nadamais que Tash, não é? � insinuou o gato.

____________________________________C.S.Lewis � Crônicas de Nárnia � Vol. VII

54

� Mais, não... De forma alguma! �protestou o calormano, encarando firmemente ogato.

� Está satisfeito, Ruivo? � perguntou omacaco.

� Oh, certamente � respondeu Ruivo comfrieza. � Muito obrigado. Eu só queria que ascoisas ficassem bem claras. Acho que estoucomeçando a entender.

Até aquele momento, nem Tirian nemPrecioso haviam dito coisa alguma. Estavamesperando que o macaco lhes desse permissãopara falar, pois achavam que não era polidointerromper uma conversa. Agora, porém,olhando ao redor e vendo as feições desesperadasdos narnianos, e ao perceber que todos iam acabaracreditando que Aslam e Tash eram uma e amesma pessoa, o rei não pôde mais se conter.

� Macaco! � gritou bem alto. � Você estámentindo! Mentindo terrivelmente. Mentindocomo um calormano. Mentindo como um macaco.

____________________________________C.S.Lewis � Crônicas de Nárnia � Vol. VII

55

Ele pretendia ir adiante e perguntar como oterrível deus Tash, que se alimentava do sanguedo seu povo, podia ser a mesma pessoa que o bomLeão, que dera o próprio sangue para salvarNárnia inteira. Se lhe tivesse sido permitido falar,o domínio do macaco teria acabado naquelemesmo dia, pois os animais teriam percebido averdade. Antes, porém, que pudesse dizer umapalavra mais, dois calormanos taparam-lhe a bocacom toda a força, e um terceiro veio por trás edeu-lhe um chute nas pernas, derrubando-obruscamente. Ao vê-lo cair, o macaco começou aguinchar, furioso e aterrorizado.

� Tirem ele daqui! Levem-no embora!Carreguem-no para onde ninguém possa ouvi-lo enem ele a nós! Amarrem-no a uma árvore! Euvou... isto é, Aslam vai... fazer-lhe justiça maistarde.

____________________________________C.S.Lewis � Crônicas de Nárnia � Vol. VII

56

4

O QUE ACONTECEUNAQUELA NOITE

O rei ficou tão tonto com as pancadas querecebeu, que só percebeu o que estavaacontecendo quando os calormanos lhedesamarraram os pulsos e abaixaram-lhe osbraços, esticando-os firmemente de cada lado docorpo. Depois colocaram-no de costas contra otronco de uma árvore e passaram-lhe cordas emvolta dos tornozelos, dos joelhos, da cintura e dopeito. E foram embora.

O que mais o incomodava naquelemomento (pois geralmente as coisinhas pequenassão as mais difíceis de suportar), era que seu lábioestava sangrando e ele não conseguia limpar o

____________________________________C.S.Lewis � Crônicas de Nárnia � Vol. VII

57

filete de sangue que escorria, fazendo-lhecócegas.

De onde ele estava ainda dava para ver omacaco sentado na frente do pequeno estábulo, láno topo da colina. Podia ouvi-lo falando ainda e,de vez em quando, uma ou outra resposta damultidão, mas não conseguia discernir o quediziam.

� Só queria saber o que fizeram comPrecioso � pensou o rei.

De repente, a multidão dispersou e osanimais começaram a se mover em váriasdireções. Alguns deles passaram pertinho deTirian, olhando para ele como se estivessemassustados e, ao mesmo tempo, penalizados porvê-lo amarrado, mas ninguém disse nada. Logotodos tinham ido embora e a floresta ficou emsilêncio.

Muitas horas se passaram, e Tiriancomeçou a sentir sede e depois fome. Quandochegou o final da tarde e a noite se aproximou,começou a sentir frio também. Suas costas doíam

____________________________________C.S.Lewis � Crônicas de Nárnia � Vol. VII

58

muito. Finalmente, o Sol se pôs e o crepúsculodesceu.

Já estava quase escuro quando Tirian ouviuum leve tamborilar de pés miúdos e viu umascriaturinhas se aproximando. Os três da esquerdaeram ratos e no meio vinha um coelho; à direitaestavam duas toupeiras. Estas traziam às costasuns sacos pequenos, o que lhes dava umaaparência curiosa na escuridão (tanto que, noprimeiro instante, ele ficou imaginando quebichos seriam aqueles). Então, num dadomomento, todos se levantaram sobre as patastraseiras e, pousando as patas dianteiras nos seusjoelhos, começaram a dar-lhe beijinhos de animal.(Podiam alcançar-lhe os joelhos porque osanimaizinhos falantes de Nárnia são maiores doque os animais mudos do nosso mundo.)

� Senhor rei! Querido senhor rei! �exclamaram. � Sentimos muito pelo senhor. Nãoousamos desamarrá-lo porque Aslam poderia ficarzangado conosco. Mas lhe trouxemos algo paracomer.

____________________________________C.S.Lewis � Crônicas de Nárnia � Vol. VII

59

Em questão de segundos o primeiro rato jáestava lá em cima, empoleirado na corda queatava o peito de Tirian e franzindo o focinhoáspero bem na frente do rosto do rei. Em seguidasubiu o segundo rato, dependurando-se bemdebaixo do primeiro. Então os outros animais seergueram no chão e começaram a passar as coisaspara cima.

� Beba, senhor, e assim terá condições decomer � disse o rato de cima. Então Tirian viu queeste segurava bem à frente de seus lábios umapequenina taça de madeira. Era uma tacinha dotamanho de um ovo; portanto, mal ele conseguiraprovar o vinho, já a havia esvaziado. Mas o ratopassou-a para baixo e os outros a encheramnovamente, passando-a de mão em mão atéchegar lá em cima de novo, onde Tirian aesvaziou pela segunda vez. E assim foi, até queele havia bebido o suficiente � e desse modo foimuito melhor, pois beber em doses pequenas matamuito mais a sede do que tomar um longo trago.

____________________________________C.S.Lewis � Crônicas de Nárnia � Vol. VII

60

� Agora é queijo, senhor � disse o rato. �Mas não muito, pois não queremos que fique comsede.

Depois do queijo deram-lhe bolinhos deaveia com manteiga fresquinha e, então, umpouco mais de vinho.

� Agora me passem a água para eu lavar orosto do rei, que está sujo de sangue � disse oprimeiro rato.

Tirian sentiu no rosto uma espécie deesponja muito pequena, que lhe trouxe umasensação muito agradável.

� Meus amiguinhos � disse Tirian �, comopoderei agradecer-lhes por tudo isso?

� Não precisa, não precisa � responderamas vozinhas. � O que mais quer que façamos? Nãoqueremos outro rei. Somos o seu povo. Se fossemapenas os calormanos e aquele macaco queestivessem contra o senhor, teríamos lutado atévirar picadinho para não deixar que o amarrassem

____________________________________C.S.Lewis � Crônicas de Nárnia � Vol. VII

61

desse jeito. Teríamos mesmo. Mas não podemos ircontra Aslam...

� Vocês acham que é mesmo Aslam? �perguntou o rei.

� É, sim! É, sim! � disse o coelho. � Elesaiu do estábulo ontem à noite. Todos nós ovimos.

� E como era ele? � quis saber Tirian.� Como um Leão grande e terrível, pode

crer � respondeu um dos ratos.� E vocês acham que é realmente Aslam

quem está matando as ninfas da floresta e fazendode vocês escravos do rei da Calormânia?

� Ah! Isso é ruim, não é? � disse o segundorato.

� Preferia ter morrido antes disso tudocomeçar. Mas não há dúvida alguma. Todomundo diz que são ordens de Aslam. E nósmesmos o vimos. Puxa! Queríamos tanto queAslam voltasse para Nárnia! Não imaginávamosque ele fosse assim!

____________________________________C.S.Lewis � Crônicas de Nárnia � Vol. VII

62

� Parece que, desta vez, ele voltou muitobravo � disse o primeiro rato. � Acho que, semsaber, todos nós andamos fazendo algo realmenteterrível. Ele só pode estar nos castigando poralguma coisa. Mas acho que ele pelo menospoderia nos dizer do que se trata!

� Suponho que o que estamos fazendoagora deve estar errado � disse o coelho.

� E daí? � replicou uma das toupeiras. �Para mim, tanto faz. Se for preciso, faço outravez.

Nesse momento alguém disse: �Cuidado,pessoal!�; e outro acrescentou: �Vamos, rápido!�Então todos falaram: �Sentimos muito, queridorei, mas temos de ir agora. Se nos pegam aqui...�

� Deixem-me de uma vez, amigos � disseTirian.

� Não quero, por nada neste mundo,colocá-los em dificuldades.

____________________________________C.S.Lewis � Crônicas de Nárnia � Vol. VII

63

� Boa noite! Boa noite! � disseram osanimais, roçando cada um o focinho em seusjoelhos. � Voltaremos, se pudermos.

Depois que todos se foram, a florestapareceu muito mais escura, fria e solitária do queantes. As estrelas surgiram no céu e o tempo foipassando, lenta e vagarosamente, enquanto oúltimo rei de Nárnia permanecia ali, o corpo tododolorido e rigidamente imprensado contra aárvore à qual o haviam amarrado.

Finalmente, porém, alguma coisaaconteceu. Lá longe surgiu uma luzinhaavermelhada, que desapareceu por um instantepara logo voltar, maior e mais forte. Então eleavistou vultos se movimentando do lado de cá daluz, carregando uns embrulhos que atiravam aochão. Por fim conseguiu ver do que se tratava: erauma fogueira recém-acesa, na qual atiravamfeixes de lenha. De repente, a labareda subiu eTirian viu que a fogueira ficava bem no alto dacolina. Agora podia enxergar perfeitamente oestábulo por detrás da fogueira, todo iluminado

____________________________________C.S.Lewis � Crônicas de Nárnia � Vol. VII

64

pelo clarão, e, entre este e o lugar onde seencontrava, uma grande multidão de homens eanimais. O pequeno vulto agachado ao lado dofogo devia ser o macaco. Estava dizendo algumacoisa para a multidão, mas Tirian não conseguiaouvir. Depois o macaco foi até a porta da cabana einclinou-se três vezes até o chão; em seguidalevantou-se e abriu a porta. Então alguma coisasaiu lá de dentro � algo que se movia rigidamentesobre quatro pernas � e postou-se de frente para amultidão.

Ergueu-se no ar um grande murmúrio (ouseriam bramidos?), tão alto que Tirian pôde atéouvir algumas palavras:

� Aslam! Aslam! Aslam! � suplicavam osanimais. � Fale conosco! Conforte-nos! Não fiquemais zangado conosco!

De onde Tirian estava não dava para vermuito bem que bicho era aquele; via apenas queera amarelo e peludo. Ele nunca tinha encontradoo Grande Leão. Para dizer a verdade, nuncasequer vira um leão comum. Por isso não tinha

____________________________________C.S.Lewis � Crônicas de Nárnia � Vol. VII

65

certeza se aquilo era mesmo Aslam. Jamaisesperara que Aslam pudesse se parecer comaquela coisa tesa que estava ali, parada, sem dizeruma palavra. Mas como é que alguém poderiasaber ao certo? Durante alguns instantes,pensamentos horríveis passaram-lhe pela mente.Lembrou-se então do absurdo que ouvira sobreTash e Aslam serem um só, e concluiu que tudoaquilo só podia ser trapaça.

O macaco chegou bem pertinho da coisaamarela, encostando sua cabeça na dela como quetentando escutar algo que lhe fosse cochichado aoouvido. Então virou-se e falou para a multidão,que começou a lamentar-se novamente. Depois acoisa amarela voltou-se desajeitadamente e saiuandando (talvez fosse melhor dizer gingando)para o estábulo de novo, e o macaco fechou aporta às suas costas.

Depois disso parece que alguém apagou afogueira, pois a luz se extinguiu subitamente.Tirian ficou mais uma vez sozinho com o frio e aescuridão. À sua mente vieram, então, os outros

____________________________________C.S.Lewis � Crônicas de Nárnia � Vol. VII

66

reis que tinham vivido e morrido em Nárnia nostempos antigos. Nunca nenhum deles, pensouTirian, fora tão infeliz. Lembrou-se do rei Rilian,bisavô de seu bisavô, que, ainda bem jovem, foraraptado por uma feiticeira que o conservaraescondido, durante anos e anos, nas escurascavernas dos subterrâneos da terra dos gigantes donorte. Mas no final tudo acabara bem, pois duasmisteriosas crianças apareceram de repente,vindas das terras de Além-Mundo, e o libertaram;e depois que ele regressou a Nárnia teve um longoe próspero reinado. �Comigo não acontece nadadisso�, disse Tirian consigo mesmo. Então ele foiainda mais longe e pensou no pai de Rilian,Caspian, o Navegador, cujo perverso tio, o reiMiraz, tentara assassiná-lo, e em como Caspianconseguira escapar para as matas e viver entre osanões. Mas essa história também acabara bem,pois Caspian igualmente fora ajudado por crianças� só que dessa vez eram quatro, vindas de algumlugar para lá do fim do mundo e que, numa grandebatalha, lutaram até conseguir recolocá-lo notrono de seu pai. �Mas isso foi há muito tempo�,

____________________________________C.S.Lewis � Crônicas de Nárnia � Vol. VII

67

pensou Tirian. �Hoje em dia essas coisas nãoacontecem mais.� E aí ele lembrou (pois, quandomenino, sempre fora muito bom em História) queessas mesmas crianças que ajudaram Caspian játinham estado em Nárnia, anteriormente, haviamilhares e milhares de anos, e que fora naquelaépoca que tinham realizado os feitos maisnotáveis. Haviam derrotado a temível FeiticeiraBranca, pondo fim ao Inverno dos Cem Anos.Depois disso reinaram, os quatro de uma vez, emCair Paravel, até que não eram mais crianças e,sim, poderosos reis e adoráveis rainhas; e seureinado fora o período áureo de Nárnia. E,naquela história, Aslam aparecera uma porção devezes. Aliás, nas outras histórias ele tambémaparecera muitas vezes, lembrava agora Tirian.�Aslam... e crianças de um outro mundo�, pensou.�Sempre que as coisas estavam na pior, elesapareciam. Ah, se ao menos pudessem vir agora!�

Então exclamou em voz bem alta: �Aslam!Aslam! Venha ajudar-nos agora!� Mas aescuridão, o frio e a quietude continuaram domesmo jeito.

____________________________________C.S.Lewis � Crônicas de Nárnia � Vol. VII

68

� Que eu seja morto! � gritou o rei. � Nadapeço para mim. Mas, por favor, venha salvarNárnia!

A noite e a floresta continuaram do mesmojeito. Dentro de Tirian, porém, alguma coisacomeçou a mudar. Sem saber por que, viu nascerdentro de si uma pontinha de esperança e sentiu-se um pouco mais forte. �Oh, Aslam! Aslam!�,suspirou. �Se não vier pessoalmente, mande-mepelo menos os ajudantes de Além-Mundo!� Eentão, quase sem se dar conta do que estavafazendo, subitamente gritou bem alto:

� Crianças! Crianças! Amigos de Nárnia!Venham, rápido! Eu vos chamo através dosmundos! Eu, Tirian, rei de Nárnia, senhor de CairParavel e imperador das Ilhas Solitárias!

E no mesmo instante mergulhou em umsonho (se é que aquilo era um sonho) mais vividodo que qualquer outro que já tivera em toda a suavida.

Pareceu-lhe estar em pé numa salailuminada onde havia sete pessoas sentadas em

____________________________________C.S.Lewis � Crônicas de Nárnia � Vol. VII

69

volta de uma mesa. Pelo jeito, tinham acabado decomer naquele instante. Duas delas eram bemidosas � um senhor de barbas brancas e umasenhora de olhos inteligentes, brilhantes e joviais.O rapaz sentado à direita do velho mal acabara desair da adolescência e era certamente ainda maisjovem que o próprio Tirian, mas já trazia no rostoa expressão de um rei e guerreiro. E quase sepoderia dizer o mesmo quanto ao outro jovem quese sentava à direita da senhora. Bem à frente deTirian, no outro lado da mesa, sentava-se umamoça loura, ainda mais jovem que os outros dois,e de cada lado dela um menino e uma meninaainda mais novos. Tirian pensou consigo mesmoque nunca vira roupas mais esquisitas do queaquelas que eles trajavam.

Mas nem teve tempo de deter-se nessesdetalhes, pois de repente o menino mais novo e asduas meninas levantaram-se de um pulo e umadelas deu um gritinho. A senhora ergueu-se desúbito, prendendo firmemente a respiração. Ovelho também deve ter feito algum movimentobrusco, pois o copo de vinho que tinha na mão

____________________________________C.S.Lewis � Crônicas de Nárnia � Vol. VII

70

direita saiu voando da mesa. (Tirian até escutou obarulho do vidro estilhaçando no chão.)

Só então Tirian deu-se conta de que aquelaspessoas podiam vê-lo; e o fitavam estarrecidas,como se vissem um fantasma. Notou, porém, queo jovem com aparência de rei sentado à direita dovelho não fez um único movimento (emborativesse empalidecido), a não ser cerrar o punhocom força. Em seguida, disse:

� Fale, se é que você não é um fantasma ouuma visão. Existe em você algo que lembraNárnia. E nós somos os sete amigos de Nárnia.

Tirian quis falar, e tentou gritar em alta vozque ele era Tirian de Nárnia e que necessitavamuito de ajuda. Mas descobriu (como muitasvezes nos acontece em sonhos) que sua voz nãofazia o menor ruído.

Aquele que já lhe falara uma vez ergueu-see falou, encarando-o firmemente:

� Espectro ou espírito ou seja lá o que for!Se você é de Nárnia, ordeno-lhe em nome de

____________________________________C.S.Lewis � Crônicas de Nárnia � Vol. VII

71

Aslam que fale comigo. Eu sou Pedro, o GrandeRei.

A sala começou a tremer diante dos olhosde Tirian. Ele escutava as vozes dos sete, todasfalando ao mesmo tempo e ficando cada vez maisfracas: �Vejam! Está desaparecendo!�, �Estásumindo!�, �Está...�

No momento seguinte, achou-secompletamente acordado, ainda amarrado àárvore, mais frio e enrijecido do que nunca. Amata estava repleta da luz pálida e monótona queantecede o nascer-do-sol, e ele estava todoensopado de orvalho. Já era quase manhã.

Aquele despertar foi talvez o pior momentoque já tivera em toda a sua vida.

____________________________________C.S.Lewis � Crônicas de Nárnia � Vol. VII

72

5

CHEGA AUXÍLIO PARA OREI

Seu sofrimento, porém, não durou muito.Quase no mesmo instante ouviu um baque surdo,e depois mais um, e à sua frente surgiram duascrianças. Momentos antes, a mata diante deleestava completamente vazia, e ele sabia que elasnão tinham saído de trás da árvore, pois as teriaescutado. Elas simplesmente haviam aparecido delugar nenhum. Logo notou que usavam osmesmos trajes esquisitos e desbotados que aspessoas do sonho, e imediatamente percebeu queeram o menino e a menina mais novos daquelessete.

� Caramba! � disse o menino. � Isso deixaqualquer um sem fôlego! Eu pensei...

____________________________________C.S.Lewis � Crônicas de Nárnia � Vol. VII

73

� Rápido! Vamos desamarrá-lo � disse amenina. � Depois a gente conversa. E, voltando-separa Tirian, acrescentou: � Sinto muito pelademora. Viemos assim que pudemos.

Enquanto ela falava, o menino tirou umafaca do bolso e rapidamente cortou as cordas queprendiam o rei. E cortou até rápido demais, pois orei estava com o corpo tão duro e entorpecido que,quando a última amarra se soltou, caiu para afrente sobre as mãos e os joelhos. E só conseguiulevantar-se novamente depois de uma boamassagem nas pernas dormentes.

� Ah! � disse a menina. � Foi você que nosapareceu naquela noite, quando estávamos todosjantando, há cerca de uma semana, não foi?

� Uma semana, gentil senhorita? ! �exclamou Tirian. � Mas... meu sonho me levou aoseu mundo há menos de dez minutos!

� É aquela costumeira confusão dostempos, Jill � disse o menino.

____________________________________C.S.Lewis � Crônicas de Nárnia � Vol. VII

74

� Ah, agora me lembro � disse Tirian. �Isso ocorre também nas histórias antigas. O tempono estranho mundo de vocês é diferente do nosso.Mas por falar em tempo, acho bom irmos emboradaqui. Meus inimigos estão bem pertinho. Vocêsvêm comigo?

� É claro que sim � respondeu a menina. �Viemos aqui para ajudá-lo.

Tirian pôs-se de pé e os conduziurapidamente colina abaixo, afastando-se doestábulo rumo ao Sul. Ele sabia muito bem paraonde ir; entretanto, seu primeiro objetivo eraalcançar as regiões rochosas onde não deixariampista alguma. O segundo era encontrar algumaágua que pudessem atravessar sem deixar rastro.Isso lhes custou cerca de uma hora, escalando evadeando. Enquanto isso, ninguém tinha fôlegopara conversar. Assim mesmo, de vez em quandoTirian olhava de soslaio para os seuscompanheiros. O fato de estar andando lado a ladocom criaturas de um outro mundo deixava-o meiotonto; mas também fazia com que todas as antigas

____________________________________C.S.Lewis � Crônicas de Nárnia � Vol. VII

75

histórias parecessem muito mais reais do quenunca. Qualquer coisa podia acontecer agora.

� Estamos livres daqueles vilões por algumtempo, e podemos caminhar com mais facilidade�disse Tirian quando chegaram ao topo de umpequeno vale que descia à frente deles, entrepequenas moitas de bétulas. O sol já havia nascidoe gotas de orvalho brilhavam em cada galho. Ospássaros cantavam alegremente.

� Que tal �bater uma bóia�? Quer dizer, osenhor, pois nós dois já tomamos nosso café �disse o menino.

Tirian ficou um tempão imaginando o queseria �bater uma bóia�. Mas quando o meninoabriu a bojuda mochila que trazia às costas e tiroulá de dentro um pacote mole e gorduroso, entãoele entendeu. Tirian estava morto de fome, se bemque até aquele momento ainda não pensara nisso.Havia dois sanduíches de ovos cozidos, doissanduíches de queijo e ainda dois outros com umaespécie de patê. Se não estivesse com tanta fome,Tirian nem teria ligado muito para aquele patê,

____________________________________C.S.Lewis � Crônicas de Nárnia � Vol. VII

76

pois é o tipo de coisa que ninguém come emNárnia. Quando acabou de comer os seissanduíches, já estavam chegando ao fundo dovale, onde encontraram um penhasco cheio demusgo de onde brotava uma pequena fonte. Ostrês pararam, beberam e lavaram o rosto.

� E agora � disse a menina, ajuntando oscabelos molhados na testa e atirando-os para trás�, não vai nos contar quem é você, por que estavaamarrado e tudo o mais?

� Com todo o prazer, minha donzela �respondeu Tirian. � Mas acho melhorcontinuarmos andando.

Assim, à medida que caminhavam, ele lhescontou quem era e tudo o que lhe haviaacontecido.

� E agora � disse, por fim � estamos indopara uma certa torre, uma das três que foramconstruídas na época dos meus ancestrais paraproteger o Ermo do Lampião contra certosmarginais perigosos que viviam por ali naqueletempo. Por graça de Aslam não me roubaram as

____________________________________C.S.Lewis � Crônicas de Nárnia � Vol. VII

77

chaves. Nessa torre encontraremos suprimentos dearmas e cotas de malha e também mantimentos(embora nada mais que biscoitos secos). Tambémlá estaremos a salvo enquanto traçamos nossosplanos. E, agora, por que não me dizem quemsão? Gostaria de saber a sua história.

� Eu sou Eustáquio e esta é Jill � disse omenino. � Já estivemos aqui uma vez, séculos eséculos atrás, e há mais de um ano, segundo onosso tempo. Tinha um sujeito chamado príncipeRilian, que estava preso no mundo subterrâneo, eaí Brejeiro...

� Ah! � exclamou Tirian. � Então vocês sãoo Eustáquio e a Jill que libertaram o rei Rilian doseu longo encantamento? !

� É, somos nós mesmos � disse Jill. � Querdizer, então, que ele agora é o rei Rilian, hein? Éclaro, tinha que ser... Eu ia me esquecendo...

� Bem � disse Tirian �, eu sou o último nasua descendência. Ele morreu há mais de duzentosanos.

____________________________________C.S.Lewis � Crônicas de Nárnia � Vol. VII

78

Jill fez uma careta, dizendo:

� Bolas! Isso é que é chato quando se voltaa Nárnia! � Eustáquio, porém, continuou:

� Bem, senhor, agora já sabe quem somosnós. E foi assim que aconteceu: o professorDigory e tia Polly tinham reunido todos nós, osamigos de Nárnia.

� Esses nomes eu não conheço � disseTirian.

� São os dois que vieram a Nárnia bem nocomecinho, no dia em que todos os bichosaprenderam a falar.

� Pela Juba do Leão! � exclamou Tirian. �Aqueles dois! Lorde Digory e Lady Polly! Pelamadrugada! E ainda vivos, no mesmo lugar? !Maravilha das maravilhas! Mas me contem, mecontem!

� Para dizer a verdade, ela não é bem nossatia � disse Eustáquio. � O nome dela é senhoritaPlummer, mas nós a chamamos de tia Polly. Poisbem: os dois reuniram todos nós, em parte para

____________________________________C.S.Lewis � Crônicas de Nárnia � Vol. VII

79

nos divertirmos um pouco, para a gente bater umbom papo a respeito de Nárnia (pois, como sabe,não tem ninguém mais com quem a gente possaconversar sobre essas coisas). Mas tambémporque o professor tinha a impressão de que, dealguma forma, alguém estava precisando de nóspor aqui. E foi então que você apareceu lá feitoum fantasma, ou sei lá o quê, e quase nos matoude susto, e depois se evaporou sem dizer umapalavra. Depois disso, já sabíamos por certo quealguma coisa errada andava acontecendo. Aquestão agora era como chegar até aqui. A gentenão pode vir assim, só por querer. Depois demuita discussão, o professor chegou à conclusãode que o único jeito era usar os anéis mágicos. Foiatravés desses anéis que ele e tia Polly chegaramaqui, muito tempo atrás, quando ainda eramcrianças. Mas os anéis haviam sido enterrados noquintal de uma casa em Londres (Londres é anossa grande cidade, senhor), e a casa tinha sidovendida. O problema agora era como consegui-los. Você nem imagina o que acabamos fazendo!Pedro e Edmundo (isto é, Pedro, o Grande Rei,

____________________________________C.S.Lewis � Crônicas de Nárnia � Vol. VII

80

aquele que falou com você) foram a Londres,planejando entrar no quintal pelos fundos, demanhã bem cedinho, antes que o pessoal da casaacordasse. Vestiram-se de trabalhadores, porquese alguém os visse pensaria que tinham ido fazeralgum reparo nos esgotos. Gostaria de ter estadoali com eles. Deve ter sido divertido pra valer. Eacho que deu tudo certo, pois no dia seguintePedro nos mandou um telegrama (é um tipo derecado, senhor; qualquer hora dessas eu lheexplico), dizendo que havia conseguido os anéis.No dia seguinte, Jill e eu teríamos de voltar para aescola; do grupo todo, somos os únicos que aindaestudam, e estamos na mesma escola. Ficoucombinado que Pedro e Edmundo nosencontrariam num determinado lugar a caminhoda escola, para nos entregar os anéis. Tinha de sernós dois, pois os mais velhos já não podiam maisvir a Nárnia. Assim, embarcamos no trem (umacoisa que as pessoas usam para viajar em nossomundo: uma porção de vagões engatados um nooutro). O professor, tia Polly e Lúcia vieramconosco, pois queríamos ficar todos juntos, o

____________________________________C.S.Lewis � Crônicas de Nárnia � Vol. VII

81

máximo de tempo possível. Pois bem, láestávamos nós no trem. Ao chegarmos à estaçãoonde os outros deveriam nos encontrar, pus-me aolhar pela janela para ver se conseguia avistá-los,quando, de repente, veio um tremendo solavancoe um barulhão. E aí nos achamos em Nárnia evimos Sua Majestade amarrado àquela árvore.

� Quer dizer que vocês nem usaram osanéis?

� Não � disse Eustáquio. � Nem sequer osvimos. Aslam fez tudo por nós à sua própriamaneira, sem anel algum.

� Mas o rei Pedro deve estar com os anéis �disse Tirian.

� Sim � respondeu Jill. � Mas não creio quepossa utilizá-los. Quando os outros dois (querdizer, o rei Edmundo e a rainha Lúcia) estiveramaqui a última vez, Aslam lhes disse que eles nuncamais voltariam a Nárnia. E disse a mesma coisaao Grande Rei, só que há muito mais tempo. Eulhe garanto que, se Aslam deixasse, ele viria quenem uma bala!

____________________________________C.S.Lewis � Crônicas de Nárnia � Vol. VII

82

� Caramba! � queixou-se Eustáquio. � Estesol está ficando quente. Já estamos chegando,senhor?

� Vejam! � disse Tirian, apontando à frente.Não muito adiante deles erguiam-se umasmuralhas cinzentas acima do topo das árvores.Depois de andarem alguns minutos deram comuma clareira toda coberta de grama, onde corriaum pequeno riacho. No extremo deste, via-se umatorre baixa e quadrada, com umas poucas janelasestreitas e, na parede de frente, uma porta queparecia bem pesada.

Tirian olhou cuidadosamente para um ladoe para o outro, certificando-se de que não havianenhum inimigo à vista. Então dirigiu-se para atorre e ficou uns minutos parado, tentando pegarum molho de chaves que usava por baixo do trajede caça, preso a uma correntinha de prata que eletrazia ao pescoço. Era um belo molho de chaves:duas eram de ouro e havia várias outras ricamenteenfeitadas. Via-se logo que eram chaves feitaspara abrir salas solenes e secretas de algum

____________________________________C.S.Lewis � Crônicas de Nárnia � Vol. VII

83

palácio, ou gavetas e cofres de madeira perfumadacontendo tesouros reais. No entanto, a chave queele meteu na fechadura da porta era uma chavecomum, grande e rústica. A fechadura estavaemperrada e por um momento Tirian chegou atemer que a chave não girasse; finalmente, porém,conseguiu movê-la, e a porta se abriu com umrangido.

� Bem-vindos, amigos � disse ele. � Temoque, no momento, seja este o melhor palácio que orei de Nárnia pode oferecer aos seus convidados.

