A Vigilância Punitiva - Educadores Na Patologização e Medicalização Da Infância

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    A VIGILNCIAPUNITIVA

    A POSTURA DOS EDUCADORESNO PROCESSO DEPATOLOGIZAOE MEDICALIZAODA INFNCIAFABIOLA COLOMBANI LUENGO

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    A VIGILNCIAPUNITIVA

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    Conselho Editorial Acadmico

    Responsvel pela publicao desta obra

    Prof. Dr. Jos Sterza Justo

    Prof. Dr. Francisco Hashimoto

    Dr. Fernando Silva Teixeira Filho

    Dra. Elizabeth Piemonte Constantino

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    FABIOLA COLOMBANI LUENGO

    A VIGILNCIAPUNITIVAA POSTURADOSEDUCADORESNOPROCESSODEPATOLOGIZAO

    EMEDICALIZAODAINFNCIA

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    2010 Editora UNESP

    Cultura Acadmica

    Praa da S, 10801001-900 So Paulo SPTel.: (0xx11) 3242-7171Fax: (0xx11) [email protected]

    CIP Brasil. Catalogao na fonteSindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ

    L975v

    Luengo, Fabiola Colombani

    A vigilncia punitiva : a postura dos educadores no processo de

    patologizao e medicalizao da infncia / Fabiola ColombaniLuengo. 1.ed. So Paulo : Cultura Acadmica, 2010.142p. : il.

    ApndiceInclui bibliografiaISBN 978-85-7983-087-7

    1. Distrbio do deficit de ateno com hiperatividade. 2. Crianashiperativas. 3. Disciplina escolar. 4. Professores e alunos. I. Ttulo.

    10-6446. CDD: 618.928589CDU: 616.89-008.61

    Este livro publicado pelo Programa de Publicaes Digitais da Pr-Reitoria de

    Ps-Graduao da Universidade Estadual Paulista Jlio de Mesquita Filho (UNESP)

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    Dedico este trabalho

    Aos meus pais,Efrain Eduardo Colombani Bolvar (in memoriam) e

    Ivone Lopes de Colombani,pelo amor e pela pessoa que hoje sou.

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    AGRADECIMENTOS

    A Deus, pela vida concedida, pela luz que me mantm serena epela fora dada todas as manhs.

    prof

    a

    dr

    a

    Elizabeth Piemonte Constantino, minha queridaorientadora, pela confiana depositada em mim, pela orientaoto dedicada e minuciosa, pela pacincia, pela humildade, pelo ca-rinho em meus momentos difceis e pela liberdade terica que elame concedeu. Aprendi muito com ela.

    Aos membros da banca, prof. dr. Carlos Rodrigues Ladeia e oprof. dr. Manoel Antnio dos Santos, pelas valiosas contribuiesdadas no exame de qualificao e por aceitarem acompanhar a con-cretizao deste trabalho.

    Ao meu pai Efrain (in memoriam), que sempre foi um grandeamigo e companheiro de todas as horas. Sinto sua presena a todoinstante e ainda ouo suas palavras que s me fortalecem. Desdecriana tnhamos ricos dilogos e em cada fase da minha vida elesoube me convidar a profundas reflexes... Dedico este livro aele, que foi um mdico higienista, porm indignava-se ao vercrianas sendo rotuladas, e a cada escola que ia mostrava-se contraos laudos e os diagnsticos mdicos que, segundo ele, eram umacruel sentena que, uma vez dada criana, a acompanharia portoda sua vida escolar.

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    8 FABIOLA COLOMBANI LUENGO

    minha me Ivone, uma mulher guerreira que sempre meapoiou e esteve ao meu lado nos momentos mais difceis, pessoa de

    luz, abenoada por Deus que me d fora com sua alegria, suaenergia e a sua plena dedicao; sem ela seria impossvel este tra-balho.

    Aos meus irmos: Efrain Dario, Efrn e Franklin e minhacunhada Rose, que, mesmo distantes fisicamente, sempre demons-traram interesse por minhas pesquisas e me apoiaram, contri-buindo com vrias ideias.

    Ao meu filho Brunno, por sua presena em minha vida, porcompreender as minhas ausncias, por me dar a oportunidade deviver outra infncia, desta vez ao seu lado. Obrigada meu meninode luz, meu tesouro mais valioso.

    Ao Alonso, por ser muito mais que um amigo, por compartilharcomigo momentos de profundas reflexes, pelo apoio nos mo-mentos de angstia e pela presena nos muitos momentos de felici-

    dade. Obrigada pela fora de todos os dias, pelo incentivo e pelaspalavras de carinho.

    Ao Francisco, pela presena num momento to especial, em queeste sonho que hoje realidade ainda era uma semente.

    minha amiga Viviani, que com a sua amizade to sincerasempre esteve comigo nas diversas fases desta caminhada.

    Aos queridos professores da ps-graduao, prof. dr. Jos Luiz

    Guimares (in memoriam), profadraOlga Ceciliato Mattioli, profadra Elisabeth da Silva Gelli e prof. dr. Jose Antnio Castorina,pelas disciplinas oferecidas, que cursei todas como aluna especial.Obrigada pelos ricos momentos de reflexo, fundamentais para odesenvolvimento deste trabalho.

    Aos amigos Flvia, Tatiane, Carolina, Daniele, Milena, Ma-noela, Francy, Noemi, Guilherme, Jos Roberto, Luciana, Sofia,

    Claudia e Andr, pelos encontros, pelas trocas e pela amizade quefoi construda.

    Aos funcionrios da ps-graduao, pela pacincia, pela dedi-cao aos servios prestados, pelas inmeras orientaes que foram

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    A VIGILNCIA PUNITIVA 9

    dadas e por compartilhar comigo bons momentos no ano de 2008,em que fui uma das representantes discentes da ps.

    Aos educadores que participaram da pesquisa, pela colaboraoao fornecer os dados de forma to cordial.s crianasda escola em que trabalho, pois a cada dia aprendo

    algo com elas e sem elas esta pesquisa no teria sentido.A todos que de uma forma ou de outra participaram desta traje-

    tria to importante em minha vida...

    ... OS MEUS SINCEROS AGRADECIMENTOS.

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    No tenho outra maneira de superara quotidianeidade alienante seno

    atravs de minha prxis histrica em

    si mesma social e no individual.Somente na medida em que assumototalmente minha responsabilidade nojogo desta tenso dramtica que me

    fao uma presenaconsciente nomundo. Como tal, no posso aceitar

    ser mero espectador, mas pelocontrrio, devo buscar o meu lugar,

    o mais humilde, o mais mnimo

    que seja, no processo detransformao do mundo [...]

    Paulo Freire

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    Ser criana ser arte sem ser quadro

    Um balano sem criana

    Um rosto sem sorriso

    Uma escola sem risada

    Recreio sem correria como palco de circo sem palhaada

    Assim a vida fica sem graa

    Parece tudo certinho

    Os bancos todos enfileiradinhos

    Mas sem nenhuma criana na praa

    A escola como a vida, lugar de encontro...

    Estudar, aprender, ensinar e respeitarRespeitar as diferenas

    Pois ser diferente no ter doenas

    Os dedos da mo no so iguais

    E nem os adultos so os nicos normais

    A infncia curta e passageira

    Ento que seja de liberdade

    Isso no tirar os limites dizer criana que ela tem capacidade

    Pra isso no precisa de remdio

    O que ela precisa mesmo de uma vida sem tdio

    Sendo assim...

    O balano precisa de criana

    O rosto precisa de sorriso

    Como a vida precisa de esperana.

    Fabiola Colombani Luengo

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    SUMRIO

    Apresentao 17

    1 A histria da higienizao no Brasil:o controle, a eugenia e a ordem social

    como justificativa 23

    2 Disciplina/indisciplina: educao infantil,espao de liberdade ou de modelamento? 47

    3 Patologizao e medicalizao infantil:a vigilncia punitiva 59

    4 Estratgias metodolgicas e procedimentos 81

    5 Anlise dos dados e os eixos temticos 87

    Consideraes finais 117

    Anexos 123

    Referncias bibliogrficas 135

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    APRESENTAO

    A relao entre indisciplina e o TDAH (Transtorno de Dficitde Ateno e Hiperatividade) tem sido muito discutida, atual-mente, e se apresenta, corriqueiramente, no mbito escolar. Pormainda gera muitas controvrsias, pois h os profissionais que con-cordam com sua existncia e os que discordam, alegando insufi-cincia de comprovaes cientficas.

    O interesse na escolha do tema deste trabalho surgiu a partir deacontecimentos vividos ainda na infncia, em que foi possvel con-vivermos com a medicina higienista na escola, tanto pela sujeio higienizao na condio de alunas quanto por compartilhar, deforma bastante prxima, com mdicos que demonstravam inquie-taes, crticas e discordncias com relao a essa prtica. Sob in-fluncia dessas vivncias, somadas atuao profissional ocorridaem lugar propcio, essas interpelaes j latentes contriburam paraa consolidao desta prtica investigativa.

