A Universidade (Federal) do Ceará, entre o Benfica e a Gentilândia: espaços, lugares e memórias.

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    UNIVERSIDADE FEDERAL DO CEAR

    CENTRO DE HUMANIDADES

    DEPARTAMENTO DE HISTRIA

    PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM HISTRIA SOCIAL

    RENATO MESQUITA RODOLFO

    A UNIVERSIDADE (FEDERAL) DO CEAR ENTRE O BENFICA E A

    GENTILNDIA: ESPAOS, LUGARES E MEMRIAS (1956-1967)

    Fortaleza

    2015

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    RENATO MESQUITA RODOLFO

    A UNIVERSIDADE (FEDERAL) DO CEAR ENTRE O BENFICA E A

    GENTILNDIA: ESPAOS, LUGARES E MEMRIAS (1956-1967)

    Dissertao de Mestrado apresentada ao

    Programa de Ps-Graduao em Histria

    Social do Departamento de Histria da

    Universidade Federal do Cear, comorequisito parcial para obteno do Ttulo de

    Mestre em Histria Social. rea de

    concentrao: Histria Social.

    Orientador: Prof. Dr. Antonio Gilberto

    Ramos Nogueira

    FORTALEZA

    2015

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    Dados Internacionais de Catalogao na PublicaoUniversidade Federal do Cear

    Biblioteca de Cincias Humanas

    R597u Rodolfo, Renato Mesquita.A Universidade (Federal) do Cear entre o Benfica e a Gentilndia : espaos, lugares e memrias

    (1956-1967) / Renato Mesquita Rodolfo. 2015.166 f. : il. color., enc. ; 30 cm.

    Dissertao (mestrado)Universidade Federal do Cear, Centro de Humanidades,Departamento de

    Histria, Programa de Ps-Graduao em Histria Social, Fortaleza, 2015.rea de Concentrao: Histria social.Orientao: Prof. Dr. Antonio Gilberto Ramos Nogueira.

    1.BairrosAspectos sociaisFortaleza(CE)1956-1967. 2.Benfica(Fortaleza,CE)Usos ecostumes1956-1967. 3.Vida urbana Benfica(Fortaleza,CE)1956-1967. 4.Espaos pblicosAspectos sociaisBenfica(Fortaleza,CE)1956-1967. 5.Universidades e faculdades pblicasAspectos sociaisBenfica(Fortaleza,CE)1956-1967. 6.Universidade Federal do Cear. I.Ttulo.

    CDD 918.1310904

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    minha esposa Nayara Melo

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    AGRADECIMENTOS

    CAPES, pelo apoio financeiro dado por meio da bolsa e da manuteno desta

    durante todo o curso.Ao Prof. Dr. Antonio Gilberto Ramos Nogueira, pelas excelentes orientaes,

    frente a frente ou distncia, que foram muito importantes para a concretizao desse

    trabalho e para o engrandecimento pessoal e profissional. Tambm pelo apoio

    constante, compreenso e amizade que foram igualmente importantes.

    Aos membros da banca examinadora, Prof. Dr. Ana Rita Fonteles Duarte,

    Prof. Dr. Antnio Luiz Macdo e Silva Filho (por ocasio do exame de qualificao) e

    Prof. Dr. Gisafran Nazareno Mota Juc pelas contribuies dissertao.

    Aos integrantes do Memorial da UFC, em especial ao Sr. Assis Martins e

    Josiane Vieira, pela constante ajuda na busca de fontes, nos contatos e nas

    sugestes.

    Aos professores e professoras que ministraram as disciplinas no decorrer do

    mestrado e que de muito engrandeceram o presente trabalho.

    coordenao da Ps-Graduao.

    Aos colegas/amigos do GEPPM, pelas discusses sempre pertinentes, pelas

    contribuies e sugestes que vieram a se incorporar e engrandecer o presente texto.

    Tambm pelos momentos de confraternizao e descontrao que foram

    importantssimos para se desprender um pouco das leituras, pesquisas e escritas.

    Aos colegas/amigos da turma de mestrado pela fora nos momentos de

    angstia, pelas alegrias nos momentos de confraternizao, pelo companheirismo que

    resistiu ao fim das aulas e por partilharmos as mais variadas sensaes no decorrer

    do curso. Em especial ao Anderson Galvo por ter sido a ponte area de textos no

    momento em que a distncia se mostrou uma dificuldade.

    Ao Zildemar, Anderson Galvo (mais uma vez) e Emanuela (Maninha), por

    facilitarem os contatos iniciais com os entrevistados/narradores que foram de enorme

    importncia na realizao desse trabalho.

    Aos entrevistados, pelo tempo dispendido, pelas narrativas, muitas vezes

    encantadoras, e pela concesso sem ressalvas para o uso na composio do

    presente texto.

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    Ao Prof. Ps-Dr. Gildo Magalhes dos Santos Filho, pelas discusses,

    sugestes de textos e contribuies que compuseram partes importantes desse

    trabalho.

    Aos amigos/irmos de sempre: Israel, Vicente, Victor, Paulo, Gustavo, Joo

    Paulo e Pedro, pelos momentos musicais/etlicos/terico-filosficos. Em especial ao

    Israel, pelo presente que possibilitou a corporificao da profuso de sentimentos que

    uma dissertao de mestrado.

    Aos amigos/companheiros/padrinhos/irmos: Rafael, Jelliffer, Edson e Karol,

    pela amizade acima de tudo, pelo carinho e companheirismo que se mantiveram

    mesmo distncia.

    minha famlia, em especial s minhas duas mes, Zlia e Franci, pela criao,educao e carinho. Ao meu tio, Alber, pelas conversas despretensiosas.

    minha esposa, Nayara Melo, pelo apoio dirio, pela compreenso

    incondicional, pelo estmulo constante, pela parceria de sempre. Te amo.

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    RESUMO

    Este trabalho analisa a instalao da Universidade (Federal) do Cear e o espao

    ocupado por ela no Benfica e na Gentilndia, atentando para as relaes espaciais emnemnicas que implicaram nessa insero. Desenvolvida no mbito do Grupo de

    Estudos e Pesquisas em Patrimnio e Memria (GEPPM/UFC-Cnpq), a pesquisa

    toma como marco de ocupao desses espaos pela Universidade, fundada em 1954,

    a aquisio e posterior inaugurao da atual sede da Reitoria em junho de 1956, no

    bairro Benfica. A partir desse ponto a instituio empreendeu uma poltica de

    expanso ao redor de sua sede administrativa imprimindo modificaes que alteraram

    as dinmicas do viver, do morar e do passar no bairro. Historicamente, o espao

    ocupado pela Universidade fora marcado por fases distintas de ocupao e

    deslocamentos ditados pela experincia de modernizao pela qual passava a cidade

    de Fortaleza. No contexto em que a Universidade se insere, alguns membros da elite

    que havia se fixado no Benfica, entre o final do sculo XIX e incio do sculo XX,

    estavam se mudando para a Aldeota e Praia de Iracema, facilitando a insero da

    instituio no bairro. Ao mesmo tempo que a Universidade do Cear foi se expandindo

    e se apropriando de imveis no Benfica, outras dinmicas e sensibilidades operaram

    a nova configurao daquele espao. As intervenes operadas pela referida

    instituio possibilitaram a formao de um novo referencial para o Benfica, o de bairro

    universitrio. Esse referencial, por sua vez, baseou-se em memrias construdas junto

    s atividades universitrias, tendo em vista que essas aes foram impondo no bairro

    fixos e fluxos universitrios. Buscou-se identificar, ao longo do presente trabalho,

    como esse referencial foi se formando e as implicaes dessa formao na relao

    dos moradores com o bairro e com a Universidade, tendo em vista que as memrias

    desses sujeitos amparam-se tambm num contexto anterior insero dessa

    instituio e resistiram, em alguns casos, s imposies dela.

    Palavras-chave: Cidade. Memria Universidade Federal do Cear. Benfica.

    Gentilndia.

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    RESUM

    Ce travail analyse l'installation de l'Universit (Fdrale) du Cear et l'espace occup

    par cette institution dans le quartier Benfica et le quartier Gentilndia Fortaleza, enfaisant attention aux relations spatiales et mnmoniques qui a entran dans cet

    encart. Dvelopp au sein du Grupo de Estudos e Pesquisas em Patrimnio e

    Memria(GEPPM/UFC-CNPq), la recherche prend comme point de rfrence pour

    remplir ces espaces par l'Universit, fonde en 1954, l'acquisition et l'inauguration

    ultrieure du sige actuel de son Rectorat en juin 1956, dans le quartier Benfica. A

    partir de l, l'institution a entrepris une politique d'expansion autour de son sige

    administratif, les modifications qui ont modifi la dynamique de la vie, le vivre et le

    promener dans le quartier. Historiquement, l'espace occup par l'Universit a t

    marque par des phases distinctes d'occupation et de dplacement imposes par la

    modernisation de l'exprience qui a adopt la ville de Fortaleza. Dans le contexte dans

    lequel l'Universit est insre, certains membres de l'lite qui avait t fix dans le

    cartier Benfica, entre la fin du XIXe sicle et dbut du XXe sicle, se dplaant au

    quartier Aldeota et le quartier Praia de Iracema, en facilitant l'insertion de l'institution

    dans le quartier Benfica. Alors que l'Universit du Cear tait en expansion et de

    l'appropriation des biens immobiliers dans le quartier Benfica, d'autres dynamiques et

    sensibilits exploits la nouvelle configuration de cet espace. Les interventions faites

    par cette institution ont permis la formation d'un nouveau cadre pour le quartier

    Benfica, l'un de quartier universitaire. Cette rfrence, son tour, reposait sur

    souvenirs construits avec des activits universitaires, considrant que ces actions

    s'imposaient dans les flux et fixes acadmiques. Cherchant identifier, tout au long de

    ce travail, que ce cadre se formait et les implications de cette formation dans la relation

    des habitants avec le quartier et avec l'Universit, tant donn que les souvenirs de

    ces sujets sont galement renforcent un contexte plus tt pour l'inclusion de cette

    institution et rsist dans certains cas, les impositions de lui.

    Mots-cls :Ville. Mmoire. Universit Fdral du Cear. Benfica. Gentilndia.