Tirian ficou contente ao notar que os doishóspedes eram bem-educados. Ambos disseramque não falasse assim, que tinham certeza de queaquele era um ótimo lugar. Mas, para falar averdade, não era tão bom assim. Era muito escuroe tinha um terrível cheiro de umidade. Haviaapenas um compartimento, que ia dar direto notelhado de pedra. Uma escadaria de madeira emum canto dava para um alçapão por onde se podiachegar às muralhas. Para dormir, havia algunsbeliches bem rústicos encravados na parede. Um

____________________________________C.S.Lewis � Crônicas de Nárnia � Vol. VII

84

monte de baús trancados e uma infinidade deembrulhos espalhavam-se pelo chão. Haviatambém uma lareira que, pelo jeito, não via fogohá anos e anos.

� Acho melhor a gente sair e ajuntaralguma lenha primeiro � observou Jill.

� Ainda não, minha amiga � disse Tirian.Ele não queria correr o risco de serem pegosdesarmados. Por isso começou a remexer nosbaús, lembrando com gratidão que sempre tivera ocuidado de mandar inspecionar aquelas torres deguarnição pelo menos uma vez por ano, paragarantir que elas se mantivessem devidamenteestocadas com todo o necessário. Ali estavam osarcos com as cordas sedosas e cuidadosamentelustradas com óleo; as espadas e as lançasestavam untadas para não enferrujar, e asarmaduras brilhavam dentro das caixas. Haviauma coisa, porém, que era ainda melhor.

� Olhem aqui � disse Tirian, tirando umacomprida cota de malha de um modelo muito

____________________________________C.S.Lewis � Crônicas de Nárnia � Vol. VII

85

curioso e fazendo-a brilhar ante os olhos dascrianças.

� Que malha mais engraçada, senhor! �disse Eustáquio.

� De fato, meu jovem � concordou Tirian. �Ela não foi feita por nenhum anão narniano. Euma malha da Calormânia, porcaria estrangeira.Sempre conservei algumas dessas vestimentas emprontidão, pois nunca se sabe quando será precisopassar pelas terras do Tisroc sem ser visto. Evejam só esta garrafa de pedra. Aqui dentro temum líquido que, esfregado no rosto e nas mãos,faz a gente ficar moreno como os calormanos.

� Oba! � exclamou Jill. � Um disfarce!Adoro disfarces!

Tirian mostrou-lhes como pingar umpouquinho do líquido na palma da mão e depoisesfregar no rosto e no pescoço, descendo para osombros, fazendo depois o mesmo nas mãos ecotovelos. Ele mesmo se besuntou também.

____________________________________C.S.Lewis � Crônicas de Nárnia � Vol. VII

86

� Depois que isto seca na pele � explicouele �, pode-se até lavar que a cor não muda. Sócom óleo e cinza se fica branco de novo. E agora,Jill querida, vamos ver como fica esta malha emvocê. É um pouco comprida, mas não tantoquanto eu pensei. Sem dúvida, pertenceu a algumpajem do séquito de um dos tarcaãs calormanos.

Depois de vestir as cotas de malha,colocaram uns elmos calormanos, pequenos eredondos, que encaixam bem na cabeça e têm umaponta no alto. Em seguida, Tirian tirou do baú unsrolos compridos de uma coisa branca e foienrolando por cima dos elmos até que estesviraram turbantes; mesmo assim, a pontinha doelmo ainda aparecia. Ele e Eustáquio armaram-secom espadas curvas calormanas e escudospequenos e redondos. Como não havia umaespada que fosse leve o bastante para Jill, o reideu-lhe uma faca de caça comprida e reta; emcaso de emergência, esta lhe serviria de espada.

� Sabe manejar o arco, senhorita? �perguntou o rei.

____________________________________C.S.Lewis � Crônicas de Nárnia � Vol. VII

87

� Não muito bem � respondeu a menina,corando. � Eustáquio é que é bom nisso.

� Conversa dela, senhor � disse Eustáquio.� Nós dois praticamos arco e flecha desde quevoltamos de Nárnia a última vez, e ela é quase tãoboa quanto eu. Não que a gente seja tão bom,mas...

Então Tirian entregou a Jill um arco e umaaljava cheia de flechas. Agora era tratar deacender um fogo, pois, por dentro, aquela torremais parecia uma caverna do que uma casa, edava até calafrios. Mas só de juntar lenha eles jáse aqueceram (agora o sol já estava a pino); equando as labaredas começaram a crepitarchaminé acima o lugar ficou até agradável. Oalmoço, no entanto, foi uma comida muito semgraça, pois o máximo que conseguiram fazer foipicar umas bolachas duras, que acharam num dosbaús, e colocá-las para ferver com água e sal,fazendo uma espécie de mingau. Para beber, éóbvio, nada além de água.

____________________________________C.S.Lewis � Crônicas de Nárnia � Vol. VII

88

� Ah, se eu tivesse trazido uns saquinhos dechá! � suspirou Jill.

� Ou uma lata de chocolate em pó �acrescentou Eustáquio.

� Até que não seria mau se a gente achasseum barril de vinho nessas torres � disse Tirian.

____________________________________C.S.Lewis � Crônicas de Nárnia � Vol. VII

89

6

UM BOM TRABALHONOTURNO

Só umas quatro horas mais tarde Tirianatirou-se num dos beliches para tirar uma soneca.As duas crianças já estavam roncando: ele asfizera ir para a cama mais cedo porque teriam deficar acordadas a maior parte da noite, e Tiriansabia que, sem dormir, crianças daquela idade nãoagüentariam. Além disso, deixara os doiscansados demais. Primeiro tinha treinado arco eflecha com Jill e descobrira que, embora nãoatingisse os padrões narnianos, ela de fato não eratão ruim assim. Na verdade, conseguira acertarum coelho (não um coelho falante, é claro;naquela região de Nárnia existem muitos coelhoscomuns), que já estava sem o couro, limpo edependurado. Tirian descobrira que as duascrianças sabiam tudo sobre esse trabalho

____________________________________C.S.Lewis � Crônicas de Nárnia � Vol. VII

90

deprimente e malcheiroso, que haviam aprendidona sua grande viagem pela terra dos gigantes, nosdias do príncipe Rilian. Em seguida, tentaraensinar Eustáquio a usar a espada e o escudo. Omenino já aprendera bastante sobre o uso daespada lutando nas suas primeiras aventuras, masele só conhecia a espada reta narniana. Nuncahavia manejado uma cimitarra calormana, e nãofoi nada fácil, pois muitos dos golpes sãocompletamente diferentes, e alguns hábitos queele adquirira usando a espada comprida tinham deser aprendidos de novo. Tirian percebeu, noentanto, que ele tinha bom olho e era muito rápidocom os pés. Ficou surpreso com a força das duascrianças: na verdade, ambas pareciam agora muitomais fortes, maiores e mais maduras do quequando as encontrara pela primeira vez, poucashoras atrás. Esse é um dos efeitos que a atmosferade Nárnia produz nos visitantes do nosso mundo.

Os três concordaram que a primeira coisa afazer era voltar à Colina do Estábulo e tentarlibertar Precioso, o unicórnio. Depois, se fossembem-sucedidos, fugiriam para o leste, ao encontro

____________________________________C.S.Lewis � Crônicas de Nárnia � Vol. VII

91

do pequeno exército que Passofirme, o centauro,estaria trazendo de Cair Paravel.

Um guerreiro e caçador experiente comoTirian jamais tem dificuldade de despertar à horaque deseja. Assim, depois de ter dito a si mesmoque acordaria às nove horas da noite, deixou todasas preocupações de lado e adormeceu no mesmoinstante. Quando despertou, teve a impressão deque haviam transcorrido não mais que algunsminutos, mas sabia, pela luminosidade e pelopróprio aspecto das coisas, que dormiraexatamente o tempo que havia determinado.Levantou-se, colocou o elmo-turbante (eledormira com a cota de malha) e então sacudiu ascrianças para acordá-las. A bem da verdade, elaspareciam muito desoladas e abatidas quandosaltaram dos beliches onde dormiam, bocejandomuito.

� Bem � disse Tirian �, daqui vamos para oNorte. Por sorte, a noite está estrelada, e nossajornada agora será bem mais curta, pois estamanhã nos desviamos muito, ao passo que agora

____________________________________C.S.Lewis � Crônicas de Nárnia � Vol. VII

92

iremos direto. Se formos interpelados, mantenhama calma; farei o possível para falar como umdetestável, cruel e orgulhoso lorde calormano. Seeu puxar a espada, Eustáquio, faça o mesmo; evocê, Jill, coloque-se atrás e fique com o arco apostos. Mas se eu gritar �Para casa�, então fujampara a torre. E, quando eu tiver dado o sinal deretirada, não tentem lutar � nem um golpe sequer�, pois esse tipo de falsa bravura em guerras jáarruinou muitos planos excelentes. E agorasigamos, amigos, em nome de Aslam.

Então saíram na noite fria. Todas asgrandes estrelas setentrionais flamejavam acimado topo das árvores. A estrela polar em Nárnia échamada de Ponta da Lança e brilha mais do que anossa.

Por algum tempo seguiram em linha reta,na direção da Ponta da Lança, mas então, tendochegado a uma mata espessa, tiveram de desviar-se de seu curso para contorná-la. Depois dissoficou difícil retomar o curso, pois os galhos aindaatrapalhavam sua visão. Foi Jill que os levou de

____________________________________C.S.Lewis � Crônicas de Nárnia � Vol. VII

93

volta ao caminho correto: na Inglaterra ela forauma excelente bandeirante. E, obviamente,conhecia muito bem as estrelas de Nárnia, poisviajara muito pelas terras desérticas do Norte epodia encontrar a direção das outras estrelas,mesmo quando a Ponta da Lança estava oculta.Ao perceber que ela era o melhor rastreador dostrês, Tirian colocou-a à frente. E ficou espantadoao ver quão silenciosamente ela deslizava nafrente deles, quase como se fosse invisível.

� Pela Juba do Leão! � murmurou,dirigindo-se a Eustáquio. � Essa garota é umaextraordinária dama dos bosques. Se tivessesangue de dríade nas veias, dificilmente faria issomelhor.

� O que ajuda é que ela é pequena �sussurrou Eustáquio de volta. Jill, à frente, apenasdisse:

� Psiu! Não façam barulho.Ao redor deles, a floresta estava muito

quieta. Na verdade, quieta demais. Numa noitecomum, ali em Nárnia, estariam ouvindo ruídos �

____________________________________C.S.Lewis � Crônicas de Nárnia � Vol. VII

94

de quando em quando, um cordial �boa noite� deum ouriço, o grito de uma coruja vindo do alto,talvez o som de uma flauta à distância a dizer queos faunos dançavam, ou o barulho latejante dasmarteladas dos anões embaixo da terra. Mas tudoestava em silêncio: escuridão e medo reinavamem Nárnia.

Após algum tempo, iniciaram a íngremecaminhada colina acima; as árvores cresciam cadavez mais afastadas umas das outras. Ainda queindistintamente, Tirian já podia divisar o topo dacolina e o estábulo. Jill seguia agora com maiscautela, e o tempo todo fazia sinais com a mãopara que os outros fizessem o mesmo. Entãoparou, totalmente imóvel, e Tirian viu-a afundar-se na grama e desaparecer sem o menor ruído.

Daí a alguns instantes ela estava de volta e,chegando a boca bem pertinho do ouvido deTirian, sussurrou o mais baixo possível: �Abaixe-se! Dá para ver melhor!�

____________________________________C.S.Lewis � Crônicas de Nárnia � Vol. VII

95

Tirian abaixou-se rápido, quase tãosilencioso quanto Jill, mas não tanto, pois eramais velho e mais pesado.

Daquela posição, deitado no chão, avistoudois vultos negros recortados contra o céu cobertode estrelas: um era o estábulo e o outro, poucosmetros adiante, um sentinela calormano. Ohomem montava uma péssima guarda: não estavaandando, nem sequer de pé, mas sentado, com alança recostada ao ombro e o queixo afundado nopeito. �Ótimo!�, disse Tirian a Jill. Ela lhemostrara exatamente o que ele precisava saber.

Então eles se levantaram e Tirian retomou aliderança. Com muito cuidado, mal ousandorespirar, encaminharam-se lentamente para umpequeno amontoado de árvores que ficava a unspoucos metros de onde estava o sentinela.

� Esperem aqui até eu voltar � sussurrou elepara os dois. Se eu fracassar, fujam.

Então saiu caminhando decididamente, aplena vista do inimigo. Ao vê-lo, o homemestremeceu e já ia dar um pulo para ficar de pé,

____________________________________C.S.Lewis � Crônicas de Nárnia � Vol. VII

96

pensando que era um dos seus próprios oficiais eque ele estava em apuros por encontrar-sesentado. Antes, porém, que conseguisse pôr-se depé, Tirian já havia se ajoelhado sobre uma perna,ao seu lado, dizendo:

� És um guerreiro do Tisroc (que ele vivapara sempre)? Meu coração alegra-se porencontrar-te aqui entre todos esses animais edemônios de Nárnia. Dá-me tua mão, amigo.

Antes que pudesse dar-se conta do queestava acontecendo, o guarda calormano sentiusua mão direita dominada por um poderoso apertode mão. E, logo a seguir, alguém ajoelhou-sesobre as suas pernas, e ele sentiu a pressão de umaadaga contra o pescoço:

� Um ruído e você está morto � disse-lheTirian ao ouvido. � Diga-me onde está unicórnio,se quiser continuar vivo.

� A-a-trás do estábulo, gr-grande m-mestre�gaguejou o infeliz.

� Ótimo. Levante-se e leve-me até lá.

____________________________________C.S.Lewis � Crônicas de Nárnia � Vol. VII

97

O homem ergueu-se, sempre com a pontada adaga encostada ao pescoço. Esta só se moveu(fria e fazendo cócegas) quando Tirian passoupara trás dele, colocando-a num ponto estratégico,abaixo da orelha. Tremendo de medo, ele deu avolta e dirigiu-se para trás do estábulo.

Embora estivesse escuro, Tirian logoenxergou o vulto branco de Precioso.

� Silêncio! � disse ele. � Não relinche! Sim,Precioso, sou eu mesmo. Como é que oprenderam?

� Pearam-me as quatro patas e puseram-meumas rédeas amarradas a uma campainha naparede do estábulo � ouviu-se a voz de Precioso.

� Sentinela, fique aqui, com as costascontra a parede. Assim. Agora, Precioso, encostea ponta do seu chifre contra o peito dessecalormano.

� Com todo o prazer, senhor � disse ounicórnio.

� Se ele se mexer, espete-lhe o coração.

____________________________________C.S.Lewis � Crônicas de Nárnia � Vol. VII

98

Em poucos minutos, Tirian cortou ascordas. Com o que conseguiu aproveitar delasamarrou o sentinela, atando-lhe as mãos aos pés.Finalmente, fez o homem abrir a boca, entulhou-ade capim e, em seguida, amordaçou-o de tal formaque lhe seria impossível fazer qualquer ruído;depois colocou-o sentado no chão, de costascontra a parede.

� Fui um pouco indelicado com você,soldado � disse Tirian. � Mas eu precisava fazerisso. Caso nos encontremos de novo, espero podertratá-lo um pouco melhor. E agora, Precioso,vamos sair daqui, com cuidado.

Tirian passou o braço esquerdo em volta dopescoço do animal, inclinou-se e beijou-lhe ofocinho; estavam ambos muito felizes. Tãosilenciosamente quanto possível, voltaram para olugar onde Tirian havia deixado as crianças.Embaixo das árvores estava muito mais escuro, eele quase esbarrou em Eustáquio antes deenxergá-lo.

____________________________________C.S.Lewis � Crônicas de Nárnia � Vol. VII

99

� Tudo bem � sussurrou. � Um bomtrabalho noturno. Agora, para casa.

Viraram-se e já haviam dado alguns passosquando Eustáquio chamou:

� Jill, onde está você? � Ninguémrespondeu. �Senhor, por acaso Jill está do seulado? � perguntou.

� O quê? ! � disse Tirian. � Pensei que elaestivesse do seu lado!

Foi um momento terrível. Não ousaramgritar, mas sussurravam o nome dela o mais altopossível. Ninguém respondia.

� Ela saiu de perto de você enquanto euestava fora? � perguntou Tirian.

� Não vi nem escutei nada � respondeuEustáquio. � Mas ela pode muito bem ter saídosem eu perceber. Ela é silenciosa como um gato;você mesmo viu.

Naquele momento eles escutaram umlongínquo rufar de tambores. Precioso inclinou asorelhas para a frente.

____________________________________C.S.Lewis � Crônicas de Nárnia � Vol. VII

100

� Anões � disse ele.� E são anões traiçoeiros, inimigos, muito

provavelmente � murmurou Tirian.� E aí vem algum bicho de cascos, muito

mais perto � disse Precioso.Os dois humanos e o unicórnio ficaram

imóveis como defuntos. Agora havia tantas coisascom que se preocupar que nem sabiam o quefazer. O barulho dos cascos foi chegando maisperto. Então, bem pertinho deles, uma vozsussurrou:

� Ei, vocês! Estão todos aí? Que alívio! EraJill.

� Em que buraco você se meteu? � estourouEustáquio, num furioso cochicho, pois ficaramorto de medo.

� No estábulo � ofegou Jill, com uma vozque parecia a de alguém que está se segurandopara não dar uma gargalhada.

____________________________________C.S.Lewis � Crônicas de Nárnia � Vol. VII

101

� Ah, é? ! � resmungou Eustáquio,indignado. �E você ainda acha engraçado, hein?Pois só quero dizer que...

� Conseguiu libertar Precioso, senhor? �perguntou Jill ao rei.

� Sim. Ele está aqui. E que animal é esseque está com você?

� É ele � respondeu Jill. � Mas vamosembora antes que alguém desperte. � E ouviram-se novamente pequenas explosões de riso.

Os outros obedeceram imediatamente, poisjá haviam demorado demais naquele lugarperigoso, e os tambores dos anões pareciam estarcada vez mais perto. Só depois de andarem umbom tempo rumo ao Sul é que Eustáquio falou:

� Você trouxe ele? Que história é essa?� O falso Aslam � disse Jill.

� O quê? ! � exclamou Tirian. � Onde vocêestava? O que você fez?

____________________________________C.S.Lewis � Crônicas de Nárnia � Vol. VII

102

� Bem, senhor � respondeu Jill. � Assimque eu vi que o sentinela estava fora de combate,pensei que seria bom dar uma olhadinha noestábulo para ver o que realmente havia lá.Naturalmente, estava muito escuro ali dentro echeirava a estábulo como qualquer outro. Entãoacendi um fósforo e... adivinhem o que vi? Nadamais, nada menos que este velho jumento, comuma pele de leão amarrada às costas! Aí peguei aminha faca e disse-lhe que ele tinha de vircomigo. Para falar a verdade, eu nem precisava tê-lo ameaçado com a faca. Ele estava cheio doestábulo e prontinho para me acompanhar � não é,Confuso?

� Papagaios! � exclamou Eustáquio. �Devo estar biruta. Ainda agorinha estava louco davida com você, e ainda acho que foi sujeira suasumir daqui sem a gente. Mas devo admitir... querdizer... bem, o que você fez foi realmente incrível.Se ela fosse um menino merecia ser armadacavaleiro, não acha, senhor?

____________________________________C.S.Lewis � Crônicas de Nárnia � Vol. VII

103

� Se ela fosse um menino � respondeuTirian �, ia é levar uma bronca por terdesobedecido às minhas ordens. � Naquelaescuridão, não dava para ver se ele dissera aquilocom uma carranca ou um sorriso. Logo a seguirouviu-se um ruído de metal sendo amolado.

� O que está fazendo, senhor? � perguntouPrecioso, desconfiado.

� Amolando a minha espada para decepar acabeça desse asno maldito � respondeu Tirian,com uma voz terrível. � Saia daí, garota!

� Oh, não! Por favor, não! � exclamou Jill.� Não pode fazer isso. Não foi culpa dele. Foitudo invenção daquele macaco. Ele não sabia denada e sente muito pelo que aconteceu. Ele é umjumento muito bom. O nome dele é Confuso. E eujá estou abraçada ao pescoço dele. E...

� Jill � disse Tirian �, você é a maiscorajosa e a mais entendida em florestas dentretodos os meus súditos. Mas é também a maisatrevida e desobediente. Pois bem: que o asnofique vivo. O que tem a dizer em seu favor, asno?

____________________________________C.S.Lewis � Crônicas de Nárnia � Vol. VII

104

� Eu, senhor? � ouviu-se a voz do jumento.� Só sei que sinto muito mesmo se fiz algumacoisa errada. O macaco me disse que Aslamqueria que eu me vestisse daquele jeito. E euachava que ele é que devia saber. Não souinteligente como ele. Fiz apenas o que memandaram. Não teve graça nenhuma para mimficar o tempo todo dentro daquele estábulo. E nemmesmo sei o que anda acontecendo aqui fora. Elenem me deixava sair, a não ser por um ou doisminutos, à noite. Tinha dias que até se esqueciamde me dar água...

� Senhor � disse Precioso �, aqueles anõesestão chegando cada vez mais perto. Vamosdeixar que nos alcancem?

Tirian pensou um pouco e de repente soltouuma enorme gargalhada. Então falou, agora semcochichar, mas em voz bem alta.

� Pela Juba do Leão! � exclamou. � Devoestar ficando retardado. Encontrá-los? Mas é claroque vamos encontrá-los! Agora podemosencontrar qualquer pessoa. Temos conosco este

____________________________________C.S.Lewis � Crônicas de Nárnia � Vol. VII

105

asno para lhes mostrar. Eles precisam ver a coisaque tanto temeram e a quem reverenciaram.Podemos contar-lhes a verdade sobre a vil trapaçado macaco. Descobrimos o segredo dele. Agora ascoisas mudaram. Amanhã mesmo vamos penduraraquele macaco na árvore mais alta de Nárnia.Chega de cochichos, covardia e disfarces. Ondeestão esses simpáticos anões? Temos boas-novaspara eles!

Quando a gente passa horas e horascochichando, o simples fato de alguém falar emvoz alta tem um efeito incrivelmente animador. Aturma inteira começou a conversar e a rir; atéConfuso ergueu a cabeça e soltou um compridozurro, coisa que o macaco não lhe permitira fazerhavia muito tempo. Então seguiram na direçãodos tambores. O barulho foi ficando cada vezmais forte e logo enxergaram também luzes detochas. Foram dar numa dessas estradasesburacadas (se fosse na Inglaterra, dificilmentese chamaria aquilo de estrada) que levam ao Ermodo Lampião. E ali, marchando pesadamentecaminho afora, vinham cerca de trinta anões,

____________________________________C.S.Lewis � Crônicas de Nárnia � Vol. VII

106

todos carregando no ombro suas enxadinhas epicaretas. Dois calormanos armados comandavama fila e dois outros guardavam a retaguarda.

� Parem! � bradou Tirian, ao sair naestrada. � Parem, soldados! Para onde estãolevando esses anões narnianos, e por ordem dequem?

____________________________________C.S.Lewis � Crônicas de Nárnia � Vol. VII

107

7

VIVAM OS ANÕES!

Ao ver o que eles pensaram ser um tarcaãou um grande lorde acompanhado de dois pajensarmados, os dois soldados calormanos quecomandavam o grupo pararam e ergueram aslanças, com uma reverência.

� Salve, mestre � disse um deles. � Estamoslevando esses anões para a Calormânia, a fim detrabalharem nas minas do Tisroc (que ele vivapara sempre!).

� Pelo grande deus Tash! Como sãoobedientes! � disse Tirian. E de repente voltou-separa os próprios anões. De cada seis deles, umcarregava uma tocha; e por aquela luz bruxuleanteviam-se seus rostos barbudos, todos olhando paraele com expressão dura e obstinada.

____________________________________C.S.Lewis � Crônicas de Nárnia � Vol. VII

108

� Terá o Tisroc porventura empreendidouma grande batalha, conquistando a terra devocês, anões? � perguntou. � Por que caminhamassim tão passivos para a morte nas minas de salde Pugrahan?

Os dois soldados fitaram-no, surpresos; mastodos os anões responderam:

� Ordens de Aslam, senhor, ordens deAslam. Ele nos vendeu. O que podemos fazercontra ele?

� Grande porcaria, o Tisroc! � resmungouum deles, com uma cusparada. � Ele que seatrevesse para ver!

� Cala a boca, seu cachorro! � berrou osoldado-chefe.

� Olhem aqui � disse Tirian, empurrandoConfuso na direção da luz. � É tudo trapaça!Aslam não esteve em Nárnia coisíssima nenhuma.Vocês foram todos tapeados por aquele macaco.Era isto aqui que ele tirava do estábulo paramostrar a vocês. Olhem bem!

____________________________________C.S.Lewis � Crônicas de Nárnia � Vol. VII

109

O que os anões viram, agora bem de perto,foi o suficiente: como era possível terem sidoenganados daquele jeito? Depois de todo aqueletempo preso dentro do estábulo, a pele de leão játinha se soltado toda do corpo de Confuso e, coma caminhada pela mata escura, estava toda torta edesajeitada. A maior parte encontrava-seembolada por cima de um de seus ombros. Acabeça, além de caída para um lado, estava tãoafastada para trás que qualquer um podia ver portrás dela a cara ingênua, tola e bondosa dojumento. Num canto da boca havia uma porção decapim, pois, durante a caminhada, ele aproveitarapara dar umas mordiscadas na grama.

� Não tive culpa de nada... Não sou muitoesperto. Nunca disse que eu era ele... �resmungava baixinho o jumento.

Os anões fitaram Confuso por um instante,de olhos arregalados e boca escancarada. Derepente, um dos soldados disse, rispidamente:

� Estás louco, meu mestre? ! O que estásfazendo com os escravos?

____________________________________C.S.Lewis � Crônicas de Nárnia � Vol. VII

110

� Quem és tu? � perguntou o outro.Nenhuma das lanças agora erguia-se em

saudação; ambas estavam abaixadas e prontaspara a ação.

� Qual é a senha? � disse o soldado-chefe.� Esta é a minha senha � exclamou o rei,

sacando a espada. � Dissipem-se as trevas damentira e brilhe a luz da verdade! Agora, canalha,em guarda, pois sou Tirian de Nárnia!

O rei partiu como um raio para cima dosoldado-chefe. Eustáquio, que já havia sacado aespada, ao ver Tirian fazer o mesmo, avançoucontra o outro soldado: seu rosto estava pálidocomo o de um defunto e com toda a razão. Masele teve a sorte que muitas vezes têm osprincipiantes: esquecendo-se de tudo que Tirianlhe havia ensinado naquela tarde, saiu golpeandoselvagemente (para dizer a verdade, acho até queele estava de olhos fechados) e, de repente, parasua própria surpresa, descobriu que o calormanojazia morto aos seus pés. Se, por um lado, isso lhetrouxe um grande alívio, naquele momento,

____________________________________C.S.Lewis � Crônicas de Nárnia � Vol. VII

111

porém, foi muito mais assustador. A luta do reidurou um ou dois segundos mais e logo tambémele havia matado seu adversário, gritando paraEustáquio: �Cuidado com os outros dois!� Mas osanões já haviam dado um jeito nos doiscalormanos restantes. Não havia mais inimigos.

� Bela luta, Eustáquio! � exclamou o rei,dando-lhe um tapinha nas costas. � Agora, anões,vocês estão livres. Amanhã eu os comandarei paralibertarmos Nárnia inteira. Três vivas para Aslam!

O que aconteceu a seguir, porém, foi amaior decepção. Houve uma leve tentativa porparte de alguns anões (talvez uns cinco), mas quede repente se desvaneceu totalmente. Outrossoltaram apenas um rosnado mal-humorado.Muitos deles não disseram absolutamente nada.

� Será que não entenderam? � estranhouJill, impaciente. � O que é que há de errado comvocês, anões? Não ouviram o que o rei disse? Estátudo acabado. O macaco não vai mais governarNárnia. Todo mundo pode voltar à sua vida de

____________________________________C.S.Lewis � Crônicas de Nárnia � Vol. VII

112

sempre. Podem divertir-se à vontade de novo. Nãoestão contentes com isso?

Após um breve silêncio, ouviu-se a voz nãomuito agradável de um anão de barba e cabelospretos cheios de fuligem:

� Posso saber quem é a senhorita?� Sou Jill � respondeu ela. � A mesma Jill

que libertou o rei Rilian do encantamento. E esteaqui é Eustáquio, que estava comigo também.Estamos voltando do nosso mundo após centenasde anos, e viemos a mando de Aslam.

Todos os anões se entreolharam com umsorriso � não um sorriso de alegria, mas demalícia e zombaria.

� Escutem aqui, meus chapas � disse o anãonegro, cujo nome era Grifo �, não sei quanto avocês, mas já estou cheio dessa história de Aslam.Já escutei sobre ele mais do que gostaria de ouvirpara o resto da vida.

____________________________________C.S.Lewis � Crônicas de Nárnia � Vol. VII

113

� Isso mesmo, isso mesmo! � rosnaram osoutros anões. � Tudo não passa de trapaça, umamaldita trapaça!

� O que querem dizer com isso? �exclamou Tirian. Durante toda a luta ele nãoempalidecera uma única vez; agora, porém, seurosto estava lívido. Imaginara que aquele seria ummomento lindo. Em vez disso, começava aparecer um pesadelo.

� Vocês devem estar pensando que somosfracos da bola, isso, sim � disse Grifo. �Já fomosenrolados uma vez e agora querem nos enganar denovo. Não queremos mais saber de conversa sobreAslam. Vejam só! Olhem para ele! Um burrovelho de orelhas compridas!

� Pela madrugada! Vocês estão medeixando maluco! � disse Tirian. � Quem foi quedisse que isto é Aslam? Isto é apenas a imitaçãoque o macaco fez de Aslam. Será que nãocompreendem?

� E, pelo jeito, você conseguiu umaimitação ainda melhor! � retrucou Grifo. � Não,

____________________________________C.S.Lewis � Crônicas de Nárnia � Vol. VII

114

muito obrigado. Já nos fizeram de bobos uma veze ninguém vai nos enganar de novo.

� Não enganei ninguém! � explodiu Tirian,com raiva. � Eu sirvo ao verdadeiro Aslam!

� E onde está ele? Quem é ele? Queremosvê-lo! � gritaram vários anões.