    A atuao como psicloga educacional teve incio aps contra-tao municipal a pedido da Secretaria da Educao, ocorrida emvirtude de uma solicitao feita pela escola de um profissional quepudesse desenvolver um trabalho com crianas ditas indiscipli-nadas, pois os educadores tinham a expectativa de que o psiclogocontratado colaboraria avaliando, diagnosticando e posteriormentetratando toda e qualquer criana que apresentasse comportamentosconsiderados desviantes.

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    18 FABIOLA COLOMBANI LUENGO

    Desde o incio, pudemos observar que a instituio tinha comohbito encaminhar crianas ao servio de sade quando apresen-

    tavam qualquer comportamento considerado pelos educadorescomo anormalepatolgico.Ao tomarmos conhecimento da situao, verificamos que havia

    um grande nmero de crianas encaminhadas por queixa escolarnaquele ano, inclusive crianas muito pequenas, as quais se encon-travam em tratamentos psicoterpicos e medicamentosos, sendoacompanhadas por diversos profissionais, como psiclogos, neuro-logistas, psiquiatras, neuropsiclogos, psicopedagogos e afins. Nascartas de encaminhamento, a queixa principal era sempre a mesma,ou seja, essas crianas eram consideradas pelos professores agitadase indisciplinadas.

    A partir daquele momento, o assunto se tornou extremamenterelevante para ns, e embora nesta pesquisa no haja a pretensode resolver tal problema, temos o dever de lutar por esta causa, pois visvel aos nossos olhos que a problematizao de tal tema ur-gente e necessria e tais discusses devem ser levadas para fora dosmuros acadmicos, a fim de que a sociedade possa se beneficiar denossas descobertas e constataes cientficas.

    A patologizao escolar, segundo Collares & Moyss (1985,p.10), consiste na busca de causas e solues mdicas, a nvel or-ganicista e individual, para problemas de origem eminentementesocial. Essa questo sempre esteve muito presente na instituio

    escola de diversas formas, o que foi determinando o contexto edu-cacional. Atualmente, tal fato se manifesta pelos diversos trans-tornos que so relacionados infncia, em especial o Transtorno deDficit de Ateno e Hiperatividade (TDAH), que, em tempospassados, recebia o nome de Disfuno Cerebral Mnima (DCM).

    O TDAH pelo DSM-IV1 ou Transtornos Hipercinticos ,segundo a CID-10,2 na atualidade, o transtorno com maior fre-

    1. DSM-IV Manual de Diagnstico e Estatstica dos Transtornos Mentais,American Psychiatric Association.

    2. CID-10 Classificao Internacional de Doenas, Organizao Mundial deSade (1993).

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    A VIGILNCIA PUNITIVA 19

    quncia de encaminhamentos de crianas a centros especializadosde neurologia peditrica. Tambm considerado pelos especia-

    listas como um transtorno mental crnico, o qual evolui ao longoda vida e que, segundo eles, a criana manifesta logo na educaoinfantil. Com isso, crianas tm sido diagnosticadas e medicadascada vez mais cedo.

    Porm, no h, segundo os prprios neurologistas, compro-vao por exames, do diagnstico de tal transtorno:

    podemos afirmar que at hoje, cem anos depois de terem sidoaventados pela primeira vez por um oftalmologista ingls, os dis-trbios neurolgicos no tiveram suas existncias comprovadas, uma longa trajetria de mitos, estrias criadas, fatos reais queso perdidos/omitidos... Trata-se de uma pretensa doena neu-rolgica jamais comprovada; inexistem critrios diagnsticosclaros e precisos como exige a prpria cincia neurolgica; o con-ceito vago demais, abrangente demais... (Collares & Moyss,1994, p.29).

    No mbito escolar, o TDAH surge como justificativa para a re-petncia e o fracasso. Crianas que apresentam comportamentosque no correspondem ao esperado ou desejado pelos professores,so vistos como portadores de tal transtorno. Os pais, influencia-dos pelas queixas dos educadores, passam a procurar ajuda mdicae psicolgica com o intuito de sanar tais comportamentos conside-rados anormais, o que acarreta a medicalizao, que surge comoprincipal meio de solucionar o problema.

    Desvencilhando-se completamente de uma viso organicista,biologizante e individualista, este livro procura caminhar a partirde uma viso crtica, que, luz da teoria foucaultiana, vem tratar oproblema sob uma tica histrica e social, refletindo a disciplina eseus mecanismos institucionalizadores de poder.

    Nesse sentido, temos como objetivos principais discutir a re-lao entre indisciplina e o diagnstico de TDAH, a partir daqueixa do professor da educao infantil. Pretendemos, ainda, ana-

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    20 FABIOLA COLOMBANI LUENGO

    lisar a postura dos educadores diante do processo de patologizaono campo educacional, levando em conta a sociedade eugnica e

    disciplinar, que foi consolidada com a higienizao no incio do s-culo XX, como tambm construir uma reflexo crtica das prticassociais e educativas que ora se configuram, mediante a anlise daeducao contempornea e do resgate histrico da escolarizaono Brasil.

    Esses objetivos se fazem pertinentes diante da hiptese de que,com o intuito de alfabetizar, a educao infantil est se tornando

    um ambiente disciplinador, que no corresponde ao carter livre,criativo e comunicativo desejvel para a infncia; com essa prtica,os educadores esto confusos em relao ao que normal e ao quepatolgico.Nesse impasse, os educadores no possuem uma con-cepo de criana ativa, produtora de seus desejos, autnoma e comdireitos de expressar seus pensamentos. Assim, muitos dos compor-tamentos manifestos pelas crianas so vistos como indisciplinados

    eagitados, fazendo com que elas sejam vistas como hiperativas.Essa viso acarreta o encaminhamento aos profissionais da sadee, posteriormente, aos longos tratamentos teraputicos e medica-mentosos.

    Nessa perspectiva, a partir do levantamento das questes napesquisa de campo, os captulos foram construdos, segundo a se-guinte organizao.

    O primeiro captulo A histria da higienizao no Brasil: ocontrole, a eugenia e a ordem social como justificativa apresentade forma breve a histria da infncia, e nele procuramos apontar osmomentos em que a higienizao foi se configurando e ganhandoespao no mbito escolar. A importncia desse captulo consisteem localizar historicamente a questo do controle e do disciplina-mento, que se fez to presente nas prticas eugnicas e higienistascom o objetivo de alcanar a ordem social.

    O segundo captulo Disciplina/indisciplina: educao in-fantil, espao de liberdade ou de modelamento?buscou refletirsobre os conceitos de disciplina/indisciplina e seus mecanismos depoder, sinalizando alguns acontecimentos histricos, transpondo-os

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    A VIGILNCIA PUNITIVA 21

    para os dias atuais. Esse um tema de suma importncia nesta pes-quisa, pois o consideramos como um dos pilares que sustentam a

    medicalizao escolar.O terceiro captulo Patologizao e medicalizao infantil: avigilncia punitivateve o intuito de instigarainda mais a preo-cupao com o ato de patologizar e medicalizar a infncia, assimcomo trazer dados sobre o TDAH e a indstria farmacolgicano Brasil.

    O quarto captulo Estratgias metodolgicas e procedi-

    mentosprocura evidenciar o caminho percorrido metodologi-camente, explicitando os instrumentos que foram utilizados para

    a construo desta pesquisa.O quinto captulo Anlise dos dados e os eixos temticos

    apresenta todos os dadoscoletados para anlise,divididos em trsinstrumentos de pesquisa: observaes, relatos pedaggicos (porescrito) e entrevistas semiestruturadas, que foram organizados em

    oito eixos, sendo eles: Rotina, Religiosidade, Patologizao e Me-dicalizao, Relao professor-aluno, Apostila, Indisciplina (ati-tudes tomadas), Controle e Disciplinamento e Encaminhamentosde alunos/Diagnsticos.

    Vemos, por fim, uma forma de trazer tona questes presentesno cotidiano escolar e que se perpetuam a partir de uma prtica es-tigmatizante, marcando a criana com o rtulo da anormalidade,oque pode levar, como consequncia, medicalizao.

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    1A HISTRIADAHIGIENIZAONO

    BRASIL: OCONTROLE, AEUGENIAEAORDEMSOCIALCOMOJUSTIFICATIVA

    Apropriar-se dos conhecimentosproduzidos pelos avanos das cincias

    naturais para justificar a higienepsquica e moral, como propunham os

    higienistas, ou a depurao da raacomo uma forma de abreviar a

    seleo dos mais fortes sobre os maisfracos, como propunham os

    eugenistas, , a nosso entender, nomnimo um contrassenso.

    Boarini, 2003, p.41

    No Brasil, a histria da educao comea a delinear contornosprprios e significativos entre o final do sculo XIX e incio do s-culo XX, influenciada ainda pelos resduos europeus de uma edu-cao voltada aos cuidados mdico-assistencialistas que, marcadapelo perodo ps-Primeira Guerra, teve como grande preocupaoiniciar programas que atendessem tambm aos rfos, com o obje-tivo de diminuir a mortalidade infantil.