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    LISTA DE FIGURAS

    Figura 1 Mapa de Fortaleza com as delimitaes dos bairros..............................43

    Figura 2 Planta da Cidade de Fortaleza Capital da Provncia do Cear Levantadapor Adolpho Herbster 1888....................................................................44

    Figura 3 Mapa das linhas de bondes de Fortaleza em 1910................................46

    Figura 4 Mapa de Localizao das Instituies de Ensino Superior de Fortaleza

    em 1956.................................................................................................64

    Figura 5 Mapa de apropriao da UFC no Benfica por ordem cronolgica..........82

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    LISTA DE FOTOGRAFIAS

    Fotografia 1 Famlia Gentil em frente fachada da antiga chcara.......................50

    Fotografia 2 Palacete da Famlia Gentil.................................................................50Fotografia 3 Vista area da Reitoria e Concha Acstica da Universidade do

    Cear............................................................................................... 55

    Fotografia 4 Desfile de abertura dos II Jogos Universitrios do Cear promovidos

    pelo Diretrio Central dos Estudantes...............................................72

    Fotografia 5 Maquete das novas unidades instaladas em torno da Reitoria..........83

    Fotografia 6 Fachada da Reitoria da Universidade do Cear................................88

    Fotografia 7 SOLENIDADE DE COLAO DE GRAU. Presentes tdas as

    Escolas e Faculdades, realizou-se pela primeira vez no Cear uma

    Solenidade nica de Colao de Grau.............................................97

    Fotografia 8 Integrado por 60 figurantes, o Coral de Howard levou Concha

    Acstica crca de 6.000 pessoas, lotando por completo as

    dependncias do grande auditrio universitrio...............................97

    Fotografia 9 Casa de Jos Tom de Saboia e Silva............................................ 103

    Fotografia 10Prdio da Escola de Engenharia da Universidade Federal do

    Cear............................................................................................. 104

    Fotografia 11Imvel que pertencia a Carlos Gracie, no momento de sua venda

    Universidade.................................................................................. 107

    Fotografia 12Inaugurao da Avenida da Universidade, nas proximidades da

    Reitoria, pela Senhora Martins Filho..............................................111

    Fotografia 13Flagrante colhido por ocasio de uma das aulas ministradas pelo

    Prof. Lus Motta, durante o Curso de Extenso Universitria de

    Matemtica................................................................................... 120

    Fotografia 14Abol Foutouhi, Adido Cultural Norte-Americano, aps transmitir ao

    Prof. Martins Filho um convite do seu govrno para visitar os EE.

    UU..................................................................................................122

    Fotografia 15GymnasiumUniversitrio, inaugurado por ocasio das festividades

    de aniversrio da Universidade do Cear.......................................123

    Fotografia 16O Gymnasium Universitrio viveu um de seus grandes dias por

    ocasio da abertura dos IV Jogos Universitrios, dos quais

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    participaram representaes de tdas as unidades

    universitrias..................................................................................124

    Fotografia 17A Senhora Martins Filho inaugura a cabea em bronze do Reitor

    Martins Filho, nos jardins da Reitoria..............................................132

    Fotografia 18Lateral do prdio da Faculdade de Direito de 1938 e anexo inaugurado

    em 1959.......................................................................................... 151

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    LISTA DE TABELAS

    Tabela 1 Populao do Municpio de Fortaleza1900-1960..............................53

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    UFPE Universidade Federal de Pernambuco

    URCA Universidade Regional do Cariri

    UFRJ Universidade Federal do Rio de Janeiro

    USP Universidade de So Paulo

    SCAP Sociedade Cearense de Artes Plticas

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    SUMRIO

    1 INTRODUO ...................................................................................................... 15

    2 A UNIVERSIDADE (FEDERAL) DO CEAR ENTRE O BENFICA E A

    GENTILNDIA ......................................................................................................... 22

    2.1 A criao da Universidade do Cear ............................................................... 22

    2.2 O Benfica e a Gentilndia ............................................................................... 41

    3 LUGARES NA CIDADE......................................................................................... 62

    3.1 A Universidade na cidade e no bairro ............................................................. 62

    3.2 Referenciais fsicos e simblicos .................................................................... 86

    4 UFC, BENFICA E GENTILNDIA COMO ESPAOS DA RECORDAO ......... 112

    4.1 Memrias da Universidade, memrias na Universidade ............................... 1124.1.1 O Boletim da Universidade do Cear como dispositivo de memria .......... 112

    4.1.2 Antnio Martins Filho entre as memrias de si e as memrias da

    Universidade ....................................................................................................... 125

    4.2 Memrias do bairro, memrias no bairro ....................................................... 138

    5 CONSIDERAES FINAIS ................................................................................ 156

    BIBLIOGRAFIA ...................................................................................................... 158

    FONTES ................................................................................................................ 163

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    1 INTRODUO

    O presente trabalho tem por inteno principal discutir os aspectos espaciais e

    mnemnicos em torno da instalao da Universidade Federal do Cear, entoUniversidade do Cear1, no Benfica e na Gentilndia. As vivncias enquanto aluno do

    curso de Histria, entre 2007 e 2010, frequentando diariamente o Campus do Benfica

    e, principalmente, a participao do Grupo de Estudos e Pesquisas em Patrimnio e

    Memria (GEPPM/UFC-CNPq) suscitaram as primeiras questes acerca da

    construo de um projeto de pesquisa que resultou nessa dissertao.

    O caminhar e vivenciar os espaos de uma universidade inserida nas dinmicas

    dos bairros Benfica e Gentilndia levaram ao questionamento inicial: como a UFC seinseriu nesse espao? Participar do GEPPM possibilitou aprofundar os conhecimentos

    sobre essa interveno operada pela referida instituio. Dentro do grupo so

    desenvolvidos projetos e atividades que buscam localizar e problematizar a

    Universidade na cidade e no bairro: o Inventrio de referncias culturais do Benfica,

    um projeto desenvolvido por membros do grupo contou com o financiamento do

    Governo Federal, por meio do Programa de Extenso Universitria (ProExt) na

    inteno de se identificar os diversos referenciais presentes no bairro (acadmico,poltico partidrio, esportivo, musical, arquitetnico, de vizinhana, etc.);e a Trilha do

    Benficaque uma atividade desenvolvida em conjunto com o Programa de Educao

    Tutorial do Departamento de Histria (PET-Histria) visando a insero e ambientao

    de novos alunos no espao do Campus do Benfica por meio de trilhas urbanas, que

    contemplam alguns equipamentos da UFC, e de discusses feitas sobre os espaos

    universitrios e dos bairros.

    Partindo dessas experincias, na vida acadmica e no GEPPM, o presentetrabalho focalizou-se em alguns aspectos levantados pelos referidos projetos e

    atividades, na inteno de historicizar e problematizar a construo do espao da UFC

    nos bairros e como isso interferiu/interfere nas dinmicas do morar, do viver e do

    circular por esses espaos.

    1Optou-se por usar as seguintes menes referentes instituio: Universidade Federal do Cearreferindo-se ao perodo posterior a 1965; Universidade do Cear referindo-se ao contexto que vai dasprimeiras aes para sua fundao, em 1947, at a mudana na nomenclatura, em 1965; eUniversidade (Federal) do Cear quando se faz referncia instituio abrangendo os dois momentos.

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    Amparada nas justificativas de centralizao das instituies de ensino superior

    do Cear e de desenvolvimento regional do Nordeste, a ento Universidade do Cear

    (Universidade Federal do Cear a partir de 1965) foi fundada em dezembro de 1954.

    A instalao da instituio ocorreu em junho de 1955 e no ano seguinte adquiriu a

    sede da atual Reitoria, no Benfica. A partir dessa aquisio o referido bairro tornou-se

    o foco principal das aes de apropriao imobiliria e expanso das unidades

    didticas, administrativas e culturais da Universidade.

    A UC se fixou entre dois bairros, o Benfica e a Gentilndia. O primeiro

    caracterstico por ter sido um dos destinos de parte da elite fortalezense que estava

    se deslocando do Centro no final do sculo XIX e comeo do XX, para onde puderam

    construir grandes residncias com vastos terrenos rodeando-as, margeando a

    Avenida Visconde de Caupe, atual Avenida da Universidade. A Gentilndia, por sua

    vez, formou-se a partir do seccionamento de parte dos terrenos de propriedade de

    Jos Gentil Alves de Carvalho no Benfica, nos quais foram construdas pequenas

    residncias, dispostas em vilas, destinadas locao. Nesse ambiente partilhado por

    membros da elite da poca e por sujeitos dos setores mdios da sociedade,

    trabalhadores assalariados que eram os principais locatrios dos pequenos imveis,

    a Universidade do Cear se inseriu a partir de 1956. A ocupao da Universidade

    nesses espaos foi facilitada, em parte, pelo deslocamento que estava sendo feito por

    parte dessa elite que ali residiu em direo Aldeota e Praia de Iracema.

    Entre 1956 e 1967, concentra-se o maior nmero de imveis adquiridos pela

    referida instituio no Benfica e na Gentilndia. Caracterizando esse momento como

    a expanso e fixao da Universidade no bairro. Aps esse perodo as dificuldades

    de compra de mais imveis vieram por conta da significativa quantidade de pequenas

    residncias e do aumento do valor desses imveis. Aliado a isso estavam tambm as

    intenes do governo militar em concentrar a Universidade em um nico centro, que

    seria no bairro do Alagadio, o que viria a ser o Campus do Pici. Buscou-se perceber

    de que maneiras essa ocupao e apropriao dos espaos foi sendo feita e como

    ela foi interferindo nas dinmicas dos bairros em perspectiva com o processo de

    construo de suas memrias.

    Segundo o gegrafo Milton Santos, o espao de convvio dos sujeitos no deve

    ser compreendido como simplesmente um cenrio, mas sim como um processo de

    construo, um campo de disputas, de conflitos, de vivncias, nos quais so

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    estabelecidos os chamados fluxos (relaes sociais, culturais, econmicas, etc.) e

    fixos (edificaes e vias) (2012a). Sendo assim, ao pensar o Benfica e/ou a

    Gentilndia e a insero da Universidade do Cear no referido contexto, como as

    intervenes operadas e impostas por essa instituio modificaram as dinmicas

    preexistentes? De que maneiras a Universidade do Cear (UC) foi estabelecendo

    fluxos, construindo referenciais para si e para o lugar ocupado por ela, no s no

    bairro, mas na cidade como um todo? Michel de Certeau afirma que o espao o

    lugar praticado (2011a: 184). Que prticas se mantiveram, foram modificadas ou se

    estabeleceram com a insero da Universidade nos bairros? Baseando-se em Santos

    e Certeau, buscou-se responder essas questes ao longo do presente texto, na

    inteno de identificar as maneiras pelas quais a referida instituio ocupou osespaos e neles foi impondo seus fixos e fluxos em meio s dinmicas existentes no

    bairro.