� Vocês acham que eu o tenho guardado nobolso, seus idiotas? ! � disse Tirian. � Quem soueu para fazer Aslam aparecer assim, com umasimples ordem minha? Ele não é um leãodomesticado!

Ao dizer isso, Tirian percebeu quecometera um erro. No mesmo instante, os anõescomeçaram a repetir em coro, em tom de chacota:

� Não é domesticado! Não é domesticado!� Era isso mesmo que aquele outro vivia

dizendo! � acrescentou um deles.� Quer dizer, então, que não acreditam no

verdadeiro Aslam? � disse Jill. � Mas eu já o vi!Foi ele quem nos enviou para cá, vindos de ummundo diferente deste.

____________________________________C.S.Lewis � Crônicas de Nárnia � Vol. VII

115

� Mas é claro! � disse Grifo com um largosorriso de mofa. � Isso é o que você diz. Eles lheensinaram direitinho toda essa baboseira. Estárepetindo a lição, não é, queridinha?

� Seu estúpido! � exclamou Tirian. � Ousachamar uma senhorita de mentirosa, assim nafrente dela?

� Acho bom falar com mais jeito, senhor! �replicou o anão. � Aliás, acho que não queremosmais rei nenhum � se é que você é Tirian, o queeu duvido muito. E não queremos mais saber deAslans nem de coisa alguma. Daqui para a frentevamos é tratar de nossa própria vida, sem prestarreverência a ninguém. Não é mesmo, pessoal?

� É isso mesmo! � responderam os outrosanões.

� Vamos viver por nossa própria conta.Chega de Aslam, chega de reis e de conversasfiadas sobre outros mundos. Vivam os anões!

____________________________________C.S.Lewis � Crônicas de Nárnia � Vol. VII

116

Então começaram a formar fila novamente,aprontando-se para marchar de volta para o lugar(sabe-se lá onde) do qual tinham vindo.

� Criaturinhas abomináveis � berrouEustáquio.

� Não vão nem agradecer por terem sidosalvos de ir para as minas de sal?

� Ora, já entendemos tudo! � resmungouGrifo por cima dos ombros. � Vocês só queriamnos usar, por isso nos libertaram. Nós é que nãovamos entrar no seu jogo. Vamos embora,companheiros!

Agora o grupo inteiro seguia em silêncio.Confuso continuava muito infeliz e ainda nãoconseguia entender absolutamente nada do queestava acontecendo. Jill, apesar de decepcionadacom os anões, estava muito impressionada com avitória de Eustáquio sobre o calormano, mastambém um pouco assustada. Quanto a Eustáquio,seu coração ainda batia descompassadamente.Tirian e Precioso, muito tristes, vinham bem atrás,caminhando lado a lado. O rei passara o braço

____________________________________C.S.Lewis � Crônicas de Nárnia � Vol. VII

117

pelo pescoço do unicórnio, e este de vez emquando acariciava o rosto do amigo com ofocinho macio. Ninguém tentava consolar um aooutro com palavras. Naquele momento, não eranada fácil pensar em algo confortador para dizer.Tirian nunca imaginara que o fato de um macacoinventar um falso Aslam pudesse levar as pessoasa deixar de acreditar no verdadeiro Aslam. Nomomento em que contara aos anões que haviamsido ludibriados, quase tivera a certeza de que elestomariam o seu partido. Seu plano era levá-los, nanoite seguinte, até a Colina do Estábulo e mostrarConfuso para todas as criaturas; aí todos sevoltariam contra o macaco e, provavelmentedepois de uma boa luta com os calormanos, tudochegaria ao fim. Agora, porém, pelo que tudoindicava, já não podia contar com nada mais.Quantos outros narnianos acabariam seguindo oexemplo dos anões?

� Acho que tem alguém nos seguindo �disse Confuso, de repente.

____________________________________C.S.Lewis � Crônicas de Nárnia � Vol. VII

118

Pararam para escutar. Agora tinham certezade terem ouvido uns passinhos miúdos atrás deles.

� Quem vem aí? � gritou o rei.� Sou eu, senhor � ouviu-se uma voz. �

Apenas eu, o anão Poggin. Acabo de me safar dosoutros. Estou do seu lado, senhor, e também dolado de Aslam. Se houver por aí uma espada deanão que eu possa usar, terei todo o prazer emdistribuir uns bons golpes por aí, antes que tudo seacabe.

Todo mundo se reuniu ao redor dele,dando-lhe boas-vindas, elogiando-o e dando-lhetapinhas nas costas. É claro que um anão a maisnão iria fazer muita diferença, mas bem que eraanimador contar com pelo menos um deles. Ogrupo inteiro se iluminou de novo. Mas a alegriade Jill e Eustáquio não durou muito, pois logocomeçaram a bocejar e cochilar: estavam tãocansados que não conseguiam pensar em outracoisa a não ser na cama.

Foi na hora mais fria da noite, justamenteantes do alvorecer, que alcançaram a torre

____________________________________C.S.Lewis � Crônicas de Nárnia � Vol. VII

119

novamente. Bem que gostariam de ter encontradouma refeição prontinha à sua espera. Agora,porém, nem queriam pensar no trabalho e notempo que gastariam preparando algo para comer.Após beberem água da fonte e lavarem o rosto,atiraram-se nos beliches: todos, menos Confuso ePrecioso, que disseram sentir-se mais à vontade láfora. E acho que foi bem melhor assim, pois umunicórnio e um jumento gordo e grandão dentrode casa sempre fazem o lugar parecer cheiodemais.

Os anões narnianos, embora não tenhammais que um metro de altura, são, considerando-seo seu tamanho, as criaturas mais fortes eresistentes que existem; tanto assim que Poggin,apesar de ter tido um dia duríssimo e haverdormido tarde, foi o primeiro a despertar,totalmente recuperado. Sem hesitar, pegou o arcode Jill, saiu e caçou uma porção de patosselvagens. Depois foi sentar-se ao pé da escada eficou batendo papo com Confuso e Precioso,enquanto depenava os patos. Confuso pareciasentir-se consideravelmente melhor naquela

____________________________________C.S.Lewis � Crônicas de Nárnia � Vol. VII

120

manhã. Sendo um unicórnio e, portanto, umanimal muito nobre e gentil, Precioso fora muitoamável com ele, conversando sobre coisas de queambos entendiam, como capim, torrões de açúcarou como cuidar dos cascos. Quando, por volta dasdez e meia, Jill e Eustáquio saíram da torre, aindabocejando e esfregando os olhos, o anão mostrou-lhes onde poderiam colher punhados de uma ervanarniana chamada frésia-silvestre, que mais separece com a nossa azedinha mas é muito maisgostosa quando cozida. (Para ficar mesmodeliciosa é preciso um pouco de manteiga epimenta, mas isso eles não tinham no momento.)Assim, pegando uma coisinha aqui, outra ali,acabaram juntando os ingredientes para fazer umbom cozido para o café ou almoço, ou seja lá oque se quisesse chamar àquela hora do dia. Tirianavançou um pouco mais floresta adentro e voltoucom galhos secos para fazer lenha. Enquanto acomida cozinhava (o que lhes pareceu um tempoenorme, especialmente quando o cheiro começoua se alastrar, cada vez mais delicioso), o rei foiprovidenciar um traje completo para Poggin: cota

____________________________________C.S.Lewis � Crônicas de Nárnia � Vol. VII

121

de malha, elmo, escudo, espada, cinto e umaadaga. Depois foi dar uma olhada na espada deEustáquio e descobriu que este a colocara de voltana bainha toda lambuzada de sangue docalormano. O rei o repreendeu e o fez limpar epolir a espada de novo.

Enquanto isso, Jill caminhava de um ladopara outro, ora mexendo a panela, ora olhandocom inveja para o unicórnio e o jumento, quepastavam, felizes da vida. �Ah, se eu tambémpudesse comer capim!�, pensou ela inúmerasvezes naquela manhã.

Mas quando chegou a hora da refeição todomundo achou que valera a pena esperar, e todos seserviram mais de uma vez. Depois de comerematé se fartar, os três humanos e o anão foramsentar-se nos degraus; os quadrúpedes deitaram-seno chão, de frente para eles. O anão (compermissão de Tirian e Jill) acendeu seu cachimbo.

� Agora, Poggin � disse o rei �, conte-nostudo o que sabe sobre o inimigo. Em primeirolugar, como é que explicaram a minha fuga?

____________________________________C.S.Lewis � Crônicas de Nárnia � Vol. VII

122

� Inventaram a história mais absurda que sepoderia imaginar, senhor � disse Poggin. � Quemcontou foi o gato Ruivo, e garanto que foi elemesmo quem inventou tudo. Nunca vi gato maisvelhaco do que esse tal de Ruivo. Pois ele disseque ia passando pela árvore à qual o haviamamarrado, senhor, e que Vossa Majestade estavaresmungando, praguejando e amaldiçoandoAslam. �Numa linguagem que eu não ousorepetir�, foram as palavras que ele usou, todoempertigado e cheio de si... Vossa Alteza bemsabe como um gato pode ser metido a importantequando quer. E então, contou Ruivo, o próprioAslam apareceu de repente, num clarão de luz, edevorou Vossa Majestade. Só de ouvir essahistória, todos os animais estremeceram e houveaté quem desmaiasse na mesma hora. E o macaco,é óbvio, aproveitou-se direitinho da situação,advertindo: �Viram só o que Aslam faz com quemnão o respeita? Que isto sirva de aviso para todosvocês.� As pobres criaturas se lamentaram echoraram, mas aquiesceram. Como vê, senhor,sua fuga não os levou a pensar que ainda existem

____________________________________C.S.Lewis � Crônicas de Nárnia � Vol. VII

123

amigos leais que podem ajudá-los; ao contrário,deixou-os muito mais apavorados e obedientes aomacaco.

� Que astúcia infernal! � disse Tirian. � Eesse Ruivo, então, ajustou-se direitinho às idéiasdo macaco. Os dois são a tampa e a panela.

� Do jeito que vão as coisas, senhor, aquestão agora é saber se o macaco se ajusta àsidéias dele � replicou o anão.

� O macaco deu para beber, sabe? Creioque a trama, agora, é muito mais coisa do ruivo ede Rishda, o capitão calormano. E tenho aimpressão de que algumas coisas que o gatoandou espalhando por aí entre os anões são aprincipal causa do troco que lhe deram hoje. E jálhe digo por quê. Anteontem, logo depois deacabar uma daquelas odiosas reuniões da meia-noite, eu já ia a meio caminho de volta para casaquando percebi que havia esquecido meucachimbo. Como era um cachimbo realmente bome um velho preferido meu, decidi voltar paraprocurá-lo. Antes, porém, que chegasse ao lugar

____________________________________C.S.Lewis � Crônicas de Nárnia � Vol. VII

124

onde estivera sentado (estava escuro como breu),ouvi uma voz de gato dizer: �Miau!�, e uma vozde calormano responder: �Estou aqui... Falebaixo!� No mesmo instante fiquei parado comouma estátua e vi que os dois eram Ruivo e RishdaTarcaã, como o chamam por aí. �Nobre tarcaã,�disse o gato naquela sua vozinha macia, �sóqueria saber exatamente o que ambos quisemosdizer hoje quanto a ser Aslam nada mais do queTash.� �Sem dúvida alguma, ó mais sagaz detodos os gatos!�, respondeu o outro. �Tuentendeste muito bem o que eu quis dizer comisso.� �Você quis dizer que não existe nenhumdos dois�, disse o gato. �Qualquer ser inteligentesabe disso�, observou o tarcaã. �Então nós doispodemos nos entender�, ronronou o gato. �Poracaso você não está cheio desse macaco?� �Elenão passa de um bobalhão ganancioso�,respondeu o outro, �mas no momento precisamosdele. Tu e eu podemos arranjar tudo às escondidase manejar o macaco para fazer o que quisermos.�E Ruivo disse: �Você não acha que seria melhorpôr alguns dos narnianos mais espertos a par dos

____________________________________C.S.Lewis � Crônicas de Nárnia � Vol. VII

125

nossos planos? Um por um, à medida que osconsiderarmos aptos. Porque os animais querealmente acreditam em Aslam podem mudar deidéia a qualquer momento; e o farão se, porinsensatez, o macaco trair seu segredo. Aqueles,porém, para quem tanto faz Tash ou Aslam, desdeque as coisas revertam em seu próprio benefício, eque visam também à recompensa que lhes dará oTisroc quando Nárnia se tornar uma provínciacalormana, estes ficarão firmes.� �Excelente,gato!�, disse o capitão. �Mas tenha muito cuidadoao fazer a escolha.�

Enquanto o anão falava, o dia pareciamudar. Quando eles se sentaram, o sol estavabrilhando. Agora, porém, Confuso sentiacalafrios. Precioso virava a cabeça de um ladopara outro, inquieto. Jill olhou para cima.

� Está fechando o tempo � disse ela.� E está tão frio! � disse Confuso.� Frio até demais, pelo Leão! � completou

Tirian, soprando nas mãos. � Cruzes! Que cheironojento é esse?

____________________________________C.S.Lewis � Crônicas de Nárnia � Vol. VII

126

� Credo! � ofegou Eustáquio. � Parececheiro de coisa podre. Tem algum passarinhomorto por aí? Mas... como é que a gente nãonotou isso antes?

Subitamente, Precioso deu um pulo,sobressaltado, e apontou com o chifre.

� Olhem! � exclamou. � Vejam só aquilo!Olhem, olhem!

E então todos os seis viram e todosempalideceram na mesma hora, tomados deprofundo temor.

____________________________________C.S.Lewis � Crônicas de Nárnia � Vol. VII

127

8

AS NOVAS QUE A ÁGUIATROUXE

À sombra das árvores, no lado mais distanteda clareira, alguma coisa se movia. Vinha vindovagarosamente rumo ao Norte. À primeira vista,quem a visse a confundiria com fumaça, pois eraacinzentada e meio transparente. Mas o cheiro erade morte e não de fumaça... Além disso, a coisatinha uma forma constante, em vez de se revolvere espalhar como fumaça. Lembrava ligeiramente aforma de um homem, mas a cabeça era de pássaro� parecia uma ave de rapina, com um bico curvo ecruel. Tinha quatro braços, que trazia erguidosacima da cabeça, esticados em direção ao Norte,como se quisesse abarcar Nárnia inteira com suasgarras. E os dedos, todos os vinte, eram curvoscomo o bico, e no lugar de unhas havia umasgarras compridas e pontudas como as de uma

____________________________________C.S.Lewis � Crônicas de Nárnia � Vol. VII

128

águia. Em vez de caminhar, a coisa flutuava sobrea grama, que parecia murchar à medida que elapassava.

Ao ver aquilo, Confuso deu um zurroestridente e disparou para dentro da torre. Jill (quenão era nada covarde, como vocês sabem)escondeu o rosto entre as mãos, tentando apagaraquela visão horrível. Os outros, estarrecidos,fitaram a coisa durante cerca de um minuto, atéque ela desapareceu entre as árvores maisespessas, do lado direito da floresta. Então o solvoltou a brilhar e ouviu-se novamente o canto dospássaros.

Um a um, eles começaram a respirar e a semexer de novo. Todos haviam ficado imóveiscomo defuntos enquanto aquela coisa se movia.

� O que era aquilo? � perguntou Eustáquio,num sussurro.

� Eu já vi isso uma vez, antes � disseTirian. � Mas estava gravado numa pedra erevestido de ouro, e tinha olhos de diamante.Naquela época eu era da idade de vocês e tinha

____________________________________C.S.Lewis � Crônicas de Nárnia � Vol. VII

129

ido a Tashbaan a convite do Tisroc. Ele me levouao grande templo de Tash, e foi lá que eu o vi,esculpido acima do altar.

� Quer dizer que aquilo... aquela coisa... eraTash? � ofegou Eustáquio.

Mas em vez de responder-lhe, Tirianpassou o braço pelos ombros de Jill, perguntando-lhe:

� Como se sente, senhorita?� T-t-tudo b-bem... � respondeu ela, tirando

as mãos do rosto e tentando sorrir. � Agora estoubem. Só fiquei um pouquinho tonta por unsinstantes.

� É, pelo visto, o tal de Tash existe mesmo�disse o unicórnio.

� É � disse o anão. � E aquele tolo domacaco, que não acreditava em Tash, vai ter bemmais do que ele imaginava. Chamou o demônio,aí está ele!

� Para onde terá ido ele... aquilo... a coisa?� gaguejou Jill.

____________________________________C.S.Lewis � Crônicas de Nárnia � Vol. VII

130

� Para o Norte, para o centro de Nárnia �respondeu Tirian. � Ele veio para ficar.Chamaram-no e ele veio mesmo.

� Bem feito! � disse o anão, dando umarisadinha e esfregando as mãos peludas. � Omacaco vai ter uma bela surpresa. Ninguém devechamar o demônio sem saber o que está fazendo.

� Será que Tash vai se tornar visível para omacaco? � indagou Precioso.

� Para onde foi Confuso? � perguntouEustáquio. Todo mundo começou a gritar por elee Jill saiu caminhando em volta da torre para verse o encontrava do outro lado. Já estavamcansados de procurá-lo quando viram suacabeçorra cinzenta aparecer cuidadosamente parafora da porta, dizendo:

� Cadê ele? Já foi embora?Quando finalmente conseguiram convencê-

lo a sair, ele tremia como vara verde.

� Agora percebo como fui um jumentoruim �disse Confuso. � Nunca deveria ter dado

____________________________________C.S.Lewis � Crônicas de Nárnia � Vol. VII

131

ouvidos a Manhoso. Jamais pensei que essascoisas pudessem acontecer.

� Se você tivesse passado menos tempodizendo que não era esperto e mais tempotentando ser esperto... � começou Eustáquio, masJill o interrompeu:

� Deixe o pobre Confuso em paz! Foi tudoum engano, não foi, Confuso? � E beijou-lhe ofocinho.

Apesar de muito abalados pelo que tinhamacabado de ver, todos sentaram-se novamente ereiniciaram a conversa.

Precioso tinha muito pouco a lhes contar.Enquanto prisioneiro, passara quase todo o tempoamarrado nos fundos do estábulo e, naturalmente,nada ouvira dos planos do inimigo. Tinharecebido chutes e pancadas (e, é claro, dado unsbons coices também) e fora ameaçado de morte,caso não dissesse que acreditava ser Aslam quemtinha sido apresentado aos animais naquela noite,à luz da fogueira. Na verdade, teria sidoexecutado naquela manhã mesmo, se não tivesse

____________________________________C.S.Lewis � Crônicas de Nárnia � Vol. VII

132

sido libertado. E não tinha a mínima idéia do queacontecera à ovelha.

A questão agora era decidir se voltariam àColina do Estábulo naquela noite, para mostrarConfuso aos narnianos e tentar convencê-los deque haviam sido enganados, ou se era melhorseguir para Leste ao encontro do centauro Passo-firme, que vinha trazendo ajuda de Cair Paravel, eassim ir ao encalço do macaco e seus calormanosjá com reforços. Tirian preferia a primeira opção,pois detestava a idéia de deixar o macaco ludibriaro seu povo por um momento mais que fosse. Poroutro lado, o comportamento dos anões na noitepassada fora uma advertência. Pelo visto,ninguém podia prever como o povo iria reagir,mesmo depois de ver Confuso. Depois aindahavia os soldados calormanos. Pelos cálculos dePoggin, havia pelo menos trinta. Tirian tinhacerteza de que, se os narnianos ficassem do seulado, ele, Precioso, Poggin e as crianças (comConfuso não dava mesmo para contar) teriam umaboa chance de vencer. Mas, e se a metade dosnarnianos, inclusive todos os anões, resolvessem

____________________________________C.S.Lewis � Crônicas de Nárnia � Vol. VII

133

apenas sentar e ficar assistindo? Ou, o que erapior, lutassem contra eles? O risco era grandedemais. Além do mais, havia agora o fantasma deTash. O que fazer?

Poggin ponderou que não havia mal algumem deixar o macaco lidar com seus própriosproblemas por um ou dois dias. Agora ele já nãotinha Confuso para tirar do estábulo e expor aosnarnianos. Sabe Deus que mentira ele � ou Ruivo�inventaria agora para explicar o ocorrido. Todasas noites os animais imploravam para ver Aslam,e se este não aparecesse com certeza até o maisingênuo deles iria desconfiar.

Finalmente, todos chegaram à conclusão deque a melhor coisa era partir ao encontro dePassofirme. Foi impressionante como todos seanimaram assim que a decisão foi tomada.Sinceramente, não creio que isso tenha acontecidoporque algum deles estivesse com medo de umaluta (com exceção, talvez, de Jill e Eustáquio).

Mas tenho para mim que, no fundo, cadaum deles estava contente por não precisar chegar

____________________________________C.S.Lewis � Crônicas de Nárnia � Vol. VII

134

perto (pelo menos não ainda) daquela pavorosacoisa com cabeça de pássaro que, visível ouinvisível, já deveria estar rondando a Colina doEstábulo. De qualquer forma, a gente se sentebem melhor depois de tomar uma decisão.

Tirian disse que era melhor tirar osdisfarces, para não serem confundidos com oscalormanos, evitando assim a possibilidade de quealgum narniano leal os atacasse pelo caminho. Oanão pegou um pouco da graxa que usava paraesfregar nas espadas e nas lanças e misturou-acom uma porção de cinzas de lareira, fazendo umamistura de aparência repugnante. Então elestiraram as armaduras calormanas e desceram parao riacho. A mistura nojenta fazia espuma comoum sabonete: era até divertido ver Tirian e as duascrianças ajoelhados à beira da água, esfregando anuca, ofegando e bufando, no esforço de enxaguaro pescoço. Quando voltaram para a torre, tinhamo rosto vermelho e brilhante, como quem acaba detomar um bom banho antes de ir a uma festa.Equiparam-se, novamente, desta vez ao

____________________________________C.S.Lewis � Crônicas de Nárnia � Vol. VII

135

verdadeiro estilo narniano, com espadas retas etriangulares.

� Agora, sim � disse Tirian. � Assim é bemmelhor. Sinto-me de novo um homem de verdade.

Confuso implorou que lhe tirassem a pelede leão, dizendo que esta era quente demais e,embolada como estava em suas costas, muitodesconfortável; além disso, ele se sentia umbobalhão com aquilo. Mas os outros disseram queele teria de agüentar um pouquinho mais, poisqueriam mostrá-lo naqueles trajes para os outrosbichos, embora tivessem de ir primeiro aoencontro de Passofirme.

O que restara da carne de pato e de coelhonão valia a pena levar, mas eles pegaram algunsbiscoitos. Tirian trancou a porta da torre e assimacabou-se a estada deles naquele lugar.

Passava um pouco das duas horas da tardequando saíram. Aquele era o primeiro diarealmente quente da primavera. As folhinhasverdes pareciam muito mais vistosas do que nodia anterior: já não havia mais qualquer sinal de

____________________________________C.S.Lewis � Crônicas de Nárnia � Vol. VII

136

neve e viam-se, aqui e acolá, quantidades demargaridas silvestres. Os raios de sol filtravam-seatravés das árvores, os pássaros cantavam e ouvia-se sempre (embora geralmente fora de vista) obarulho de água corrente. Era difícil pensar emcoisas ruins, como Tash, por exemplo. Ascrianças suspiravam: �Finalmente! Isto, sim, é averdadeira Nárnia!� Também Tirian tinha ocoração um pouco mais leve e caminhava à frentedeles, cantarolando uma velha marchinhanarniana, cujo refrão era assim:

Bate o tambor: Pã-rã-rã! Pram! Pram!Bate e rebate: Pã-rã! Pram! Prrram!Atrás do rei seguiam Eustáquio e o anão

Poggin, que ia dizendo para o companheiro osnomes de todos os pássaros, árvores e plantasnarnianas que ele ainda não conhecia. Às vezes,era Eustáquio quem lhe falava sobre as coisas daInglaterra.

Mais atrás vinha Confuso, seguido de Jill ePrecioso, que caminhavam bem pertinho um dooutro. Jill estava, por assim dizer, completamente

____________________________________C.S.Lewis � Crônicas de Nárnia � Vol. VII

137

apaixonada pelo unicórnio. Ela achava (e nãoestava totalmente enganada) que ele era o animalmais brilhante, gentil e elegante que já haviaconhecido. E seu jeito de falar era tão suave eagradável, que mal dava para acreditar quepudesse ser tão terrível e violento numa batalha.

� Ah, que maravilha! � disse Jill. � Ficarandando por aí, à toa... Bem que eu gostaria deviver mais aventuras deste tipo. Pena que estejasempre acontecendo tanta coisa em Nárnia!

Mas o unicórnio explicou-lhe que ela estavaenganada. Disse-lhe que os Filhos e Filhas deAdão e Eva só eram trazidos de seu estranhomundo para Nárnia quando havia agitação eproblemas, mas que Nárnia não era sempredaquele jeito. Entre uma e outra de suas visitas,transcorriam-se centenas e milhares de anos emque reis pacíficos sucediam uns aos outros � eramtantos que mal dava para recordar o nome detodos eles ou contar quantos eram, sendo atémuito difícil citá-los todos nos livros de História.E falou-lhe de velhas rainhas e heróis de quem ela

____________________________________C.S.Lewis � Crônicas de Nárnia � Vol. VII

138

nunca ouvira falar antes. Contou-lhe da rainhaCisne Branco, que vivera muito antes de aparecera Feiticeira Branca e o Grande Inverno. Era tãolinda, disse ele, que, quando se mirava emqualquer lago da floresta, o reflexo de seu rostopassava um ano e um dia resplandecendo naságuas como uma estrela à noite. Contou-lhe deBosque de Luar, uma lebre de ouvidos tãoaguçados que, se estivesse lá no Lago doCaldeirão, era capaz de escutar, mesmo sob oestrondoso barulho da grande queda-d�água,qualquer homem que estivesse cochichando emCair Paravel. Depois contou-lhe como o reiFuracão, o nono na descendência do rei Franco (oprimeiro de todos os reis de Nárnia), saíravelejando pelos mares do Oriente, onde libertaraas Ilhas Solitárias de um dragão, recebendo comorecompensa as próprias ilhas, que se tornaramparte das terras leais a Nárnia para sempre. Falou-lhe de séculos inteiros em que Nárnia fora tãofeliz, que sensacionais festas e danças, no máximotorneios, eram a única coisa de que podiamlembrar-se, e cada dia e cada semana era sempre

____________________________________C.S.Lewis � Crônicas de Nárnia � Vol. VII

139

melhor que o anterior. À medida que ia falando, aimagem de todos aqueles anos felizes, milhares emilhares deles, ia-se acumulando na mente de Jill,como se ela estivesse olhando do alto de umamontanha e enxergasse lá embaixo uma agradávelplanície cheia de florestas, campos e rios, que seestendiam cada vez mais para longe até perder-sede vista. Então ela disse:

� Oh! Tomara que a gente consiga logo darum jeito naquele macaco e voltar à calmadaqueles bons tempos! E, aí, espero que estesdurem para sempre, eternamente. O nosso mundoeu sei que vai acabar um dia. Mas quem sabe esteaqui não tenha o mesmo destino. Oh, Precioso!Não seria maravilhoso se Nárnia nunca acabasse efosse para sempre como a Nárnia que você acabade descrever?

� Não, irmãzinha � respondeu Precioso. �Todos os mundos caminham para um fim, excetoa própria terra de Aslam.

� Bem, pelo menos � disse Jill �, esperoque o fim deste mundo ainda esteja a milhões de

____________________________________C.S.Lewis � Crônicas de Nárnia � Vol. VII

140

milhões de milhões de anos... Opa! Por que é queestamos parando?

O rei, Eustáquio e o anão olhavampasmados para o céu. Jill arrepiou-se toda,lembrando-se das coisas horrorosas que já tinhamvisto. Mas desta vez não era nada disso. Era umacoisa pequena e escura que se recortava contra océu azul.

� Pelo vôo, posso até jurar que é uma avefalante � disse o unicórnio.

� Também acho � disse o rei. � Mas seráamigo ou espião do macaco?

� Para mim, senhor � disse o anão �, pareceser a águia Sagaz.

� Não será melhor a gente se esconder entreas árvores? � perguntou Eustáquio.

� Nada disso � disse Tirian. � O melhor éficarmos parados como estátuas. Se nosmexermos, é certo que nos verá.

____________________________________C.S.Lewis � Crônicas de Nárnia � Vol. VII

141

� Vejam! � exclamou Precioso. � Estávoando em círculos. Agora já nos viu e está vindopara cá.

� Apronte a flecha, senhorita � ordenouTirian a Jill � Mas não atire em hipótese alguma, anão ser que eu ordene. Pode ser um amigo.

Se soubessem o que iria acontecer, teriamdesfrutado de um espetáculo belíssimo: a enormeave planava, suavemente, com extrema graça ebeleza, descendo ao seu encontro. Pousou numrochedo a uns poucos metros de Tirían, fez umareverência com a cabeça emplumada e depoisfalou, na sua estranha voz de águia:

� Salve, ó rei!� Salve, Sagaz! � respondeu Tirian. � Já

que me chama de rei, devo acreditar que não é umdos seguidores do macaco e de seu falso Aslam.Estou realmente contente com a sua vinda.

� Senhor � disse a águia �, depois de ouviro que tenho a dizer, ficará mais triste com a minha

____________________________________C.S.Lewis � Crônicas de Nárnia � Vol. VII

142

vinda do que com a maior calamidade que já lhesobreveio.

Ao ouvir essas palavras, Tirian sentiu comose o seu coração parasse de bater. Tentou, porém,manter a calma:

� Vamos, fale! � disse ele.� Duas coisas eu acabo de ver � falou

Sagaz. �A primeira foi Cair Paravel cheia denarnianos mortos e de calormanos vivos. Oestandarte do Tisroc avançou contra as suas reaismuralhas, senhor, e vi os seus súditos fugindo dacidade para todos os lados, rumo às florestas. CairParavel foi tomada pelo mar. Vinte grandesnavios calormanos ali aportaram na escuridão danoite, dois dias atrás.

Ninguém disse uma palavra.� E a outra visão, umas cinco léguas para cá

de Cair Paravel, foi o centauro Passofirme atiradoao chão, morto, traspassado por uma flechacalormana. Estive com ele no seu derradeiromomento e ele mandou esta mensagem para

____________________________________C.S.Lewis � Crônicas de Nárnia � Vol. VII

143

Vossa Majestade: �Lembre-se de que todos osmundos chegam ao fim. E uma morte nobre é umtesouro que ninguém é pobre demais paracomprar.�

� Quer dizer, então � disse o rei, após umlongo silêncio �, que Nárnia já não existe.