    Kuhlmann Jnior (2001) aponta o surgimento das instituieseducativas infantis como consequncia de articulaes de inte-resses jurdicos, empresariais, polticos, mdicos, pedaggicos e

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    24 FABIOLA COLOMBANI LUENGO

    religiosos, em torno de trs influncias bsicas: a jurdico-policial,a mdico-higienista e a religiosa. Porm, para que possamos traar

    o cenrio em que essas questes foram constitudas no Brasil, pre-ciso visualizar uma linha do tempo que nos permita refletir sobreelas, procurando compreender o contexto das relaes sociais e le-vando em considerao as influncias recebidas por importantesperodos da histria.

    Um perodo muito significativo, pois deu origem a diversasquestes que sero apontadas neste trabalho, o do Brasil Colnia.

    Na poca, os casamentos aconteciam a partir de interesses eco-nmicos e sociais, embora muitas vezes nascessem filhos de rela-cionamentos que no eram socialmente aceitos, como filhos deescravas com seus senhores ou filhos de casais que mantinham re-lacionamento escondido da famlia, o que, inevitavelmente, cau-sava o abandono de crianas indesejadas em portas de igrejas ecasas, alm de um grande nmero de infanticdios e maus-tratos, o

    que criou a necessidade da implantao das casas de roda,

    3

    igual-mente conhecidas por rodas dos expostos, casas dos enjeitados,casas de misericrdia ou casas dos expostos, vrios nomes parauma nica instituio que tinha como objetivo caritativo -assisten-cial recolher as crianas abandonadas.

    O nome rodafoi dado instituio porque a criana era deposi-tada num cilindro oco de madeira que girava em torno de umgrande eixo, construdo em muros de igrejas ou hospitais de cari-dade. Ao ser colocado, o exposto era entregue passando para olado de dentro da instituio, sem nenhuma identificao, o queevitava que o depositrio e o recebedor fossem reconhecidos.

    Kishimoto4 traz um registro histrico no qual podemos veri-ficar a existncia de um regulamento especfico destinado a essascasas:

    3. Essa instituio foi criada em 1738 por Romo Mattos Duarte, com o objetivocaritativo-assistencial de recolher as crianas abandonadas.

    4. No foi utilizada a obra original, visto que na referncia no consta o nome dolivro.

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    A VIGILNCIA PUNITIVA 25

    O regulamento dos expostos, aprovado em sesso de 13 de se-tembro de 1874, especifica como obrigao da misericrdia acriao do exposto pelo tempo de um ano e meio de sua ama-mentao e por mais cinco anos e meio, ou seja, um total de seteanos. Aps o que cessa a obrigatoriedade do cuidado com essascrianas que so devolvidas a pais ou parentes, doados a interes-sados, ou ainda, enviados ao juizado de rfos. (Parecer da Co-misso Especial, 1874, apud Kishimoto, 1988, p.48)

    As casas de roda tornaram-se, ento, um grande depsito decrianas enjeitadas. Segundo Costa (1989, p.164), essas casas foramfundadas e se mantiveram com o intuito de proteger a honra da fa-mlia colonial e a vida da infncia. Porm, houve um abuso porparte de homens e mulheres que passaram a ver a roda como umaalternativa para encobrir suas transgresses sexuais, ou seja, es-tavam certos de que poderiam esconder os filhos ilegtimos ou re-jeitados num local onde seriam bem tratados, sem prejuzo daprpria imagem. Com isso, a roda incitava a libertinagem, o que de-sembocou numa superpopulao de crianas abandonadas, quechegavam muitas vezes beira da morte a um lugar no qual obti-nham precria ateno.

    Esse foi um marco na histria social da criana abandonada,tanto na Europa quanto no Brasil, que sempre recebeu forte in-fluncia europeia, at mesmo por sua dependncia poltica.

    Por conta da necessidade, surgiu um novo tipo de trabalho paraas mulheres que buscavam uma forma de sustento, ser ama de leitedas crianas abandonadas na roda. As amas de leite mercenrias,como eram chamadas, amamentavam sem nenhum comprometi-mento nem higiene e muito menos afeto, o que acarretava morteprematura de muitas crianas.

    No sculo XVII e mais intensamente no sculo XVIII Sculo

    das Luzes , houve grandes mudanas em relao criana. Foi operodo no qual comeou a surgir uma nova viso de infncia, atmesmo na forma de vesti-las, que at ento era muito semelhante do adulto. Esse perodo recebeu forte influncia de um marcante

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    acontecimento histrico, o surgimento da tipografia5 no sculoXV , pois, como diz Postman (1999), foi nesse perodo que a in-

    fncia passou a ser identificada, embora ainda sem reconheci-mento, porque at ento poucas pessoas eram alfabetizadas e nohavia parmetro entre a infncia e a fase adulta, visto que todos pa-reciam ter o mesmo nvel de absoro e intelectualidade.Com a che-gada da imprensa aumentou a necessidade da alfabetizao, pormacreditava-se que somente o adulto era capaz de aprender, pois acriana ainda no era dotada de razo. Dessa forma, havia um

    marco de passagem entre a infncia (ser sem razo e sem cultura) ea fase adulta (ser com razo e capaz de aprender). Podemos, ento,arriscar-nos a dizer que a noo de infncia passou a ser determi-nada no somente por fatores biolgicos, mas tambm por fatoreshistrico-sociais.

    Se at ento a criana no tinha importncia social, como des-creve Aris (1978) em sua obra clssica, Histria social da criana e

    da famlia, a partir do sculo XVII comea a existir por parte da fa-mlia um interesse pelo desenvolvimento fsico-emocional dos fi-lhos, comeando a trat-los de maneira mais individualizada. Essapercepo fez surgir uma preocupao em separar o mundo infantildo mundo adulto, fazendo surgir, assim, a necessidade de escolascom o intuito de alfabetizar, para que a humanidade sasse das tre-vas da ignorncia. Dessa forma, a escola passou a ser o lugar dainfncia e a criana deixou de aprender somente na convivnciacom os adultos que lhe eram prximos. Entretanto, a escola aindaera vista como uma espcie de quarentena, na qual a criana perma-necia isolada antes de ser solta no mundo. Comeou, ento, um longoprocesso de enclausuramento das crianas (assim como dos loucos,dos pobres e das prostitutas) que se estenderia at nossos dias, e aoqual se d o nome de escolarizao (Aris, 1981, p.11).

    Ainda no sculo XVII, a razo passou a ocupar o lugar daemoo e das crenas religiosas, comportamento que fez abrir ca-

    5. Um maior aprofundamento dessas ideias pode ser encontrado na obra de N.Postman, O desaparecimento da infncia.Rio de Janeiro: Graphia, 1999.

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    A VIGILNCIA PUNITIVA 27

    minhos para inmeras descobertas. A criana deixou de ser vistapela famlia como um adulto em miniatura ou ser incompleto, sem

    importncia no seio familiar um enfant,que quer dizer no fa-lante (sem direito fala). Mais tarde, no sculo XVIII, a crianacomea a ser entendida como ser humano em processo de formaoe desenvolvimento, que necessitava de cuidados especficos.

    Ao olhar a criana de outra forma, a sociedade passou a se preo-cupar mais com a sade e o bem-estar infantil, pensando na im-portncia de cuidar dos primeiros anos de vida para garantir a sua

    sobrevivncia, preparando-a para um bom desenvolvimento fsicoe moral. Mesmo assim, a mortalidade infantil apresentava eleva-dos ndices e a Igreja teve que intensificar ainda mais a assistnciacaritativa.

    Influenciada pelas ideias iluministas do sculo XVIII, a Igrejajuntou-se ao Estado e criaram a assistncia filantrpica. Com asociedade crist e o Estado mobilizados para contribuir com os

    cuidados em relao infncia, as famlias passaram a ser culpabi-lizadas, dando origem ideia de eugenia.6Ou seja, era necessrioencontrar o erro na humanidade e, com isso, procurar aperfei-oar a espcie humana, corrigindo e eliminando os defeitos. Asmedidas de restabelecimento da ordem comearam ento a sertomadas.

    Embora j houvesse novas preocupaes com os problemassociais, essas ideias ainda eram orientadas pelas leis de uma socie-dade colonial em que a ordem, a justia e todo o sistema punitivoeram controlados pelas ordenaes monrquicas, o que muitas vezesacarretava punies violentas, que em nada contribuam para oprogresso da sociedade. Pelo contrrio, as barbries fizeram comque a populao citadina adentrasse o sculo XIX sem grandesavanos.

    6. Termo usado por Francis Galton a partir de 1883. Evolucionista, matemtico efisiologista, ele se dedicou aos estudos da hereditariedade, com o intuito demelhorar as qualidades raciais das futuras geraes tanto fsica como mental-mente.

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    Partia-se do pressuposto de que a pobreza e a promiscuidadeandavam juntas e que causavam a desordem social, responsvel

    pelo alto ndice de abandono infantil e consequentemente da mor-talidade precoce, ainda na primeira infncia. Com relao a essaquesto, Costa (1989) nos oferece dados sobre o panorama legale punitivo da Colnia, relatando as duas instituies que cons-truram eficientes tcnicas de controle para os indivduos: a Igreja,atravs da pedagogia jesuta, e o Exrcito. Porm, a pedagogia je-suta foi evitada e combatida pela Coroa portuguesa, pois contra-

    riava a estratgia do governo ao pressupor o desenvolvimento dainstruo e da escolarizao. A velha ordem colonial resistia ino-vao, para que o controle servisse somente aos interesses do go-verno, uma vez que a educao jesuta propunha o controle pormeio de normas geradas a partir dos interesses da cristandade.