    Dentro das Cincias Humanas, os estudos sobre as memrias e das relaes

    das memrias com os espaos vem se consolidando desde as contribuies de

    Maurice Halbwachs (1990), na dcada de 1930, chegando em Aleida Assmann

    (2011). O socilogo francs, Halbwachs, ao pensar a memria como construda

    socialmente, ampliou as anlises acerca desse aspecto humanos, que at ento era

    explorado somente pela Psicologia e pela Medicina. Ao pensar a memria coletiva e

    o espaoele afirmou que

    Se, entre as casas, as ruas, e os grupos de seus habitantes, no houvesseapenas uma relao inteiramente acidental, e de efmera, os homenspoderiam destruir suas casas, seu quarteiro, sua cidade, reconstruir sobre omesmo lugar uma outra, segundo um plano diferente; mas se a pedras sedeixam transportar, no to fcil modificar as relaes que soestabelecidas entre as pedras e os homens. (1990: 136).

    As relaes entre os indivduos e as pedras esto alm da materialidade, diz

    respeito diz respeito tambm ao sensvel e ao simblico. Corroborando com

    Halbwachs, Assmann afirma que o solo tem, ao mesmo tempo, valor financeiro e valor

    afetivo, posto que mesmo quando se destri determinada edificao, os referenciais

    e sentimentos podem se manter (2011). Desse modo, as prticas dos sujeitos nos

    espaos criam referenciais que so amparados por memrias e sensibilidades. Isso

    ocorre com o Benfica e com a Gentilndia, posto que as vivncias dos sujeitos nesses

    bairros residenciais possibilitaram a formao de referenciais e o estabelecimento de

    sensibilidades de acordo com as formas de praticar os espaos de cada sujeito.

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    Aproximando os conceitos dos dois tericos com o presente trabalho, como as

    memrias sobre o bairro podem ter resistido frente s intervenes nos espaos? Que

    lembranas ampararam esses referenciais que permaneceram frente ocupao

    empreendida pela Universidade? Que memrias se construram, resistiram,

    conflitaram, dialogaram em detrimento ocupao da Universidade do Cear nos

    espaos do bairro?

    As fontes que possibilitaram a feitura desse trabalho abrangem vrias

    tipologias, intentando perceber como as memrias podem estar presentes nesses

    meios e como eles servem/serviram de suporte mnemnico. O Boletim da

    Universidade, um peridico que existiu entre 1956 e meados da dcada de 1980

    (no foi possvel precisar o ltimo), era publicado bimestralmente e tinha a funo de

    registro das atividades universitrias, segundo o que se pde perceber analisando a

    escrita deles e com a coleta de informaes sobre essas publicaes. Entre 1956 e

    1967 foram produzidos 65 boletins que foram digitalizados e inventariados para

    facilitar a leitura e anlise deles. A circulao desse peridico restringia-se s

    bibliotecas, coordenao dos cursos e a alguns professores, apesar de o acesso no

    ser vedado, pode-se dizer que ele era mais uma forma de registro das atividades

    acadmicas do que um veculo de comunicao interna. Essa fonte mostrou-se de

    grande importncia desde a sua produo at o seu contedo, tendo em vista que ao

    publicar esse peridico e atribuir a ele a tarefa de registro, lanou-se o questionamento

    inicial: o que se buscava registrar por meio dessa escrita? Com a leitura dessa fonte

    tambm se pde ver como a instituio registrava suas aes, como se mostrava e

    como produziu discursos sobre si mesma. De certa forma, tambm foi uma maneira

    de construir memrias sobre a prpria instituio. Alm do registro escrito contido nos

    boletins, as publicaes tambm tinham fotografias que, na maioria das vezes,complementava algum texto informativo. A formao de um acervo fotogrfico e ao

    capturar determinados instantes, eventos e equipamentos, entendeu-se aqui como

    parte desse projeto de registro e construo das memrias acerca da/e pela

    Universidade. Mais do que pde ser visto nos boletins, o recurso fotogrfico foi

    largamente usado durante o referido perodo, mas a reproduo e o uso dessas

    imagens que esto arquivadas no Museu da Arte da UFC (MAUC) no presente

    trabalho no foi possvel devido condio de digitalizao e catalogao em queelas se encontram. No se pode separar essas iniciativas dos anseios do ento Reitor,

  • 7/25/2019 A Universidade (Federal) do Cear, entre o Benfica e a Gentilndia: espaos, lugares e memrias.

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    Antnio Martins Filho, tendo em vista que o mesmo tinha grande experincia no ramo

    grfico. Os quatro mandatos consecutivos dele ocupando o cargo de Reitor dessa

    universidade e o grande nmero atividades de registro dos acontecimentos

    universitrios tambm so fortes marcas dessa poca e esto inseridas no referido

    recorte temporal. Isso no pode ser visto como algo despretensioso, pois os boletins

    e o que neles deveria constar estavam carregados de intenes. Os boletins foram,

    ao mesmo tempo, registros das atividades acadmicas e a construo da imagem e

    das memrias da Universidade (Federal) do Cear.

    As relaes de Antnio Martins Filho com a escrita e o ramo grfico foram

    levadas em considerao, tendo em vista que sua produo acerca de suas memrias

    e sobre o que ele denominou por Histria da UFC tambm so tomadas como fonte.

    Por uma Universidade do Cear (1949), Histria abreviada da UFC (1996), os trs

    volumes de suas memrias Menoridade (1991), Maioridade (I-1993; II-1994) e

    Maturidade (1994) e O Outro lado da histriaso tomados tanto como produo

    sobre a Universidade, quanto como produo sobre si mesmo. A produo escrita de

    Martins Filho possibilitou que se atrelasse a ele uma certa autoridade para falar sobre

    a criao e os primeiros anos da referida instituio. Como Martins Filho construiu a

    sua trajetria enquanto liderana no movimento de criao da Universidade do Cear,

    enquanto Reitor e, posteriormente, Reitor Agregado? De que maneira ele influenciou

    nas aes de publicao e registro das atividades universitrias? Ao passo que ele

    produzia essas escritas, confundindo-se sujeito e Universidade, construam-se

    tambm memrias dele, sobre si mesmo e sobre a instituio.

    Os peridicos que circulavam em Fortaleza no perodo em questo tambm se

    mostraram importantes fontes, tanto como veculos informativos das aes para a

    criao da Universidade e, depois disso, das atividades promovidas pela instituio,

    quanto como um campo2 do qual Martins Filho fazia parte enquanto membro da

    Associao Cearense de Imprensa (ACI) e pelo seu relacionamento com os

    proprietrios e editores dos jornais da poca, como O Povo, por meio de Paulo

    Sarazate, e O Nordeste (jornal catlico), por meio do Arcebispo Dom Lustosa. Martins

    2Tomando como base o conceito de campode Bourdieu, que o define como um enquadramento de

    sujeitos que se agrupam em detrimento de relaes polticas, intelectuais, artsticas, etc.,estabelecendo delimitaes e identidades entre si. Nesse caso, os sujeitos que controlavam osperidicos que circulavam em Fortaleza no referido perodo faziam parte, pode-se dizer, de um campoe fazer parte dele seria uma forma de ter seus ideais difundidos. (Cf. BOURDIEU, 2010).

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    Filho, como foi exposto no presente trabalho, circulava por diversos campos existentes

    poca. O Gazeta de Notciase O Povo foram os jornais onde se encontrou com

    maior frequncia referncias sobre a Universidade do Cear. Esses veculos

    miditicos foram tomados como forma de insero da instituio na cidade, por meio

    daquilo que era veiculado sobre ela, ou seja, uma forma pela qual a Universidade era

    noticiada. O uso dos peridicos foi bastante restrito, devido dificuldade do acesso a

    eles por conta do fechamento sumrio do principal rgo de arquivamento dessa

    tipologia de fonte, a Biblioteca Pblica Governador Menezes Pimentel, prejudicando a

    pesquisa, mas no a inviabilizando.

    Para apreender as impresses dos moradores do Benfica e da Gentilndia os

    livros de memrias Benfica de ontem e de hojede Francisco de Andrade Barroso

    (2004) e Rua Carapinima: ecos e conesde Paulo Maria de Arago foram de grande

    importncia, juntamente produo das fontes orais por meio da metodologia da

    Histria Oral. Os livros de memrias foram tomados aqui como produes tambm

    carregadas de intenes, no de uma forma a polarizar, colocando a Universidade

    (Federal) do Cear de um lado e os moradores memorialistas de outro, mas buscando

    identificar como os referencias espaciais e as memrias que os sustentam so

    permeveis e interferem umas nas outras. As narrativas orais, por sua vez no podem

    ser equiparadas aos livros, posto que elas vieram tona por meio de um processo

    produtivo no qual o entrevistador fez questionamentos ao narrador, desse modo, o

    entrevistador se posicionou como um agente na evocao das memrias (ALBERTI,

    2004). Produzir e analisar as fontes orais permitiu a identificao de referenciais

    diversos entre os narradores moradores. Foram tambm realizadas entrevistas com

    funcionrios e ex-funcionrios da UFC com o intuito de identificar nessas narrativas

    perspectivas e impresses daqueles que estavam inseridos e participaram doprocesso de criao e expanso da Universidade no bairro.

    No primeiro captulo buscou-se historicizar as aes de criao da

    Universidade do Cear, salientando e aprofundando no contexto poltico, cultural e

    educacional nacional e local. Problematizando quais mecanismos foram operados

    naquilo que se pode chamar de projeto de universidade, identificando os envolvidos

    para alm de Martins Filho, os percursos feitos por ele na difuso do seu intento e na

    (re)afirmao e construo dele enquanto o lder do movimento de criao daUniversidade do Cear e, posteriormente, Reitor dessa instituio. Na segunda parte

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    do captulo, fez-se a construo do contexto espacial dos bairros Benfica e

    Gentilndia. Fazendo um percurso desde o povoamento, na segunda metade do

    sculo XIX, at o momento que antecede instalao da ento Universidade do

    Cear, atentando para os fluxos e fixos que foram se estabelecendo nos bairros e

    para os referenciais construdos em cada momento. Isso possibilita ao leitor uma

    ambientao do que eram esses bairros em Fortaleza no incio do sculo XX.