____________________________________C.S.Lewis � Crônicas de Nárnia � Vol. VII

144

9

A GRANDE REUNIÃO NACOLINA DO ESTÁBULO

Durante um bom tempo ninguém conseguiudizer uma palavra nem derramar uma lágrima.Então o unicórnio bateu com o casco no chão,sacudiu a crina e começou a falar:

� Senhor, agora já não há mais necessidadede um Conselho. Vemos que os planos do Macacoforam muito além do que imaginávamos. Não hádúvida de que ele já vinha tramando a coisasecretamente com o Tisroc há muito tempo e,assim que achou a pele de leão, mandou avisá-loque preparasse uma armada para tomar CairParavel e Nárnia inteira. Agora nada mais nosresta a fazer a não ser voltar à Colina do Estábulo;vamos contar a verdade aos narnianos e enfrentara aventura para a qual Aslam nos enviou. E se,

____________________________________C.S.Lewis � Crônicas de Nárnia � Vol. VII

145

por um grande milagre, nós sete conseguirmosderrotar os trinta calormanos que estão com omacaco, devemos voltar novamente e morrerlutando contra o grande exército deles, que logomarchará de Cair Paravel.

Tirian assentiu com a cabeça. Voltando-separa as crianças, disse:

� Agora, amigos, chegou a hora deregressarem ao seu próprio mundo. Sem dúvidaalguma, já cumpriram a missão para a qual foramenviados.

� M... mas... mas não fizemos nada! � disseJill, que tremia toda, não propriamente de medo,mas porque aquilo tudo lhe parecia terríveldemais.

� É claro que sim � disse o rei. � Soltaram-me daquela árvore. Você rastejou que nem umacobra à minha frente ontem à noite e trouxeConfuso. E você, Eustáquio, matou o seucalormano. Contudo, são jovens demais paraparticipar de um fim tão sangrento como este quenos espera hoje à noite ou, quem sabe, daqui a três

____________________________________C.S.Lewis � Crônicas de Nárnia � Vol. VII

146

dias. Eu lhes imploro � não, eu ordeno! � queregressem ao seu lugar. Para mim seria umavergonha deixar guerreiros assim tão jovenstombar em batalha ao meu lado.

� Não, não e não!!! � disse Jill (de muitopálida que estava ao começar a falar, ficousubitamente muito vermelha e depois empalideceude novo). � Não vamos embora, não importa oque você diga. Vamos grudar em você, aconteça oque acontecer. Não é, Eustáquio?

� É, sim. E não adianta criar caso por isso �respondeu Eustáquio, que tinha enfiado as mãosnos bolsos, sem se dar conta do quanto isso ficaesquisito quando se está usando uma cota demalha. � Pois, como vê, não temos alternativa.Não adianta falar em nos mandar de volta. De quejeito? Não temos nenhuma mágica para fazer isso!

Ele tinha toda a razão, mas Jill detestou-opor ter falado assim. Eustáquio tinha essa maniade ser terrivelmente prático quando os outrosficavam exaltados.

____________________________________C.S.Lewis � Crônicas de Nárnia � Vol. VII

147

Ao perceber que os dois estranhos nãopodiam voltar para casa (a não ser que Aslam osfizesse subitamente desaparecer dali), a primeiraatitude de Tirian foi tentar convencê-los aatravessar as Montanhas do Sul rumo àArquelândia, onde provavelmente estariam asalvo. Mas eles não sabiam o caminho e não havianinguém que pudesse ir com eles. E depois, comoponderou Poggin, uma vez conquistada Nárnia, oscalormanos com certeza tomariam Arquelândialogo a seguir: o Tisroc sempre desejara as terrasdo Norte. No final das contas, Jill e Eustáquiotanto suplicaram que Tirian acabou concordandoque eles o acompanhassem e assumissem seurisco � ou, como disse ele, com muito maissensibilidade, �que enfrentassem a aventura para aqual Aslam os enviava�.

A idéia do rei era que só deveriam regressarà Colina do Estábulo (só de pensar nesse nomeeles já se sentiam mal) depois que escurecesse.Mas o anão lhes disse que, se chegassem lá à luzdo dia, provavelmente encontrariam o lugardeserto, a não ser talvez por um sentinela

____________________________________C.S.Lewis � Crônicas de Nárnia � Vol. VII

148

calormano. Os bichos estavam tão apavoradoscom o que o macaco (e agora também o Ruivo)lhes havia contado sobre esse novo Aslam furioso(ou Tashlam), que não tinham coragem de seaproximar dele, a não ser quando eramconvocados para aquelas terríveis reuniões àmeia-noite. Além do mais, os calormanos nuncaforam bons em andar no mato. Poggin achavaque, mesmo à luz do dia, eles facilmenteconseguiriam atingir a parte de trás do estábulosem ser vistos. Isso seria muito mais difícil depoisque anoitecesse, quando o macaco tivesseconvocado a bicharada, e os calormanos jáestivessem de guarda. Assim, depois de iniciada areunião, levariam Confuso para trás do estábulo,completamente despercebidos, até o momento deexibi-lo. Isso realmente seria o melhor, pois aúnica chance que tinham era pegar os narnianosde surpresa.

Todos concordaram, e assim o grupo inteiropartiu numa outra direção (norte-leste), rumo àdetestada Colina. A águia de vez em quandosobrevoava o grupo de um lado para outro e, às

____________________________________C.S.Lewis � Crônicas de Nárnia � Vol. VII

149

vezes, pousava nas costas de Confuso. Nenhumdeles (nem mesmo o próprio rei, exceto em casode extrema necessidade) sequer sonharia cavalgarum unicórnio.

Eustáquio e Jill caminhavam juntos. Nomomento em que imploraram a Tirian que lhespermitisse ir com os outros, haviam sido muitocorajosos. Agora, porém, não sentiam o mínimode coragem.

� Jill � murmurou Eustáquio �, devoconfessar-lhe que estou morrendo de medo.

� Para você, tudo bem, meu caro �respondeu Jill. � Você pode lutar. Mas, e eu?Estou tremendo como vara verde, se é que vocêquer saber.

� Ora, tremer não é nada � disse Eustáquio.� Já estou quase vomitando.

� Pelo amor de Deus, nem me fale nisso �disse Jill.

Permaneceram calados por uns doisminutos.

____________________________________C.S.Lewis � Crônicas de Nárnia � Vol. VII

150

� Jill � disse Eustáquio, de repente.� O que é?� E se a gente morrer aqui, como é que vai

ser?

� Ficamos mortos, suponho.� Não... quero dizer... o que vai acontecer

no nosso mundo? Será que a gente vai despertar ese encontrar de novo naquele trem? Ou será quevamos simplesmente sumir, e pronto, nunca maisse ouve falar de nós? Ou será que vamos aparecermortos na Inglaterra?

� Papagaios! Nunca pensei nisso!� Já pensou que esquisito se Pedro e os

outros me vissem acenando pela janela, e aí,quando o trem parasse, não encontrassem a genteem parte alguma? Ou então se nos achassemmortos, lá na Inglaterra?

� Nossa! Que idéia horrível! � exclamouJill, com uma careta.

____________________________________C.S.Lewis � Crônicas de Nárnia � Vol. VII

151

� Para nós, até que não seria tão terrívelassim �disse Eustáquio. � Não iríamos estar lá,mesmo...

� Eu quase gostaria... Não, não gostaria.Esqueça.

� O que é que você ia dizer?� Eu ia dizer que gostaria de nunca ter

vindo. Mas não, não e não! Mesmo que a gentemorra. Prefiro morrer lutando por Nárnia a crescere ficar uma velha caduca em casa, quem sabe atéandando por aí numa cadeira de rodas, e depoisacabar morrendo do mesmo jeito.

� Ou então ser esmagado nos trilhos daestrada de ferro...

� Por que você diz isso?� Porque... Bem, quando deu aquele terrível

solavanco (aquele que nos atirou aqui paraNárnia), pensei que fosse um acidente de trem queestava acontecendo. Por isso fiquei muito contenteao descobrir que estávamos voltando a Nárnia.

____________________________________C.S.Lewis � Crônicas de Nárnia � Vol. VII

152

Enquanto Jill e Eustáquio conversavamsobre essas coisas, os outros discutiam seusplanos. Isso os fazia sentir-se menos infelizes,pois enquanto planejavam o que fazer naquelamesma noite, a idéia do que acontecera a Nárnia(de que todas as suas glórias e alegrias tinhamchegado ao fim) ficava em segundo plano. Nomomento em que parassem de conversar, ficariamtristes de novo � assim, continuavam falando. Oanão estava muito animado com o trabalho queteriam de fazer à noite. Tinha certeza de que ojavali e o urso, e provavelmente todos os cães,tomariam o partido do rei. E não acreditava quetodos os anões ficassem do lado de Grifo. Lutar àluz da fogueira e sob as árvores seria vantajosopara o lado mais fraco. Portanto, casoconseguissem vencer naquela noite, quenecessidade haveria de desperdiçar suas vidasnum encontro com todo o exército calormano,alguns dias mais tarde? Por que não seesconderem nas matas ou mesmo lá para asbandas do Bosque Ocidental, além da grandecachoeira, e ali viverem como fora-da-lei? Então,

____________________________________C.S.Lewis � Crônicas de Nárnia � Vol. VII

153

se fortaleceriam pouco a pouco, pois a cada dianovos animais falantes e habitantes daArquelândia se juntariam a eles. Finalmentesairiam do seu esconderijo e varreriam do país oscalormanos (que, àquela altura, já andariam meiodescuidados), e

Nárnia voltaria à vida. Afinal, algo muitoparecido acontecera nos dias do rei Miraz.

Tirian escutava tudo, pensando: �Mas, eTash?� E, lá no fundo do coração, sentia que nadadisso iria acontecer. Mas não falou nada.

Ao se aproximarem da Colina do Estábulo,todos foram ficando calados. Aí é que começoumesmo o trabalho na floresta. Desde o primeiroinstante em que avistaram a colina, até o momentoem que todos chegaram aos fundos do estábulo,passaram-se mais de duas horas. É o tipo de coisaque não dá para descrever com precisão, a não serque se escrevam páginas e páginas sobre oassunto. Cada corrida de um cantinho escondidopara outro era uma aventura isolada, para nãofalar nas longas esperas entre cada uma e nos

____________________________________C.S.Lewis � Crônicas de Nárnia � Vol. VII

154

vários alarmes falsos. Se você é um bom escoteiroou uma boa bandeirante, então já deve ter umaidéia de como deve ter sido. O sol já estava sepondo quando todos conseguiram chegar a salvo eesconder-se numa moita de azevinhos a unsquinze metros dos fundos do estábulo. Depois demastigarem alguns biscoitos, deitaram-se.

Aí é que veio o pior: a espera. Felizmentepara as crianças, puderam dormir algumas horas.Acordaram com o frio da noite e, o que era pior,sedentos, mas não havia a menor chance deconseguir algo para beber. Confuso, de pé e semdizer uma palavra, tremia de nervosismo.

Tirian, porém, com a cabeça recostadacontra o flanco de Precioso, dormia a sono solto,roncando como se estivesse no seu leito real emCair Paravel, até que o barulho de um gongo odespertou. O rei sentou-se e, vendo a fogueiraacesa do lado de lá do estábulo, percebeu quehavia chegado a hora.

� Precioso, dê-me um beijo � disse ele. �Esta é, com certeza, a nossa última noite aqui na

____________________________________C.S.Lewis � Crônicas de Nárnia � Vol. VII

155

terra. E se alguma vez eu o ofendi de algumamaneira, perdoe-me agora.

� Querido rei � disse o unicórnio �, quasedesejaria que isso já houvesse acontecido a fim depoder perdoá-lo agora. Adeus. Já vivemos muitasalegrias juntos. Se Aslam me desse uma chance deescolher, não escolheria outra vida além da que eutive, nem morte diferente da que vamos ter agora.

Então acordaram Sagaz, que dormia com acabeça enfiada debaixo da asa, e saíramrastejando na direção do estábulo. DeixaramConfuso logo atrás deste (não sem antes lhedirigirem algumas palavras de carinho, poisninguém estava zangado com ele agora), dizendo-lhe que não saísse dali até que alguém viessebuscá-lo. Depois postaram-se de um dos lados doestábulo.

A fogueira, que ficava a apenas algunsmetros de onde se encontravam, fora acesa hábem pouco tempo e as labaredas começavam asubir. Havia, do lado de lá, uma grande multidãode narnianos, mas a princípio Tirian não

____________________________________C.S.Lewis � Crônicas de Nárnia � Vol. VII

156

conseguiu enxergá-los muito bem, embora vissedezenas de pares de olhos brilhando ao reflexo dofogo, tal e qual acontece com os olhos dos gatos edos coelhos quando se focaliza neles a luz de umcarro. Tirian acabara de encontrar um lugar paraficar, quando o gongo parou de bater e três figurassurgiram de algum lugar à sua esquerda. Um eraRishda Tarcaã, o capitão calormano. O segundoera o macaco, que vinha de mãos dadas com otarcaã e resmungava a cada instante: �Devagar!Não ande tão depressa, que não estou nada bem.

Ai, a minha pobre cabeça! Estas reuniões àmeia-noite estão ficando pesadas demais paramim. Macaco não foi feito para ficar acordado ànoite. Não sou nenhum rato ou morcego... Ai,minha cabeça!� Do outro lado do macaco, numpasso muito macio e imponente e com a caudagraciosamente erguida no ar, vinha o gato Ruivo.Os três dirigiam-se para a fogueira, parando tãoperto de Tirian que, se algum deles tivesse olhadobem na sua direção, com certeza o teria visto.Felizmente isto não aconteceu. Mas Tirianescutou Rishda dizer a Ruivo, baixinho:

____________________________________C.S.Lewis � Crônicas de Nárnia � Vol. VII

157

� Agora, gato, para o teu posto. Vê serepresentas direitinho o teu papel.

� Miau! Miau! Conte comigo! � disseRuivo. Em seguida, passou pela fogueira e foisentar-se na primeira fila com os outros bichos: naplatéia, como se diria.

Pois, na verdade, aquilo tudo mais pareciaum teatro. A multidão de narnianos seria o povosentado nas poltronas; o pequeno gramado àfrente do estábulo, onde se acendia a fogueira eonde o macaco e o capitão postavam-se em pépara falar à multidão, parecia o palco; e o estábulopropriamente dito seria o cenário aos fundos dopalco. Para completar, Tirian e seus amigosseriam os �penetras�, que espiavam por detrás docenário. Era uma excelente posição. Se, por acaso,algum deles desse pelo menos um passo nadireção do clarão da fogueira, no mesmo instantetodos os olhos se fixariam nele. Por outro lado,enquanto permanecessem quietos à sombra daparede do estábulo, a possibilidade de seremvistos era quase nula.

____________________________________C.S.Lewis � Crônicas de Nárnia � Vol. VII

158

Rishda Tarcaã empurrou o macaco paramais perto do fogo. Os dois encararam a multidão(o que significava, obviamente, que agoraestavam de costas para Tirian e seus amigos).

� Agora, Mico � disse Rishda, bembaixinho �, transmite as palavras que mentes maissábias colocaram na tua boca. E levanta a cabeça!� Dito isso, aplicou-lhe um pequeno chute oucutucão por trás, com a ponta do dedão do pé.

� Deixe-me em paz! � resmungouManhoso. Depois empertigou-se e começou afalar, agora em voz alta. � Agora, escutem bem,todos vocês. Aconteceu uma coisa terrível. Umadesgraça! A coisa mais desprezível que já se fezem Nárnia. Aslam...

� Tashlam, seu idiota! � sussurrou Rishda.�... quero dizer, Tashlam, naturalmente �emendou o macaco �, está muito zangado porisso.

Um pesado silêncio caiu sobre os narnianosenquanto esperavam para ouvir que nova desgraçalhes estava reservada. Até o grupinho escondido

____________________________________C.S.Lewis � Crônicas de Nárnia � Vol. VII

159

atrás da parede prendeu a respiração. O que viriaagora?

� Sim � disse o macaco. � Neste exatomomento, em que o Temível Ser encontra-se entrenós (ali mesmo no estábulo, bem atrás de mim),algum animal miserável resolveu fazer o queninguém sequer imaginaria que alguém fossecapaz de fazer, mesmo que ele estivesse a milhase milhas daqui. O dito animal vestiu uma pele deleão e anda vagando por essas matas, fingindo serAslam.

Jill, por um momento, pensou que omacaco tivesse enlouquecido. Será que ele iacontar toda a verdade? Um urro de horror e defúria partiu dos animais. �Grrrr!�, rosnaram,indignados. �Quem é ele? Onde está? Ah, se euponho os dentes nele!�

� Ele foi visto a noite passada � continuouo macaco �, mas desapareceu. É um jumento. Umsimples e miserável asno! Se algum de vocês viraquele...

____________________________________C.S.Lewis � Crônicas de Nárnia � Vol. VII

160

� Grrrr! � urravam os animais. � Vamosencontrá-lo, ora se vamos! É melhor que ele sumada nossa frente!

Jill voltou-se para o rei: ele tinha a bocaaberta e seu rosto estampava profundo terror. Sóaí ela compreendeu a diabólica astúcia do planoinimigo: misturando um pouquinho de verdade àmentira anterior, eles a haviam levado muito maislonge. E agora, de que adiantaria contar aosbichos que alguém tinha fantasiado um jumentocom uma pele de leão para enganá-los? O macacoiria dizer apenas: �Foi justamente o que eu disse!�De que valia agora mostrar-lhes Confuso vestidocom a pele de leão? Eles iriam deixá-lo emfrangalhos. �Furaram o nosso balão!�, cochichouEustáquio. �Puxaram o tapete sob os nossos pés!�,disse Tirian. �Que maquinação maldita!�, dissePoggin. �Posso até jurar que esta nova mentira écoisa do Ruivo.�

____________________________________C.S.Lewis � Crônicas de Nárnia � Vol. VII

161

10

QUEM ENTRARÁ NOESTÁBULO?

Jill sentiu alguma coisa roçando de leve emsua orelha. Era Precioso, sussurrando algo paraela com um enorme cochicho de cavalo. Assimque entendeu o que ele estava dizendo, acenoucom a cabeça e saiu na ponta dos pés até ondeestava Confuso. Rápida e silenciosamente, cortouas últimas cordas que atavam a ele a pele de leão.Imaginem se alguém o pegasse com aquilo,depois do que o macaco acabara de dizer! Bemque ela gostaria de esconder a pele em algumcanto bem longe dali, mas era pesada demais. Omáximo que conseguiu fazer foi chutá-la paradebaixo das moitas mais espessas. Depois fezsinal a Confuso para que a seguisse, e os doisreuniram-se aos demais.

____________________________________C.S.Lewis � Crônicas de Nárnia � Vol. VII

162

O macaco voltara a falar:

�...e depois de uma coisa tão terrível,Aslam � digo, Tashlam � está mais enfurecido doque nunca. Ele disse que tem sido complacentedemais com vocês, aparecendo todas as noites.Pois bem, agora não aparecerá mais!

Uivos, miados, grunhidos e guinchos forama resposta dos animais àquelas palavras. Mas, derepente, uma voz completamente diferenterompeu numa estrondosa gargalhada.

� Escutem só o que o macaco está dizendo� falava, rindo à solta. � Querem saber mesmo porque ele não nos mostra o seu precioso Aslam?Pois eu lhes digo: é porque ele não tem leãoalgum! A única coisa que havia lá dentro o tempotodo era um jumento velho com uma pele de leãonas costas. E agora, que este desapareceu, ele nãosabe o que fazer.

Tirian não conseguia enxergar muito bemos rostos do outro lado da fogueira, mas logoimaginou que quem estava falando só podia serGrifo, o chefe dos anões. E já estava quase certo

____________________________________C.S.Lewis � Crônicas de Nárnia � Vol. VII

163

disso quando, logo a seguir, todos os anõesergueram as vozes em coro:

� Não sabe o que fazer! Não sabe, não sabe,não sabe o que fazer!

� Silêncio! � trovejou Rishda Tarcaã. �Calai a boca, imundos! E vós, os outros narnianos,prestai atenção, antes que eu ordene aos meusguerreiros que partam para cima de vós com o fioda espada. Lorde Manhoso já contou-vos sobreaquele asno maldito. Por acaso pensais que overdadeiro Tashlam não está dentro daqueleestábulo? Pois cuidado, cuidado!

� Que nada! Que nada! � zombava amaioria dos animais.

� Está bem, moreninho, é claro que ele estálá! � disseram os anões. � Vá lá, Mico, mostre-noso que está dentro do estábulo. Queremos ver paracrer!

Depois de um momento de silêncio, omacaco falou:

____________________________________C.S.Lewis � Crônicas de Nárnia � Vol. VII

164

� Vocês, anões, acham que são muitoespertos, não é? Mas vamos com calma. Eu nuncalhes disse que não poderiam ver Tashlam.Qualquer um que queira pode vê-lo.

O auditório inteiro ficou em silêncio.Depois, passado cerca de um minuto, ouviu-se avoz pausada e arrastada de um urso:

� Agora mesmo é que eu não entendo maisnada! Pensei que você tinha dito...

� Você pensou! � interrompeu-o o macaco.� Como se se pudesse chamar de pensamento oque vai nesta sua cabeça! Escutem aqui, vocêstodos. Qualquer um pode ver Tashlam. Mas elenão vai sair do estábulo. Quem quiser vê-lo teráde ir lá dentro.

� Oh, obrigado! Muito obrigado! �exclamaram centenas de vozes. � Era isso o queestávamos esperando. Podemos entrar e vê-lo facea face. Agora ele vai ser bondoso e tudo voltará aoque era antes!

____________________________________C.S.Lewis � Crônicas de Nárnia � Vol. VII

165

Os pássaros começaram a gorjear e os cãeslatiram excitados. De repente, ouviu-se um granderebuliço de criaturas se mexendo, erguendo-sesobre as patas e, em questão de segundos, haviauma verdadeira avalanche de bichos correndo e seamontoando na porta do estábulo. Mas o macacoberrou:

� Para trás! Calma! Para que tanta pressa?Os bichos pararam, muitos deles ainda com

uma pata no ar, outros abanando a cauda e todoscom a cabeça voltada para o lado.

� Pensei que você tinha dito... � começou ourso, mas foi interrompido por Manhoso.

� Qualquer um pode entrar � disse ele. �Mas tem de ser um de cada vez. Quem vai ser oprimeiro? Aliás, ele disse que não está de bomhumor hoje. Desde que devorou aquele malditorei, na noite passada, vive lambendo os beiços.Hoje de manhã não parava de urrar. Eu mesmonão gostaria muito de entrar nesse estábulo hoje ànoite. Mas vocês é que sabem. Vamos lá, quemvai entrar primeiro? Ninguém me culpe se ele

____________________________________C.S.Lewis � Crônicas de Nárnia � Vol. VII

166

devorar alguém de uma vez, ou se o reduzir acinzas com um simples olhar. Problema de vocês.E agora, vamos ao primeiro? Quem será? Que talum de vocês, anões?

� Venham, seus bobos, para a boca do lobo!� cantarolou Grifo, em tom de mofa. � Como éque vamos saber o que vocês esconderam ládentro?

� Hã-hã! � fez o macaco. � Então vocêsestão começando a acreditar que existe algumacoisa lá dentro, hem? Pois bem, um minuto atrásestavam todos fazendo o maior alarido. E agora,perderam a fala? Vamos, quem será o primeiro?

Os bichos, porém, limitaram-se a olhar unspara os outros e, aos poucos, foram se afastandodo estábulo. Agora já quase não se viam maiscaudas abanando. O macaco gingava de um ladopara outro, dando gargalhadas e escarnecendodeles:

� Ah, ah, ah! Pensei que estavam doidinhospara ver Tashlam face a face! Mudaram de idéia,é?

____________________________________C.S.Lewis � Crônicas de Nárnia � Vol. VII

167

Tirian abaixou a cabeça para escutar o queJill tentava cochichar-lhe ao ouvido. �O que vocêacha que há realmente lá dentro?�, perguntou ela.�Quem sabe? Talvez dois calormanos com asespadas desembainhadas, um de cada lado daporta, provavelmente�, respondeu ele. �Não achaque poderia ser... você sabe o quê... aquela coisahorrorosa que nós vimos?�, gaguejou a menina.�O próprio Tash? Ê muito provável... Mas,coragem, minha amiga: todos nós estamos naspatas do verdadeiro Aslam.�

Foi aí que aconteceu o mais inesperado.Numa voz calma e fria, sem demonstrar a mínimaexcitação, o gato Ruivo disse:

� Eu vou, se vocês quiserem...Todas as criaturas voltaram-se para o gato,

encarando-o fixamente. �Pode contar por certo,senhor�, disse Poggin ao rei. �Esse gatodesgraçado faz parte da trama! O que quer queesteja lá dentro, não lhe fará mal algum, eugaranto. Então Ruivo sairá novamente dizendoque viu algo excepcional.�

____________________________________C.S.Lewis � Crônicas de Nárnia � Vol. VII

168

Mas Tirian nem teve tempo de responder,pois o macaco estava chamando o gato para afrente.

� Ora, essa é muito boa! Quer dizer quevocê, seu bichano atrevido, quer vê-lo face aface?! Pois venha, eu lhe abro a porta. Não meculpe se ele lhe arrancar os bigodes da cara. Oproblema é seu.

O gato levantou-se e saiu do meio damultidão, caminhando todo empertigado eafetado, com a cauda bem empinada, sem arrepiarsequer um fio do seu pêlo macio e lustroso.Passou pela fogueira e parou tão perto de Tirianque este, do lugar onde estava, com o ombroencostado na parede de fora do estábulo,conseguiu enxergar direitinho a cara dele. Seusgrandes olhos verdes nem sequer piscavam. (�Quefrieza�, murmurou Eustáquio. �Isso é porque elesabe que não há nada a temer.�) O macaco,mofando e fazendo caretas, saiu arrastando aspatas ao lado do gato; ergueu a mão, levantou atranca e abriu a porta. Tirian teve a impressão de

____________________________________C.S.Lewis � Crônicas de Nárnia � Vol. VII

169

ouvir o gato ronronar enquanto passava pela portaescura.

� Miiiaaaauuuuuu!

O pavoroso miado fez todo mundo pular.Você já deve ter acordado no meio da noite com obarulho de gatos brigando ou fazendo amor notelhado, e bem sabe a gritaria que eles fazem. Poisdessa vez foi muito pior. O gato escapuliu doestábulo numa velocidade tão grande que sechocou violentamente contra o macaco, fazendo-ovirar uma enorme cambalhota. Quem nãosoubesse que era um gato, pensaria que se tratavade um relâmpago avermelhado. Ruivo estatelou-se no chão, no meio da multidão, lá atrás.Ninguém quer topar com um gato numa horadessas. Era bicho correndo para todo lado. Ruivoprecipitou-se contra uma árvore, rodopiou etombou a cabeça. A cauda se eriçou toda, até ficarquase tão grossa quanto o seu próprio corpo. Osolhos pareciam duas bolas de fogo verde, e cadapêlo das suas costas estava totalmente arrepiado.

____________________________________C.S.Lewis � Crônicas de Nárnia � Vol. VII

170

� Eu daria tudo para saber se esse bruto estásó fingindo ou se realmente encontrou algo ládentro que o apavorasse tanto � disse Poggin.

� Silêncio, meu amigo � disse Tirian, poisqueria escutar o que o capitão e o macaco estavamcochichando. A única coisa que conseguiu ouvir,porém, foi o macaco choramingando de novo:�Ai, minha cabeça! Minha cabeça!� Mas teve aimpressão de que aqueles dois estavam tãodesconcertados quanto ele com o comportamentodo gato.

� Agora, Ruivo, chega de barulho � disse ocapitão. � Conta a eles o que viste lá dentro.

� Ah, ah, ahu! Aaaaiiiiu! � guinchava ogato.

� És ou não és um gato falante? �perguntou o capitão. � Então pára com essabarulheira e fala de uma vez.

Foi então que algo terrível aconteceu.Tirian tinha quase certeza (e os outros também) deque o gato estava tentando dizer alguma coisa,

____________________________________C.S.Lewis � Crônicas de Nárnia � Vol. VII

171

mas nada saía de sua boca, a não ser o barulhocomum e feio que emitiria qualquer bichano bravoou assustado no fundo de qualquer quintal. Equanto mais ele miava, menos se parecia com umanimal falante. Os outros animais romperam emapreensivos lamentos e guinchinhos agudos.

� Vejam! Vejam! � ouviu-se a voz dourso. � Ele não consegue falar! Esqueceu como éque se fala! Voltou a ser um animal mudo. Vejama cara dele!

Todo mundo viu que era verdade. Então umprofundo pavor apoderou-se de todos aquelesnarnianos. Todos haviam aprendido desdepequeninos que, no começo do mundo, Aslamtransformara os bichos de Nárnia em animaisfalantes, advertindo-os de que, caso se portassemmal algum dia, voltariam a ser como antes, iguaisaos animais irracionais de qualquer outro mundo.�E agora está acontecendo conosco�,lamentavam-se.

� Misericórdia! Misericórdia! � implorarameles. � Lorde Manhoso, tenha piedade de nós!

____________________________________C.S.Lewis � Crônicas de Nárnia � Vol. VII

172

Seja o mediador entre nós e Aslam e fale-lhesempre em nosso favor. Nós não ousamos!

Ruivo desapareceu entre as árvores e nuncamais foi visto por ninguém.

Tirian continuava com a mão no punho daespada e de cabeça baixa. Estava estupefato comos horrores que vira naquela noite. Às vezes,pensava que o melhor seria sacar a espada de umavez e avançar contra os calormanos. Mas, emseguida, ponderava que seria mais prudenteesperar para ver o que mais poderia acontecer. E,de fato, algo novo ocorreu logo depois.

� Meu pai � falou alguém numa voz clara eressonante, vinda do lado esquerdo da multidão.Tirian viu logo que quem falava era umcalormano, pois no exército do Tisroc os soldadoscomuns chamam os oficiais de �meu mestre�, e osoficiais chamam os seus superiores de �meu pai�.Jill e Eustáquio não sabiam disso mas, depois deolhar para um lado e para outro, conseguiram verquem estava falando, pois naturalmente era bemmais fácil enxergar quem estava dos lados do que

____________________________________C.S.Lewis � Crônicas de Nárnia � Vol. VII

173

quem estava no meio, onde o brilho da fogueirafazia com que todos parecessem mais escuros. Eraum homem jovem, alto, esbelto e até bonito paraos padrões calormanos.