    Esses obstculos s foram transpostos no sculo XIX, com ogrande movimento de internao de crianas coordenado pela peda-

    gogia leiga e a higiene mdica. Com esse movimento, o Estado co-meou a entender que a fora da lei no era suficiente para produzirindivduos submissos. Era necessrio estatiz-los para que tives-sem a convico da importncia que o Estado tinha na preservaoda sade, bem -estar e progresso da populao. Nesse momento,as tcnicas disciplinares saem do ostracismo colonial e comeam aocupar o primeiro plano da cena poltico-urbana (Costa, 1989,p.57).

    Resulta desse processo a necessidade da interveno da escolapara combater a desordem social. A instituio foi criada para re-ceber o povo, os mestios e os degenerados socialmente, o que aprincpio afastou as crianas das classes mais abastadas, pois, almde contarem com uma educao domiciliar, seus pais temiam quesofressem influncias negativas das crianas consideradas moral-mente afetadas, por pertencerem s classes e raas inferiores.

    Costa (ibidem) tambm aponta que, nesse perodo, os jesutaspassaram a interatuar no sistema educacional, o que fez com que aeducao se transformasse num aparelho disciplinar eficiente.Analisando a histria, podemos perceber claramente que o apa-

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    relho disciplinar jesutico foi para os colgios o que o dispositivomilitar foi para as cidades. As tcnicas de adestramento eram as

    mesmas, como tambm o culto ao corpo, que demonstrava a sani-dade mental do indivduo; assim, o ser capaz era o ser sadio, quedispunha de cuidados extremamente rigorosos com o corpo, inclu-sive na alimentao.

    O pensamento higienista seria, ento, uma das formas discipli-nares que surgiram com o objetivo de reestruturar o ncleo fami-liar, mas isso s ocorre atravs do poder mdico, que se insere na

    poltica de transformao do coletivo para compensar as deficin-cias da lei e entrar no espao da norma. No casamento higienistadeveriam existir trs princpios bsicos: o status social, uma boasade fsica e uma boa formao moral. Esses pr-requisitos parauma boa unio atenderiam o objetivo principal da ordem higie-nista-mdica, para possibilitar condies de produzir uma normafamiliar capaz de formar cidados domesticados, higienizados e in-

    dividualizados, que se tornariam aptos a colaborar com o progressoda cidade, do estado. Enfim, da Ptria.Pensou-se na escola como o local apropriado que pudesse

    dar continuidade ordem social. A tica e os valores ordenavam ascondutas no convvio social, modelando o indivduo para que suavida privada e familiar seguisse atrelada aos anseios polticos deuma determinada classe social, a burguesia.

    mais fcil visualizar esse processo quando se analisam os re-sultados alcanados pela educao higinica, que, embora tenhasido focalizada em um corpo individualizado, influenciou e mani-pulou tanto poltica como economicamente a vida social. Mas essesresultados foram obtidos pelo controle moral, mediante o qual seensinava que a boa educao estaria nas condutas civilizadas e noautocontrole. Essas condutas seriam conquistadas com a violnciapunitiva dos castigos fsicos, o que produziu uma crescente ten-dncia culpa, fazendo com que o sujeito tivesse um autocontroleopressivo sobre si.

    Para Boarini (2003), a educao higinica veio disposta a refinare a racionalizar a primitiva sociedade colonial, gerando um pro-

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    cesso de hierarquizao social da inteligncia e das boas maneiras.Instalou-se a ideia de que o ser culto era superior ao ser inculto.

    Estabeleceu-se a razo como princpio fundamental para orientar avida das pessoas, a fim de que se pudesse alcanar o progresso. Aospoucos, houve uma evoluo higinica da famlia, aumentando adisciplina, a vigilncia e a represso, que se estenderam tambm aombito da educao. Os higienistas acreditavam que, se o controledo corpo fosse feito desde a infncia, as condutas na fase adultaj estariam condizentes com o ideal desejado, segundo as normas

    higinicas, isto , uma criana bem fiscalizada seria o perfeitoadulto higinico. Porm, essas condutas no propiciavam o desen-volvimento da conscientizao no sentido de levar os indivduosa mudar suas vises de mundo. A ao das normas educativo--teraputicas sempre emanou de forma despolitizada, individuali-zante, reduzindo o indivduo a um mero produto de seu intimismopsicolgico, sem levar em considerao as prprias necessidades

    socioemocionais.Esse quadro passou por uma grande modificao quando asepidemias, as febres, os focos de infeco e a contaminao da guapassaram a ser o infortnio da administrao colonial, que at entono se preocupava com saneamento bsico. A populao era des-truda por ocasio dos surtos epidmicos, que causavam, nos pe-rodos mais crticos, grande taxa de mortalidade. Tal administraoculpava a sociedade, pois, sem planejamento e uma burocracia ade-quada, transmitia a responsabilidade populao, ou seja, o povodeveria dar conta de controlar as epidemias atravs de suas prticashiginicas.

    Segundo Costa (1989), em 1808, com a chegada da Corte aoBrasil, houve vrias modificaes, pois, alm da famlia real, vriasfiguras estrangeiras importantes e a nata da sociedade brasileirae dos profissionais da rea diplomtica se concentraram, aumen-tando a populao do Rio de Janeiro. A presso da populao e asexigncias higinicas da elite geraram a necessidade de mudana, oque fez com que os profissionais da rea mdica fossem mais solici-tados. Entre as grandes conquistas da superioridade mdica est a

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    tcnica de higienizao das populaes. Na Colnia, a condutaanti-higinica da populao impedia o progresso. Com o aumento

    de habitantes nas cidades, foi necessrio pensar numa forma efi-ciente de bloqueio higinico para que as epidemias fossem aospoucos substitudas por uma melhor qualidade de vida.

    bvio que controlar as doenas traria como consequncia a di-minuio de mortes, o que em qualquer aspecto significaria avanospositivos para a populao. Entretanto, econmica e burocratica-mente, a administrao imperial ainda no contava com uma orga-

    nizao capaz de conseguir tal controle sem a ajuda de fiscais, o queacabou por delegar poderes s pessoas que viriam a atuar como au-xiliares dos profissionais da rea mdica.

    Esses auxiliares recebiam o nome de almotacs.Eles operavame fiscalizavam essa rea, como diz Costa (1989), com carter vigi-lante de ao ligada justia, a qual atuava no universo de punioque caracterizava todos como se fossem marginais. Essa fiscaliza-

    o era descontnua, fragmentria. No prevenia nem conscientizava no mbito social , o que a tornava uma vigilncia constante-mente punitiva, que estigmatizava e reprimia por meio de proce-dimentos institucionalmente legais, propiciando o que chamamoshoje de abuso de poder, o qual se dava atravs de tais condutas e deum olhar hierrquico.

    Se antes os cuidados infantis se reduziam assistncia carita-tiva, a partir daquele momento passou a ter outro valor. Com a ne-cessidade da alfabetizao e da entrada do homem no mundo darazo, a escola passou a ser espao primordial da infncia e seria l olugar mais apropriado para a medicina influenciar o comporta-mento de cada aluno, imprimindo ali o seu poder, visto que a fa-mlia estaria distante daquelas aes e ainda seria diretamentebeneficiada com a modificao das condutas infantis. Dessaforma, os higienistas passaram a pensar que, em vez de castigar oscidados, deveriam prevenir pensando no adulto de amanh, cons-truindo seres sujeitveis e submissos.

    A famlia passou a ser abordada com a justificativa de que asubmisso s novas leis de conduta possibilitaria a sobrevivncia da

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    prole, o prolongamento da sade e a felicidade do corpo. Deix-losvulnerveis os tornaria aliados, o que facilitaria uma maior in-

    fluncia sobre suas crianas. Dessa forma, fica evidenciada a preo-cupao em estabelecer parmetros que pudessem orientar asprticas higinicas com o apoio da famlia. Entretanto, aqueles queno tinham famlia no contavam com a superviso mdica, e simcom a vigilncia policial, pela qual muitas vezes eram encami-nhados s prises e aos asilos.

    Nesse intenso desejo de progresso, a higienizao da famlia foi

    uma das propostas pensadas para contribuir com o desenvolvi-mento urbano, tanto que foi mais perceptvel a ao higinica nosgrandes centros. A medicina se voltou para esse fim, embora de-vamos deixar bem claro que nem todos os mdicos se interessarampor essa prtica mdica higienista, mas os que abraaram a causase propuseram a modificar os hbitos atravs do disciplinamento,partindo de um ideal de comportamento em que todo e qualquer

    indivduo que no obedecesse s normas era considerado fora dopadro desejado.A famlia, mesmo quando tinha uma posio senhorial, estava

    sendo dominada lentamente, tomada por pequenos poderes queeram representados por agentes do Estado, responsveis pela di-viso dos padres de comportamento social em legais e normativos,buscando a universalizao de novos valores, principalmente o deacreditar na supervalorizao do Estado em relao famlia, regu-lando os indivduos para que se adaptassem ordem imposta pelopoder, no apenas para abolir as condutas inaceitveis, mas tambmpara incorporar as novas prticas e sentimentos.