    No segundo captulo as discusses em torno das espacialidades so

    aprofundadas, atentando para as formas que a Universidade do Cear se inseria na

    dinmica urbana de Fortaleza e do bairro. As maneiras que a Universidade foi

    construindo as imagens de si, como a imprensa e outros meios de divulgao das

    aes universitria tambm construam imagens sobre a instituio so analisados na

    inteno de perceber os mecanismos que permitiram tanto a insero quanto a

    consolidao da recm-criada instituio de ensino superior na cidade. A promoo

    de eventos culturais, artsticos, esportivos, solenidades oficiais, dentre outros, foram

    aqui interpretadas como formas de insero e demarcao de espaos por parte da

    Universidade. Essas atividades e a ocupao do solo por parte da instituio

    possibilitaram a construo e a afirmao de espaos universitrios como pontos

    referenciais (fsicos e/ou simblicos) no Benfica, na Gentilndia e na cidade.

    Por ltimo, no terceiro captulo, buscou-se analisar as formas pelas quais a

    Universidade (Federal) do Cear construiu narrativas e registrou suas atividades

    enquanto instituio de ensino superior. Os Boletins da Universidade do Cear, as

    fotografias presentes neles e as memrias de Antnio Martins Filho foram as principais

    fontes usadas no primeiro tpico do captulo. Por meio delas se buscou perceber como

    a instituio e o seu primeiro Reitor construram as imagens de si e como isso

    possibilitou a formao de referenciais sobre a Universidade entre o Benfica e a

    Gentilndia. Como a instituio foi se apropriando do bairro e como o bairro tambm

    se apropriou dela? No segundo tpico procurou-se identificar, com a anlise dos

    relatos orais dos moradores em dilogo com as escritas memorialsticas, as

    percepes sobre o bairro e as implicaes decorrentes da instalao da referida

    instituio nesses espaos. Quais memrias sobre aspectos caractersticos dos

    bairros resistiram frente s apropriaes e intervenes da Universidade? De que

    maneiras essas memrias se relacionam?

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    2 A UNIVERSIDADE (FEDERAL) DO CEAR ENTRE O BENFICA E A

    GENTILNDIA

    2.1 A criao da Universidade do Cear

    A Universidade do Cear foi criada pela lei nmero 2.373 de 16 de dezembro

    de 1954. Essa lei foi assinada pelo ento Presidente da Repblica, Joo Caf Filho.

    Cerca de dez anos separam as primeiras demonstraes de interesse para a criao

    dessa instituio da assinatura da lei federal que sancionou sua fundao. Uma das

    primeiras menes a uma universidade no Cear teria sido feita em 1944 e Raimundo

    Giro exps por meio dessas breves palavras um pouco do contexto e dos anseios

    da poca:

    de ver que tamanha animao e to exuberantes afirmaes depotencialidade da inteligncia cearense no deviam conservar-se emdesajustada disperso. Na realidade, no podiam furtar-se ao imperativo deforas que tendiam a aproxim-las e, finalmente, a aglutin-las para formaremum organismo mais homogneo e duradoiro de maior capacidade decoordenao e realizao.Teria que vir a Universidade do Cear. (GIRO apud VIEIRA; FARIAS, 2002:243).

    Lendo atentamente as palavras de Giro, pode-se perceber a insatisfao com

    o contexto do perodo. Segundo ele, o momento de sua escrita se deu num contexto

    de disperso no qual as foras da potencialidade intelectual cearense se dissipavam

    por conta do desajuste causado pela descentralizao. A disperso e o desajuste

    reclamados por Giro relacionam-se s vrias instituies de ensino superior de

    Fortaleza nessa poca. Enumerando as existentes no referido perodo, tem-se as

    seguintes instituies: 1 - Faculdade de Direito do Cear (1903); 2 - Faculdade de

    Farmcia e Odontologia (1916); 3 - Escola de Agronomia (1918); 4 - Faculdade de

    Cincias Econmicas (1938); e 5 - Escola de Enfermagem So Vicente de Paulo

    (1943). Alm de serem institucionalmente separadas e independentes a tutela desses

    estabelecimentos tambm era diversa, variando entre o governo estadual (1), federal

    (3), igreja (5) e havia tambm aquelas que eram particulares, formadas por

    associaes (2 e 4).

    Para Giro, o que poderia sanar a disperso e o desajuste seria a centralizao

    dessas instituies e o que possibilitaria essa centralizao seria uma universidade.

    Mas quem ansiava por uma universidade no Cear? Quem seriam os sujeitos

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    insatisfeitos com a disperso das instituies de ensino superior de Fortaleza? Ela

    viria apenas para sanar o problema da disperso, para homogeneizar as instituies?

    Chama a ateno que os grupos que faziam parte dessas instituies

    ocupavam espaos para alm dos acadmicos. Esses sujeitos circulavam entre

    agremiaes e organizaes como o Instituto Histrico e Geogrfico do Cear,

    Academia Cearense de Letras (ACL), Associao Cearense de Imprensa (ACI),

    lecionavam em mais de uma instituio de ensino superior, alguns ensinavam tambm

    no Liceu do Cear, participavam da poltica de forma direta, exercendo cargos no

    legislativo e/ou executivo. Desse modo, no s a responsabilidade pela tutela dessas

    instituies, mas tambm a circulao desses sujeitos e os ambientes ocupados por

    eles repercutiam no posicionamento e na hierarquia institucional.

    Essas agremiaes, clubes, grupos, associaes, instituies, etc. entram no

    conceito de campodo socilogo francs Pierre Bourdieu. Segundo ele,

    O campo, no seu conjunto, define-se como um sistema de desvio de nveisdiferentes e nada, nem nas instituies ou nos agentes, nem nos actos ounos discursos que eles produzem, tm sentido seno relacionalmente, pormeio do jogo das oposies e das distines. (BOUDIEU, 1989: 179).

    Ou seja, por meio de agrupamentos polticos, intelectuais, artsticos, entreoutros que se forma o campo. Seguindo o raciocnio de Bourdieu, o campo se

    estabelece e se delimita com a noo de si e do outro (distines e oposies), ou

    seja, uma espcie de fronteira invisvel que se pe por meio das atividades de cada

    grupo. Pensando no contexto de Fortaleza, o Instituto do Cear, a Academia

    Cearense de Letras, o Cl3, a Associao Cearense de Imprensa, o Rotary Club de

    Fortaleza e as Instituies de Ensino seriam campos, cada um com suas distines e

    fronteiras definidas, mas, dependendo de cada sujeito, essas fronteiras podem serpermeveis. No caso de Antnio Martins Filho, o seu trnsito era possvel por todos

    esses citados e mais alguns outros, o que resultou na facilidade de dilogo com outros

    sujeitos desses diversos campos. Nesse percurso intelectual e tambm poltico

    3Cl era uma designao ao Clube de Literatura e Arte formado em Fortaleza no incio da dcada de1940 por intelectuais a partir do 1 Congresso de Escritores Cearenses. Formado inicialmente por FranMartins, Braga Montenegro, Antnio Giro Barroso, Eduardo Campos, Antnio Martins Filho, Joo

    Clmaco Bezerra, Aluzio Medeiros e Artur Eduardo Benevides. Desse grupo se originou a Revista Clde Cultura e as Edies Cl ou Cooperativa Editora Cl, essa revista era um peridico que circulou emFortaleza entre 1946 e 1988, com 29 nmeros publicados sem sequenciamento fixo. (Cf. ANDRADE,2009; FARIAS, 2003).

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    realizado por Martins Filho, as suas intenes de criao da Universidade do Cear e

    o apoio para tal projeto ganharam a fora e o apoio necessrio.

    A primeira universidade a ser criada e se firmar enquanto instituio de ensino

    superior foi a Universidade do Rio de Janeiro, em 1920. Ela foi criada a partir da

    aglutinao das seguintes instituies: Escola Politcnica do Rio de Janeiro, a

    Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro e a Faculdade de Direito do Rio de Janeiro

    (CUNHA, 2007a: 190). Entre 1920 e 1945, foram criadas outras quatro: Universidade

    de Minas Gerais (1927); Universidade Tcnica do Rio Grande do Sul (1927);

    Universidade de So Paulo (1934); e Universidade Catlica, no Rio de Janeiro (1940).

    (CUNHA, 2007a: 207).

    Desse modo, no referido perodo em que se localiza a fala de Giro, o Brasil

    possua cinco universidades espalhadas em seu territrio, concentradas nas regies

    Sul e Sudeste. Dessas, duas foram formadas a partir da aglutinao de diferentes

    instituies de ensino superior, a Universidade do Rio de Janeiro e a Universidade de

    Minas Gerias. Isso demonstra que o jurista cearense estava atento s movimentaes

    de criao de outras universidades no Brasil.

    Martins Filho, em exposio de motivos para a criao da Universidade doCear, redigida para ser entregue ao ento Governador Faustino de Albuquerque, usa

    como uma das justificativas de criao da referida instituio o contexto do perodo.

    interessante salientar, entretanto, que as idias sistematizadas naquelasleis no ficaram unicamente no pape; ao contrrio, os problemas alisuscitados eram situados e discutidos na prpria vida real, razo porque, embreve tempo, constituram-se a Universidade de So Paulo, a Universidadedo Rio Grande do Sul, a Universidade da Bahia, a de Minas Gerais, e, maisrecentemente, a Universidade do Recife, alm de vrias outras que seriadesnecessrio enumerar. Chega a vez, e j no vem cdo, da Universidade

    do Cear. (MARTINS FILHO, 2004a: 61).

    No extrato do texto aqui citado, nota-se o uso do contexto de criao de

    universidades no pas para justificar a criao de uma no Cear. No Nordeste, a

    Universidade do Cear viria a ser a terceira fundada, em 1954, no Brasil, foi a stima

    universidade criada sob a tutela do governo federal. Os interessados em sua criao

    estavam atentos aos acontecimentos referentes a esses assuntos no pas e buscavam

    se inserir nesse contexto.

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    Segundo Antnio Martins Filho, o tema da criao de uma universidade no

    Cear teria aparecido primeiramente num relatrio feito para a refederalizao da

    Faculdade de Direito em 1944.

    [...] no ano de 1944, o mdico cearense Dr. Antnio Xavier de Oliveiraencaminhou ao Ministrio da Educao e Sade um relatrio sobre afederalizao da Faculdade de Direito do Cear.Naquele documento foi mencionada a idia da criao de uma universidadecom sede em Fortaleza, sendo esta a primeira vez que o importante assuntofoi ventilado em documento oficial.A partir de ento, em nenhum momento a criao da Universidade deixou deser objeto das cogitaes de importantes setores da opinio pblica doEstado, notadamente dos professores e alunos das escolas superioresexistentes. (MARTINS FILHO, 1996: 15).