� Meu pai � disse ele ao capitão. � Eutambém quero entrar no estábulo.

� Fica quieto, Emeth � respondeu o capitão.�Quem te chamou aqui? Como é que um fedelhocomo tu ousa falar?

� Meu pai � disse o jovem �, é bem verdadeque eu sou mais jovem do que tu. Tenho, noentanto, sangue de tarcaã, assim como tu, e souigualmente servo de Tash. Portanto...

� Silêncio! � berrou Rishda Tarcaã. � Nãosou eu porventura o capitão? Tu nada tens a vercom este estábulo. Ele é para os narnianos.

� Nada disso, meu pai � replicou Emeth. �Tu disseste que o Aslam deles e o nosso Tash sãoum só. E, se isso é verdade, então é o próprioTash quem está ali dentro. Portanto, por que dizesque nada tenho a ver com ele? Eu,

____________________________________C.S.Lewis � Crônicas de Nárnia � Vol. VII

174

prazerosamente, morreria mil mortes só parapoder ver uma única vez a face de Tash.

� És um grande tolo e nada entendes � disseRishda Tarcaã. � Isso é uma coisa muito séria.

O rosto de Emeth tornou-se ainda maisgrave.

� Então não é verdade que Tash e Aslamsão um só? Quer dizer que o macaco mentiu paranós?

� É claro que os dois são um só! � interveioo macaco.

� Jura, macaco � falou Emeth.

� Oh, céus! � soluçou Manhoso. � Por queé que vocês não param de me importunar? Estoumorrendo de dor de cabeça! Está bem, eu juro, eujuro.

� Neste caso, meu pai � disse Emeth �,estou definitivamente decidido a entrar.

____________________________________C.S.Lewis � Crônicas de Nárnia � Vol. VII

175

� Idiota... � começou a dizer Rishda, masfoi interrompido pelos anões, que começaram aberrar de uma vez:

� Vamos lá, moreno! Por que não deixa eleentrar?

Por que os narnianos podem entrar e a suagente tem de ficar de fora? O que é que tem ládentro que você não quer que seus próprioshomens encontrem?

Tirian e seus amigos só conseguiam ver ascostas de Rishda, por isso não tinham a menoridéia de qual era a expressão do seu rosto quandosacudiu os ombros, dizendo: �Sejam todostestemunhas de que não sou culpado do sanguedeste jovem tolo. Vá lá, menino imprudente,entra. E depressa!�

Então, da mesma forma que Ruivo, Emethsaiu andando em direção ao gramado queseparava a fogueira do estábulo. Tinha os olhosbrilhantes, o rosto solene, a mão pousada nopunho da espada e a cabeça erguida. Jill quase

____________________________________C.S.Lewis � Crônicas de Nárnia � Vol. VII

176

chorou ao olhar para o rosto dele. Preciososussurrou ao ouvido do rei:

� Pela Juba do Leão! Eu quase chego aamar este jovem guerreiro calormano. Ele é dignode um deus melhor do que Tash.

� Eu realmente gostaria de saber o queexiste lá dentro � disse Eustáquio.

Emeth abriu a porta e penetrou na bocanegra do estábulo, fechando a porta atrás de si.Passaram-se apenas alguns minutos (mas pareceumuito mais) antes que a porta se abrissenovamente. Uma figura trajada com armaduracalormana cambaleou para fora, caindopesadamente ao chão; a porta fechou-se às suascostas. O capitão correu até ele e abaixou-se paraver-lhe o rosto. Fez um gesto de surpresa e,recuperando-se do susto, voltou-se para amultidão, exclamando:

� Este jovem precipitado ganhou o quequeria. Olhou para Tash e agora está morto. Queisto sirva de aviso para todos vocês.

____________________________________C.S.Lewis � Crônicas de Nárnia � Vol. VII

177

� Está bem, está bem! � disseram os pobresbichos.

Tirian e seus amigos, porém, olharamestarrecidos para o calormano morto e depois umpara o outro. Já que estavam tão perto, podiam vero que a multidão, de muito longe e do lado de ládo fogo, não podia enxergar: o homem que alijazia morto não era Emeth. Era um homemcompletamente diferente: mais velho, maiscorpulento, não tão alto e com uma barba enorme.

� Eh, eh, eh! � cacarejava Manhoso. �Alguém mais? Quem mais deseja entrar? Bem, jáque são tão tímidos, vou escolher o próximo. Ah,já sei! Você, javali. Venha cá. Calormanos,tragam-no aqui. Ele vai ver Tashlam face a face.

� Grrrunfu! � grunhiu o javali, erguendo-sepesadamente. � Venham, se é que têm coragem!Venham sentir o gostinho das minhas presas!

Ao ver o corajoso animal aprontando-separa lutar em defesa de sua vida, e os soldadoscalormanos aproximando-se dele com ascimitarras desembainhadas, sem que ninguém

____________________________________C.S.Lewis � Crônicas de Nárnia � Vol. VII

178

viesse em seu auxílio, alguma coisa ferveu dentrode Tirian. Já não lhe importava mais se esse eraou não o momento apropriado para intervir.

� Sacar a espada! � sussurrou baixinho paraos outros. � Aprontar o arco! Avançar!

Logo a seguir os atônitos narnianos viramsete figuras saltarem para a frente do estábulo,quatro delas com armaduras brilhantes. A espadado rei lampejou à luz da fogueira quando ele abrandiu acima da cabeça, exclamando em altavoz:

� Aqui estou eu, Tirian de Nárnia, em nomede Aslam, a fim de provar com o meu própriocorpo que Tash é um espírito imundo, o macacoum grande traidor e esses calormanos dignos demorte! Quem for narniano de verdade que fiquedo meu lado. Ou vão esperar até que os seusnovos senhores os matem todos, um por um?

____________________________________C.S.Lewis � Crônicas de Nárnia � Vol. VII

179

11

ACELERA-SE O PASSO

Rápido como um relâmpago, Rishda Tarcaãdeu um pulo para trás, colocando-se fora doalcance da espada do rei. Ele não era um covardee poderia até lutar com uma só mão contra Tiriane o anão, se preciso fosse. Mas enfrentar tambéma águia e o unicórnio era demais para ele. Rishdasabia muito bem que as águias podem voar contrao rosto das pessoas, dando-lhes bicadas nos olhose cegando-as com as asas. E seu próprio pai (quejá enfrentara os narnianos em batalha) lhe disseraque homem nenhum é capaz de resistir a umunicórnio, a não ser com flechas ou uma lançabem comprida, pois este se empina sobre as patastraseiras e se atira de corpo inteiro para cima dagente, de tal forma que é preciso lidar com oscascos, o chifre e os dentes ao mesmo tempo.

____________________________________C.S.Lewis � Crônicas de Nárnia � Vol. VII

180

Assim, o capitão precipitou-se para a multidão,berrando:

� Segui-me, guerreiros do Tisroc (que eleviva para sempre!)! Segui-me, todos os narnianosleais, ou a ira de Tashlam cairá sobre todos vós!

Enquanto isso, duas outras coisasaconteciam. O macaco não se dera conta, tãorápido quanto o tarcaã, do perigo que corria.Durante cerca de um minuto permaneceuagachado ao lado da fogueira, olhando estupefatopara os recém-chegados. Então Tirian lançou-seem direção à criatura, agarrou-a pela nuca e partiucomo um raio para o estábulo, gritando: �Abram aporta!� Poggin obedeceu.

� Vá lá e beba do seu próprio remédio,Manhoso! � disse Tirian, arremessando o macacocontra a escuridão.

Assim que o anão fechou a porta de novo,uma ofuscante luz azul-esverdeada resplandeceudo lado de dentro do estábulo, a terra tremeu eouviu-se um estranho ruído � um cacarejarestridente como se fosse a voz rouca de algum

____________________________________C.S.Lewis � Crônicas de Nárnia � Vol. VII

181

pássaro monstruoso. Os bichos começaram asoluçar e uivar, implorando em alta voz:�Tashlam! Por favor, escondam-nos!�

Muitos caíram no chão e outros esconderama cara entre as asas ou as patas. Ninguém, a nãoser a águia Sagaz, cuja visão é melhor que a dequalquer outra criatura, viu o rosto de RishdaTarcaã naquele momento. E, pelo que viu, a águiapercebeu na hora que Rishda estava tão surpreso equase tão apavorado quanto qualquer um deles.�Eis aí alguém que invocou deuses em que nãocrê�, pensou a águia. �E agora, se eles vieremmesmo, o que ele vai fazer?�

A terceira coisa (que também aconteceu aomesmo tempo) foi a única realmente bonitadaquela noite. Todos os cães falantes que estavamno meio da multidão (havia uns quinze deles)vieram saltando e latindo alegremente para o ladodo rei. A maioria deles eram cães enormes,corpulentos e de mandíbulas ferozes. Sua chegadafoi como o rebentar de uma grande onda na beirada praia: quase derruba a gente no chão. Pois,

____________________________________C.S.Lewis � Crônicas de Nárnia � Vol. VII

182

embora falantes, todos eram tão �cães� comoqualquer outro: levantaram-se, colocando as patasdianteiras nos ombros dos humanos, e lamberam-lhes os rostos. E disseram, todos ao mesmotempo: �Bem-vindos, pessoal-al-al! Contemconosco, já, já, já! Digam: qual é o nossotrabalho? Qual, qual, qual?�

Foi uma cena tão emocionante que davavontade de chorar. Finalmente alguma coisa saíacomo eles queriam. Quando, pouco depois, váriosanimaizinhos (ratos, toupeiras, esquilos e outros)se aproximaram com seus passinhos miúdos,tagarelando alegremente e dizendo: �Aqui! Aqui!Tem mais gente aqui!�, e quando, depois disso,chegaram também o urso e o javali, Eustáquiocomeçou a acreditar que, afinal de contas, tudopoderia acabar dando certo. Tirian, porém, deuuma olhadela ao redor e constatou que, do grupointeiro, eram realmente bem poucos os animaisque haviam atendido ao seu apelo.

____________________________________C.S.Lewis � Crônicas de Nárnia � Vol. VII

183

� Venham! Venham comigo! � chamou denovo. �Será que, depois que deixei de ser o seurei, vocês todos ficaram covardes?

� Não temos coragem! � soluçavamdezenas de vozes. � Tashlam pode enfurecer-seconosco. Livre-nos da ira de Tashlam!

� Onde estão todos os cavalos falantes? �perguntou Tirian ao javali.

� Nós sabemos! Nós sabemos! �guincharam os ratos. � O macaco colocou-os paratrabalhar. Estão todos presos, lá no fundo do vale.

� Então, meus amigos miudinhos, escutemaqui: todo mundo que sabe mordiscar, oscomedores de nozes e todos os roedores, corram omais rápido que puderem até onde estão oscavalos e perguntem se estão do nosso lado. Sedisserem que sim, metam os dentes nas cordas eroam até libertá-los, e tragam-nos imediatamentepara cá.

� Com todo o prazer, senhor � disseram asvozinhas. E, num abrir e fechar de olhos, lá se

____________________________________C.S.Lewis � Crônicas de Nárnia � Vol. VII

184

foram aqueles bichinhos de olhos aguçados edentes afiados. Tirian sorriu, amoroso, ao versumir num instante aquele monte de rabinhosempinados. Agora, porém, era preciso pensar emoutras coisas. Rishda Tarcaã já estava dando suasordens.

� Vamos! � dizia ele. � Peguem todos(vivos, se possível) e atirem-nos dentro doestábulo... Ou então encurralem todos para lá.Quando estiverem lá dentro, vamos atiçar fogo noestábulo e oferecê-los em sacrifício ao grandedeus Tash!

� Ah! � disse Sagaz consigo mesmo. �Então é assim que ele espera ganhar o perdão deTash pela sua descrença? !

A linha inimiga (cerca de metade das forçasde Rishda) já começava a avançar, e Tirian maltivera tempo de dar suas ordens.

� Jill, vá para a esquerda e tente atingirtodos quantos puder antes que nos ataquem. Você,urso, e você, javali, fiquem perto dela. Poggin,fique aqui à minha esquerda, e você, Eustáquio, à

____________________________________C.S.Lewis � Crônicas de Nárnia � Vol. VII

185

minha direita. Precioso, guarde a ala da direita.Fique ao lado dele, Confuso, e use os cascos. Evocê, Sagaz, fique planando e ataque por cima.Cães, fiquem atrás de nós e, assim que começar ojogo das espadas, entrem no meio deles e ataquempara valer. Que Aslam nos ajude!

O coração de Eustáquio só faltava sair pelaboca; ele torcia para que, na hora H, não lhefaltasse coragem. Embora já tivesse visto umdragão e uma serpente do mar, nunca nada lhedera tanto frio na barriga quanto aquela fileira dehomens de rosto escuro e olhos brilhantes. Haviauns quinze calormanos, além de um touro falantede Nárnia, a raposa Ladina e o sátiro Brigão. Derepente ele escutou um zunido à sua esquerda eum calormano caiu no chão. Logo a seguir, umnovo zunido, e desta vez foi o sátiro quemtombou.

� Muito bem, irmãzinha! Bravo! � gritouTirian. E então o inimigo avançou contra eles.

Eustáquio nunca soube dizer o que sepassou nos dois minutos seguintes. Foi tudo como

____________________________________C.S.Lewis � Crônicas de Nárnia � Vol. VII

186

um pesadelo (daqueles que a gente tem quandoestá queimando de febre), até que ele escutou avoz de Rishda Tarcaã gritando lá longe:

� Recuem! Voltem aqui e formem fila denovo! Aos poucos, Eustáquio foi recuperando ossentidos e viu os calormanos disparando de voltapara perto dos companheiros. Mas nem todos.Dois deles estavam mortos, um traspassado pelocorno de Precioso e o outro pela espada de Tirian.A raposa jazia morta aos pés de Eustáquio, semque este soubesse dizer ao certo se fora ele ou nãoquem a matara. O touro também estava morto,com uma flecha de Jill espetada num olho e umlado estraçalhado pelas presas do javali.

Do lado de cá, no entanto, também haviaperdas. Três cães estavam mortos e um quartovinha mais atrás, ganindo e manquejando sobretrês pernas. O urso jazia no chão, malconseguindo se mover. Na sua voz rouca,murmurou aturdido diante do fim: �Eu... eu não...compreendo...�; pousou a enorme cabeça sobre a

____________________________________C.S.Lewis � Crônicas de Nárnia � Vol. VII

187

grama, tão suavemente quanto uma criança queadormece, e nunca mais se mexeu.

De fato, o primeiro ataque havia falhado.Eustáquio nem parecia alegrar-se com isso, poisestava com uma sede terrível e seu braço doíamuito.

À medida que os calormanos derrotadosvoltavam para perto do seu comandante, os anõescomeçaram a zombar deles:

� E então, morenos, estão satisfeitos? �debochavam, em coro. � Não gostaram, não é?Por que é que o seu poderoso tarcaã não vem lutarele mesmo, em vez de empurrar vocês para amorte? Pobres morenos!

� Anões! � esbravejou Tirian. � Venhampara cá e usem as espadas em vez da língua!Ainda é tempo! Anões de Nárnia, sei que vocêssabem lutar muito bem! Onde está a sua lealdade?

� Bah! � escarneciam os anões. � Nempense nisso! Vocês são tão embusteiros quanto

____________________________________C.S.Lewis � Crônicas de Nárnia � Vol. VII

188

essa outra cambada! Não queremos rei nenhum.Vivam os anões! Buuuuuu!

Nesse instante, os tambores começaram:não o tamborilar típico dos anões, mas um grandee surdo rufar de tambores calormanos, que ascrianças detestaram logo de saída: bum! bum!bum-bum-bum!!! E o teriam detestado muito maisse soubessem o seu significado. Tirian sabia.Significava que, em algum lugar nos arredores,havia outras tropas calormanas e que RishdaTarcaã as chamava em seu auxílio. Tirian ePrecioso se entreolharam, desanimados. Já tinhamalguma esperança de sair vencedores naquelanoite. Agora, porém, se chegassem reforços para oinimigo, seria o seu fim.

O rei olhou à sua volta, desesperado. Váriosnarnianos estavam do lado dos calormanos, fossepor traição ou por terem realmente medo deTashlam. Outros limitavam-se a observar quietos,pasmos, sem se decidir por nenhum dos lados. Osanimais, entretanto, já eram bem menos: o grupo

____________________________________C.S.Lewis � Crônicas de Nárnia � Vol. VII

189

era muito menor. Muitos, aliás, haviam escapulidode mansinho durante o combate.

Bum! bum! bum-bum-bum!!!, ouvia-se oapavorante rufar dos tambores. De repente, umbarulho diferente começou a misturar-se ao dostambores.

� Escutem! � disse Precioso, e logoacrescentou: � Vejam!

Um minuto mais tarde já não havia maisdúvidas quanto ao que se passava. Com umestrondo de cascos, as cabeças altivamenteatiradas para trás, as ventas dilatadas e as crinasagitadas ao vento, um verdadeiro batalhão decavalos falantes de Nárnia disparava colina acima.Os roedores haviam cumprido sua missão.

Poggin e as crianças abriram a boca parasaudá-los, mas a saudação nem lhes chegou aoslábios. De repente o ar se encheu do som de arcoszunindo e de flechas sibilando. Eram os anões queatiravam � e (no primeiro instante, Jill mal podiaacreditar nos próprios olhos), o que é pior,atiravam contra os cavalos. Os anões são

____________________________________C.S.Lewis � Crônicas de Nárnia � Vol. VII

190

arqueiros mortais. Um após outro, os cavalosforam rolando ao chão. Nem um sequer daquelesnobres animais chegou a alcançar o rei.

� Porquinhos miseráveis! � estourouEustáquio, tremendo de raiva. � Gentinha imunda,nojenta, brutinhos traidores!

� Senhor, quer que eu corra atrás daquelesanões e espete uns dez de cada vez com o meuchifre? � disse Precioso, fora de si.

O rei, porém, cujo rosto estava rígido comouma rocha, respondeu:

� Calma, Precioso! E você, minha querida(referia-se a Jill), se vai mesmo chorar, vire orosto para o lado e cuide para não molhar a cordado arco. Você, Eustáquio, controle-se e não fiqueaí xingando feito um moleque de rua! Umguerreiro nunca diz palavrões. Palavras corteses egolpes duros são sua única linguagem.

Entrementes, os anões começaram adebochar de Eustáquio:

____________________________________C.S.Lewis � Crônicas de Nárnia � Vol. VII

191

� Pegamos você de surpresa, não foi,garotinho? Pensava que estávamos do seu lado,hein? Nem se iluda! Não queremos saber decavalos falantes! Para nós tanto faz ganharemvocês ou a outra corja. Vocês não nos enganam!Vivam os anões!

Rishda Tarcaã continuava parado,conversando com seus homens, provavelmentecombinando tudo para o próximo ataque e, quemsabe, lamentando não ter mandado a tropa inteiralogo da primeira vez. Os tambores continuavam arufar. Então, para o seu desespero, Tirian e osamigos escutaram, bem fraquinho, como se viessede muito longe, um rufar de tambores emresposta. Uma outra turma de calormanos captarao pedido de socorro de Rishda e estava vindo emseu auxílio. O rosto de Tirian, porém, não deixavaentrever o mínimo sinal de que houvesse perdidoas esperanças.

� Escutem � disse ele, com uma voz dequem não está muito preocupado �, é melhor

____________________________________C.S.Lewis � Crônicas de Nárnia � Vol. VII

192

atacarmos agora, antes que esses canalhasrecebam reforços de seus amigos.

� Senhor � disse Poggin �, é bom levarmosem consideração que, aqui, temos às nossas costasa parede do estábulo. Não acha que, seavançarmos, eles tentarão nos rodear, separando-nos uns dos outros com as suas lanças?

� Concordo, anão � respondeu Tirian. �Mas não acha que é justamente isso que elesquerem, encurralar-nos para entrarmos noestábulo? Quanto mais longe ficarmos daquelaporta maldita, melhor.

� O rei tem razão � disse Sagaz. � Paralonge desse maldito estábulo e seja lá o que forque está lá dentro... E a todo custo!

� Isso mesmo � disse Eustáquio. � Só deolhar para ele, já fico com raiva.

� Bom � falou Tirian. � Agora olhem láadiante, à nossa esquerda. Estão vendo aquelerochedo bem grande que, à luz da fogueira, parecebranco como mármore? Pois bem. Em primeiro

____________________________________C.S.Lewis � Crônicas de Nárnia � Vol. VII

193

lugar vamos cair em cima daqueles calormanos.Você, senhorita, fique sempre à nossa esquerda eatire o mais rápido que puder contra as fileirasinimigas. Você, Sagaz, voe direto contra os rostosdeles, pela direita. Enquanto isso, atacaremos.Quando estivermos tão perto deles que não dermais para você atirar, Jill, pelo risco de nosatingir, volte correndo para o rochedo branco eespere lá. Quanto aos outros, mantenham-sealertas, mesmo enquanto estiverem lutando.Temos de dar um jeito neles em poucos minutosou então nada feito, pois somos bem menos.Assim que eu gritar �Recuar!�, corram aoencontro de Jill no rochedo branco. Assimteremos proteção à nossa retaguarda e poderemosrespirar um pouco. Agora, Jill, vá!

Sentindo-se terrivelmente só, a menina saiucorrendo, afastou-se uns seis metros e colocou aperna direita para trás e a esquerda para a frente,ajustando uma flecha no arco. Bem que elagostaria que suas mãos não tremessem tanto... �Láse vai um tiro perdido!�, pensou ela, quando aprimeira flecha passou raspando sobre as cabeças

____________________________________C.S.Lewis � Crônicas de Nárnia � Vol. VII

194

dos inimigos. Em um segundo, porém, já haviaoutra flecha no arco: ela sabia muito bem que,naquele momento, o importante era a rapidez.Avistou alguma coisa grande e preta arremetendocontra os rostos dos calormanos: era Sagaz.Primeiro um homem, depois mais um, deixou caira espada, levantando as mãos para defender osolhos. Então uma das flechas de Jill atingiu umdeles e uma outra atingiu um lobo narniano que,ao que parecia, juntara-se ao inimigo. Contudo,apenas alguns minutos após ter começado adisparar, ela teve de parar. Com um flamejar deespadas e o brilho das presas do javali e do cornode Precioso, e entre o ruidoso latido dos cães,Tirian e sua turma avançaram contra o inimigo,como se fossem corredores disputando umacorrida de cem metros.

Jill surpreendeu-se com a falta de preparodemonstrada pelos calormanos. Nem se deu contade que isso era fruto do trabalho feito por ela epela águia. Não é nada fácil continuar olhandoatentamente para a frente quando se está sendo

____________________________________C.S.Lewis � Crônicas de Nárnia � Vol. VII

195

atacado por flechas no rosto, de um lado, e porbicadas de uma águia, do outro.

� Isso! Bem feito! Bem feito! � gritava Jill.

A turma do rei avançava direto para o meiodo campo inimigo. O unicórnio atirava homenspara todo lado, como quem atira feno com umforcado. Até mesmo Eustáquio (pensava Jill, que,para dizer a verdade, não entendia lá muito bemde esgrima) parecia estar lutando de maneirabrilhante. Os cães investiam contra a garganta doscalormanos. Estava dando tudo certo! Finalmente,estavam vencendo.

Com um profundo calafrio, Jill percebeualgo estranho: embora a cada golpe de espada dosnarnianos tombassem novos calormanos, pareciaque estes nunca diminuíam. De fato, agora jáhavia muito mais calormanos do que no início dabatalha. E a cada segundo apareciam mais. Estessurgiam de todas as direções: eram novoscalormanos, desta vez portando lanças. Haviatantos que ela mal conseguia enxergar seus

____________________________________C.S.Lewis � Crônicas de Nárnia � Vol. VII

196

próprios amigos. Foi então que ouviu Tiriangritar:

� Recuem! Corram para o rochedo!O inimigo recebera reforços. Os tambores

haviam cumprido sua missão.

____________________________________C.S.Lewis � Crônicas de Nárnia � Vol. VII

197

12

PELA PORTA DOESTÁBULO

Já era para Jill ter-se escondido atrás dorochedo branco. No entanto, com a excitação deassistir ao combate, esquecera completamenteesse detalhe das instruções recebidas. De repenteela se lembrou. Deu meia-volta e desatou a correr,chegando ao rochedo apenas uns segundos antesdos outros. Então, por uma questão de instantes,aconteceu de todos eles estarem de costas para oinimigo. E, ao atingirem o rochedo, todosvoltaram-se de uma vez, ainda a tempo de assistira uma cena terrível e inesperada.

Um calormano ia correndo na direção doestábulo, carregando alguma coisa que chutava ese debatia desesperadamente. Quando passouentre eles e a fogueira, conseguiram divisar

____________________________________C.S.Lewis � Crônicas de Nárnia � Vol. VII

198

claramente a forma do homem e o que elecarregava: era Eustáquio!

Tirian e o unicórnio saíram em disparada afim de libertá-lo. O calormano, porém, já estavamais perto da porta do que eles. Assim, antes querecobrassem metade da distância, o soldado jáhavia atirado Eustáquio lá dentro, batendo a portaàs suas costas. Atrás dele já vinham correndo unsseis outros calormanos, que formaram umabarreira no espaço aberto na frente do estábulo.Agora não havia mais chance de chegar lá.

Mesmo naquela hora, Jill lembrou-se demanter o rosto voltado para o lado, bem afastadodo arco. �Ainda que eu não consiga parar dechorar, não vou molhar o arco!�, disse ela.

� Cuidado com as flechas! � gritousubitamente Poggin.

Todos abaixaram rapidamente a cabeça,puxando bem o elmo sobre o nariz. Os cãessaíram rastejando na direção de onde vinham asflechas. Entretanto, embora algumas tivessempassando raspando por eles, logo perceberam que

____________________________________C.S.Lewis � Crônicas de Nárnia � Vol. VII

199

o alvo era outro. Grifo e sua turma entravamnovamente em ação; só que, desta vez, atiravamfriamente contra os calormanos.

� Vamos lá, garotos! � gritava Grifo. �Todo mundo junto! E com cuidado! Chega demorenos por aqui! Abaixo os macacos, os reis eos leões! Vivam os anões!

Pode-se dizer o que quiser sobre os anões,mas não que são covardes. Eles bem quepoderiam ter-se safado para algum lugar seguro.No entanto, preferiram ficar e matar quantospudessem dos dois lados, exceto quando amboseram amáveis o suficiente para matar uns aosoutros, poupando-lhes trabalho. Os anões queriamNárnia só para eles.

O que eles provavelmente não levaram emconsideração era que os calormanos estavamprotegidos por cotas de malha, enquanto oscavalos não tinham proteção alguma. Além disso,os calormanos tinham um líder. A voz de RishdaTarcaã ressoou do lado de lá:

____________________________________C.S.Lewis � Crônicas de Nárnia � Vol. VII

200

� Trinta de vocês fiquem de olho naquelestolos lá perto do rochedo branco. Os outrosvenham comigo, que eu quero ensinar uma lição aesses vermezinhos!

Tirian e seus amigos, ainda arquejando daluta e gratos por aqueles poucos minutos dedescanso, ficaram parados, olhando, enquanto otarcaã e seus comandados investiam contra osanões.

A cena era um tanto estranha. A fogueira,quase apagada, pouco iluminava, produzindoapenas um clarão avermelhado. Até onde se podiaver, a clareira das reuniões estava agora vazia, àexceção dos anões e dos calormanos. Com aquelaluz, quase não dava para ver o que se passava.Pelo barulho, parecia que os anões estavamempenhados numa boa luta. Tirian conseguiadistinguir a voz de Grifo soltando palavrões e, devez em quando, a do tarcaã gritando: �Peguemtodos quantos puderem, vivos! Quero eles vivos!�Mas a luta não durou muito tempo. Todos osruídos desvaneceram. Então Jill viu o tarcaã voltar

____________________________________C.S.Lewis � Crônicas de Nárnia � Vol. VII

201

para o estábulo, seguido de onze homensarrastando onze anões amarrados. (Se os outroshaviam sido mortos ou se alguns conseguiramfugir, nunca se soube.)

� Joguem-nos no santuário de Tash! �ordenou Rishda.

Os onze anões, um após o outro, foramatirados porta adentro no meio da escuridão, aoschutes e pontapés. Após fechar novamente aporta, o tarcaã fez uma reverência na direção doestábulo, dizendo:

� Ó grande Tash! Estes também são paraser queimados em vossa homenagem!

E todos os calormanos, fazendo um grandebarulho com suas espadas, gritaram exclamando:�Tash! Tash! Grande Tash! Inexorável Tash!�(Agora já não havia mais nenhum sentido em falarem Tashlam.)

O grupinho do rochedo branco assistia atudo aquilo entre cochichos. Eles haviamencontrado um filete de água que descia pela

____________________________________C.S.Lewis � Crônicas de Nárnia � Vol. VII

202

rocha e todos beberam sofregamente: Jill, Poggine o rei beberam com as mãos, ao passo que osanimais lamberam da poça que se formava ao péda pedra. Estavam com tanta sede que aquela lhespareceu a bebida mais deliciosa de toda a suavida. E beberam com tanta alegria que nãoconseguiam pensar em mais nada naquelemomento.

� Tenho a forte impressão de que, antes doamanhecer, todos nós passaremos por aquelaporta, um a um � disse Poggin. � E pela minhacabeça passam mil tipos de mortes que eupreferiria a essa...

� De fato, é uma porta repugnante �observou Tirian. � Parece até uma boca.

� Oh! � disse Jill, com voz trêmula. � Nãohá nada que a gente possa fazer para evitar isso?

� Não, minha querida � respondeuPrecioso, acariciando-a gentilmente com ofocinho. � Para nós, aquela porta pode muito bemser a passagem para a terra de Aslam. E quemsabe até possamos cear à mesa dele hoje à noite...

____________________________________C.S.Lewis � Crônicas de Nárnia � Vol. VII

203

Rishda Tarcaã voltou as costas para oestábulo, encaminhando-se lentamente para umponto em frente ao rochedo branco.