    A medicina comeou a atuar mais prxima das pessoas, se-gundo uma prtica filantrpico-assistencialista que invadia a vidaprivada sem que isso se configurasse um ato de desrespeito. Assim,os indivduos acabaram permanecendo cegos, inertes e envolvidospelo domnio estatal. Em 1829-1830 houve uma ascenso signifi-cativa desse poder, com a qual a higiene mdica obteve o seu reco-nhecimento pblico, impondo-se junto ao poder central comoelemento essencial proteo da sade pblica.

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    Desenvolvendo uma nova moral da vida e do corpo, a medicinacontornou as vicissitudes da lei, classificando as condutas lesa--Estado como antinaturais e anormais. Todo trabalho de per-suaso higinica desenvolvido no sculo XIX vai ser montadosobre a ideia de que a sade e a prosperidade da famlia de-pendem de sua sujeio ao Estado. (Costa, 1989, p.63)

    Segundo o autor, podemos dizer que a higiene, a princpio, pa-rece cuidar da moral e dos bons costumes da vida privada e pblicados indivduos, mas na verdade o maior alvo da higiene sempre foia famlia, ao passar a ideia de que era necessrio um cuidado cient-fico para que ela pudesse se adaptar urbanizao e cuidar dos fi-lhos, pois os pais eram vistos como incapazes, visto que erravampor ignorncia e a famlia acabava por descobrir no saber higinicoa prova de sua incompetncia, a qual os higienistas faziam questode apontar. Dessa forma, a medicina passou a ser recebida e in-ternalizada pela famlia, que pde reconhec-la como padro re-gulador dos comportamentos, brecando toda e qualquer condutaque se desviasse do padro desejado pelos higienistas. Se o objetivoprincipal do Estado era combater os maus hbitos entre os adultos,isso s ocorria com a inteno de que a criana fosse influenciadacom hbitos saudveis, pensando sempre no adulto do amanhque contribuiria para o progresso.

    A famlia passou ento a ser moldada segundo o cdigo mdicoe a casa converteu-se em local constante de vigilncia de sade,controle de doenas e de militncia moral. Um modelo de regu-lao disciplinar foi sendo desenhado e construdo progressiva-mente, invadindo a forma de funcionamento familiar e pouco apouco foi se configurando o conceito de famlia perfeita, a fa-mlia nuclear, na qual o filho era sadio e respeitador, a me amorosae dedicada ao lar e o pai responsvel pelo sustento da casa.

    Ao estabelecer um parmetro de sociedade e famlia organizada,a disciplina idealizada pelo Estado pode passar a agir de forma maissignificativa e constante, combatendo a imoralidade, os corpos in-sanos e as atitudes corrompidas. Embora os pensamentos teol-

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    gicos ainda se encontrassem fortes, lentamente a cincia foiconquistando territrio e sendo assimilada pela sociedade como

    uma forma de progresso e soluo sada da sociedade de vriassituaes de caos.Foucault, em sua obra Vigiar e punir(2008), faz uma discusso

    singular sobre a ao da disciplina como reguladora dos instru-mentos normalizadores, mostrando como essa disciplina favoreceua docilidade com que a famlia se sujeitou higiene e acabou desen-cadeando uma nova constituio social. A higiene, representada

    por cientistas da rea mdica, chegou exercendo um papel desuposto saber que, tomado de pleno poder, recebeu licena paraadentrar o seio familiar e consequentemente influenciar o funcio-namento de outras reas que at ento no faziam parte da compe-tncia mdica, como a educao.

    A disciplina para Foucault tem ligao direta com o poder, pois,segundo ele, o poder a ao das foras em detrimento de algo ou

    de algum que apresenta fragilidade ou submisso em relao aooutro. O olhar hierrquico, que estigmatiza e reprime o que no aceitvel, tem como objetivo disciplinar o corpo dcil termousado por Foucault , que est adjacente a uma poca clssica emque houve a descoberta do corpo como um alvo de poder. Os higie-nistas se utilizaram, em suas investidas, de um corpo que pode sermanipulado, modelado, treinado, que obedece e corresponde aos

    desejos dos detentores do poder que, nesse caso, esto represen-tados pela figura mdica.

    O corpo humano entra numa maquinaria de poder que o esqua-drinha, o desarticula e o recompe. Uma anatomia poltica,que tambm igualmente uma mecnica do poder, est nas-cendo; ela define como se pode ter domnio sobre o corpo dos

    outros, no simplesmente para que faam o que se quer, maspara que operem como se quer, com as tcnicas, segundo a ra-pidez e a eficcia que se determina. A disciplina fabrica assimcorpos submissos e exercitados, corpos dceis. A disciplinaaumenta as foras do corpo (em termos econmicos de utilidade)

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    e diminui essas mesmas foras (em termos polticos de obe-dincia). (Foucault, 2008, p.119)

    O autor ento elucida que o disciplinamento veio no s paramoldar a forma de organizao familiar, como tambm para cobrirde domnio, atravs da norma, todo o corpo social que, ao ser vi-giado e manipulado, lubrificava toda a engrenagem, tornando-sea vigilncia um operador econmico determinante, na medida emque o poder disciplinar influencia a produtividade social.

    Com o iluminismo, as preocupaes com a infncia se intensifi-caram e se centraram na ideia de transformar a criana em homemdotado de razo, sempre com o objetivo de torn-la produtiva.Mas no sculo XIX que a escola passa a ser o local por excelnciada educao e da aprendizagem das crianas, submetidas aos disci-plinamentos impostos pela instituio, com o intuito de constituirsujeitos eugnicos e capazes de dar conta de uma nova forma eco-

    nmica que surgia naquele momento a industrializao.J durante todo o sculo XIX e incio do sculo XX, perce-

    bem-se todos os resduos cristalizados de uma sociedade eugnica ehiginica, que passa a ter como suporte social verdades construdasainda no Brasil Colnia. Vrias iniciativas, nessa poca, demons-tram uma concepo assistencial que, proveniente de inmerasleis, acaba por influenciar as condutas jurdicas, sanitrias e educa-

    cionais, tendo sido denominada de perodo assistencial cientfico.Assim,

    As primeiras dcadas do sculo XX, no Brasil, foram marcadaspor um amplo debate em torno da reconstruo da identidadenacional, em meio constatao de um quadro sanitrio--educacional extremamente precrio, tanto em zonas urbanas

    quanto em zonas rurais. Desencadeou-se um verdadeiro movi-mento pela sade e saneamento do Brasil, marcado pela presenada doena como o grande obstculo a ser superado, articuladafortemente com os temas da natureza, do clima, da raa, dentreoutros. (Boarini, 2003, p.45)

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    Dessa forma, a infncia passou a ser mais valorizada, sendo alvode cuidados especficos por meio de um controle assduo. Se esse

    controle do corpo tinha como principal meta obter uma infnciaprotegida e higienizada para que houvesse a defesa da sociedade,pensando a criana como o adulto do amanh, s a tinha para queesse adulto do amanh viesse a ser um aparelho social eficiente,isto , um cidado que contribusse para o avano de sua nao comsuas prticas progressistas e salubres. A escola se tornou o lugarapropriado para cultivar os bons hbitos na infncia, cujo objetivo

    seria buscar a harmonizao do corpo e do esprito com o alcance dadisciplina.Surge no ano de 1846 a primeira escola infantil pblica do

    Brasil, denominada Caetano de Campos, frequentada por crianaspertencentes s classes mais abastadas. Isso significa afirmar que,se a escola primeiramente veio a surgir com o intuito de cuidardas crianas pobres, consideradas cidados em estado de risco,

    mais tarde veio a atender outra clientela, dessa vez sem o intuito deproclamar a ordem e modelar para o progresso, mas para manter ecultivar a disciplina que j havia sido adquirida no seio familiar.Kuhlmann (2001) relata a principal preocupao da educao in-fantil naquela poca:

    A preocupao com a formao dos bons hbitos, do cultivo da

    docilidade, estava presente no jardim. As crianas eram alvosda constante interveno e vigilncia dos adultos; a educaomoral, voltada para a disciplina, a obedincia, a polidez, era oncleo da formao, mesmo que no interior de um ambiente pe-daggico bastante rico e diversificado. Para ensinar a moral nose valia da coero, mas de modelos normativos, da aprendi-zagem de rituais para insero social e dos exemplos de atitudesque so passados no prprio momento do ensino como, por

    exemplo, no momento de escolher e contar uma histria. (p.159)

    Alm da preocupao com a sade e a higiene, que visava aocontrole das normas pelo disciplinamento do indivduo, houve

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    tambm todo um discurso eugnico que se criou na cincia mdica,com o intuito de dar uma efetiva ateno raa. Esta era uma

    questo de suma importncia para os mdicos, que tinham a raacomo responsvel pelo progresso ou detrimento social.A eugenia funcionou como um princpio de racionalidade e em

    todo o processo de transio que o Brasil Colnia sofria. Entendia-seque as raas menos abastadas deveriam ser afastadas das outraspara que pudesse ocorrer o crescimento sociointelectual da nao.Enfim, a eugenia infiltrou-se como um dispositivo que contribua

    tanto com o disciplinamento da mquina7

    quanto com a depuraoda raa. A ideia do branqueamento da raa acompanhou a justifica-tiva de que o negro estava intimamente ligado pobreza e igno-rncia, o que seria um perigo para o controle das doenas e daordem social. Os higienistas, tomados por uma viso extrema-mente biologizante e organicista, tinham como certeza absolutaque a depurao de sangues inferiores tornaria a populao mais

    homognea racialmente, e isso facilitaria o trabalho de alcance dacivilizao.