    Essa tida como a primeira vez que foi mencionada a referida ideia em umdocumento oficial. Ou seja, a partir daquele momento, os sujeitos envolvidos nessas

    iniciativas passaram a buscar formas diferentes de amparo aos ideais pretendidos.

    Martins Filho, ao escrever sobre o relatrio do mdico Antnio Xavier de Oliveira,

    caracteriza a meno feita sobre a necessidade de criao de uma universidade como

    o importante assunto, qualificando o tema sem citar os escritos do mdico no referido

    relatrio. Seria uma forma de levar para um perodo anterior 1947 o que se pode

    chamar de desejo de criao da universidade? Para Martins Filho a criao da

    Universidade do Cear era assunto importante, mas para Antnio Xavier de Oliveira

    tambm o seria? A questo fica sem resposta, tendo em vista que no feita nenhuma

    citao do documento, nem se teve acesso ao relatrio redigido pelo mdico.

    A partir de sua narrativa, Martins Filho determina como marco temporal para o

    incio das atividades de criao da Universidade do Cear o referido relatrio, ao

    escrever que a partir de ento, em nenhum momento a criao da Universidade

    deixou de ser objeto das cogitaes de importantes setores da opinio pblica doEstado ele estabelece um ponto de partida e, ao mesmo tempo, generaliza a referida

    vontade aos importantes setores da opinio pblica. Sabe-se que grande parte dos

    alunos e professores das instituies de ensino superior daquele perodo faziam parte

    de um pequeno grupo que, em sua maioria, advinha de famlias de setores mdios e

    altos da sociedade do perodo (VIEIRA; FARIAS, 2002). Essas caractersticas tambm

    podem ser constatadas ao confrontar nomes citados nas fontes como sendo de

    docentes da Faculdade de Direito com a lista de vereadores, deputados, secretrios

    e membros do executivo do Cear, tais como: Joo Otvio Lobo, Raimundo Giro,

    Eduardo Giro, Menezes Pimentel, Manuel Antnio de Andrade Furtado, Dolor

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    Barreira, Cludio Martins, Fran Martins, Manoel Albano, entre outros. Possivelmente,

    Martins Filho buscou qualificar e justificar a vontade e as aes de criao da

    Universidade do Cear por meio desse marco temporal e do seleto grupo.

    Os sujeitos citados no pargrafo anterior tambm se inserem no conceito de

    campode Bourdieu (1989), tendo em vista os espaos ocupados por eles dentro das

    agremiaes, instituies, associaes, clubes, etc. Para exemplificar: Joo Otvio

    Lobo alm de professor, era Deputado Federal; Raimundo Giro era membro do

    Instituto do Cear, do Rotary Club, da ACL, da ACI, advogado e havia sido prefeito

    nomeado de Fortaleza entre 1933 e 1934. Eduardo Giro, Fran Martins e Dolor

    Barreira, semelhante a Raimundo Giro, tambm tiveram atuao em campos

    diversos. Desse modo, ao relacionar-se e se aproximar desses sujeitos, Martins Filho

    tambm circulava por esses campose poderia difundir suas intenes e encontrar

    apoio para elas.

    Entre 1944 e 1947 h um intervalo nessas aes, pelo menos no que diz

    respeito s fontes utilizadas. bastante provvel que essa interrupo tenha relao

    com o desenrolar das mudanas polticas, como o fim da Segunda Guerra e a sada

    de Getlio Vargas da Presidncia da Repblica em 1945. Com o fim da chamada

    Ditadura do Estado Novo, o sistema poltico local que sustentava o governo de Vargas

    foi mudado para atender as aspiraes da nova gesto. O perodo que compreende

    esse intervalo foi bastante conturbado para a poltica do Cear e de sua capital. Entre

    outubro de 1945 e maro de 1947 o Cear teve seis interventores estaduais diferentes

    (lderes do governo estadual, nomeados pelo governo federal), pois mesmo tendo sido

    reestabelecida a democracia em 1945, as eleies diretas para o Governo do Estado

    ocorreram dois anos depois. De certa forma, essa instabilidade poltica em nvel

    estadual pode ter prejudicado o andamento das iniciativas para a criao da

    Universidade do Cear. Segundo Parente, esse momento se caracteriza como sendo

    uma vertente dentro que se pode chamar de governo dos coronis no Cear que se

    estende at 1986. O autor divide esse perodo tem duas fases: a primeira entre 1945

    e 1964, o perodo da chamada experincia democrtica; e a segunda entre 1964 e

    1986, compreendendo o perodo ditatorial (PARENTE, 2007). Essa primeira fase, que

    predomina dentro do recorte temporal da pesquisa, foi marcada pela fragilidade dos

    partidos polticos recm-criados e das alianas firmadas entre eles. As alianas,

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    normalmente, estavam mais relacionadas aos conchavos de interesses e ligaes

    pessoais do que de interesses e filiaes partidrias.

    Em 1947 a inteno de criao da Universidade do Cear ganha fora com a

    visita do ento Ministro da Educao e Sade, Clemente Mariani. Nesse momento

    Antnio Martins Filho, escritor, editor, advogado e catedrtico da Faculdade de Direito

    escolhido para liderar as atividades para tornar possvel a criao de uma

    Universidade estadual no Cear. Alm de suas atividades profissionais, Martins Filho

    tambm era membro do Instituto Histrico e Geogrfico do Cear, da Associao

    Cearense de Imprensa, da Academia Cearense de Letras e do Grupo Cl.

    O Ministro Clemente Mariani esteve em fortaleza entre os dias 16 e 19 de junho

    de 1947 e em meio s vrias atividades por ele realizadas estava a visita Faculdade

    de Direito do Cear. Na ocasio dessa visita o Ministro proferiu uma palestra aos

    discentes e docentes presentes. No momento da palestra feita pelo Ministro na

    Faculdade de Direito foi entregue a ele uma solicitao para a criao da Universidade

    com cerca de dez mil assinaturas de estudantes, professores, polticos e intelectuais

    (MARTINS FILHO, 1983: 21). Em resposta solicitao o Ministro Clemente Mariani

    discursou:

    Agitais, nesse momento, jovens estudantes cearenses, o problema dafundao da vossa Universidade e seria desnecessrio dizer-vos com quesimpatia vos acompanha os passos o governo federal. Certamente nopretendeis que v-la oferea, como um rgio dom. O problema da criao deuma Universidade, ainda que seja no papel j no mais assim assunto paradivertimento de um Ministro. (MARTINS FILHO, 1983: 21).

    Antnio Martins Filho, nascido no Crato em 1904, mudou-se de Caxias (onde

    havia exercido o ofcio de vendedor e representante comercial), no Maranho, para

    Fortaleza em 1937. No momento de sua chegada capital do Estado do Cear, seusirmos, Jos Martins dAlvarez, Cludio Martins e Francisco Martins, ocupavam

    importantes lugares dentro da cena poltica, acadmica e literria da cidade. Jos, sob

    o pseudnimo de Martins dAlvarez, e Francisco, Fran Martins, destacavam-se no

    meio literrio, sendo, na poca da chegada de Martins Filho, importantes escritores

    que tinham fcil circulao no meio literrio da cidade. Fran Martins tambm se

    destacava enquanto acadmico de Direito. Cludio Martins, por sua vez, ocupava o

    cargo de Oficial de Gabinete do Secretrio da Fazenda, Coronel Tibrcio Cavalcante,

    e tambm acadmico do curso de Direito (MARTINS FILHO, 1993). Desse modo,

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    Martins Filho, ao chegar em Fortaleza, tinha, de certa forma, ingresso facilitado em

    diferentes crculos da sociedade da poca.

    Iniciou suas atividades profissionais na capital do Cear montando um

    escritrio comercial no qual era representante de diversas marcas e empresas no

    Cear, Maranho e Piau. Em 1938 adquiriu a Editora Fortaleza e por meio dessa se

    inseriu no meio grfico da cidade. Enquanto proprietrio dessa editora, Martins Filho

    publicou livros de sua autoria, como O Cear (em 1939) juntamente com Raimundo

    Giro, e tambm de outros autores, publicou outros gneros impressos: peridicos

    como o Almanaque do Cear, que esteve sob a responsabilidade de publicao e

    elaborao por parte da Editora Fortaleza e de Martins Filho e Raimundo Giro entre

    1938 e 1946; a Revista do Instituto do Cear; o jornal O Contabilista; a revista Valor;

    entre outros. Em 1938 ingressou no Liceu do Cear como professor da disciplina de

    Economia e Estatstica, por meio do auxlio de Andrade Furtado, ento Secretrio do

    Interior e Justia no governo do interventor Francisco de Meneses Pimentel. Nesse

    mesmo ano, com a indicao de Raimundo Giro, passou a integrar o Rotary Club de

    Fortaleza que, segundo o prprio Martins Filho, era um clube de servio bastante

    fechado, composto de apenas vinte e dois scios, que representavam um corte

    transversal nas principais atividades profissionais em Fortaleza (MARTINS FILHO,

    1993: 215). Ao mesmo tempo em que qualificava os rotrios, Martins Filho, tambm

    se qualificava, tendo em vista que estava compartilhando do mesmo espao e deveria

    cumprir os mesmos requisitos, ou pelo menos se aproximar disso. Em 1942 tornou-se

    scio do Instituto Histrico, Geogrfico e Antropolgico do Cear. Na ocasio da

    solenidade de ingresso no referido instituto foi proferido um breve discurso com teor

    biogrfico que se findou com as seguintes qualificaes atribudas a Antnio Martins

    Filho:

    Destaca-se Antnio Martins por uma fisionomia muito interessante, por quedinmica. ste o sainete indiscutvel do seu esprito: dinmico, vibrtil,empreendedor.Os indecisos, meus Srs., perdem metade do seu viver; os enrgicosduplicam-no. Eis um moo do gnio de Liszt na sua arte, que tudo concebiae efetuava. Vde, que momento! Recebe a investidura de cavalheiro, noapenas escafandrista da Histria, do grmio, no regao amigo da nossainstituio. Todo o homem esforado professor de energia e dos melhoresarquitetos da Nacionalidade. (GOMES, 1943: 238).