� Prestai atenção � disse ele. � Se o javali,os cães e o unicórnio vierem até aqui e serenderem à minha misericórdia, suas vidas serãopoupadas. O javali irá para uma jaula nos jardinsdo Tisroc. Os cães irão para os canis de Tashbaan.E o unicórnio, depois que eu lhe arrancar o chifre,puxará uma carroça. Agora, a águia, as crianças eaquele que foi um dia o rei de Nárnia, estes serãooferecidos a Tash hoje à noite.

A única resposta foram uns grunhidos.� Avante, guerreiros � ordenou então o

tarcaã. � Matai os animais; os humanos, porém, euquero vivos.

Foi aí, então, que se iniciou a última batalhado último rei de Nárnia.

O que lhe tirava a esperança, sem falar nonúmero desigual de combatentes, eram as lanças.Os calormanos que haviam estado com Manhoso

____________________________________C.S.Lewis � Crônicas de Nárnia � Vol. VII

204

quase desde o comecinho não possuíam lanças,pois tinham vindo para Nárnia sozinhos ou emduplas, fingindo ser pacíficos mercadores; porisso, naturalmente, não poderiam trazer lanças,pois uma lança não se pode esconder tãofacilmente. Esses outros deveriam ter vindo maistarde, depois que o macaco já se havia fortalecido,e por isso podiam marchar abertamente. Adiferença estava toda nas lanças. Com uma lançacomprida pode-se matar um javali antes que seesteja ao alcance de suas presas, ou matar umunicórnio antes que ele nos atinja com o chifre �isso se a pessoa for muito ágil e atenta. Agoraaquelas lanças afiadas vinham se aproximando deTirian e de seus últimos amigos. Em questão desegundos já estavam lutando para defender suasvidas.

Num certo sentido, até que não foi tão ruimcomo se poderia imaginar. Quando se está dandoo máximo de cada músculo � ora se esquivandopor baixo da ponta de uma lança, ora saltando porcima, arremetendo daqui, desviando-se de lá,dando guinadas e rasteiras �, não se tem muito

____________________________________C.S.Lewis � Crônicas de Nárnia � Vol. VII

205

tempo para sentir tristeza ou cansaço. Tirian sabiaque, agora, nada podia fazer pelos outros: estavamtodos igualmente condenados. Viu vagamente ojavali tombar ao seu lado e Precioso lutandofuriosamente do outro lado. Por um canto do olhoviu, de relance, um enorme calormano arrastandoJill pelos cabelos para algum canto. Agora,porém, mal dava para pensar nisso: seu únicopensamento era vender a própria vida o mais caropossível. O pior de tudo era que não estavaconseguindo manter a posição na qual iniciara,por detrás do rochedo branco. Quando um homemestá enfrentando uma dúzia de inimigos ao mesmotempo, deve aproveitar as mínimas chances: temde golpear onde quer que aviste um peito ou umpescoço inimigo desprotegido. Às vezes sãonecessários apenas alguns golpes para nos afastardo ponto inicial. Tirian logo descobriu que estavadesviando-se cada vez mais para a direita,aproximando-se do estábulo. Alguma coisa lhedizia que havia uma boa razão para manter-selonge daquele lugar. Mas, no momento, não podia

____________________________________C.S.Lewis � Crônicas de Nárnia � Vol. VII

206

lembrar que razão era essa. E, de qualquer forma,nem dava mais para evitar.

De repente, tudo se tornou completamenteclaro. Deu-se conta de que estava lutando contra opróprio tarcaã. A fogueira (aliás, o que restavadela) estava bem à sua frente. De fato,encontrava-se bem na entrada do estábulo, poiseste fora aberto e dois calormanos seguravam aporta, prontinhos para batê-la às costas de Tirianassim que ele estivesse lá dentro. Agora selembrava de tudo; e aí percebeu que, desde ocomeço da luta, o inimigo vinha tentandoencurralá-lo para dentro do estábulo. Tudo issoele pensava enquanto lutava contra o tarcaã, comtodas as forças possíveis.

Então ocorreu-lhe uma nova idéia.Deixando cair a espada, atirou-se para a frentecom uma guinada, evitando assim o golpe dacimitarra do tarcaã, e atracou-se à cintura doinimigo com as duas mãos; depois deu um pulopara dentro do estábulo, gritando:

____________________________________C.S.Lewis � Crônicas de Nárnia � Vol. VII

207

� Vamos! Venha você mesmo ao encontrode Tash!

Ouviu-se um barulho ensurdecedor. Assimcomo quando o macaco fora atirado lá paradentro, a terra estremeceu e uma luz ofuscantebrilhou.

Os soldados calormanos que estavam deguarda guincharam: �Tash! Tash!�, e bateram aporta. Se Tash queria o seu capitão, ele que otivesse agora. Eles é que não queriam nemconversa com Tash.

Tirian ficou um instante sem saber direitoonde estava, nem tampouco quem ele era. Então,passados alguns segundos, se recompôs:endireitou-se, piscou os olhos e olhou ao redor.Dentro do estábulo não era escuro comoimaginava. Ao contrário, havia uma luzfortíssima: por isso é que estava piscando osolhos. Voltou-se, tentando olhar para RishdaTarcaã; mas Rishda não estava olhando para ele.O capitão deu um longo gemido, apontando paraalguma coisa; depois cobriu o rosto com as mãos

____________________________________C.S.Lewis � Crônicas de Nárnia � Vol. VII

208

e caiu pesadamente no chão. Tirian olhou nadireção que ele havia apontado e entãocompreendeu.

Uma figura terrível vinha vindo na direçãodeles. Era muito menor do que a coisa que tinhamvisto da torre, embora fosse ainda muito mais altaque um homem. Mas era a mesma criatura. Tinhauma cabeça de abutre e quatro braços. O bicoestava aberto e os olhos fumegavam. Umgrasnado rouco saiu-lhe do bico:

� Rishda Tarcaã, tu me chamaste paraNárnia. Aqui estou. O que tens a dizer?

O tarcaã, porém, nem sequer ergueu o rostodo chão ou soltou uma palavra. Tremia como umavara verde. Numa batalha ele era corajoso deverdade. Contudo, metade da sua coragem haviasumido bem mais cedo naquela noite, desde quecomeçara a suspeitar de que poderia realmenteexistir um Tash de verdade. Agora, o restinho dacoragem tinha ido embora.

Com um movimento brusco (igual a umagalinha quando estaca de repente para catar uma

____________________________________C.S.Lewis � Crônicas de Nárnia � Vol. VII

209

minhoca), Tash agarrou o pobre Rishda, enfiando-o entre os dois braços direitos. Depois virou acabeça para o lado fixando Tirian com um dosseus pavorosos olhos: pois, naturalmente, comotinha cabeça de ave, não podia olhar direto paraninguém.

No mesmo instante, porém, forte e tranquilacomo um mar de verão, ouviu-se uma voz soarpor detrás dele:

� Suma daqui, monstro! Volte para o seulugar e carregue o que por direito lhe pertence!Em nome de Aslam e do Grande Pai de Aslam, oImperador-de-Além-Mar!

A horrenda criatura evaporou, ainda com otarcaã debaixo do braço. Tirian voltou-se para verquem havia falado. E o que viu fez seu coraçãodisparar e bater como nunca havia batido emqualquer batalha.

Sete reis e rainhas estavam parados à suafrente, todos eles com coroas na cabeça e vestesresplandecentes; os reis, porém, usavam tambémfinas cotas de malha e empunhavam espadas.

____________________________________C.S.Lewis � Crônicas de Nárnia � Vol. VII

210

Tirian inclinou-se, numa reverência, e já iafalando quando a mais jovem das rainhas desatoua rir. Ele a encarou firmemente e, de súbito,prendeu a respiração, atônito, pois a conhecia. EraJill! Não como ele a vira pela última vez, com orosto todo sujo e manchado de lágrimas, usandoum velho vestido de brim com um ombro meio defora. Agora parecia calma e bem-disposta, limpa efresca como quem acaba de tomar um banho. Eprimeiro achou que ela parecia mais velha, masdepois achou que não � e nunca conseguiu chegara uma conclusão quanto a isso. Depois viu que orei mais jovem era Eustáquio: mas este tambémestava diferente, assim como Jill.

Subitamente Tirian sentiu-se embaraçadopor encontrar-se ali, no meio daquelas pessoas,ainda todo empoeirado, suado e sujo de sangue dabatalha. Naquele momento, porém, notou que jánão se encontrava mais naquele estado. Estavafresco, limpo, bem-disposto e trajado como sefosse para ir a uma grande festa em Cair Paravel.(A propósito, em Nárnia, as roupas boas não eramdesconfortáveis como muitas que a gente usa. Os

____________________________________C.S.Lewis � Crônicas de Nárnia � Vol. VII

211

narnianos sabiam fazer roupas que eram bonitas e,ao mesmo tempo, deixavam a gente bem àvontade: nada de tecido engomado, sapatosapertados e ternos fechados, com gravatas e essascoisas.)

� Senhor � disse Jill, adiantando-se efazendo uma bela cortesia �, deixe-me apresentá-lo a Pedro, o Grande Rei sobre todos os reis deNárnia.

Tirian nem precisou perguntar qual delesera Pedro, pois lembrava-se bem do rosto que viraem seu sonho (se bem que, agora, parecesse muitomais nobre). Deu um passo à frente, dobrou-sesobre um dos joelhos e beijou a mão de Pedro.

� Majestade � disse ele. � Seja muito bem-vindo. E Sua Majestade fê-lo levantar-se e beijou-lhe as faces, como convinha a um grande rei.Depois conduziu-o até a mais velha das rainhas(que, mesmo assim, não parecia velha, pois nãotinha cabelos brancos na cabeça nem rugas naface), dizendo:

____________________________________C.S.Lewis � Crônicas de Nárnia � Vol. VII

212

� Senhor, esta é Lady Polly, que veio aNárnia no Primeiro Dia, quando Aslam fez asárvores crescerem e os animais falarem. � Emseguida conduziu-o para perto de um homem cujabarba dourada descia-lhe pelo peito e cujaexpressão era cheia de sabedoria.

� Este aqui � disse � é Lorde Digory, queestava com ela naquele dia. E este é o meu irmão,rei Edmundo. E esta é minha irmã, rainha Lúcia.

� Senhor � disse Tirian, após saudar a todos�, a não ser que eu tenha entendido mal ascrônicas, deve haver mais alguém. VossaMajestade não tem duas irmãs? Onde está a rainhaSusana?

� Minha irmã Susana � respondeu Pedro,breve e gravemente � já não é mais amiga deNárnia.

� É verdade � completou Eustáquio. � Ecada vez que se tenta conversar com ela sobreNárnia ou fazer qualquer coisa que se refira aNárnia, ela diz: �Mas que memória extraordináriavocês têm! Continuam no mundo da fantasia,

____________________________________C.S.Lewis � Crônicas de Nárnia � Vol. VII

213

pensando nessas brincadeiras tolas que a gentefazia quando era criança!�

� Essa Susana! � disse Jill. � Agora sópensa em lingeries, maquilagens e compromissossociais. Aliás, ela sempre foi louquinha para sergente grande.

� Gente grande, pois sim! � disse LadyPolly. �Gostaria que ela crescesse de verdade.Quando estava na escola, passava o tempo tododesejando ter a idade que tem agora, e agora vaipassar o resto da vida tentando ficar nessa idade.Tudo em que ela pensa é correr para atingir aidade mais boba da vida o mais depressa possívele depois parar aí o máximo que puder.

� Está bem, não vamos mais falar sobreisso agora � interveio Pedro. � Vejam! Ali háumas árvores com frutas muito apetitosas. Por quenão provamos algumas?

Então, pela primeira vez, Tirian olhou à suavolta e percebeu quão fantástica estava sendo essasua aventura.

____________________________________C.S.Lewis � Crônicas de Nárnia � Vol. VII

214

13

OS ANÕES NÃO SEDEIXAM TAPEAR

Tirian pensara � ou pelo menos teriapensado, se tivesse tido tempo para isso � que elesse encontravam dentro de uma pequena cabana depalha medindo uns quatro metros de comprimentopor dois de largura. Na realidade, porém, estavampisando na grama, tendo ao alto um profundo céuazul, e a brisa que soprava suavemente nas suasfaces lembrava um dia de início de verão. Nãomuito longe deles erguia-se um bosque de árvoresde folhas muito espessas, por baixo das quais sevia o dourado ou o amarelo-pálido, o roxo ou overmelho vivo de frutas nunca vistas neste nossomundo. Ao avistar as frutas, Tirian teve aimpressão de que já era outono. Mas havia algumacoisa no ar que lhe dizia que poderia ser, no

____________________________________C.S.Lewis � Crônicas de Nárnia � Vol. VII

215

máximo, o comecinho do verão. Todoscomeçaram a caminhar na direção das árvores.

Cada um deles ergueu a mão para apanhar afruta que mais lhe apetecia, e então todos pararampor um instante. As frutas eram tão lindas quetodos tiveram o mesmo pensamento: �Estas frutasnão são para mim... Certamente não podemoscolhê-las!�

� Tudo bem � disse Pedro. � Eu sei o quetodos estão pensando. Mas tenho certeza, absolutacerteza, de que não precisamos nos preocupar.Tenho a impressão de que nós chegamos àquelepaís onde tudo é permitido.

� Pois, então, mãos à obra! � disseEustáquio. E todos começaram a comer.

E o gosto das frutas? Infelizmente, sabornão se descreve. Só posso dizer que, comparadoàquelas frutas, o pêssego mais polpudo efresquinho não teria gosto algum; a laranja maissuculenta pareceria seca; a pêra mais macia,daquelas de derreter na boca, ainda seria dura efibrosa; e o abacaxi mais docinho e maduro seria

____________________________________C.S.Lewis � Crônicas de Nárnia � Vol. VII

216

azedo. E elas não tinham sementes, nem pedras,nem vespas. Depois de se provar uma frutadaquelas uma única vez, a sobremesa maisdeliciosa do mundo inteiro teria gosto de remédio.Mas não dá mesmo para descrever. O único jeitode se saber como elas são é ir até esse lugar eexperimentá-las.

Depois de comerem até se fartar, Eustáquiodisse ao rei Pedro:

� Você ainda não nos contou comochegaram até aqui. Quando estava começando anos dizer, o rei Tirian apareceu.

� Não há muito o que contar � respondeuPedro. � Edmundo e eu estávamos em pé naestação quando vimos o trem de vocês chegando.Lembro-me de ter achado que ele estava fazendoa curva rápido demais. Outra coisa de que melembro é que pensei como seria divertido se poracaso todo o nosso pessoal estivesse no mesmotrem.

� Seu pessoal, Grande Rei? � estranhouTirian.

____________________________________C.S.Lewis � Crônicas de Nárnia � Vol. VII

217

� É, meu pai e minha mãe, de Lúcia e deEdmundo...

� E por que isso? � interrompeu Jill. � Nãovai me dizer que eles sabem alguma coisa sobreNárnia? !

� Oh, não! Isso nada tinha a ver comNárnia. Eles estavam de viagem para Bristol. Aúnica coisa que sabia é que iriam naquela manhã.Mas Edmundo disse que era bem provável queeles estivessem naquele trem. (Edmundo era otipo de pessoa que entende de viagens de trem.)

� E daí, o que aconteceu? � perguntou Jill.

� Bem, não é assim tão fácil de descrever,não é, Edmundo?

� Não muito � respondeu Edmundo. � Nãofoi nada parecido com aquela vez em que fomosatirados para fora do nosso próprio mundo pormágica. Houve um pavoroso estrondo e algumacoisa me atingiu violentamente; mas não doeu.Acho que, mais do que assustado, eu fiquei...bem, fiquei excitado. E então aconteceu uma coisa

____________________________________C.S.Lewis � Crônicas de Nárnia � Vol. VII

218

fantástica. Eu estava com um joelho machucado,por causa de uma partida de futebol. De repentenotei que a ferida tinha sumido. E daí eu me sentimuito leve. E depois... Bem, aqui estamos nós.

� Foi exatamente isso o que aconteceu coma gente dentro do trem � disse Lorde Digory,limpando os últimos resíduos de fruta da suabarba dourada. � Só que eu acho que você e eu,Polly, sentimos principalmente que o nosso corpofoi rejuvenescido. Vocês, jovens, nãocompreendem isso. Mas deixamos de nos sentirvelhos.

� Jovens, pois sim! � exclamou Jill. �Como se aqui vocês dois fossem muito maisvelhos do que nós!

� Bem, pelo menos éramos � disse LadyPolly.

� E depois que chegaram aqui, o queaconteceu? � perguntou Eustáquio.

____________________________________C.S.Lewis � Crônicas de Nárnia � Vol. VII

219

� Bem � respondeu Pedro. � Durante umbom tempo (pelo menos me pareceu muito tempo)nada aconteceu. Depois a porta se abriu...

� A porta? Que porta? � perguntou Tirian.� A porta por onde você entrou... ou saiu,

sei lá... Já se esqueceu?� Mas, onde está ela?� Veja! � disse Pedro, apontando.Tirian olhou e viu a coisa mais estranha e

ridícula que se possa imaginar. A apenas algunsmetros de distância, completamente visível à luzdo sol, erguia-se uma porta de madeira e, ao redordela, o umbral � nada mais, nem paredes, nemtelhado, nada. Atônito, Tirian encaminhou-se paralá, seguido pelos outros, que ficaram olhando paraver o que ele ia fazer. Tirian deu a volta para ooutro lado da porta. Do lado de lá, era justamentea mesma coisa: ele ainda estava ao ar livre, emuma manhã de verão. A porta simplesmenteerguia-se sozinha, como se tivesse crescido ali,igual a uma árvore.

____________________________________C.S.Lewis � Crônicas de Nárnia � Vol. VII

220

� Meu caro senhor � disse ele ao GrandeRei �, isto é simplesmente espantoso!

� É a porta por onde você passou comaquele calormano há poucos minutos � dissePedro, sorrindo.

� Mas eu passei da floresta para dentro doestábulo, não foi? Esta porta, no entanto, parece irde nenhum lugar para lugar algum!

� É o que parece se você ficar aí a rodeá-la� disse Pedro. � Agora, dê uma espiadinha ali poraquela fresta que há entre as duas tábuas demadeira.

Tirian encostou o olho no buraco. Aprincípio, nada conseguiu ver além da escuridão.Mas, depois que seus olhos foram se acostumandoao escuro, ele divisou a luz fraca e avermelhadade uma fogueira que estava quase se apagando. Láem cima via-se um céu negro coberto de estrelas.Depois percebeu uns vultos que se moviam paralá e para cá, e havia outros em pé entre ele e afogueira. Dava para ouvi-los conversando:pareciam vozes de calormanos. Então se deu

____________________________________C.S.Lewis � Crônicas de Nárnia � Vol. VII

221

conta de que estava olhando através da porta doestábulo, para fora, na escuridão do Ermo doLampião, onde se dera sua última batalha. Oshomens estavam discutindo se deveriam entrar noestábulo à procura de Rishda Tarcaã (nenhumdeles, no entanto, estava disposto a fazer isso), ouse seria melhor atiçar fogo à cabana.

Tirian olhou à sua volta mais uma vez emal pôde acreditar no que via. Acima de suacabeça havia um céu muito azul; à sua frente umimenso gramado espalhava-se em todas asdireções, até onde a vista alcançava; e, ao redor,seus novos amigos, todos sorrindo.

� Quer dizer, então � disse Tirian para simesmo �, que o estábulo visto por dentro e oestábulo visto por fora são dois lugarescompletamente diferentes?

� É verdade � disse Lorde Digory. � Pordentro ele é maior do que por fora.

� Isso mesmo � disse a rainha Lúcia. � Nonosso mundo também já aconteceu uma vez que,

____________________________________C.S.Lewis � Crônicas de Nárnia � Vol. VII

222

dentro de um certo estábulo, havia uma coisa queera muito maior que o nosso mundo inteiro.

Era a primeira vez que ela falava, e, pelavibração da sua voz, Tirian logo imaginou arazão. Ela estava muito mais embevecida comtudo aquilo do que qualquer um dos outros. Atéaquele momento estivera feliz demais para falar.Tirian queria ouvir a voz dela de novo, por issodisse:

� Por gentileza, senhorita, conte-nos.Conte-me toda a sua aventura.

� Depois do choque e do estardalhaço �disse Lúcia �, nos encontramos aqui. E ficamosaturdidos com a porta, assim como você. Entãoela se abriu pela primeira vez (e tudo o que vimosfoi a escuridão), deixando passar um homenzarrãocom uma espada desembainhada. Pelos braçosdava para ver que era um calormano. Ele sepostou ao lado da porta com a espada erguida,pousada sobre o ombro, pronto para decepar oprimeiro que entrasse. Fomos ao seu encontro efalamos com ele, mas nem sequer pareceu notar a

____________________________________C.S.Lewis � Crônicas de Nárnia � Vol. VII

223

nossa presença. Não se voltou uma única vez paracontemplar o céu, a luz do sol ou o gramado; atéparecia que nem enxergava nada disso. Ficamosentão esperando, durante um bom tempo. Até queouvimos a tranca abrir-se mais uma vez do outrolado da porta. Mas enquanto o homem não viuquem vinha vindo, não se dispôs a usar a espada.Por isso imaginamos que ele fora instruído paraatacar uns e poupar outros. Porém, no momentoem que a porta se abriu, nada mais, nada menosque o próprio Tash apareceu do lado de cá daporta, sem que nenhum de nós soubesse de ondeele surgira. E pela porta entrou um enorme gato.Assim que viu Tash, ele disparou para fora,tentando salvar a pele � e bem a tempo, pois Tasharremeteu-se contra ele e a porta bateu-lhe nobico, ao se fechar. Só então o guarda enxergouTash. Imediatamente ficou muito pálido eprostrou-se aos pés do monstro, mas este sedesvaneceu.

� Depois disso, esperamos de novo pormais algum tempo. Finalmente a porta abriu-sepela terceira vez e entrou um jovem calormano.

____________________________________C.S.Lewis � Crônicas de Nárnia � Vol. VII

224

Gostei dele. O homem que estava à porta ficouatônito, e pareceu muito surpreso ao vê-lo. Tenhoa impressão de que esperava ver alguémcompletamente diferente...

� Agora entendi tudo! � disse Eustáquio(ele tinha a péssima mania de interromper quandoalguém estava falando). � O gato era quemdeveria entrar primeiro, e o sentinela tinha ordenspara não lhe fazer mal algum. Depois o gatodeveria sair e dizer que havia visto o abominávelTash, fingindo estar apavorado, a fim de assustartodos os animais. Mas o que Manhoso jamaispoderia suspeitar é que o verdadeiro Tashacabasse aparecendo; e então Ruivo saiurealmente apavorado. Depois disso, Manhosodeve ter resolvido mandar entrar alguém de quemqueria se ver livre, para que o sentinela o matasse.E depois...

� Meu amigo � disse Tirian, com brandura.� Você está atrapalhando a narração da senhorita.

� Bem � continuou Lúcia �, o sentinelaficou surpreso. Isso deu ao homem o tempo

____________________________________C.S.Lewis � Crônicas de Nárnia � Vol. VII

225

necessário para colocar-se em guarda. Os doislutaram e o jovem matou o sentinela, atirando-oporta afora. Então encaminhou-se lentamente paraonde estávamos. Ele conseguia ver a gente e tudoo mais à sua volta. Tentamos falar-lhe, mas eleparecia estar em transe. Ficava só dizendo: �Tash,Tash, onde está Tash? Quero ver Tash!� Entãodesistimos e ele saiu andando por aí,desaparecendo por aquelas bandas. Gostei dele!Depois disso... Argh! (E aqui Lúcia fez umacareta.)

� Então � disse Edmundo �, alguémarremessou um macaco porta adentro. E aí Tashapareceu de novo. Minha irmã tem o coraçãomuito mole e por isso não quer contar que Tashdevorou o macaco de uma só bicada.

� Bem feito para ele! � vibrou Eustáquio. �Para aprender a não brincar com Tash!

� Então � continuou Edmundo �,apareceram uns doze anões. E depois Jill,Eustáquio e, finalmente, você, Tirian.

____________________________________C.S.Lewis � Crônicas de Nárnia � Vol. VII

226

� Tomara que Tash tenha devorado osanões também! � disse Eustáquio. � Aquelesporquinhos imundos!

� Não, não devorou � disse Lúcia. � E nãoseja tão repugnante! Eles ainda estão por aí. Naverdade, dá para vê-los daqui. Já fiz váriastentativas de fazer amizade com eles, mas nãoadianta.

� Fazer amizade com eles? ! � vociferouEustáquio.

� Se você soubesse tudo que esses anõesfizeram!

� Pare com isso, Eustáquio! � disse Lúcia. �Venha cá, vamos vê-los. Rei Tirian, quem sabevocê consegue alguma coisa com eles.

� Bem, não ando lá muito amante de anõeshoje � respondeu Tirian. � Mas a pedido seu,senhorita, faria muito mais do que isso.

Eles acompanharam Lúcia e logo todosavistaram os anões. O comportamento deles eramuito estranho. Não estavam andando à toa ou se

____________________________________C.S.Lewis � Crônicas de Nárnia � Vol. VII

227

divertindo (embora as cordas com que haviamsido amarrados parecessem ter-se evaporado),nem mesmo deitados ou descansando. Pelocontrário, estavam sentados bem pertinho uns dosoutros, formando um círculo apertado, um de carapara o outro. Nunca olhavam ao redor, nemsequer pareceram notar os humanos à sua volta, anão ser quando Lúcia e Tirian chegaram tãopertinho deles que dava para tocá-los. Então todosos anões sacudiram a cabeça como se nãoconseguissem ver ninguém, mas estivessemescutando atentamente e tentando adivinhar pelosruídos o que se passava.

� Ei, cuidado! � disse um deles, numa vozazeda. � Por que não olham por onde andam? Nãocaminhem por cima da gente!

� Tá bom, tá bom! � disse Eustáquio,irritado.

� Não somos cegos. Nossos olhosfuncionam muito bem.

____________________________________C.S.Lewis � Crônicas de Nárnia � Vol. VII

228

� Pois devem ser mesmo muito bons paraenxergar aqui dentro! � disse o mesmo anão, cujonome era Ranzinza.

� Aqui onde? � perguntou Edmundo.� Ora, seu tapado, aqui dentro, é claro! �

respondeu Ranzinza. � Aqui neste buraco desteestá-bulo fedorento, apertado e escuro como breu.

� Você está cego? � perguntou Edmundo.� E quem não fica cego nesta escuridão? �

resmungou Ranzinza.

� Mas aqui não está escuro coisa nenhuma,seus anõezinhos estúpidos! � disse Lúcia. � Seráque não percebem? Vamos, levantem o rosto!Olhem ao seu redor! Será que não vêem o céu, asárvores e as flores? Vocês não estão me vendo?

� Ora, vá tapear outro! Como é que euposso ver uma coisa que não existe? E como é queeu posso vê-la (ou você a mim) nesta escuridão debreu?

____________________________________C.S.Lewis � Crônicas de Nárnia � Vol. VII

229

� Mas eu estou vendo você! � disse Lúcia.� Quer que eu prove? Você está com umcachimbo na boca.

� Qualquer um que conheça cheiro detabaco poderia dizer isso � replicou Ranzinza.

� Pobrezinhos! Que coisa terrível! �exclamou Lúcia. Então ela teve uma idéia. Saiu ecolheu algumas violetas silvestres.

� Escutem aqui, anões � disse ela. �Embora seus olhos estejam com algum problema,quem sabe o nariz esteja funcionando bem. Quecheiro é este?

Ela inclinou-se e aproximou do narigão deRanzinza as flores frescas, ainda úmidas deorvalho. Entretanto, teve de dar um pulo para trása fim de evitar um soco do punhozinho pesado doanão.

� Mas que ousadia! � berrou ele. � Onde jáse viu me passar um monte de palha imunda nacara? ! E, ainda por cima, cheio de carrapicho!Parece a gororoba de vocês! Afinal, quem é você?

____________________________________C.S.Lewis � Crônicas de Nárnia � Vol. VII

230

� Seu verme! � interveio Tirian. � Ela é arainha Lúcia, enviada para cá por Aslam, vinda deum passado longínquo. E é só por amor a ela queeu, Tirian, seu leal rei, não lhes arranco a cabeçados ombros, seus traidores, provada ecomprovada-mente traidores!

� Mas isso é o cúmulo! � exclamouRanzinza. �Você ainda continua insistindo nessababoseira toda? Seu maravilhoso Leão não veiolhe dar uma mãozinha, hein? Eu sabia! E, aindaassim, mesmo depois de ter sido derrotado eenfiado aqui neste buraco escuro, igualzinho aqualquer um de nós, você ainda insiste nessevelho jogo? ! E agora me aparece com uma novamentira, não é? Tentando fazer a gente acreditarque ninguém aqui está trancado e que não estáescuro, e sabe-se lá o que mais...

� Não existe buraco escuro coisa nenhuma,a não ser na sua própria cabeça, seu imbecil �berrou Tirian. � Saia daí, vamos! � E, inclinando-se para a frente, Tirian agarrou Ranzinza pelocinto e o capuz, arrancando-o de perto dos outros

____________________________________C.S.Lewis � Crônicas de Nárnia � Vol. VII

231

anões e colocando-o bem longe. Mas, assim quetocou o chão, Ranzinza disparou de volta para omesmo lugar no meio dos outros, esfregando onariz e gritando:

� Ui! Ui! Por que você fez isso? Me atiroude cabeça contra a parede! Por pouco não mequebrou o nariz!

� Oh, não! � disse Lúcia. � O que vamosfazer com eles?

� Deixe-os para lá! � disse Eustáquio. Masenquanto ele falava a terra estremeceu. A doceatmosfera tornou-se ainda mais doce e um clarãobrilhou ao lado deles. Todos se voltaram. Oúltimo a se virar foi Tirian, porque estava commedo. Ali estava o anseio de seu coração, enormee real: o Leão dourado, o próprio Aslam. Osoutros já se encontravam ajoelhados em círculoem volta de suas patas dianteiras, com as mãos e orosto enterrados na sua juba, enquanto eleabaixava a cabeçorra para afagá-los com a língua.Então fixou os olhos em Tirian, que se

____________________________________C.S.Lewis � Crônicas de Nárnia � Vol. VII

232

aproximou, tremendo, e atirou-se aos pés do Leão.Este o beijou, dizendo:

� Muito bem, último dos reis de Nárnia,que permaneceu firme até na hora mais escura!

� Aslam � disse Lúcia, entre lágrimas �,será que você não podia... por favor... faça algopor estes pobres anões...