    A eugenia modelando os corpos fsicos (re)modelaria o corpo so-cial, pelo revigoramento orgnico e pela construo daconscincia do cidado. Estabeleceria o lugar dos diferentesgrupos na sociedade acenando-lhes porm com a possibilidade

    de outras posies assim que atingissem o branqueamento, adisciplina e a normalizao. (Marques, 1994, p.44)

    Sendo assim, alm da famlia, a raa tambm se tornou alvode controle e modelamento dos intelectuais, que tinham comoexemplo a nobreza lusa e a sociedade burguesa europeia. A prin-cpio, os higienistas acreditavam que o meio dominaria os indi-

    vduos. Porm, aps um tempo, com o aprofundamento dos seus

    7. Termo usado por Foucault para representar o corpo, composto por vriaspeas elementares que se combinam.

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    estudos cientficos, os higienistas perceberam que somente cuidarda higiene modificando o meio, os costumes e os hbitos, alm de

    organizar as cidades, controlar as doenas e reformular todo o con-texto poltico-cultural no era o suficiente para fazer nascer o pro-gresso. Era preciso cuidar de algo que independia da higiene agentica, a semente hereditria, enfim, a eugenia.

    Os higienistas procuravam o branqueamento da raa, por asso-ciar o branco a um corpo saudvel, sexualmente forte e moralmenteregrado. J o negro era ligado ao descontrole social, a um intelecto

    empobrecido e a uma moral e uma constituio fsica e mental de-sagregadas.

    A constituio familiar deveria, ento, tambm ser monito-rada, pois, se uma famlia era formada por pessoas de raas mes-cladas, como poderia ser feito o melhoramento da raa brasileira?Uma raa branca para os eugenistas jamais deveria se unir a umaraa inferior. Mas como evitar essa unio? Como fazer essa pre-

    veno social?A dcada de 1870 possui como marco a entrada significativa da

    influncia mdico-higienista nas questes educacionais. A escolafoi vista como um local onde a criana passaria a refletir sobre aimportncia da virtude fsica e moral, e tambm a ter uma cons-cientizao racial, que possibilitasse associar o progresso raabranca, recriminando o cio e aceitando o valor do trabalho como

    dignificao do homem.Se os vcios, os maus hbitos, as crenas e a ignorncia cultural

    poderiam ser transmitidos criana pela famlia, era preciso, se-gundo os higienistas, apartar a criana de seus progenitores paraque o futuro fosse pensado e mudado, embutindo -lhes bons hbi-tos ainda na primeira infncia, com o intuito de haver uma supe-rao do modo de vida dos pais, fazendo dessa criana um soldado

    disseminador das ideias higienistas. O discurso mdico apontavapara a importncia de uma interveno precoce, pois a criana eravista como cera a modelar, na qual facilmente se imprimia a for-ma que se desejava. J modificar os hbitos dos adultos seria mais

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    difcil, visto que, como dizia Jlio Pires Porto-Carrero,8 de pe-quenino que se torce o pepino.

    Ver a criana como entidade fsico-moral ainda sem forma justi-ficava todas as investidas de instalaes de hbitos, to defendidapela sociedade mdico-sanitarista que acreditava na importnciada domistificao9disciplinar. Essa ideia se intensificou cada vezmais no final do sculo XIX e incio do sculo XX, porm na pri-meira metade do sculo XX, mais especificamente na dcada de1920, que a higienizao tomou fora maior, havendo o processo

    de desenvolvimento de uma vida regulada pelos discursos e pr-ticas mdicas, sendo inclusive apoiada pelo Estado, cujo projetoera construir um movimento civilizatrio rumo a uma nao prs-pera pelo modelamento social, pois era uma populao composta,em sua maioria, por analfabetos que no correspondiam aos inte-resses das elites governantes e dos intelectuais da poca.

    O interesse pela infncia seria ento para preparar o adulto do

    amanh. Vem da o fato de as aes preventivas e educativas aela dirigidas resultarem na criao de um homem melhorado esadio, que viria a propagar as ideias higienistas servindo nao,colaborando com isso para a ordem social. Se antes a criana eramanipulada pela Igreja e pela famlia, agora passa a ser objetode manipulao da cincia e o seu corpo torna-se alvo de mais ummecanismo de poder. A escola passou a ser vista como o meio e acriana como o fim dos alvos das aes de preveno e saneamento,e educao e sade se uniram para normaliz-la, enquanto o edu-cador passou a representar um identificador de anormalidades.

    Guiados pelas ideias eugenistas de Galton, Morel e Lombroso,a medicina passou a ver o professor como aliado e necessitavatrein-lo, desenvolvendo-lhe o olho clnico e assim torn-lo co-

    8. Mdico psiquiatra, participou do movimento higienista e teve uma importanteatuao como educador no movimento da Escola Nova. Nome de pesodentro da prtica eugnica, foi um dos introdutores das ideias de Freud noBrasil, na dcada de 1920.

    9. Termo usado por Foucault em sua obra Vigiar e punir(2008) para se referir aodisciplinamento do homem.

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    adjuvante dos diagnsticos, partindo de um modelo positivista denormalidade que vinha escudado por um discurso cientfico. Patto

    (1991) localiza a entrada dessas ideias no Brasil, no incio do sculoXX, com Franco da Rocha, Loureno Filho e Durval Marcondesem So Paulo e Arthur Ramos no Rio de Janeiro. A primeira expe-rincia brasileira de instalao de clnicas de higiene mental nas es-colas foi o Servio de Higiene Mental da Seo de Ortofrenia eHigiene do Instituto de Pesquisas Educacionais, fundado quandoda reforma do ensino municipal do Distrito Federal instalada em

    1934, mostrando claramente uma operacionalizao da influnciado modelo mdico nas escolas brasileiras, originado do movimentohigienista norte-americano, que Ramos ajudou a introduzir noBrasil.

    A partir da surgiram clnicas de higiene mental nas escolas e ainstituio de diversos dispositivos normalizadores: a inspeo m-dica, a ficha sanitria do aluno e a figura do professor soldado, cujo

    currculo de formao passou a ter disciplinas de contedo dasreas mdica e biolgica.

    Fazendo desfilara classediante de si, o professor deveria esqua-drinhar o corpo de cada aluno, examinando-lhe mo, unhas, cabe-los, orelhas e, ainda, as roupas e os sapatos. Marcar a importnciado asseio, explicar minuciosamente em que consiste, incentivara repetio das noes, examinar acuradamente, chamando aateno para as falhas e louvando os acertos so os elementos quecompem essa prtica, por meio da qual se buscava conformar oscorpos e gestos infantis, produzindo comportamentos conside-rados civilizados. (Rocha, 2003, p.49)

    A instituio escola seria ento um dos lugares de ao dessepoder cientfico, que viria para reformar os cidados deste pas e

    afastar do caminho do progresso as enfermidades morais. Ten-taria construir na criana higienizada um corpo apto, constitudocom vigor resultante do cultivo da educao fsica e dos hbitos sa-dios. A escola torna-se o lugar de ao de vrias disciplinas e formas

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    A VIGILNCIA PUNITIVA 41

    de disciplinamento, e, como diz Foucault (2008), a disciplina fa-brica corpos submissos e exercitados, corpos dceis. dcil um

    corpo que pode ser submetido, utilizado, transformado e aperfei-oado, impondo uma relao de docilidade-utilidade.As normas, que vieram para diferenciar as boas das ms condu-

    tas e enquadrar os comportamentos considerados adequados, ti-nham como parmetro a ideia de anormal ou patolgico. O normalvem se estabelecer como uma forma de aprisionar o aluno, que,por meio de uma educao padronizada, universaliza e iguala os

    desiguais, sem levar em considerao as singularidades de cada in-divduo.Detectados os desvios conforme as normas, o corpo que no se

    comportasse de forma dcil e submissa passaria ento a sofrer san-es normalizadoras que vinham para combater a suposta re-beldia. Quais seriam essas sanes normalizadoras? A princpio, ocastigo fsico era o principal instrumento. A punio existia como

    forma de fazer o aluno obedecer a partir da dor e da humilhao, e,posteriormente, vinha o exame mdico-psicolgico do escolar, como objetivo de sanar os casos-problemas.

    Cada vez mais a educao foi se desenhando nas ideias gene-ticistas, para a qual a hereditariedade j trazia de antemo informa-es estigmatizantes sobre a criana. A eugenia, cada vez maisforte, tratava a gentica como um biopoder, pensando o indivduocomo homem-mquina e corpo espcie, que vinha carregado deinmeras expectativas sobre os processos biolgicos, como os as-pectos orgnicos prprios da raa. Sendo assim, os eugenistas viama escola como um local que possibilitava a unio harmnica docorpo e do esprito, podendo, pela cultura, melhorar o indivduoe, consequentemente, a espcie. Essa viso de uma escola capaz decuidar do corpo e da mente fazia ver como indispensvel a presenade novos saberes para compor a equipe escolar, como os profissio-nais da sade. Assim, a escola passou a ser uma rede de saberes epoderes que, como uma teia, entrelaavam as concepes dos de-tentores do saber: higienistas e educadores.