    Em 1943 tornou-se professor catedrtico da Faculdade de CinciasEconmicas do Cear e da Faculdade de Direito do Cear. Ocupando tambm o cargo

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    de diretor da Associao Cearense de Imprensa (ACI) e membro da Academia

    Cearense de Letras (ACL). Desse modo, Martins Filho foi ocupando diversos espaos

    e camposdentro da cidade. A escolha de seu nome para liderar as aes de criao

    da Universidade do Cear no foi feita aleatoriamente. Os lugares ocupados por ele

    dentro dos crculos grfico, literrio, acadmico, educacional, rotrio e do Instituto do

    Cear agregavam valores bastante significativos a sua pessoa e reuniram um vasto

    nmero de apoiadores. Alm desses espaos por ele ocupados se pode levar em

    considerao as relaes estabelecidas tambm dentro do meio poltico, tendo em

    vista que grande parte dos legisladores e membros do Executivo cearense e

    fortalezense partilhavam de alguns desses espaos, eram colegas de trabalho,

    amigos, pessoas prximas de Martins Filho. Desse modo, as relaes estabelecidasentre esses sujeitos e os espaos em que ele podia circular facilitavam suas atividades

    e o seu trnsito para a realizao do referido intento.

    Interessante, dinmico, vibrtil, empreendedor, enrgico, escafandrista da

    Histria e arquiteto da nacionalidade, qualificaes essas dadas a Martins Filho no

    momento de seu ingresso no Instituto Histrico do Cear. O discurso que o trecho

    supracitado foi extrado era de qualificao e exaltao, sendo prtica corriqueira que

    pode ser notada com a leitura de outros nmeros da revista do Instituto Histrico do

    Cear celebrando a entrada de novos membros. Mesmo sendo algo constantemente

    feito queles que passavam a fazer parte dessa instituio, pode-se dizer que as

    qualidades reunidas, as atividades exercidas e os espaos que ele circulava

    formavam a imagem de um sujeito empreendedor do ramo editorial, educacional,

    comercial e jurdico. Vale ressaltar que as observaes feitas acerca desse sujeito

    podem ser tomadas como justificativas para a entrada dele no quadro de membros do

    Instituto Histrico do Cear, ao mesmo tempo em que tambm constroem e reforama imagem de Martins Filho perante seus pares. Interpreta-se aqui esse discurso como

    uma exposio de motivos para a insero e apresentao do novo membro.

    Segundo o relato oral de Antnio Martins Filho feito em 1994, concedido ao

    Ncleo de Documentao Histrica da UFC (Nudoc), aps o referido pronunciamento

    do ento Ministro da Educao e Sade (Clemente Mariani), o governador eleito, Des.

    Faustino de Albuquerque, assumiu o cargo e afirmou por meio da imprensa que no

    governo do desembargador Faustino, a universidade vai sair (MARTINS FILHO,2004b: 23). Ou seja, a partir daquele momento as intenes de criao da

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    Universidade do Cear se tornaram pblicas por meio do compromisso assumido pelo

    ento governador. Nesse contexto, a figura de Martins Filho se inseriu nessas

    movimentaes que buscavam possibilitar a criao da instituio. Sua participao,

    segundo o prprio Martins Filho, passou a ser efetiva aps o compromisso firmado

    com Faustino de Albuquerque. O ex-reitor narrou a sua insero nessas iniciativas da

    seguinte forma:

    Da em diante, foi a minha oportunidade de me incorporar ao movimento. Fuiao Governador e expus-lhe:Desembargador, tambm tenho a ideia de trabalhar pela universidade parao Cear, se o senhor quer concretizar esta ideia, estou a seu servio.Diante disso, Faustino me elegeu representante do Governo do Estado nomovimento Pr-Universidade do Cear, que deveria ser uma universidade

    estadual. Na Faculdade de Direito acharam alguns professores que aquiloera uma ideia muito difcil de ser concretizada, mas como havia umapologista, um entusiasta do movimento, atiraram sobre as costas desseprofessor a responsabilidade. (MARTINS FILHO, 2004b: 24).

    A escolha de Martins Filho para liderar as aes de criao da Universidade do

    Cear no se deu somente pelo fato de ele ter se mostrado disposto a isso ao ento

    Governador, vale ressaltar que a posio de empreendedor do ramo educacional,

    grfico e jurdico ocupada por ele favoreceu bastante a escolha, sem esquecer dos

    referidos campos em que ele circulava com certa facilidade nessa poca. A

    oportunidade de se incorporar ao movimento apareceu no momento da reunio com

    o ento Governador, ou seja, sob a chancela do governo do Estado, ele foi escolhido

    para liderar as aes de criao da Universidade do Cear. De certo modo, foi escolha

    de Faustino de Albuquerque, mas tambm foi uma ao por parte de Martins Filho de

    se dispor oferecendo seus prstimos para tal empreitada. Em sua narrativa, Martins

    Filho, coloca a culpa da sobrecarga de servios naquilo que ele deixou parecer como

    comodidade por parte de seus colegas, tendo em vista que ele havia assumido a frente

    do movimento para a criao da universidade. Isso pode ser interpretado de duas

    formas: o desinteresse por parte de seus pares; ou a autopromoo por parte dele.

    Vale ressaltar que ele mesmo afirmou que a partir de 1944 o assunto da criao de

    uma Universidade no Cear passara a ser pauta constante entre os importantes

    setores da opinio pblica do Estado, notadamente dos professores e alunos das

    escolas superiores existentes (MARTINS FILHO, 1996: 15). O peso da

    responsabilidade de liderar o movimento de criao da Universidade do Cear foi

    deixado pelos seus pares para Martins Filho, ou foi ele mesmo quem se colocou nessa

    posio? Era ao mesmo tempo uma posio sobrecarregada e privilegiada essa

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    ocupada por Martins Filho. Percebe-se tambm a inteno dele em construir a

    imagem de si como sendo esse sujeito forte que sustentou praticamente sozinho essa

    empreitada. No se busca o desmerecimento dos seus mritos, mas as narrativas

    produzidas por ele so entendidas como parte desse projeto de construo e

    afirmao de sua imagem como idealizador, fundador e Reitor da Universidade do

    Cear.

    O lugar da narrativa de Martins Filho e o que ele mesmo criou e construiu para

    si e sobre si esto bem definidos, j que sua posio era de liderana e de narrador.

    Ao narrar, o autor no d posies somente para aquilo que narra, mas tambm

    posiciona a si mesmo dentro de sua escrita. O memorialista, normalmente, pretende-

    se um narrador observador e o seu posicionamento pode ser identificado na tessitura

    da escrita. A narrativa, mesmo se pretendendo memorialstica/autobiogrfica, um

    processo criativo no qual o autor constri um eu do passado narrado pelo eu do

    presente da escrita. Esses dois sujeitos so iguais e diferentes ao mesmo tempo, a

    igualdade est posta pela identificao formal, j a diferena est na distncia

    temporal e nas vivncias acumuladas (LEJEUNE, 2008). H entre os dois uma

    distino naquilo que Koselleck define por espao de experincia4, tendo em vista que

    o eu que narra est carregado de vivncias que o eu do passado no vivenciou

    ainda. Desse modo, o olhar que o eu narrador lana para o eu narrado carregado

    de valores e experincias que no faziam parte do sujeito naquele momento. O autor

    ao narrar a sua histria de vida tambm constri por meio dessa narrativa uma

    imagem de si mesmo (CANDAU, 2012).No terceiro captulo a escrita memorialstica

    de Martins Filho ser trabalhada com maior profundidade.

    Retomando as iniciativas para a criao da Universidade do Cear a partir de

    1948, Martins Filho colocou-se disposio do Governo do Estado do Cear para

    buscar, juntamente ao ministrio da Educao e Sade e Direo do Ensino

    Superior a efetiva criao dessa instituio. Jurandyr Lodi (Diretor de Ensino Superior

    do Ministrio da Educao), em carta dirigida ao ento Governador, Faustino de

    Albuquerque relatou como teria sido o contato estabelecido entre ele e o

    representante do governo cearense para a criao de uma universidade:

    Rio, 13 de outubro de 1948.

    4 Extrato de tempo que corresponde a um passado recente, o qual o sujeito tem como base paraidentificar a si mesmo, os outros e o seu lugar no tempo e no espao. (Cf. KOSELLECK, 2006).

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    Meu caro Governador,Entre tantos e tantos motivos para alegria, quis meu bondoso amigoproporcionar-me mais uma, agora, com a presena do professor MartinsFilho.Durante os dias em que esse pertinaz batalhador das cousas do Cear esteve

    no Rio, inmeras foram as questes que props e que debateu, todascolimando o bem da coletividade cearense, em especial o ensino superior,que todos sonhamos ver, a, aglutinado na viso de uma brilhanteUniversidade do Cear.Nenhum esforo poupou ele, de nenhum cansao se livrou; de nenhumtrabalho se esquivou. Foi obstinao do professor Martins Filho a mobilidadeincessante, no reunir elementos, que pudessem levar aos amigos da, para atodos evidenciar quanto possvel a concretizao da idia, uma vezassentados os alicerces firmes, que se resumem na estrita observncia da leie dos trabalhos j empreendidos nesse setor, pelos elementos do Ministrioda Educao.Jurandyr Lodi. (MARTINS FILHO, 1993: 303-304).

    Martins Filho foi positivamente qualificado, por parte do Diretor do EnsinoSuperior, enquanto pessoa apta para prosseguir nas aes para a efetiva criao da

    Universidade do Cear. Por meio de sua carta, Jurandyr Lodi, mostrou a disposio

    por parte do Ministrio da Educao e, consequentemente, por parte do governo

    federal. Desse modo, as atividades iniciadas em 1947, para a criao de uma

    universidade no Cear, pareciam bem lograr naquilo que intentavam. Por meio da

    imprensa e de conferncias essas iniciativas e possibilidades em torno da criao

    dessa instituio vinham a pblico e eram discutidas em lugares e nveis diversos, taiscomo em entrevistas concedidas a peridicos, conferncias e palestras sobre o tema,

    proferidas, por exemplo, no Instituto Brasil-Estados Unidos (IBEU)5e no Instituto do

    Cear. Em entrevista concedida ao jornal O Povo, em 15 de outubro de 1948, Martins

    Filho mencionou a importncia da unidade administrativa:

    J no devemos discutir, hoje em dia, a importncia do ensino universitrioem relao quele ministrado em Faculdades isoladas, em EscolasSuperiores insuficientes, tcnica e economicamente, sem unidade e sem

    estmulo para atingirem ao seu alto desiderato.A Universidade no , como muita gente pensa, um requinte de vaidade, umademonstrao de exibicionismo intelectual, seno, hoje como hontem, umanecessidade que se impe aos interesses educativos da coletividade.Dando ao ensino superior unidade administrativa e didtica, cria um ambientepropcio ao desenvolvimento uniforme do ensino em todas as suasmodalidades, possibilita meios para a melhor aprendizagem tcnico-cientfica, favorece e estimula o campo da pesquisa, estreitando os laos desolidariedade humana no terreno cultural e social, contribuindo por todos osmeios para a defesa e engrandecimento da civilizao. (O POVO,15/10/1948: 2).

