A Valorização Simbólica Da Leitura

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REVISTA EMÍLIA - LEITURAS | FEVEREIRO 2015 A valorização simbólica da leitura* A contrariedade do mundo POR DOLORES PRADES Dolores Prades, publisher da Revista Emília. Consultora editorial, é doutora em história econômica pela USP e especialista em literatura infantil e juvenil pela Universidade Autônoma de Barcelona. Curadora e coordenadora dos seminários Conversas ao Pé da Página. Coordena no Brasil da Cátedra Latinoameriacana y Caribeña de Lectura y Escritura. Professora convidada do Master da Universidade Autonoma de Barcelona. Curadora da FLUPP Parque. A "Valorização institucional da leitura e incremento de seu valor simbólico", Eixo 3 do PNLL – Plano Nacional do Livro e da Leitura – abre um amplo campo de referências e contextos em torno da leitura e de seu significado. São muitas as ações para converter o fomento às práticas sociais da leitura em políticas e criar consciência social sobre o valor social do livro e da leitura. Participo ativamente de várias ações nesta direção: a Revista Emília, agora transformada em Instituto; o Conversas ao Pé da Página e a curadoria da FLUPP Parque: todas ações na mesma direção de formar mediadores e de promoção do livro e da leitura. Com isso, a reflexão sobre a leitura e a formação está muito presente na minha atividade. Mas como avançar nesta valorização institucional? Como aprofundar o caráter simbólico da leitura para além do que já se faz? Nos meios menos unívocos, já é lugar comum dizer que o livro e a cultura não são, em si mesmos, moralmente valiosos. O editor mexicano Daniel Goldin ilustra bem isto quando faz referência à Segunda Guerra (1939-45), quando afirma que os nazistas se deleitavam com leituras de Schubert ou Goethe, a poucos metros do fornos crematórios. Esta colocação radical problematiza conteúdos atuais veiculados em torno da leitura e de sua promoção: A leitura como um valor abstrato, universal, responsável por um tom romântico, mítico e transcendente que resulta na afirmação: "a leitura salva". A leitura e os leitores como realidades fechadas em si mesmas, sem contato ou conexão com o contexto mais amplo histórico-social. Como se a leitura se desenvolvesse em paralelo a tudo e a toda à crise de nosso tempo. A leitura como hábito e não como ato. E como disse um professor de literatura recentemente, “se o hábito não faz o monge” certamente também não faz o leitor!

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REVISTA EMLIA - LEITURAS | FEVEREIRO 2015A valorizao simblica da leitura*A contrariedade do mundoPOR DOLORES PRADES

Dolores Prades, publisher da RevistaEmlia. Consultora editorial, doutora em histria econmica pela USP e especialista em literatura infantile juvenil pela Universidade Autnoma de Barcelona. Curadora e coordenadora dos seminrios Conversas ao P da Pgina.Coordena no Brasil daCtedra Latinoameriacana y Caribea de Lectura y Escritura. Professora convidada do Master da UniversidadeAutonoma de Barcelona. Curadora da FLUPP Parque.A"Valorizao institucional da leitura e incremento de seu valor simblico",Eixo 3 doPNLL Plano Nacional do Livro e da Leitura abre um amplo campo de referncias e contextos em torno da leitura e de seu significado.So muitas as aes para converter o fomento s prticas sociais da leitura em polticas e criar conscincia social sobre o valor social do livro e da leitura. Participo ativamente de vrias aes nesta direo: aRevista Emlia, agora transformada em Instituto; o Conversas ao P da Pgina e a curadoria da FLUPP Parque: todas aes na mesma direo de formar mediadores e de promoo do livro e da leitura. Com isso, a reflexo sobre a leitura e a formao est muito presente na minha atividade. Mascomo avanar nesta valorizao institucional?Como aprofundar o carter simblico da leitura para alm do que j se faz?Nos meios menos unvocos, j lugar comum dizer que o livro e a cultura no so, em si mesmos, moralmente valiosos. O editor mexicano Daniel Goldin ilustra bem isto quando faz referncia