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    A nova palavra de ordem a higiene mental escolar. Com inten-es preventivas, as clnicas de higiene mental e de orientaoinfantil disseminaram-se no mundo a partir da dcada de vinte ese propem a estudar e corrigir os desajustamentos infantis. Sob onome de psicoclnicas, clnicas ortofrnicas, clnicas de orien-tao ou clnicas de higiene mental infantil, elas servem redeescolar atravs do diagnstico, o mais precocemente possvelde distrbios da aprendizagem. A obsesso preventiva tem comolema keep the normal child normal (mantenha normal a criananormal) e em seu nome so criadas as clnicas de hbitos para

    crianas em idade pr-escolar. (Patto, 1991, p.44)

    Toda essa forma de ver a educao surgiu pelo desejo de al-canar uma sociedade organizada e civilizada, que preparasse o in-divduo para o trabalho, disciplinando-o para que ele pudesseaceitar passivamente uma jornada laboral, pois, afinal, as institui-es educacionais acabaram desempenhando, segundo Sarup (1980)

    grande estudioso das ideias marxistas , um papel crucial nareproduo socioeconmica, pois, com seu carter hierrquico, aeducao sempre fez uma seleo social por meio da estratificao,que delineava comportamentos disciplinados e produtivos, o quetornaria os alunos futuramente aptos a produzir o que o capital en-gendrava, garantindo com isso a fora de trabalho necessria para odesenvolvimento capitalista do pas. De acordo com Constantino

    & Caruso (2003), p.30, trabalho e no trabalho estabeleciam aciso entre normal e o anormal.

    A baixa produo ou desvios na forma de produzir implicavauma interveno de autoridade, que fiscalizava e punia tendo comoobjetivo manter o alunado sob controle. A fiscalizao era feita porinspees que tinham um carter de polcia mdica e ao mesmotempo formas de atuao de uma medicina social, prpria da poca.

    A vigilncia dos alunos, realizada por meio dos exames mdicos,constitua-se no espao da revista, espao esse em que os alunosso observados por um poder que s se manifesta pelo olhar e no

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    qual so levantados conhecimentos sobre o aluno, conheci-mentos esses que so anotados, documentadas as aptides, osvcios, as degenerescncias, permitindo comparaes, classifi-caes, categorizaes que serviro para a fixao de norma de cdigos mdicos escolares cujo objetivo ser mant-los sobcontrole por um lado, estabelecendo os gestos, os comporta-mentos normais; e, por outro, inserindo e distribuindo-os numapopulao, sem tir-los da especificao de ser um caso quepoder ser normalizado ou excludo. (Marques, 1994, p.113)

    Esses dados constavam de uma ficha sanitria individual dosalunos na qual eram anotados aspectos sociolgicos, antropol-gicos, psquicos e pedaggicos, com a participao dos profissio-nais da sade e dos professores, que relatavam dados sobre aateno, inteligncia, memria, comportamentos, enfim, toda equalquer manifestao do aluno no cotidiano escolar.

    Esses registros eram utilizados como uma operao de exame, e

    neles havia uma comparao das crianas entre si e com outras demeio social diferente. Pode-se dizer que a criana passava por umprocesso de esquadrinhamento, em que o sistema fragmentava seucorpo e mente dividindo-a em si mesma, num modo de funciona-mento panptico, termo usado por Foucault para definir um m-todo de vigilncia, mquina maravilhosa que, a partir dos desejosmais diversos, fabrica efeitos homogneos de poder.

    Essa ficha era analisada pelos mdicos, que em caso de suspeitade anormalidade iniciavam um tratamento mdico especfico doaluno. A escola tornava-se ento, usando novamente um termofoucaultiano, espcie de aparelho de exame ininterrupto, localonde se faria cada vez mais um trabalho profiltico. Nesse sentido,o exame antropopedaggico delegou ao professor a tarefa de super-visionar para, junto com a rea mdica, diagnosticar, excluir outratar os que se desviavam da normalidade. Assim, a pedagogia ea medicina se articularam para fazer do universo escolar objeto dosaber cientfico, construindo o novo homem e a nova sociedade,dando continuidade medicina sanitarista, que surgira com o in-

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    tuito de fiscalizar os domiclios, higienizando a populao e deses-timulando o cio.

    O cio foi outra questo que a escola tomou como importante,pois na sociedade colonial o tempo no era algo to valorizado, coisaque numa sociedade capitalista em processo de industrializaono poderia ocorrer. Havia uma irresponsabilidade em relao aotrabalho e diverso e isso, segundo os progressistas, precisariaser mudado e a escola deveria contribuir para isso, modificandotambm os hbitos de lazer.

    Essas ideias influenciaram os educadores no trabalho pedag-gico com crianas, pois passaram a tolher o ato de brincar e as brin-cadeiras no cotidiano escolar, no pensando essas atividades comoinstrumento fundamental para o desenvolvimento infantil, mascomo um gasto intil de energia que s estimulava o descompro-misso com a educao. Assim, o lazer na escola passou a ser umlazer proposital, direcionado a um sentido formativo, o qual s

    existiria com o intuito de ilustrar algum conhecimento propostopela prtica pedaggica.O tempo passa, ento, a ser instrumento disciplinar significa-

    tivo, por ser precioso e no condizer com momentos de ociosi-dade. Pelo contrrio, deveria ser valorizado para preservar o corpodos vcios e dos maus hbitos, que acarretariam em prejuzo do de-senvolvimento fsico e moral do indivduo.

    Se a vigilncia estava presente nos diversos setores sociais, haviatambm todo um aparato punitivo, que cada vez mais passou aser elaborado por normas mdicas. Um instrumento punitivo sig-nificativo foi o uso das medicaes psicotrpicas, que passarama ser utilizadas frente s ms condutas, tidas como crimes hi-ginicos. Esses medicamentos eram prescritos sem se saber qualefeito de fato causaria no indivduo, fosse ele adulto ou criana.O castigo atravs da violncia fsica foi lentamente cedendo lugarao castigo simblico, e se antes a psiquiatria se limitava a atuar noespao hospitalar, mais tarde comeou a se incorporar s ideias hi-gienistas, deixando de atuar somente nos manicmios para lanarseus tentculos em outras direes, como na escola.

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    A VIGILNCIA PUNITIVA 45

    A medicalizao da infncia veio como consequncia da hi-gienizao e, nesse sentido, educao e sade se uniram como

    elementos inseparveis na implantao de um programa de norma-lizao e moralizao, que visava manter um forte pilar social aordem pelos bons hbitos. Desde ento, a educao passou a seralvo do poder mdico, consequncia de toda uma histria envoltanos preceitos higienistas e eugenistas.

    Ao escrever este captulo, objetivou-se trazer brevemente a his-tria da infncia no Brasil com o intuito de correlacionar o surgi-

    mento da instituio escola, o desejo burgus da moral e da ordem ea influncia mdica tanto na famlia quanto na educao, com o re-curso das prticas medicalizantes e biologizantes do processo deaprendizagem, maciamente presentes no cotidiano escolar atual.

    Orientados por essa preocupao e convictos de que impor-tante conhecer o cenrio em que a medicalizao surgiu, pensandona matriz principal que foi a eugenia e a higienizao, prope-se a

    discusso dos vestgios desses princpios higienistas na educaocontempornea, ou seja, podemos encontrar na realidade escolaratual condutas que ainda guardam os princpios de uma sociedadeeugnica, higienista e disciplinar? Esta uma questo que serabordada no captulo seguinte, devido sua complexidade.

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    2DISCIPLINA/INDISCIPLINA:

    EDUCAOINFANTIL, ESPAODELIBERDADEOUDEMODELAMENTO?

    A crena de que para o aluno aprenderprecisa de normas e regras precisas

    impede e destri um espao e um tempo

    de troca de experincias e vivnciasentre as prprias crianas e com osadultos tambm. Com prticas

    autoritrias e escolarizantes, a escoladesumaniza, dociliza e uniformiza.

    Em outras palavras, com permanentescoeres e controles, as instituies

    escolares modernas criam emoldam o homem moderno.

    Mesomo, 2004, p.105

    O tema da disciplina , para este trabalho, um assunto de sumaimportncia, por ser visto como um dos pilares que sustentam amedicalizao nos dias atuais, pois os seus mecanismos de poderesto fortemente presentes no cotidiano escolar, configurados eminstrumentos disciplinadores e controladores que, luz dos dadosobtidos, podem ser analisados de forma concreta e atual.