    5Instituio privada responsvel pelo ensino de lngua inglesa e intercmbio cultural, fundada em 1943.(Cf. ).

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    A unidade administrativa to fortemente reclamada pode ser considerado como

    o principal ponto no projeto de criao da Universidade do Cear nesse primeiro

    momento. Unificar as instituies, para os interessados nisso, possibilitaria um esforo

    mais concentrado no desenvolvimento do ensino superior no Estado. tambm

    notrio que a entrevista concedida por Martins Filho era uma fala direcionada aos

    possveis opositores ou descrentes na criao da Universidade, ou seja, a ideia de

    criao dessa instituio no era compartilhada e apoiada por todos. Quem seriam os

    opositores e/ou descrentes?

    Ao incio do ano de 1949 os estudantes da Faculdade de Medicina do Cear

    entraram em forte conflito com o Governo do Estado, no qual os estudantes entraram

    em confronto direto com a Polcia Militar. A partir dessa situao a direo da

    Faculdade de Direito em acordo entre professores e alunos declarou apoio aos

    estudantes de Medicina. Sendo Martins Filho membro da Faculdade de Direito, optou

    por apoiar seus colegas (MARTINS FILHO, 1993). Segundo o prprio Martins Filho,

    ao se declarar como apoiador dos estudantes no embate com o Governo do Estado

    do Cear, Faustino de Albuquerque desfez as iniciativas tomadas e os acordos

    firmados at aquele momento, no que dizia respeito criao da Universidade do

    Cear.

    Entre a vinda do ento Ministro Clemente Mariani, em 1947, e o desacordo

    entre os estudantes e o Governador Faustino de Albuquerque, em 1949, a criao da

    Universidade do Cear esteve em pauta, tendo inclusive apoio na Assembleia

    Legislativa do Cear e no Congresso Federal. Em dezembro de 1949, foi publicado

    pela Editora do Instituto do Cear, um livro de Martins Filho, Uma Universidade para

    o Cear. Essa obra se posiciona temporalmente posterior aos fatores que marcaram

    as primeiras atividades para a efetiva criao da Universidade e o fim do projeto sem

    a sua concretizao. A narrativa dividida em trs partes: Medidas preliminares;

    Propagao da idia; e Documentrio. Na primeira parte a narrativa se pauta nos

    eventos cronolgicos referentes aos ideais e s mobilizaes feitas para a fundao

    da Universidade do Cear. Na segunda parte so reproduzidos dois discursos: uma

    entrevista concedida ao jornal O Povo, publicada na edio do dia 15 de outubro de

    1948; e o texto de uma conferncia proferida no IBEU no dia 11 de novembro de 1948,

    ambos de Martins Filho. A terceira parte foi composta por alguns documentos oficiaisque tratavam de assuntos referentes fundao da Universidade do Cear e que

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    foram produzidos pelo ento Governador do Estado, pelo Diretor de Ensino Superior

    do Ministrio da Educao e Sade, pelo Ministro da referida pasta, por Martins Filho

    e pelo diretor da Faculdade de Direito.

    Sua narrativa se posiciona como uma exposio de motivos em que Martins

    Filho detalha os fatos a partir de seus julgamentos e escolhas, provavelmente na

    inteno de demonstrar que o insucesso da fundao da Universidade do Cear em

    1949 no era de responsabilidade dele.

    A narrao sucinta que venho fazer e os comentrios bordados em relaoao projeto de lei enviado ao Poder Legislativo, no significam de minha parteuma oposio despropositada criao da Universidade do Cear.Ao contrrio disso, continuo a acreditar que se trata de uma idia em marcha,

    a qual, constituindo patrimnio comum, no pode sofrer soluo decontinuidade em sua efetivao. mister prestigi-la, pois, desde que firme os seus fundamentos no respeito lei e reflita o desejo de atender aos altos interesses da causa da educaonacional. (MARTINS FILHO, 2004a: 27).

    Ao ler no primeiro pargrafo que no significam de minha parte uma oposio

    despropositada, pode-se levantar a questo que em algum momento essa acusao

    pode ter recado sobre Martins Filho. Era sabido, no s pela comunidade acadmica

    da poca, mas por grande parte da sociedade tambm, que ele estava frente das

    iniciativas de criao da Universidade do Cear, mas ao reforar o seu compromisso

    com a causa e ao negar a sua oposio despropositada, pode ter sido uma forma

    de responder aos crticos da poca. Seria tambm despropositada a publicao de

    um livro com esse texto? Provavelmente no. A inteno poderia ser a de demonstrar

    que mesmo no se concretizando a fundao da Universidade do Cear, Martins Filho

    queria expor que o seu compromisso com essa causa estava mantido, ao mesmo

    tempo em que tambm buscava se isentar de culpa no insucesso da empreitada.

    Entre 1949 e 1953, as atividades relacionadas criao de uma universidade

    no Cear foram apaziguadas. Retomando aquela que seria tentativa para a efetiva

    criao da instituio em 1953.

    Assim, iniciado o ano de 1953 e j prevalecendo a convico de que o Estadodo Cear se achava impossibilitado de arcar com a responsabilidade demanter uma Universidade, s nos restava apelar para o Governo Federal,como nica soluo vivel para a concretizao dos nossos objetivos.Em trs de maro de 1953, concedi uma entrevista ao Correio do Cear,conclamando os intelectuais, professores e a classe acadmica, no sentido

    de trabalharmos para que a Universidade fosse instalada com o coroamentodo Primeiro Congresso Nacional de Ensino Jurdico a ser realizado emFortaleza, no ms de outubro, em comemorao ao cinquentenrio de

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    fundao da Faculdade de Direito do Cear. (MARTINS FILHO, 1993: 381-382).

    Surgiu naquele momento, segundo Martins Filho, a nica soluo para a

    criao da Universidade do Cear, a tutela da instituio sendo feita por parte doGoverno Federal. Tendo a noo de que para essa nova investida ter xito se fazia

    necessrio um coro que afirmasse e justificasse a necessidade de uma universidade

    no Cear, Martins Filho conclamou os intelectuais, professores e a classe acadmica,

    meio nos quais tinha circulao livre, constante e influente. Mais uma vez, ele fez uso

    de sua posio de fcil trnsito entre os camposintelectual, acadmico e poltico para

    reforar essa que seria a ltima investida na busca da fundao da Universidade do

    Cear, tendo em vista o xito logrado. Alm do contato estabelecido localmente,Martins Filho, dirigiu-se ao Ministro da Educao e Sade, por intermdio do Chefe

    do Gabinete6desse Ministrio, que era cearense, do Crato e amigo dos seus irmos

    Cludio e Fran Martins. Esse contato, para ele, foi bastante satisfatrio, pois o Ministro

    da Educao se mostrou favorvel possibilidade de criao da almejada instituio.

    Juntamente com lvaro Costa e Paulo Bonavides, Martins Filho redigiu o documento

    que reunia as justificativas para a criao da Universidade do Cear a ser entregue

    para o Conselho Nacional de Educao, depois para a Diretoria do Ensino Superior,

    onde seria redigido o anteprojeto de lei que seria encaminhado pelo ento Presidente

    da Repblica, Getlio Vargas, para a aprovao por parte do Legislativo Federal no

    dia 30 de setembro de 1953. (MARTINS FILHO, 1993: 383). Nesse momento, uniu-se

    ao discurso de unidade administrativa a justificativa de desenvolvimento do Nordeste,

    isso se mostrou na prtica com a parceria firmada entre a Universidade e o recm-

    criado Banco do Nordeste do Brasil (BNB) (1953). Desse modo, os propsitos

    principais da Universidade (Federal) do Cear eram a centralizao das instituies

    de ensino superior existentes em Fortaleza e a formao de pessoal capacitado

    destinado resoluo dos principais problemas do Nordeste, visando o

    desenvolvimento da regio.

    O ano de 1954 iniciou-se de forma conturbada politicamente. Segundo Martins

    Filho, o processo de criao da Universidade do Cear estava parado na Cmara dos

    Deputados. Alm disso, havia uma efervescncia extraordinria na poltica nacional

    e eu [Martins Filho] temia que com o advento provvel de um golpe, o Congresso

    6 O nome desse sujeito no pde ser identificado, pois o prprio autor no tinha essa informaomantida nas lembranas. (Cf. MARTINS FILHO, 1993).

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    deixasse de funcionar e o nosso processo de criao de Universidade fosse

    definitivamente arquivado (MARINS FILHO, 1993: 388). Segundo Jorge Ferreira

    (2011), entre a redemocratizao, em 1945, e o golpe civil-militar, em 1964, ocorreram

    trs momentos de crise que ameaaram as bases da democracia, esses momentos

    teriam ocorrido em 1954, 1955 e 1961. Tomando como base o primeiro momento de

    crise constatado pelo autor, para confrontar o que relatou Martins Filho, Ferreira afirma

    que o governo de Getlio Vargas conseguiu se manter bem at 1952, recuperando a

    economia, principalmente por meio do protecionismo comercial. Mas a partir de 1953,

    Vargas, comeou a enfrentar problemas de ordem externa e interna. As relaes

    econmicas entre o Brasil e os EUA estavam se tornando dificultosas. O republicano

    Eisenhower havia assumido a presidncia dos Estados Unidos e passou a impordeterminaes fortes em relao ao Brasil, cobrando o pagamento das dvidas

    contradas pelo pas e vetando a entrada do cafprincipal produto exportado pelo

    pasbrasileiro no mercado norte-americano. Internamente, as relaes entre Getlio

    e seus opositores, UDN (Unio Democrtica Nacional) e PCB (Partido Comunista

    Brasileiro), tornava-se cada vez mais dificultosas. Por meio do uso amplo da mdia, os

    udenistas passaram a denegrir a imagem do ento presidente comparando o governo

    daquele momento com o anterior, trazendo tona o perodo ditatorial no qual eleesteve no poder (FERREIRA, 2011). Essas disputas polticas se acirraram e

    envolveram tambm as Foras Armadas, que tinham como principal influenciadora a

    Escola Superior de Guerra7, bastante alinhada aos interesses americanos e avessa

    ao protecionismo e nacionalismo caracterstico de Getlio Vargas (VIZENTINI, 2011).