Segunda Guerra (1939-45), quando afirma que os nazistas se deleitavam com leituras de Schubert ou Goethe, a poucos metros do fornos crematrios.Esta colocao radical problematiza contedos atuais veiculados em torno da leitura e de sua promoo: A leitura como um valor abstrato, universal, responsvel por um tom romntico, mtico e transcendente que resulta na afirmao: "a leitura salva". A leitura e os leitores como realidades fechadas em si mesmas, sem contato ou conexo com o contexto mais amplo histrico-social. Como se a leitura se desenvolvesse em paralelo a tudo e a toda crise de nosso tempo. A leitura como hbito e no como ato. E como disse um professor de literatura recentemente, se o hbito no faz o monge certamente tambm no faz o leitor! A leitura como mero prazer, como entretenimento, como algo confortvel em contraposio fruio que a verdadeira arte provoca. "A leitura (ler) uma viagem, enfatizando o carter de evaso do texto e no de busca ou encontro.Uma das razes desta mistificao, certamente decorre da utilizao de conceitos e categorias estticos na anlise ou descrio de uma atividade complexa, dinmica e histrica como a leitura e como so os leitores.Mas no se trata apenas de pensar novas terminologias, mas sim de buscar uma forma nova de pensar que rompa com frmulas, hoje bastante desgastadas. necessrio questionar e repensar a o valor simblico da leitura, a construo de leitores, os conceitos e categorias. Um aprofundamento maior sobre algumas questes como leitura, leitores e literatura, mostram a diversidade de sentidos que coexistem para se falar de um mesmo fenmeno.Por exemplo, o termo leitor engloba e serve para designar um sem nmero de leitores. Desde um leitor estudante que s l e rabisca o livro para dar conta de um contedo disciplinar at algum que tem na leitura uma atividade essencial de vida, passando pelo leitor funcional, que usa a leitura no seu dia a dia, ou o leitor tcnico...Historicamente, a leitura e a escrita sempre foram exerccios de poucos, elites polticas e religiosas compartilharam desses privilgios durante sculos. Somente muito recentemente a leitura passou a ser um direito de muitos, graas universalizao do direito educao.A ideia de um leitor nico, silencioso, submerso na sua leitura uma figura historicamente determinada cada vez mais distante da realidade atual. O que torna mais difcil hoje definir um modelo universal de homem letrado.Portanto, necessrio contextualizar nosso tempo:Vivemos um mundo onde o poder da cultura se perde num processo crescente de homogeneizao promovido pelo mercado. Pela primeira vez na histria a maioria dos bens e das informaes que uma nao recebe no foi produzida no prprio territrio. O fenmeno da globalizao cobre com a sombra de suas asas, de modo uniforme, todo o Planeta.Nunca antes o patrimnio cultural esteve to ao alcance de todos, graas informatizao da vida; a educao obrigatria , sem duvida, em pases como o nosso, garantia de amplas camadas sociais ao mercado.Hoje so publicados mais livros e h uma quantidade maior de pessoas com capacidade de ler do que em qualquer momento histrico anterior. O nmero de usurios da cultura escrita nunca foi to vasto.Porm, o modelo leitor que se tinha em mente mudou. Hoje os estmulos vo na contramo dos pr-requisitos bsicos exigidos para a formao de um leitor modelo. Por exemplo: a concentrao um dos pr-requisitos bsicos da leitura substituda pelo acesso sem limites informao; o retiro, o silncio, ou o recolhimento necessrios para usufruir da leitura se transformam numa exposio sem limites nas redes sociais. As competncias mudam historicamente e com isso os perfis dos leitores tambm.Muitos ganharam o acesso produo cultural, mas tambm se converteram no principal alvo do mercado. Da a grande transformao, em todas as artes que leva a convivncia, sempre desigual, entre uma produo voltada para o mercado e aquela que pretende resistir ao status-quo.O leitor no se forma interagindo apenas com manchas de papel -- se assim fosse talvez a transmisso por osmose seria possvel e tudo seria mais fcil