� Minha querida � disse Aslam �, voumostrar-lhe tanto o que eu posso quanto o que eunão posso fazer.

Aproximando-se dos anões, Aslam deu umleve rugido: leve, mas mesmo assim fez o arvibrar. Os anões, porém, disseram uns aos outros:

� Escutaram só? Deve ser a turma do outrolado do estábulo. Estão tentando nos assustar.Devem ter feito esse barulho com algum tipo demáquina. Não vamos nem dar bola. Desta vez nãonos enganam mais.

Aslam ergueu a cabeça e sacudiu a juba. Nomesmo instante, um maravilhoso banqueteapareceu aos pés dos anões: tortas, assados, aves,

____________________________________C.S.Lewis � Crônicas de Nárnia � Vol. VII

233

pavês, sorvetes e, na mão direita de cada um, umataça de excelente vinho. Mas de nada adiantou.Eles começaram a comer e a beber com a maiorsofreguidão, mas notava-se claramente que nemsabiam direito o que estavam degustando.Pensavam estar comendo e bebendo apenas coisasordinárias, dessas que se encontram em qualquerestrebaria. Um deles disse que estava comendocapim; outro falou que tinha arranjado um pedaçode nabo velho; e um terceiro disse que haviaachado uma folha de repolho cru. E levavam aoslábios taças douradas com rico vinho tinto,dizendo:

� Puááá! Muito bonito! Beber água suja,tirada do cocho de um jumento! Nunca pensei quechegássemos a tanto!

Mas logo cada anão começou a desconfiarde que o outro havia conseguido algo melhor queele, e daí começaram a se agarrar e a discutir, e abriga foi ficando cada vez mais feia, até que, empoucos minutos, todos estavam engalfinhadosnuma verdadeira luta livre, e todas aquelas

____________________________________C.S.Lewis � Crônicas de Nárnia � Vol. VII

234

iguarias espalharam-se por seus rostos e roupas eesparramaram-se pelo chão. Mas quandofinalmente se sentaram de novo, cada qualesfregando seu olho roxo ou o nariz sangrando,começaram a dizer:

� Bem, pelo menos aqui não há nenhumatrapaça. Não deixamos ninguém nos levar no bico.Vivam os anões!

� Viram só? � disse Aslam. � Eles não nosdeixarão ajudá-los. Preferem a astúcia à crença.Embora a prisão deles esteja unicamente em suaspróprias mentes, eles continuam lá. E têm tantomedo de serem ludibriados de novo que nãoconseguem livrar-se. Mas, venham comigo, meusfilhos. Tenho um outro trabalho a fazer.

Aslam dirigiu-se para a porta, seguido detodo o grupo. Então levantou a cabeça e rosnou:

� O tempo é chegado. Agora! Tempo! � Edepois rosnou mais alto. � Tempo! � E depois tãoalto que até as estrelas estremeceram: � TEMPO!

Então a porta se abriu.

____________________________________C.S.Lewis � Crônicas de Nárnia � Vol. VII

235

14

CAI A NOITE SOBRENÁRNIA

Todos pararam em pé, à direita de Aslam, eolharam através da porta aberta.

A fogueira havia se apagado. Tudo na terraera completa escuridão: se não fosse pela escurasilhueta das árvores sob o brilho das estrelas, nemdava para saber que ali havia uma floresta.Quando Aslam deu um novo rugido, uma outramancha negra surgiu à esquerda deles. Quer dizer,uma outra sombra apareceu onde não haviaestrelas, e foi subindo e ficando cada vez maisalta, até que assumiu a forma de um homem, omais imenso dos gigantes. Todos conheciamNárnia o bastante para imaginar onde ele deveriaestar pisando: nos altos pântanos que se estendiampara o Norte, depois do rio Veloz. Então Jill e

____________________________________C.S.Lewis � Crônicas de Nárnia � Vol. VII

236

Eustáquio lembraram-se de que certa vez, muitotempo atrás, nos subterrâneos daqueles pântanos,tinham visto um enorme gigante adormecido; ealguém lhes contara, na ocasião, que o nome deleera Pai Tempo e que acordaria no dia em que omundo acabasse.

� Sim � disse Aslam, embora nenhum delestivesse falado qualquer coisa. � Enquanto eledormia, seu nome era Tempo. Mas, agora queacordou, vai ganhar um novo nome.

Então o gigante levou à boca uma trombeta.Sabiam disso porque a silhueta dele contra asestrelas mudara de formato. Depois disso � mas sóum pouquinho, já que o som se propaga maisdevagar �, ouviram o som da trombeta, alto eterrível, se bem que de uma beleza estranha efatal.

Imediatamente o céu ficou cheio de estrelascadentes. Uma única estrela cadente já é algolindo de se ver. Desta vez, porém, eram dúziasdelas, e depois um monte, e depois centenas, atéque mais parecia uma chuva de prata � e assim

____________________________________C.S.Lewis � Crônicas de Nárnia � Vol. VII

237

continuou, aumentando cada vez mais. Quandofinalmente o espetáculo parou por um instante,alguém do grupo teve a impressão de que umanova sombra aparecera no céu, assim como a dogigante. Agora, porém, era num lugar diferente, láem cima, bem no �teto� do céu, por assim dizer.�Talvez seja só uma nuvem�, pensou Edmundo.De qualquer forma, naquele ponto do céu nãohavia estrelas, só escuridão. Entrementes, em todolugar à volta o espetáculo de estrelas continuava.Então a mancha sem estrelas começou a crescer,espalhando-se cada vez mais, a partir do centro docéu. Agora já um quarto de todo o céu estavaescuro, e depois a metade, e finalmente só se via achuva de estrelas cadentes, lá embaixo, na linhado horizonte.

Com um misto de espanto e terror, todossubitamente estremeceram ao se darem conta doque estava realmente acontecendo. A escuridãoque se propagava não era nuvem coisa nenhuma:era simplesmente um vazio. A parte negra do céuera o lugar onde já não havia mais estrelas. Todas

____________________________________C.S.Lewis � Crônicas de Nárnia � Vol. VII

238

elas estavam caindo. Aslam as chamara de voltapara casa.

Os derradeiros instantes que antecederam ofim da chuva de estrelas foram muitoemocionantes. Estrelas começaram a cair ao redordeles. Naquele mundo, no entanto, as estrelas nãosão essas grandes bolas incandescentes do nossomundo. Lá elas são pessoas (Edmundo e Lúcia jáhaviam encontrado uma, certa vez). Portanto, elesse viram rodeados de pessoas resplandecentes,todas elas com longos cabelos que pareciam prataem chama e com lanças como que de metalbranco ardente, precipitando-se do céu negro nadireção deles, mais velozes do que raios. Elassibilavam ao bater no chão, queimando a grama. Etodas aquelas estrelas que passavam voando poreles iam ficando de pé em algum lugar mais atrás,um pouco à direita.

Ainda bem, pois, do contrário, agora que jánão havia mais uma única estrela brilhando nocéu, tudo estaria completamente escuro e nãodaria mais para ver coisa alguma. E assim a

____________________________________C.S.Lewis � Crônicas de Nárnia � Vol. VII

239

multidão de estrelas atrás deles emitia umafortíssima luz esbranquiçada, que refletia por cimade seus ombros. Eles podiam ver quilômetros equilômetros de florestas narnianas estendidas àsua frente, como se fossem iluminadas porpotentes holofotes. Cada moita e quase cadafolhinha de grama deixava atrás de si uma sombranegra. Cada folha destacava-se tão afiada e comtanta nitidez, que se tinha a impressão de que sepoderia cortar o dedo caso se tocasse nelas.

A própria sombra deles projetava-se nagrama à sua frente. Mas impressionante mesmoera a sombra de Aslam. Esta espalhava-se à suaesquerda, enorme e assustadora. E tudo isso sepassava sob um céu que, a partir de agora, nuncamais teria nenhuma estrela.

A luz que vinha de detrás deles (e umpouco para a direita) era tão forte que chegava ailuminar até mesmo as encostas dos pântanos doNorte. Lá, alguma coisa estava se movendo.Animais enormes vinham descendo em direção aNárnia, rastejando ou deslizando vagarosamente:

____________________________________C.S.Lewis � Crônicas de Nárnia � Vol. VII

240

eram dragões imensos, lagartos gigantes, pássarossem penas com asas de morcego. Desapareceramno meio da mata e, durante alguns minutos, sóhouve silêncio. Depois (a princípio muitodistante) ouviram-se gemidos, e então, vindos detodas as direções, um roçar, um bater de patas eum farfalhar de asas. E vinham se aproximandocada vez mais. Logo tornou-se possível distinguirentre o ruído de pezinhos miúdos e o barulhosurdo de grandes patas, entre o clac-clac depatinhas leves e o trovejar de cascos graúdos. Emseguida, milhares de pares de olhos brilharam naescuridão. Finalmente, saindo da sombra dasárvores e correndo vertiginosamente colina acimapara salvar a vida, aos milhares e aos milhões,surgiram criaturas de todos os tipos: animaisfalantes, anões, sátiros, faunos, gigantes,calormanos, homens da Arquelândia, monópodese até estranhos seres sobrenaturais, vindos dasIlhas Solitárias ou das terras desconhecidas doOcidente. Todos corriam em disparada rumo aoportal onde se encontrava Aslam.

____________________________________C.S.Lewis � Crônicas de Nárnia � Vol. VII

241

De toda a aventura, essa foi a única parteque mais pareceu um sonho, naquele momento, ea mais difícil de ser lembrada mais tarde.Especialmente, ninguém podia dizer quantotempo durara. Às vezes tinha-se a impressão deque durara apenas alguns minutos, mas outrasvezes parecia que se haviam passado anos e anos.E óbvio que, a menos que a porta tivesse setornado imensamente maior, ou que as criaturassubitamente tivessem diminuído ao tamanho demosquitos, uma multidão daquelas jamais teriasequer tentado passar por ela. Naquele momento,porém, ninguém pensou nisso.

As criaturas precipitaram-se para a porta e,à medida que se aproximavam das estrelas aliparadas, seus olhos tornavam-se cada vez maisbrilhantes. Ao chegarem perto de Aslam, noentanto, uma entre duas coisas se passava comcada uma delas. Todas olhavam direto para a facedo Leão (aliás, acho que nem havia alternativa).Quando algumas olhavam, a expressão de seusrostos mudava terrivelmente, com uma mistura detemor e ódio, exceto na cara dos animais falantes:

____________________________________C.S.Lewis � Crônicas de Nárnia � Vol. VII

242

nestes, tanto temor quanto ódio duravam apenasuma fração de segundos, pois, na mesma hora,deixavam de ser animais falantes, tornando-sesimples animais comuns. E todas as criaturas queolhavam para Aslam daquele jeito desviavam-separa a direita (isto é, à esquerda dele),desaparecendo no meio da sua imensa sombranegra, que (como já lhes disse) se espraiava para aesquerda, do lado de fora do portal. As criançasnunca mais viram essas criaturas. Não sei o que sepassou com elas. Outras, porém, olhavam para aface de Aslam e o amavam, embora algumasficassem ao mesmo tempo muito assustadas. Etodas essas criaturas entravam pela Porta,colocando-se ao lado direito de Aslam. Entre estashavia também alguns seres meio estranhos.Eustáquio até reconheceu um dos anões quehaviam ajudado a atirar nos cavalos falantes. Masele nem teve tempo de pensar nisso (e, dequalquer forma, não era mesmo da sua conta),pois a grande alegria que o invadia impedia-o depensar em qualquer coisa desse tipo. Entre asfelizes criaturas que agora se reuniam ao redor de

____________________________________C.S.Lewis � Crônicas de Nárnia � Vol. VII

243

Tirian e de seus amigos, encontravam-se todosaqueles que ele julgara estarem mortos. Láestavam o centauro Passofirme, o unicórnioPrecioso, o bondoso javali, o querido urso, a águiaSagaz e os queridos cães e cavalos, sem contar oanão Poggin. � Avançar! Para a frente e paracima!

Quem gritou foi Passofirme, que disparouruidosamente a galope rumo ao Ocidente. Eembora ninguém o tivesse entendido, foi como seaquelas palavras fizessem tilintar tudo à voltadeles. Ao escutá-las, o javali grunhiu alegremente.O urso já ia abrindo a boca para dizer que aindanão estava compreendendo nada, quando seusolhos bateram nas árvores frutíferas bem atrásdeles. Saiu gingando para o pomar o maisdepressa possível e lá, com certeza, encontroualgo de que ele entendia muito bem. Os cães,porém, continuaram ali, abanando as caudas,como também Poggin, que cumprimentava todomundo com um enorme sorriso no rosto bondoso.Precioso recostou a cabeça alva como a neve noombro do rei, que lhe cochichou alguma coisa ao

____________________________________C.S.Lewis � Crônicas de Nárnia � Vol. VII

244

ouvido. Então todos voltaram novamente para aPorta, para ver o que se passava do lado de lá.

Agora os dragões e os lagartos giganteshaviam se apoderado de Nárnia. Iam de um ladopara outro, arrancando as árvores pelas raízes edevorando-as como se fossem moitas de capim.Em poucos minutos as florestas haviamdesaparecido. A terra inteira ficou completamenteexposta, deixando à mostra cada elevação, cadaconcavidade, cada buraquinho, na forma mais nuae grotesca que se poderia imaginar. A gramasecou. Tirian viu-se contemplando um mundo derochas despidas e terra vazia. Mal se poderiaacreditar que algum dia já existira vida ali. Ospróprios monstros começaram a envelhecer e cairao chão, mortos. Sua carne secou e os ossosapareceram. Logo não passavam de gigantescosesqueletos atirados aqui e acolá sobre pedrasmortas, como se tivessem morrido há milhares deanos. Durante um longo tempo tudo ficou emsilêncio.

____________________________________C.S.Lewis � Crônicas de Nárnia � Vol. VII

245

Finalmente, alguma coisa branca � umalonga linha plana de brancura, que brilhava à luzdas estrelas que ali estavam � começou a mover-se na direção deles, vindo do fim do mundo, dolado do Oriente. Um estranho ruído quebrou osilêncio: a princípio era um murmúrio, depois umtrovejar distante e, por fim, um grandeestardalhaço. E então eles viram que aquilo que seaproximava com tanta rapidez era uma colunaespumejante de água. O mar estava inundando aterra. Naquele mundo despido de árvores davapara ver muito bem. Todos os rios foram ficandocada vez mais largos e os lagos tornando-semaiores; os lagos separados juntaram-se num só,os vales transformaram-se em novos lagos, osmontes viraram ilhas e estas também finalmentedesapareceram. Os altos pântanos à esquerdadeles e as montanhas mais altas, à direita,desintegraram-se com um barulho ensurdecedorno meio da água que se avolumava. A água veiojorrando aos borbotões até bem pertinho daentrada da Porta (mas sem nunca ultrapassá-la),tão perto que espirrava espuma nas patas

____________________________________C.S.Lewis � Crônicas de Nárnia � Vol. VII

246

dianteiras de Aslam. Agora, tudo era uma sóextensão de água, desde onde eles se encontravamaté o ponto onde a água encontrava o céu.

Então, lá longe, começou a clarear. Umafaixa de tênue alvorada espalhou-se ao longo dohorizonte, e foi aumentando e brilhando cada vezmais, até que por fim mal se notava a luz dasestrelas atrás deles. Afinal, o Sol apareceu. Ao vê-lo, Lorde Digory e Lady Polly se entreolharamsignificativamente: os dois já haviam visto, emum outro mundo, um sol moribundo; assim, namesma hora compreenderam que aquele soltambém estava morrendo. Era três vezes � vintevezes � maior do que deveria ser e vermelho-escuro. Quando os seus raios tocaram o giganteTempo, este também ficou vermelho; e, aosreflexos desse sol, toda aquela vastidão de águassem praia parecia sangue.

Então a Lua apareceu, numa posiçãocompletamente errada, bem pertinho do Sol; e elatambém estava vermelha. E, assim que ela surgiu,o Sol começou a lançar-lhe umas chamas

____________________________________C.S.Lewis � Crônicas de Nárnia � Vol. VII

247

enormes, como se fossem serpentinas de fogocarmesim; parecia um polvo tentando puxá-lapara perto de si com seus tentáculos. E talveztenha sido isso mesmo o que aconteceu, pois aLua se aproximou dele, a princípio devagar,depois mais rápido e cada vez mais depressa, atéque afinal as compridas chamas a envolveramtotalmente e os dois se fundiram, transformando-se numa bola de fogo colossal. E daquela enormebrasa ardente começaram a pingar pedaços defogo, que caíam no oceano levantando nuvens devapor. Então Aslam disse:

� Que agora haja um fim!O gigante lançou ao mar sua trombeta.

Depois esticou um braço (era negro e parecia termilhares de quilômetros de comprimento) atravésdo céu, até que sua mão alcançou o Sol. Ele opegou e espremeu com a mão como quemespreme uma laranja. E, no mesmo instante, fez-se total escuridão.

Todos, com exceção de Aslam, deram umpulo para trás, ao sentir o impacto do frio gelado

____________________________________C.S.Lewis � Crônicas de Nárnia � Vol. VII

248

que começou a soprar através da Porta, a qual jáestava ficando coberta de pingentes de gelo.

� Pedro, Grande Rei de Nárnia � disseAslam. � Feche a porta.

Tiritando de frio, Pedro adiantou-se para aescuridão e empurrou a Porta. Esta se fechouruidosamente, raspando o gelo que já avançavapor baixo. Depois, um tanto desajeitado (pois nomesmo instante suas mãos tinham ficado roxas edormentes de frio), Pedro pegou uma chave deouro e trancou a Porta.

Eles já haviam visto bastantes coisasesquisitas através daquela Porta. O mais estranhode tudo, porém, foi quando olharam ao redor e seviram cercados pela calorosa luz do dia; acima océu azul, flores aos seus pés e um sorriso nosolhos de Aslam. Este virou-se, rapidamente,abaixou-se ainda mais, deu uma rabanada e,estalando a cauda contra o próprio corpo, disparouzunindo como uma flecha dourada.

� Vamos! Continuem avançando!Continuem subindo! � gritou, por cima dos

____________________________________C.S.Lewis � Crônicas de Nárnia � Vol. VII

249

ombros. Mas quem poderia acompanhá-lo naquelavelocidade? Eles começaram a caminhar rumo aoOcidente, tentando acompanhá-lo.

� E assim � disse Pedro � cai a noite sobreNárnia. O quê, Lúcia? ! Não me diga que estáchorando! Com Aslam à nossa frente e todomundo aqui junto? !

� Não tente me impedir, Pedro � disse ela.� Aslam certamente não faria isso. Tenho certezade que nada há de errado em chorar por causa deNárnia. Pense só em quanta coisa está ali por trásdaquela porta, tudo morto e congelado...

� É mesmo � disse Jill. � Eu bem quegostaria que aquilo tudo durasse para sempre. Eusei que o nosso mundo não poderia durar, masnunca imaginei que Nárnia pudesse acabar umdia.

� Eu vi quando Nárnia começou � disseLorde Digory. � Mas nunca pensei que viveria osuficiente para vê-la morrer.

____________________________________C.S.Lewis � Crônicas de Nárnia � Vol. VII

250

� Senhores � disse Tirian �, as senhorasfazem muito bem em lamentar. Eu mesmo estouchorando, vejam. Acabo de assistir à morte deminha própria mãe; pois que outro mundo, alémde Nárnia, eu já conheci? Deixar de pranteá-la nãoseria virtude alguma, e, sim, descortesia.

Foram se afastando da Porta e também dosanões, que continuavam amontoados no seu está-bulo imaginário. E, à medida que caminhavam,relembravam antigas guerras, a paz dos velhostempos, os reis da antiguidade e todas as glóriasde Nárnia. Os cães continuavam com eles. Àsvezes participavam da conversa, mas não tanto,pois estavam muito ocupados correndo para cá epara lá, cheirando a grama a cada instante e comtanta intensidade que acabavam espirrando. Derepente, farejaram algo que os deixou muitoexcitados. Começaram todos a discutir: �É, sim!�� �Não é, não!� � �Foi isso que eu acabei dedizer! Qualquer um é capaz de identificar essecheiro.� � �Tire essa fuça daí e deixe os outrosfarejarem também!�

____________________________________C.S.Lewis � Crônicas de Nárnia � Vol. VII

251

� O que está acontecendo, primos? �perguntou Pedro.

� Um calormano, senhor � disseram várioscães ao mesmo tempo.

� Então, levem-nos até ele � disse Pedro. �Seja ele de paz ou de guerra, será bem-vindo.

Os cães saíram em disparada e poucodepois estavam de volta, correndo como se suasvidas dependessem disso e latindo bem alto paradizer que, de fato, tratava-se de um calormano.(Os cães falantes, como qualquer cão comum,comportam-se como se pensassem que o que estãofazendo no momento, seja lá o que for, é de sumaimportância.)

Os outros acompanharam os cães eencontraram um jovem calormano sentadodebaixo de uma castanheira, ao lado de umalímpida fonte de água. Era Emeth, que se levantoude um salto e curvou-se em profunda referência.

� Senhor � disse, dirigindo-se a Pedro �,não sei se és meu amigo ou meu inimigo. De

____________________________________C.S.Lewis � Crônicas de Nárnia � Vol. VII

252

qualquer forma, é uma grande honra encontrá-lo.Como disse um poeta, �um inimigo nobre é amelhor dádiva depois de um amigo nobre�.

� Senhor � disse Pedro �, que eu saiba nãohá razão alguma para haver qualquer guerra entrenós.

� Diga-nos quem é você e o que lheaconteceu �acrescentou Jill.

� Se vamos ouvir uma história, por que nãotomamos um pouco de água e nos sentamos? �latiram os cães. � Estamos completamenteexaustos.

� E claro que vocês ficarão exaustos secontinuarem choramingando desse jeito � disseEustáquio.

Assim os humanos sentaram-se na grama. Eos cães, depois de beberem ruidosamente na fonte,sentaram-se todos empertigados, ofegando, com alíngua de fora e a cabeça um pouco inclinada paraum lado, prontos para escutar a história. Precioso,

____________________________________C.S.Lewis � Crônicas de Nárnia � Vol. VII

253

porém, ficou de pé, esfregando o chifre contra oflanco.

____________________________________C.S.Lewis � Crônicas de Nárnia � Vol. VII

254

15

PARA CIMA E AVANTE!

� Ó reais guerreiros, e também vós, gentissenhoras, cuja beleza ilumina o universo! �começou o calormano. � Sabei que sou Emeth, osétimo filho de Harpha Tarcaã, da cidade deTashbaan, situada no Ocidente, além do deserto.Cheguei a Nárnia recentemente, junto com nove emais outros vinte calormanos, comandados porRishda Tarcaã. Assim que soube que deveríamosmarchar contra Nárnia, enchi-me de regozijo, poisjá ouvira falar muitas coisas sobre a vossa terra egrande era o meu desejo de encontrar-vos embatalha. Mas quando descobri que deveríamos irdisfarçados de mercadores (o que é umvergonhoso traje para um guerreiro e filho detarcaã) e agir usando mentiras e artifícios, entãotodo o gozo me abandonou. O pior foi quandodescobri que estaríamos a serviço de um macaco.

____________________________________C.S.Lewis � Crônicas de Nárnia � Vol. VII

255

E quando começaram a dizer que Tash e Aslameram um só, então o mundo se escureceu aosmeus olhos, pois desde criança eu servira a Tash,e meu grande desejo era saber mais sobre ele, sepossível encontrá-lo face a face. O nome deAslam, porém, era detestável aos meus ouvidos.

� Então, como vistes, noite após noiteéramos todos convocados a reunir-nos do lado defora daquela cabana de palha, e acendia-se afogueira, e o macaco tirava da cabana uma coisade quatro pernas que eu nunca conseguia verdireito. Aí todos, inclusive os animais,inclinavam-se e prestavam homenagem àquilo.Eu, porém, pensava: �O tarcaã está sendoludibriado pelo macaco, pois aquela coisa que saido estábulo não é Tash nem deus algum.� Masquando, certa vez, olhei para o rosto do tarcaã,prestando atenção a cada palavra que ele dizia aomacaco, mudei de idéia, pois percebi claramenteque nem ele próprio acreditava em tudo aquilo.Foi então que compreendi que ele não acreditavaem Tash, pois, do contrário, como ousariaescarnecer dele?

____________________________________C.S.Lewis � Crônicas de Nárnia � Vol. VII

256

� Quando me dei conta disso, fui tomado deuma fúria imensa e me perguntei por que overdadeiro Tash não mandava cair fogo do céupara destruir tanto o macaco quanto o tarcaã. Noentanto, escondi minha ira, controlei minha línguae resolvi esperar para ver como tudo acabaria. Nanoite passada, porém, como alguns de vós devemsaber, o macaco, em vez de exibir aquela coisaamarela, disse que todos que quisessem verTashlam (pois, a essa altura, eles já haviamjuntado os dois nomes para fingir que os doiseram um só) deveriam entrar um a um na palhoça.Então disse para mim mesmo: �Sem dúvidaalguma, aí vem uma nova decepção.� Mas depoisque o gato entrou na cabana e saiu apavorado,pensei: �Com certeza o verdadeiro Tash, a quemchamaram sem conhecer nem acreditar, veio parao meio de nós e agora vai se vingar.� Embora,dentro de mim, meu coração estivesse derretidode temor perante a grandeza de Tash, ainda assimo desejo de vê-lo era mais forte. Então, com umesforço tremendo para não deixar que meusjoelhos tremessem ou que meus dentes batessem,

____________________________________C.S.Lewis � Crônicas de Nárnia � Vol. VII

257

decidi encarar Tash face a face, mesmo que eleme matasse. Assim, ofereci-me para entrar noestábulo. E o tarcaã, mesmo contra a vontade, mepermitiu entrar.

� Assim que passei por aquela porta, minhaprimeira surpresa foi que me encontrei no meiodessa grande claridade, ainda que, visto do ladode fora, o interior da cabana parecessecompletamente escuro. Nem tive tempo demaravilhar-me com isso, pois no mesmo instanteme vi forçado a lutar contra um dos nossospróprios homens para defender a minha vida.Assim que o vi, percebi que o macaco e o tarcaã ohaviam colocado ali para matar qualquer um queentrasse e que não estivesse a par de seus planos.Esse homem, portanto, devia ser um outromentiroso, um trapaceiro, e não um verdadeiroservo de Tash. Por isso eu o enfrentei com omaior prazer. E, após matar o vilão, atirei-o paratrás de mim, porta afora.

� Depois olhei à minha volta e vi o céu etoda esta amplidão e aspirei o aroma da terra.

____________________________________C.S.Lewis � Crônicas de Nárnia � Vol. VII

258

Então disse: �Por todos os deuses, que lugaragradável! Devo ter chegado ao país de Tash.� Ecomecei a percorrer esta estranha terra,procurando por ele.

� Passei por muita grama e muitas flores eencontrei saudáveis e deleitosas árvores de todosos tipos, até que, em um lugarzinho estreito entredois rochedos, avistei vindo ao meu encontro umenorme Leão. Tinha a velocidade do avestruz e otamanho do elefante; sua cabeleira era como ouropuro e o brilho de seu olhar como ouro quandoarde na fornalha. Era mais temível que aMontanha Ardente de Lagur, e sua belezasuperava tudo que há no mundo, mesmo a rosa embotão cuja beleza supera a areia do deserto. Entãoprostrei-me aos seus pés, pensando: �Esta écertamente a hora da minha morte, pois o Leão(que é digno de toda a honra) bem saberá que,durante toda a minha vida, tenho servido a Tash enão a ele. No entanto, melhor é ver o Leão edepois morrer do que ser Tisroc do mundo inteiroe viver sem nunca havê-lo encontrado.� Porém, oglorioso ser inclinou a cabeça dourada e me tocou

____________________________________C.S.Lewis � Crônicas de Nárnia � Vol. VII

259

a testa com a língua, dizendo: �Filho, sê bem-vindo!� Mas eu repliquei: �Ai de mim, Senhor!Não sou filho teu, mas, sim, um servo de Tash!��Criança�, continuou ele, �todo o serviço que tensprestado a Tash, eu o considero como serviçoprestado a mim.� Então, tão grande era o meuanseio por sabedoria e conhecimento, que venci otemor e resolvi indagar o glorioso ser: �Senhor, éverdade, então, como disse o macaco, que tu eTash sois um só?� O Leão deu um rugido tão forteque a terra tremeu (sua ira, porém, não era contramim), dizendo: �É mentira! Não porque ele e eusejamos um, mas por sermos o oposto um dooutro é que tomo para mim os serviços que tensprestado a ele. Pois eu e ele somos tão diferentes,que nenhum serviço que seja vil pode ser prestadoa mim, e nada que não seja vil pode ser feito paraele. Portanto, se qualquer homem jurar em nomede Tash e guardar o juramento por amor a suapalavra, na verdade jurou em meu nome, mesmosem saber, e eu é que o recompensarei. E sealgum homem cometer alguma crueldade em meunome, então, embora tenha pronunciado o nome

____________________________________C.S.Lewis � Crônicas de Nárnia � Vol. VII

260

de Aslam, é a Tash que está servindo, e é Tashquem aceita suas obras. Compreendes isto, filhomeu?� Eu respondi: �Senhor, tu sabes o quanto eucompreendo.� E, constrangido pela verdade,acrescentei: �Mesmo assim, tenho aspirado porTash todos os dias da minha vida.� �Amado�,falou o glorioso ser, �não fora o teu anseio pormim, não terias aspirado tão intensamente, nempor tanto tempo. Pois todos encontram o querealmente procuram.�

� Depois ele soprou sobre mim e fez cessartodo o tremor do meu corpo, firmando-me outravez sobre os meus pés. Após isso, não disse maismuita coisa, a não ser que voltaríamos a nosencontrar e que eu deveria seguir sempre para afrente e sempre para cima. Então voltou-se comouma tempestuosa rajada de ouro e subitamentedesapareceu.

� E desde então, ó reis e damas, andoperambulando à procura dele, e minha felicidade étão imensa que até me enfraquece como umaferida. E a maravilha das maravilhas é ter ele me

____________________________________C.S.Lewis � Crônicas de Nárnia � Vol. VII

261

chamado de amado � a mim, que não passo de umcão...

� Epa! Que estória é essa? ! � exclamou umdos cães.

� Senhor � desculpou-se Emeth �, é apenasuma forma de dizer usada na Calormânia.

� Bem, para dizer a verdade, ela não meagrada nem um pouquinho � resmungou ocachorro.