    O ponto alto dessa crise poltica do governo Vargas se deu com o atentado

    contra o seu principal opositor, Carlos Lacerda, culminando no suicdio do Presidente

    da Repblica dias depois. O alvo do atentado da rua Toneleiros era o udenistaLacerda, mas o projtil que deveria atingi-lo acertou seu segurana, tendo o

    verdadeiro alvo sido atingido no p. Aps esse ocorrido, as bases do governo de

    Getlio Vargas ruram e grande parte da imprensa se posicionou em favor de Lacerda

    atacando o ento Presidente da Repblica de forma violenta e direta diariamente. Em

    7A Escola Superior de Guerra era um grupo dentro das Foras Armadas que se alinhava aos interessesnorte-americanos, tanto econmica quanto militarmente. Os membros desse grupo defendiam aentrada do capital estrangeiro, especialmente dos EUA, no mercado brasileiro e o alinhamento compolticas de proteo e alianas militares com o governo norte-americano. (Cf. VIZENTINI, 2011).

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    meio a presso exercida sobre dele e a quase inexistncia de apoio poltico, Getlio

    Vargas finda, ao menos para ele, essa situao ao suicidar-se.

    Na manh de 24 de agosto, depois de preparar minha aula, dirigi-me para aFaculdade de Direito. s 9 horas precisamente, entrei em classe e determineique fosse feita a chama dos alunos. Esta tarefa, porm no chegou a serconcluda, em virtude de uma notcia que nos deixou atnitos.Com efeito, um dos meus alunos ingressou na classe de maneira inusitada efoi logo me inquirindo:Professor, no sabe do ocorrido?Com a minha resposta negativa, o estudante, dirigindo-se aos seus colegas,declarou que o rdio estava anunciando que o Presidente Vargas havia sesuicidado.[...] Acompanhando atentamente a marcha dos acontecimentos, nuncaimaginei que o ato de desespero do Presidente Vargas iria, muito em breve,interferir no meu destino, tornando-me candidato Reitoria e, em

    consequncia, o primeiro dirigente da Universidade do Cear. (MARTINSFILHO, 1993: 389-390).

    No trecho acima extrado da narrativa de Martins Filho perceptvel a

    temporalidade do momento do escrito com o momento do acontecido. Como poderia

    o sujeito que acabara de receber a notcia do suicdio de Vargas ter alguma noo do

    porvir, que por conta disso ele viria a ser o Reitor? o autor olhando para si enquanto

    personagem de sua narrativa, sendo os dois os mesmos sujeitos em tempos

    diferentes (CANDAU, 2011). O processo de lembrana e esquecimento referente

    memria se mostra permeado de temporalidades que no condizem somente ao foco

    daquilo que se narra. O autor, no momento da escrita, deixou escapar percepes do

    personagem que so posteriores quelas do momento narrado. Em que sentido o

    suicdio de Vargas possibilitou que Martins Filho conseguisse se tornar candidato e

    finalmente Reitor da Universidade do Cear?

    Joo Caf Filho, o vice de Getlio, era do PSP (Partido Social Progressista),

    amigo e colega de profisso (jornalista) do ento Governador eleito do Cear, Paulo

    Sarasate, da UDN (Unio Democrtica Nacional). Nacionalmente, esses partidos no

    eram aliados, mas as relaes polticas interpartidrias no Cear, Segundo Parente

    (2007), estavam pautadas mais em alianas pessoais do que em legenda e poderiam

    variar de acordo com as eleies. Parente afirma que no Cear desse perodo houve

    uma forma diferenciada de coronelismo, tendo em vista que no havia uma ou mais

    famlias que eram detentoras de grandes riquezas e bens perenes, j que a constncia

    das secas acarretava na inconstncia de ganhos. Desse modo, as relaes e alianas

    pessoais, na maioria dos casos, eram mais importantes que as partidrias, no que se

    refere aos benefcios advindos desses acordos. Seria por meio da influncia de

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    Sarazate e de outros apoiadores que a nomeao de Martins Filho aconteceria. Seus

    apoiadores foram de fundamental importncia para a sua nomeao, tendo em vista

    que outras alianas foram feitas na inteno de ser escolhido outro nome para

    administrar a Universidade do Cear.

    Segundo Martins Filho, nas vsperas da assinatura da lei que decretaria a

    fundao da Universidade do Cear, havia uma disputa entre ele e o Deputado Joo

    Otvio Lobo (PSDPartido Social Democrtico) para ocupar a Reitoria, disputa essa

    travada, segundo ele, por meio de indicaes polticas e de alianas pessoais.

    Em dado momento o Diretor da Faculdade [de Direito], Professor AndradeFurtado, chamou-me ao seu gabinete e me recomendou calma. Para

    simplificar o dilogo, Andrade me informou que Menezes Pimentel,acompanhado de outros deputados do PSD, havia conseguido umapromessa formal do Presidente Getlio Vargas, no sentido da nomeao doprofessor Joo Otvio Lobo para o cargo de Reitor. (MARTINS FILHO, 1983:28)

    Os conchavos polticos estavam sendo acionados na inteno de se conseguir

    a ocupao do principal cargo administrativo da Universidade do Cear, atestando

    conflitos na escolha do primeiro Reitor. Percebe-se que a escolha de Martins Filho

    para esse cargo no foi algo compartilhado e aceito por todos. Mas ele, por sua vez,

    tambm tinha seus apoiadores, entre eles o ento Governador Paulo Sarasate:

    A essa altura dos acontecimentos, fui surpreendido, num dia de domingo, poruma mensagem do governador Paulo Sarasate, recomendando-mecomparecer ao Nutico Atltico Cearense, antes das 20 horas e alipermanecer at que chegasse o Presidente Caf Filho, a quem ele,Governador, iria apresentar-me. Atendi prontamente quele alvitre, que mepareceu duplamente promissor.[...] Quando chegou a vez de minha apresentao, declarou o Presidente quej me conhecia como professor e como jornalista, esboando aquele sorrisode homem bom e simples que lhe era caracterstico.A partir de ento, considerei-me tacitamente o candidato do Governador do

    Estado do Cear ao cargo de Reitor da Universidade (MARTINS FILHO,1983: 37-38).

    Em sua narrativa, num momento anterior ao extrado, Martins Filho cita mais

    um apoiador que teria levado o seu nome ao ento Presidente da Repblica, Omar

    OGrady, empresrio da construo civil de Fortaleza. De certa forma, as prticas

    polticas da poca se apresentam por meio da narrao, os conchavos polticos e as

    alianas pessoais aconteciam tambm por meios extraoficiais. No h uma ilegalidade

    na prtica, mas ela no feita s claras e escancarada ao grande pblico, de certaforma algo que fica externo oficialidade documentada.

  • 7/25/2019 A Universidade (Federal) do Cear, entre o Benfica e a Gentilndia: espaos, lugares e memrias.

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    A nomeao de Martins Filho para o cargo de Reitor da Universidade do Cear

    era bastante interessante para Paulo Sarasate, pois era uma forma de se contrapor

    possvel nomeao de Joo Otvio Lobo do PSD opositor do Governo do Estado.

    Segundo Parente (2007), nas eleies de 1954 e na formao das alianas polticas

    aps os resultados, a UDN e o PSD configuraram-se como opositores. Ou seja, o

    apoio dado a ele pelo ento Governador estava carregado de interesses polticos.

    Martins Filho escreveu que Paulo Sarasate dizia tambm que, como Governador, no

    poderia perder a Universidade que, se ficasse nas mos do Professor Joo Otvio

    Lobo, estaria consequentemente sob o controle do PSD (MARTINS FILHO, 1983:

    40). A Universidade recm-criada e os interesses em torno da distribuio dos cargos

    e a disputa pelo controle administrativo da instituio se faziam presentes, as alianaspolticas e pessoais vinham tona, os interesses no controle da instituio que estava

    se construindo se mostravam.

    Antnio Martins Filho foi nomeado pelo Presidente da Repblica Joo Caf

    Filho como o primeiro Reitor da Universidade do Cear, em maio de 1955, tendo sido

    o mais votado da lista trplice composta pelos Professores Renato Braga (Escola de

    Agronomia) e Joo Otvio Lobo (Faculdade de Direito). Numa disputa entre as

    instituies de ensino existentes h poca, a Faculdade de Direito se privilegiou com

    essa nomeao, a Reitoria funcionou nas dependncias dessa faculdade at a

    mudana para o palacete da famlia Gentil, no Benfica, onde se fixou at o presente

    momento.

    Entende-se a criao de uma Universidade como o estabelecimento de um

    espao de produo de conhecimento, no caso do Cear (e de outros estados), era

    tambm um lugar de centralizao do ensino superior. Os espaos, segundo Michel

    de Certeau (2011a) em a Inveno do Cotidiano, so formados tambm pelas

    relaes sociais, no s pela sua constituio fsica. Para ele, a partir das prticas

    exercidas pelos sujeitos nos lugares que eles se tornam espaos. Pensando no

    espao de produo do conhecimento que a Universidade do Cear passaria a

    representar, pode-se dizer que era tambm espao poltico, pblico, cultural e uma

    infinidade de outros, tendo em vista que essas definies dependem dos usos e das

    sensibilidades dos sujeitos. No momento de sua criao, percebe-se que os

    interesses polticos estavam prximos dos interesses educacionais, tendo em vista acirculao de sujeitos e os acordos firmados por meio de partidos e alianas polticas

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    para a definio daquele que seria a principal figura de controle e administrao

    institucional, o Reitor. Certeau afirma que os espaos so constitudos tambm pelas

    disputas, pelos conflitos. Por meio dos acordos e alianas firmadas para o controle

    dessa instituio e pelas pessoas que se mostravam interessadas nisso, pode-se

    dizer que nesse primeiro momento, a Universidade estava em meio a disputas pelo

    espao que ela ocuparia. De certo modo, ter o controle sobre essa instituio no

    representava somente o controle sobre o ensino e a produo do conhecimento, esse

    equipamento pblico representava uma esfera de poder que englobava aspectos

    educacionais, polticos, culturais e econmicos. Nos prximos captulos esses

    aspectos sero tratados de forma mais aprofundada.

    O esforo de escrita empreendido por Antnio Martins Filho, contemporneo s

    movimentaes de criao da Universidade do Cear e no perodo posterior a isso,

    demonstra que alm de narrar o desenrolar desse processo, a partir da viso dele,

    tambm podem ser considerados como um trabalho de memria. Segundo Elizabetn

    Jelin (2002), trabalho de memria se enquadra numa ao direta para a construo

    de um discurso, monumento, ou qualquer outra coisa que seja feita com a inteno

    de registrar determinada memria e de que essa seja le