e no estaramos aqui. Mas, a leitura e a escrita so sempre um fator social, historicamente determinado, que se inscreve profundamente na biografia afetiva de cada leitor, naquilo que podemos chamar de nossas histrias leitoras.Por trs de cada leitor h pessoas, presenas e ausncias que os livros suprem, recordam ou encontram. Pessoas, corpos, gestos, modulaes de voz, palavras e imagens... pessoas que interagem com outras pessoas.Neste sentido, falar em leitores de modo geral, assim como falar na "valorizao da leitura" so afirmaes que precisam ser desdobradas para pensarmos o processo como um todo e para que as aes tenham xito.A formao de leitores tem sido proposta como se por meio da valorizao do livro e da leitura se desse uma transformao nas pessoas, dado o benefcio social e tico que a leitura e, em especial da leitura literria, proporcionaria.Porm, nem sempre a leitura transforma o sujeito que l. E nem sempre a boa literatura faz dos seus leitores pessoas mais justas e tolerantes. Lembremos da frase de Goldin referida logo no incio.No campo da valorizao da leitura proliferam suposies, boas intenes, declaraes pomposas sobre o seu poder, seu valor, muita vezes indiscutveis, irrefutveis e redentores. Mas, isto no suficiente para que a leitura se transforme efetivamente em um elemento constitutivo da vida da maioria.Hoje em dia temos um nmero crescente de leitores adeptos da leitura-consumo, da leitura como fonte de evaso, do cio e do entretenimento basta ver a lista de best-sellers Os mil tons de cinza, os vampiros, os livros de autoajuda...A questo : toda leitura pode se constituir em um elemento transformador do sujeito leitor? E nesse sentido, o que se entende por literatura?Fica cada vez mais difcil definir um modelo universal de homem letrado. O mercado toma para si a produo cultural, at muito recentemente sua margem. Estamos diante de uma realidade onde a multiplicidade de plataformas, de leituras e de leitores convivem e se transformam.Estamos num terreno onde leitor muito mais abrangente do que apenas algum que l; ele eterminado socialmente pela sua biografia, sua sensibilidade, sua ideologia.Hoje, enfrentamos uma enorme discrepncia entre prticas e discursos em torno da leitura. O consenso a favor da leitura, que presenciamos na atualidade, tem muitos significados e razes. Porm, assim que se ultrapassa o nvel mais epidrmico dessa identidade, as distines e o dissenso aparecem.Para se localizar nesse vasto mundo de interesses (no plano nacional e internacional), fundamental ir a fundo nas propostas, saber quem est promovendo o qu, e o que mais importante: buscar a coerncia das aes de quem est patrocinando as campanhas, o histrico de cada instituio etc. etc.Problematizar essa viso mistificadora e redentora da leitura e dos leitores, que promove a fetichizao de ambas, uma questo necessria para se avanar nas formas de sua promoo.Entender esta complexidade nos leva a inserir e contrapor categorias e conceitos, usando como ponto de partida um conjunto de prticas scias complexas, para ento considerar leitores e leituras na sua natureza dinmica e histrica.Pensar a formao de leitores s tem significado quando inserida na contraditoriedade do mundo em que vivemos. Levar em conta isto facilita a trajetria de recuperao do carter civilizatrio da escrita e da leitura. Daquelas leituras que, nas palavras da escritora cubana Emlia Gallego "sugerem novas perspectivas, que nos comovem e impulsam ao encontro de outros horizontes, que implicam em benefcios para o leitor onde se assenta a aposta na esperana de fazer um mundo mais habitvel, justo e melhor.* Texto apresentado noSeminrio Internacional sobre o Plano Municipal do Livro, Leitura, Literatura e Biblioteca de So Paulo, na mesa "Valorizao institucional da leitura e incremento de seu valor simblico", com Filipe Leal (Portugal- BibliotecAtiva,) especialista em cincias da educao e leitura; Jferson Assumo - Secretaria de Cultura do Rio Grande do Sul e moderao de Edmir Perrotti, curador do programa Quem l sabe por qu. 10/12/2014.