� Ele não quis ofender ninguém � disse umcão mais idoso. � Afinal de contas, lá em casachamamos nossos filhotes de meninos quando nãose comportam direito...

� Nós também chamamos � disse oprimeiro cachorro. � Ou de meninas...

� Psiu!!! � disse o velho cão. � Isso não éjeito de falar. Lembre-se de onde você está!

� Olhem! � disse Jill, de repente.

Alguém vinha vindo, meio timidamente, aoencontro deles. Era uma criatura graciosa, de

____________________________________C.S.Lewis � Crônicas de Nárnia � Vol. VII

262

quatro patas e cor cinza-prateada. Todos a fitaram,boquiabertos, durante alguns instantes, até quecinco ou seis vozes exclamaram ao mesmo tempo:�É o velho Confuso!� Eles nunca o haviam visto àluz do dia, sem a pele de leão, e isso fazia umagrande diferença. Agora era ele mesmo: umbonito jumento de pêlo tão cinzento e macio, ecom uma expressão tão honesta e bondosa, que sevocê o tivesse visto teria feito exatamente o queLúcia e Jill fizeram: saíram correndo ao encontrodele e lançaram os braços em volta de seupescoço, beijando-lhe o focinho e afagando-lhe asorelhas.

Quando perguntaram por onde tinhaandado, Confuso disse que havia entrado pelaporta junto com todas as criaturas, mas que...Bem, para dizer a verdade, vinha evitandoencontrá-los o máximo possível, e especialmenteevitando encontrar Aslam. A visão do verdadeiroAslam o deixara com tanta vergonha de todaaquela bobagem de se vestir com uma pele deleão, que ele nem sabia onde meter a cara. Mas,ao ver todos os seus amigos seguirem rumo ao

____________________________________C.S.Lewis � Crônicas de Nárnia � Vol. VII

263

Ocidente, pegou umas boas bocadas de capim(�Nunca provei capim tão gostoso em toda aminha vida!�, declarou Confuso), encheu-se decoragem e decidiu acompanhá-los.

� Agora, o que vou fazer se tiver mesmoque encontrar Aslam, isso eu garanto que nãosei... � acrescentou.

� Quando o encontrar vai estar tudo bem,você vai ver � disse a rainha Lúcia.

Então seguiram todos juntos, sempre para oOeste, pois esta parecia ser a direção indicada porAslam quando ele gritou: �Continuem avançando!Continuem subindo!�

Havia muitas outras criaturas movendo-sena mesma direção. No entanto, como aquela terraera um imenso gramado, não havia aglomerações.Parecia ser ainda muito cedo e sentia-se no ar afrescura da manhã. De vez em quando paravampara olhar ao redor ou então para trás � em parteporque tudo era incrivelmente lindo, mas em partetambém porque havia ali alguma coisa que nãoconseguiam compreender.

____________________________________C.S.Lewis � Crônicas de Nárnia � Vol. VII

264

� Pedro � disse Lúcia �, que lugar é este?Você tem alguma idéia?

� Não sei � respondeu o Grande Rei. � Eleme faz lembrar alguma coisa, mas não consigosaber o quê. Não seria algum lugar ondeestivemos de férias alguma vez, quando éramosbem pequenos?

� Se foi, deve ter sido um feriado muitoagradável � disse Eustáquio. � Aposto que, nonosso mundo, não existe um lugar como este.Vejam só que cores! No nosso mundo não dá nempara imaginar um azul igual ao azul daquelasmontanhas.

� Será que não é o �país de Aslam? � disseTirian.

� Mas não é como o país de Aslam lá notopo daquela montanha, além do extremo oriental� disse Jill. � Lá eu já estive.

� Se querem saber � disse Edmundo �, istoaqui lembra algum lugar de Nárnia. Vejamaquelas montanhas ali na frente. E aquelas outras,

____________________________________C.S.Lewis � Crônicas de Nárnia � Vol. VII

265

enormes e cobertas de gelo, lá mais adiante. Nãose parecem com as montanhas que se viam lá deNárnia, aquelas que ficavam para o lado doOcidente, depois da cachoeira?

� É, parecem mesmo � concordou Pedro. �Só que estas são maiores.

� Aquelas ali eu não acho parecidas comcoisa alguma de Nárnia � disse Lúcia. � Masolhem acolá! (Ela apontou para o Sul, à esquerdadeles; todos pararam e viraram-se para olhar.)Aquelas colinas, lá, cobertas de florestas, eaquelas azuis, lá atrás... Não são iguaizinhas às daextremidade sul de Nárnia?

� I-guai-zi-nhas! � exclamou Edmundo,após um momento de silêncio. � Puxa, sãoexatamente iguais! Vejam! Lá está o Monte Piro,com seu cume bifurcado, e depois o desfiladeiroque vai dar na Arquelândia e tudo o mais.

� E ainda assim não é a mesma coisa �disse Lúcia. � É tudo diferente. Tudo é muito maischeio de cores e parece muito mais longe do que

____________________________________C.S.Lewis � Crônicas de Nárnia � Vol. VII

266

eu recordava, e os montes são mais... mais... Oh!Não sei explicar!

� Muito mais reais � opinou Lorde Digory,baixinho.

De repente, Sagaz abriu as asas e saiuvoando. Planou no ar a uns dez ou doze metros dealtura, voou em círculos e depois pousou no chãonovamente.

� Reis e rainhas � exclamou �, estávamostodos cegos! Estamos apenas começando aperceber onde nos encontramos. De lá de cima dápara enxergar tudo: o Espelho d�Água, o Diquedos Castores, o Grande Rio, e Cair Paravel aindaresplandecendo às margens do Mar Oriental.Nárnia não morreu. Isto aqui é Nárnia!

� Mas como? ! � disse Pedro. � Aslam disseque nós, os mais velhos, nunca maisregressaríamos a Nárnia; e aqui estamos nós!

� Isso mesmo � concordou Eustáquio. � Evimos tudo ser destruído e o sol se apagar.

____________________________________C.S.Lewis � Crônicas de Nárnia � Vol. VII

267

� E tudo é tão diferente! � acrescentouLúcia.

� A águia tem razão � disse Lorde Digory.� Ouça, Pedro. Quando Aslam disse que vocêsnunca mais poderiam voltar a Nárnia, ele sereferia à Nárnia em que vocês estavam pensando.Aquela, porém, não era a verdadeira Nárnia. Elateve um começo e um fim. Era apenas umasombra, uma cópia da verdadeira Nárnia quesempre existiu e sempre existirá aqui, da mesmaforma que o nosso mundo é apenas uma sombraou uma cópia de algo do verdadeiro mundo deAslam. Lúcia, você não precisa prantear Nárnia.Todas as criaturas queridas, tudo o que importavada velha Nárnia foi trazido aqui para a verdadeiraNárnia, através daquela Porta. Tudo é diferente,sim; tão diferente quanto uma coisa real difere desua sombra, ou como a vida real difere de umsonho.

Enquanto ele falava essas palavras, sua vozfez todo mundo estremecer, como ao som de umatrombeta. Mas quando ele acrescentou: �Está tudo

____________________________________C.S.Lewis � Crônicas de Nárnia � Vol. VII

268

em Platão, tudo em Platão... Caramba! Gostaria desaber o que essas crianças aprendem na escola!�,os mais velhos desataram a rir. Era exatamenteisso que ele costumava dizer muito tempo atrás,naquele outro mundo, onde sua barba era grisalhaem vez de dourada. Ele sabia por que elesestavam rindo, por isso começou a rir também.Mas não tardaram a ficar sérios de novo, pois,como você sabe, existe um certo tipo de felicidadee assombro que faz a gente ficar séria. É bomdemais para se estragar com piadinhas.

É tão difícil explicar a diferença entre essaterra ensolarada e a antiga Nárnia, quanto dizerque gosto tinham as frutas daquele país. Talvezvocê consiga ter alguma idéia se pensar noseguinte: faça de conta que está em uma sala cujajanela dá para uma bonita baía, ou para um valeverdinho que se perde de vista entre asmontanhas. Na parede oposta à janela existe umgrande espelho. Agora olhe pela janela. Ao sevoltar, você se depara com a mesma vista do marou do vale no espelho. E, no espelho, o mar ou ovale são, num certo sentido, exatamente a mesma

____________________________________C.S.Lewis � Crônicas de Nárnia � Vol. VII

269

coisa que os reais. Ao mesmo tempo, porém,existe algo diferente: são mais vivos, maismaravilhosos, mais parecidos com os lugares deuma história que você, apesar de jamais terouvido, gostaria muitíssimo de escutar. Pois bem:a diferença entre a Nárnia antiga e a nova era algoassim. Os campos da nova Nárnia eram muitomais vivos: cada rocha, cada flor, cada folhinhade grama parecia ter um significado ainda maior.Não há como descrevê-la: se algum dia vocêchegar lá, então compreenderá o que quero dizer.

Foi o unicórnio quem resumiu o que todosestavam sentindo. Cravou a pata dianteira nochão, relinchando, e depois exclamou:

� Finalmente voltei para casa! Este, sim, é omeu verdadeiro lar! Aqui é o meu lugar. É esta aterra pela qual tenho aspirado a vida inteira,embora até agora não a conhecesse. A razão porque amávamos a antiga Nárnia é que ela, às vezes,se parecia um pouquinho com isto aqui. � Eacrescentou, soltando um longo relincho: �Avancemos! Continuemos subindo!

____________________________________C.S.Lewis � Crônicas de Nárnia � Vol. VII

270

Então sacudiu a crina e partiu a todo galope�um galope de unicórnio, que, se fosse em nossomundo, o teria feito desaparecer em pouquíssimotempo. Mas foi aí que aconteceu a coisa maisestranha. Todos os outros começaram a corrertambém e, para sua própria surpresa, descobriramque conseguiam acompanhá-lo � não somente oscães e os humanos, mas também o gorduchoConfuso e até o anão Poggin, com suas perninhascurtas. O vento golpeava-lhes o rosto como seestivessem viajando em alta velocidade em umcarro sem pára-brisas. Os campos passavamvoando como se fossem vistos das janelas de umtrem-bala. E, embora corressem cada vez maisrápido, ninguém sentia calor, nem cansaço, nemficava sem fôlego.

____________________________________C.S.Lewis � Crônicas de Nárnia � Vol. VII

271

16

ADEUS ÀS TERRASSOMBRIAS

Acho que, se a gente pudesse correr semnunca se cansar, nunca mais iria querer parar. Masàs vezes existem razões muito especiais para separar. E foi por um motivo especial que Eustáquiogritou, a certa altura:

� Cuidado, pessoal! Vejam para ondeestamos indo!

E fez muito bem. Logo à frente deles estavao Lago do Caldeirão e, mais adiante, os altos,íngremes e inescaláveis penhascos, dos quaisdesabavam toneladas e toneladas de água a cadasegundo: em alguns lugares, brilhando comodiamantes; em outros, parecendo vidro verde. Eraa grande cachoeira, cujo barulho ensurdecedor jálhes chegava aos ouvidos.

____________________________________C.S.Lewis � Crônicas de Nárnia � Vol. VII

272

� Não parem! Continuem avançando! Nãodesanimem!

Mal se ouvia a voz do unicórnio, tal era otrovejar da água. E, no momento seguinte, todos oviram precipitar-se nas águas do lago. Logo atrásdele, esguichando água para todo lado, os outrosfizeram o mesmo.

A água não estava fria de doer como todos(principalmente Confuso) esperavam: aocontrário, parecia uma espuma fresquinha edeliciosa. E logo todos perceberam que estavamnadando direto ao encontro da catarata.

� Isto é uma loucura total! � disseEustáquio a Edmundo.

� Eu sei. Mesmo assim... � respondeu ele.� Não é maravilhoso? � exclamou Lúcia. �

Vocês já notaram que não dá para ficar commedo, mesmo que se queira? Experimentem!

� Caramba! É mesmo! � disse Eustáquio,depois de tentar.

____________________________________C.S.Lewis � Crônicas de Nárnia � Vol. VII

273

O primeiro a chegar ao pé da cascata foiPrecioso, seguido logo atrás por Tirian. A últimafoi Jill, por isso ela pôde ver tudo muito melhorque os outros. Avistou uma coisa brancamovendo-se cachoeira acima. Era o unicórnio.Não dava para dizer se ele estava nadando ouescalando, mas continuava subindo, subindo, cadavez mais alto. A ponta de seu chifre repartia aágua acima de sua cabeça, fazendo-a jorrar comoduas cataratas, refletindo as cores do arco-íris emvolta de suas espáduas. Logo atrás dele vinha o reiTirian, que movia os braços e as pernas como seestivesse nadando, mas seguindo direto para cima,como quem sobe nadando as paredes de uma casa.

Os mais engraçados eram os cães. Durantetoda a corrida não haviam perdido o fôlego umaúnica vez. Agora, porém, à medida queziguezagueavam cachoeira acima, só se ouviamespirros e era uma bulha tremenda à sua volta.Acontece que continuavam latindo, e cada vezque o faziam ficavam com a boca e o focinhocheios de água. Antes, porém, que Jill tivessetempo de prestar muita atenção a esses detalhes,

____________________________________C.S.Lewis � Crônicas de Nárnia � Vol. VII

274

viu-se ela própria subindo pela cachoeira. Era otipo de coisa que seria completamente impossívelde acontecer no nosso mundo. Mesmo que não seafogasse, a gente acabaria toda estraçalhada láembaixo, esmagada pelo peso terrível das águascontra os incontáveis entalhes dos penhascos. Masnaquele mundo, não. Você continuava subindo,subindo, com luzes de todo tipo refletindo sobrevocê e toda sorte de pedras coloridasresplandecendo através da água (como se vocêestivesse escalando a própria luz) � e isso cadavez mais para cima, até que a sensação de altura odeixasse apavorado (se isso fosse possível), eentão era gloriosamente excitante.

Finalmente, chegaram à agradável e suavecurva verde de onde a água despencava rochedoabaixo e descobriram que estavam sobre asuperfície do rio, acima da cachoeira. Acorrenteza continuava às suas costas; eles, porém,como exímios nadadores, simplesmente seguiamnadando contra a correnteza. Em pouco tempo,todos estavam na margem, ensopados mas felizes.

____________________________________C.S.Lewis � Crônicas de Nárnia � Vol. VII

275

Um imenso vale estendia-se à sua frente, egrandes montanhas nevadas, agora muito maispróximas, erguiam-se contra o céu.

� Continuem avançando! Mais para cima emais para dentro! � exclamou Precioso. Numinstante estavam todos a caminho novamente.

Encontravam-se agora fora de Nárnia, empleno deserto ocidental, numa região que nemTirian, nem Pedro, nem mesmo a águia jamaishaviam visto antes. Lorde Digory e Lady Polly,porém, já haviam estado lá. �Você se lembra?Você se lembra?�, diziam de vez em quando umao outro, numa voz firme que não revelava omínimo sinal de cansaço, embora o grupo inteiroestivesse agora correndo mais rápido que umaflecha.

� O quê, senhor? ! � disse Tirian. � Então émesmo verdade, como dizem as lendas, que vocêsdois estiveram aqui exatamente no dia em que omundo foi criado?

� É verdade � respondeu Digory. � E paramim é como se tivesse sido ainda ontem.

____________________________________C.S.Lewis � Crônicas de Nárnia � Vol. VII

276

� E isso num cavalo voador? � indagouTirian.

� Isso também é verdade?� Certamente � disse Lorde Digory.

Os cães, entretanto, começaram a latir:�Rápido! Rápido! Mais rápido!�

Assim, aceleraram o passo, cada vez maisdepressa, a tal ponto que mais pareciam estarvoando que correndo; nem mesmo a águia, que ossobrevoava, parecia estar indo mais rápido queeles. E passaram por vales sinuosos, um após ooutro, escalaram encostas escarpadas de enormesprecipícios e, cada vez mais velozes, descerampelo outro lado, seguindo o rio e às vezesatravessando-o. Deslizaram por lagos sobre asmontanhas como lanchas-voadoras, até que,finalmente, na extremidade mais distante de umlago cujas águas pareciam turquesa, chegaram auma montanha verde e plana. Seus lados eram tãoíngremes quanto os lados de uma pirâmide, e bemno topo, e ao redor dele, havia uma muralhaverde. Acima da muralha, erguiam-se galhos de

____________________________________C.S.Lewis � Crônicas de Nárnia � Vol. VII

277

árvores cujas folhas pareciam de prata e os frutos,de ouro.

� Continuem avançando! Continuemsubindo! � bradou mais uma vez o unicórnio.

Todos se precipitaram para o pé damontanha e então se viram disparando montanhaacima, quase como as águas de uma onda querebenta contra uma rocha na beira da praia.Embora o declive fosse tão íngreme quanto aparede de uma casa, e a grama tão lisa quanto umapista de boliche, ninguém escorregava. Somentedepois de atingir o topo da montanha é quediminuíram a velocidade � e isso só porque deramde cara com uns enormes portões de ouro. Por unsmomentos, nenhum deles foi suficientementecorajoso para testar os portões e ver se abriam ounão. Todos tinham a mesma sensação que haviamexperimentado quanto às frutas: �Será queousamos, ou não? É certo fazer isso? Será quepodemos entrar?�

Mas enquanto hesitavam, em pé, ouviu-se osom de uma grande trombeta, maravilhosamente

____________________________________C.S.Lewis � Crônicas de Nárnia � Vol. VII

278

alto e doce, vindo de alguma parte lá de dentro dojardim cercado de muros. Então os portões seescancararam.

Tirian ficou parado, com a respiração presa,imaginando quem iria aparecer. E o que apareceufoi a coisa que ele menos esperava: um pequeninoe lustroso rato falante, de olhos brilhantes,trazendo um diadema com pluma vermelha nacabeça e a pata esquerda levemente pousada sobreo punho de uma comprida espada. O ratoinclinou-se, numa graciosa reverência, e disse nasua vozinha estridente:

� Bem-vindos, em nome do Leão!Continuem avançando! Continuem subindo!

Então Tirian viu o rei Pedro, o rei Edmundoe a rainha Lúcia colocarem-se imediatamente dejoelhos e saudarem o rato, todos exclamando:�Ripchip!� A surpresa foi tamanha que o coraçãode Tirian disparou, quase sem poder respirar, poisele se deu conta de que ali, à sua frente, estava umdos grandes heróis de Nárnia: Ripchip, o Rato,que lutara na grande Batalha do Beruna e que,

____________________________________C.S.Lewis � Crônicas de Nárnia � Vol. VII

279

depois disso, navegara até o fim do mundo emcompanhia do rei Caspian, o Navegador. Estavaainda meio atordoado, quando sentiu dois fortesbraços rodearem seus ombros e um beijo combarba tocar-lhe a face; e ouviu uma voz da qual selembrava muito bem:

� Puxa, rapaz! Estás muito mais robusto emais alto do que quando te abracei a última vez!

Era seu próprio pai, o bom rei Erlian. Não,porém, como Tirian o vira pela última vez,quando fora trazido para casa pálido e ferido dasua luta com o gigante, nem mesmo como orecordava nos seus últimos anos, um velhoguerreiro de cabelos grisalhos. Aquele ali era oseu pai; o jovem alegre e jovial de quando Tiriannão passava ainda de um menininho e com o qualbrincava nos jardins do castelo de Cair Paravel,nas noites de verão, antes de ir para a cama. Omesmo cheiro de pão com leite que costumavamcomer ao jantar veio-lhe outra vez à memória.Precioso pensou consigo: �Vou deixá-losconversando um pouco e ver se encontro o bom

____________________________________C.S.Lewis � Crônicas de Nárnia � Vol. VII

280

rei Rilian para cumprimentá-lo. Quantas maçãssuculentas ele me deu quando eu não passava deum potrinho!� Mas, no mesmo instante, mudou deidéia, pois à entrada do portão surgiu um cavalotão imponente e nobre, que faria até mesmo umunicórnio sentir-se tímido na sua presença: era umenorme cavalo alado. Ele olhou um instante paraLorde Digory e Lady Polly e então relinchou:

� Priiimos! Vocês? ! � Os doisexclamaram:

� Pluma! Pluma, velho de guerra! � esaíram correndo ao seu encontro para beijá-lo.

Entrementes, o Rato estava novamenteapressando-os a entrar. Assim, todos transpuseramos portões dourados e ingressaram no jardim,onde os envolveu um delicioso aroma. A luz dosol mesclava-se suavemente com a sombra dasárvores, e eles caminhavam sobre um relvadoprimaveril salpicado de florzinhas brancas. Aprimeira coisa que chamou a atenção de todos foique o lugar era muito maior do que parecia, vistodo lado de fora. Ninguém, contudo, teve tempo de

____________________________________C.S.Lewis � Crônicas de Nárnia � Vol. VII

281

pensar nisso, pois de todas as direções começarama aparecer pessoas para saudar os recém-chegados.

Todo mundo que se possa imaginar (isto é,quem conhece a história desses países) pareciaestar ali: a coruja Plumalume e o paulamaBrejeiro; o rei Rilian com seu pai, o rei Caspian, esua mãe, a filha da Estrela; e, bem pertinho deles,Lorde Drinian e Lorde Bern, o anão Trumpkin e oCaça-trufas, o bom texugo, bem como o centauroCiclone e centenas de outros heróis da grandeguerra da libertação.

E então, de um outro canto, surgiu o rei Corda Arquelândia junto com seu pai, o rei Luna, esua esposa, a rainha Aravis; com eles estavam opríncipe Corin Mão-de-Ferro, o cavalo Bri e aégua Huin. Em seguida apareceram, de umpassado ainda mais remoto, os dois bons castorese o fauno Tumnus � o que, aos olhos de Tirian, foia maravilha das maravilhas. E só se ouviamcumprimentos, beijos, apertos de mãos e velhasbrincadeiras (vocês nem imaginam como é bom

____________________________________C.S.Lewis � Crônicas de Nárnia � Vol. VII

282

contar de novo uma velha piada, depois de unsquinhentos ou seiscentos anos!). E o grupo inteirofoi se movendo lentamente para o centro dopomar, onde a fênix estava pousada no alto deuma árvore, contemplando-os. Ao pé daquelaárvore havia dois tronos e, nestes, um rei e umarainha tão majestosos e belos que todos seinclinaram perante eles. E fizeram muito bem,pois aqueles dois eram o rei Franco e a rainhaHelena, de quem descendiam todos os reis maisantigos de Nárnia e da Arquelândia. Tirian sentiu-se como você também se sentiria caso fossetrazido à presença de Adão e Eva em toda a suaglória.

Cerca de meia hora mais tarde (ou bempoderia ter sido uns cinqüenta anos mais tarde,pois o tempo ali não é como o tempo aqui), Lúciaencontrava-se ao lado do fauno Tumnus, o maisantigo de seus amigos narnianos. Juntos,contemplavam, por cima do muro do jardim, aterra inteira de Nárnia estendida lá embaixo. Aoolhar lá de cima, perceberam que aquelamontanha era muito mais alta do que imaginavam:

____________________________________C.S.Lewis � Crônicas de Nárnia � Vol. VII

283

descia milhares de quilômetros de reluzentesprecipícios abaixo deles, e as árvores naquelemundo lá embaixo mais pareciam grãozinhos desal verde. Lúcia virou-se outra vez para dentro e,de costas para o muro, contemplou o jardim.

� Ah! � disse afinal, pensativa. � Agoraestou percebendo. Este jardim é como o estábulo.É muito maior do lado de dentro do que parecevisto de fora.

� Naturalmente, Filha de Eva � disse ofauno. � Quanto mais se sobe e mais se entra,maior tudo vai ficando. O interior é muito maiorque o exterior.

Depois de olhar atentamente para o jardim,Lúcia percebeu que, na verdade, aquilo não erajardim coisa nenhuma. Era, isto sim, umverdadeiro mundo, com seus próprios rios,florestas, mares e montanhas. Estes, porém, nãolhe eram estranhos: ela os conhecia todos.

� Agora estou entendendo � disse ela. � Istoaqui ainda é Nárnia, e muito mais real e formosado que aquela Nárnia lá embaixo, da mesma

____________________________________C.S.Lewis � Crônicas de Nárnia � Vol. VII

284

forma que aquela parecia bem mais real e bonitado que a Nárnia que se via do lado de fora daporta do estábulo. Agora estou entendendo... Ummundo dentro de outro mundo, uma Nárnia dentrode uma outra Nárnia...

� Isso mesmo � concordou o fauno. � Iguala uma cebola, só que ao contrário: quanto maispara dentro, maior o anel.

Lúcia começou a olhar de um lado paraoutro e logo descobriu que algo novo e lindo lheacontecera. Quando mirava alguma coisa,qualquer que fosse e por mais distante queestivesse, uma vez que fixasse firmemente osolhos, esta tornava-se perfeitamente visível e tãopróxima como se ela estivesse olhando através deum telescópio. Ela enxergava perfeitamente todoo Deserto do Sul e, mais adiante, a grande cidadede Tashbaan. Olhando para o Oriente dava paraver Cair Pa-ravel à beira do mar e até mesmo ajanela do quarto que um dia havia sido seu. E lálonge, no mar, descobriu as ilhas, uma após outra,até chegar ao fim do mundo; e lá, depois do fim

____________________________________C.S.Lewis � Crônicas de Nárnia � Vol. VII

285

do mundo, a imensa montanha que costumavamchamar de País de Aslam. Agora, porém, percebiaque esta fazia parte de uma grande cadeia demontanhas que formavam um anel à volta domundo inteiro. A sua frente pareciam estar bempertinho.

Depois ela desviou os olhos para a esquerdae viu o que lhe pareceu ser uma grande nuvemcolorida, separada deles por um espaço vazio. Aoolhar com mais atenção, viu que não era nuvemalguma, e, sim, uma terra de verdade. E após fixarfirmemente os olhos em um ponto específicodaquela terra, exclamou, de repente:

� Pedro! Edmundo! Venham ver uma coisa!Depressa!

Eles vieram e olharam, pois seus olhostambém haviam se tornado como os dela.

� Não pode ser! � exclamou Pedro. � É aInglaterra! E olhem só a casa... a velha casa doprofessor, lá no campo, onde começaram todas asnossas aventuras!

____________________________________C.S.Lewis � Crônicas de Nárnia � Vol. VII

286

� Eu pensei que aquela casa havia sidodestruída � disse Edmundo.

� E foi � disse o senhor Tumnus. � Mas oque você está vendo agora é a Inglaterra dentro daInglaterra, a verdadeira Inglaterra, do mesmo jeitoque isto aqui é a verdadeira Nárnia. E naquelaInglaterra interior nada de bom pode serdestruído.

Subitamente, desviaram os olhos para outradireção, fixando-os num outro ponto. EntãoPedro, Edmundo e Lúcia arregalaram os olhos,boquiabertos e perplexos, e começaram a gritar eacenar com as mãos, pois do lado de lá do grandee profundo vale avistaram seu pai e sua mãeacenando também para eles.

� Como é que vamos conseguir chegar lá? �perguntou Lúcia.

� Isso é fácil � disse o fauno. � Tanto estaterra quanto aquela (como todos os países deverdade) são apenas pontinhas salientes dasgrandes montanhas de Aslam. Só precisamoscaminhar ao longo da cordilheira, subindo e

____________________________________C.S.Lewis � Crônicas de Nárnia � Vol. VII

287

descendo até que as duas terras se encontrem.Escutem! É a trombeta do rei Franco. Está na horade subirmos, todos nós.

Logo se viram caminhando (e atrás delesuma enorme e brilhante procissão), subindo rumoa montanhas mais altas do que jamais se poderiaimaginar neste mundo, mesmo que existissem epudessem ser vistas aqui. Naquelas montanhas,porém, não havia neve: só florestas, docespomares, cachoeiras reluzentes, uma acima daoutra, subindo para sempre. E à medida quesubiam, a terra por onde passavam ia se tornandocada vez mais estreita, com um vale profundo decada lado. E, do outro lado do vale, a terra que eraa verdadeira Inglaterra ia ficando mais e maisperto.

A luz adiante foi ficando cada vez maisforte, e Lúcia notou que uma infinidade depenhascos multicoloridos erguia-se à frente deles,como uma escadaria gigante. Mas então elaesqueceu de tudo o mais, pois Aslam estava

____________________________________C.S.Lewis � Crônicas de Nárnia � Vol. VII

288

chegando, descendo, saltando de um rochedo paraoutro como uma cascata viva de beleza e poder.

E a primeira pessoa que Aslam chamoupara perto de si foi o jumento Confuso. Nunca umjumento pareceu tão bobo e sem jeito quantoConfuso ao se dirigir ao encontro de Aslam. Aolado deste, ele mais parecia um gatinho perto deum cão São Bernardo. O Leão abaixou a cabeça esussurrou para o jumento algo que fez murcharemsuas compridas orelhas. Mas, logo em seguida,Aslam lhe disse algo que fez suas orelhas seempinarem de novo. Os humanos não conseguiamescutar coisa alguma. Então Aslam voltou-se paraeles, dizendo:

� Vocês ainda não parecem tão felizescomo eu gostaria.

� É que estamos com medo de sermandados embora, Aslam! Já fomos mandados devolta ao nosso próprio mundo muitas vezes.

� Não precisam ter medo � disse o Leão. �Vocês ainda não perceberam?

____________________________________C.S.Lewis � Crônicas de Nárnia � Vol. VII

289

Sentiram o coração pulsar forte e uma leveesperança foi crescendo dentro deles.

� Aconteceu mesmo um acidente com otrem �explicou Aslam. � Seu pai, sua mãe e todosvocês estão mortos, como se costuma dizer nasTerras Sombrias. Acabaram-se as aulas: chegaramas férias! Acabou-se o sonho: rompeu a manhã!

E, à medida que Ele falava, já não lhesparecia mais um leão. E as coisas que começarama acontecer a partir daquele momento eram tãolindas e grandiosas que não consigo descrevê-las.Para nós, este é o fim de todas as histórias, epodemos dizer, com absoluta certeza, que todosviveram felizes para sempre. Para eles, porém,este foi apenas o começo da verdadeira história.Toda a vida deles neste mundo e todas as suasaventuras em Nárnia haviam sido apenas a capa ea primeira página do livro. Agora, finalmente,estavam começando o Capítulo Um da GrandeHistória que ninguém na terra jamais leu: ahistória que continua eternamente e na qual cadacapítulo é muito melhor do que o anterior.

____________________________________C.S.Lewis � Crônicas de Nárnia � Vol. VII

290

Fim do Vol. VII