    No captulo anterior, ao refletir brevemente sobre a histria dainfncia, pode-se perceber que ela foi constituda como um objeto

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    passvel de interveno higinica e disciplinar dentro de um pro-cesso histrico, durante o qual vrias formas de disciplinarizao

    foram se estabelecendo.Na dcada de 1920, com a redefinio de uma poltica sanitria,foi destinada escola primria a tarefa de disciplinar a natureza in-

    fantil, com um poder modelador dos hbitos, da sade e da edu-cao da infncia. A obedincia da criana de acordo com as normassanitrias impostas pela medicina configurava-se como a melhormedida contra a ameaa que pairava sobre a sociedade, devido ao

    crescimento desenfreado e desregrado das grandes cidades.

    Com essa disposio, procurava-se caracterizar a medicina comouma verdadeira e efetiva cincia do social e, para fazer valer talvontade, a higiene tambm se instalou no corao da formaomdica, na forma de uma disciplina. (Gondra, 2003, p.28)

    A higienizao como um modo de disciplina, foi se infiltrando e

    enraizou-se nas instituies da infncia, de tal modo que a crianapassou a ser pensada somente de uma perspectiva moral, indivi-dual e patolgica. A instituio escola tornou-se intrinsecamentedisciplinar e a escolarizao passou a ser a mola propulsora daordem e do progresso cientfico e social, com o intuito de eliminaratitudes viciosase de inculcar hbitos salutares.

    Para se alcanar o avano cientfico era necessrio, segundo os

    higienistas, saber diferenciar a personalidade normal eanormaldacriana e, para isso, o professor deveria estar apto a colaborar nessadiferenciao que se instalou na pedagogia cientfica com o intuitode tornar a prtica pedaggica mais humanitria, ou seja, os anor-mais deveriam ser isolados numa escola prpria, para que fossemcorrigidos, modificados e disciplinados por mtodos prprios,sendo, segundo Mendes (2006, p.1), uma fase de segregao, jus-

    tificada pela crena de que a pessoa diferente seria mais bem cui-dada e protegida se confinada em ambiente separado, tambm paraproteger a sociedade dos anormais. Para que houvesse a diferen-ciao correta, os professores, juntamente com o diretor e o mdico

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    escolar, tinham que elaborar e assinar a carteira biogrfica es-colar.10 Nessa carteira, deveriam constar os dados de observao

    que mostravam as caractersticas de normalidade,anormalidade oudegenerescncia, assim como aspectos fsicos, raa, traos morais,marcas de hereditariedade e detalhes do ambiente familiar. Atravsdesses registros, os dados eram cruzados e o futuro escolar do alunoera decidido, sendo considerado aptoou no aptopara estar entre ascrianas normais, o que se pode chamar de processo de normali-zao, que, para Silva (apud Dornelles,112005, p.22),

    um dos processos mais sutis pelos quais o poder se manifestano campo da identidade e da diferena. Normalizar significaeleger arbitrariamente uma identidade especfica como pa-rmetro em relao qual outras identidades so avaliadas ehierarquizadas. Normalizar significa atribuir a essa identidadetodas as caractersticas positivas possveis, em relao s quais asoutras identidades s podem ser avaliadas de forma negativa. A

    identidade normal natural, desejvel, nica. A fora da iden-tidade normal tal, que ela nem sequer vista como uma identi-dade, mas simplesmente como a identidade.

    Estando a educao nessa constituio normalizante, a peda-gogia cientfica determinista teve que configurar a formao dosprofessores, que deveriam estudar, como diz Carvalho (1997,

    p.298), as quarenta e seis lies terico-prticas que foram orga-nizadas em torno de cinco tpicos: exame anamnstico, fsico, an-tropolgico, fisiolgico e psicolgico. Dessa forma, o educadorpassou a ser visto como um forte colaborador higienista, passandono s a educar, mas tambm a detectar anomalias, selecionando ecompondo a clientela escolar, aplicando a tcnica ortopdica de

    10. Criada em 1914 pelo mdico-pedagogo italiano Ugo Pizzoli, criador da peda-gogia cientfica e da Escola Normal em So Paulo.

    11. Tomaz Tadeu da Silva (Org.). Identidade e diferena:a perspectiva dos estudosculturais. Petrpolis: Vozes, 2000. A obra original no foi utilizada porque olivro no foi encontrado.

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    50 FABIOLA COLOMBANI LUENGO

    preveno e correo do que se encontrava fora dos padres de nor-malidade.

    Ao distinguir o normal do patolgico, fazia-se uma aposta nopoder disciplinador do progresso, ditado por um modelo industrialque influenciou a ideia de que s os normais teriam condies deproduzir de forma disciplinada, incorporando hbitos de trabalho.

    Dessa forma, juntamente com os hbitos de educao e tra-balho, dever-se-iam inculcar os hbitos de sade, pois tais hbitoseram os pilares capazes de sustentar o progresso. Carvalho (1997)

    reafirma a questo dizendo:

    A educao integral assentada no trip: sade, moral e tra-balho era uma das respostas polticas ensaiadas por setores daintelectualidade brasileira na redefinio dos esquemas de domi-nao vigentes. Tratava-se, fundamentalmente, de estruturardispositivos mais modernos de disciplinarizao social, que via-bilizassem o que era proposto como progresso. Nesse projeto,a educao era especialmente valorizada enquanto dispositivocapaz de garantir a ordem sem necessidade do emprego da forae de medidas restritivas ou supressivas da liberdade e a disciplinaconsciente e voluntria e no apenas automtica e apavorada.

    A disciplina, ao enraizar-se na escola de forma ortopdica,passou a ser sinnimo de eficincia, moldagem e adaptao, sempre

    com o intuito de desenvolver e racionalizar a criana para dis ci-plin-la, no apenas fisicamente, mas tambm num modo de regu-lao moral, pois a disciplina, como versa Foucault (2008, p.119),fabrica corpos submissos e exercitados, corpos dceis. A dis-ciplina aumenta as foras do corpo (em termos econmicos de uti-lidade) e diminui essas mesmas foras (em termos polticos deobedincia). Ainda seguindo o raciocnio de Foucault, essa doci-lidade faz com que a disciplina transforme o homem em homemmquina, ser analisvel e produtivo, corpo manipulvel: dcilum corpo que pode ser submetido, que pode ser utilizado, quepode ser transformado e aperfeioado (2008, p.118).

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    A VIGILNCIA PUNITIVA 51

    O disciplinamento penetrou e se cristalizou nas principais insti-tuies sociais desde o sculo XVIII. Porm na escola que mais se

    v a ao de seus tentculos, onde promove desigualdade, discrimi-nao e controle. Isso ocorre devido necessidade de escolarizao,trazida pelo desejo de progresso que a industrializao criou e quehoje, na configurao social moderna, faz da escola uma instituiohomogeneizante, autoritria e normatizadora.

    O disciplinamento da criana est relacionado, portanto, como moderno estatuto da infncia. Este a institui socialmente li-gando-a a determinadas prticas familiares e formas de educaoproduzidas no sculo XVIII, ou melhor, num momento em quea sociedade ocidental vive profundas mudanas sociais, com umaprogressiva diviso do trabalho e uma crescente urbanizao, oque exige a formao de um cidado. A infncia torna-se, ento,objeto de um outro olhar e, portanto, de um outro modo de go-vern-la. De tal maneira, o disciplinamento passa a ser exercido

    na famlia e nos colgios, com um controle de cunho cada vezmais rgido e total. (Dornelles, 2005, p.36)

    A nsia pela produtividade desenfreada, prpria da sociedadecapitalista numa cultura globalizada, a liquidez das relaes, so-madas s conquistas da cincia, fizeram conceber o homem comoum ser que necessita estar apto a adequar-se ao mundo nas diversassituaes que enfrenta, e aquele que, por algum motivo, no acom-panha a massa, visto como o diferente, o incompleto, o desajus-tado, o imperfeito que necessita de ajuda para justapor -se aosanseios sociais.

    Sendo ento a escola uma instituio de vigilncia, que tem asensao normalizadora como instrumento, ela funciona como umaparelho para punir os desvios. Ela vigia, aponta e pune todo equalquer tipo de conduta desviante. A patologizao, que ser tra-tada mais especificamente no prximo captulo, uma forma deapontar os desvios, ao passo que a medicalizao vem num segundomomento para punir, isto , tratar o que se encontra em estadode anormalidade.

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    52 FABIOLA COLOMBANI LUENGO

    Outra forma de punio e disciplinamento o exame, prticacorriqueira nas escolas. Porm, o que se percebe hoje que o exame

    vem sendo incorporado cada vez mais cedo, inclusive no local ondea pesquisa de campo foi realizada, sendo essa uma prtica que vemse tornando cada vez mais comum. Crianas da educao infantilpassam por provinhas, que ajudam o professor a detectar o nvelde aprendizagem da criana. Foucault (2008, p.154) trata sobre oexame, dizendo:

    O exame combina as tcnicas de hierarquia que vigia e as da

    sano que normaliza. um controle normalizante, uma vigi-lncia que permite qualificar, classificar e punir. Estabelecesobre os indivduos uma visibilidade atravs da qual eles so di-ferenciados e sancionados. por isso que, em todos os disposi-tivos de disciplina o exame altamente ritualizado. Nele vm-sereunir a cerimnia do poder e a forma da experincia, a demons-trao da fora e o estabelecimento da verdade.

    Alm do exame em formato de prova, h a avaliao diria dasatividades realizadas pela criana em seus livros didticos, os quais,antes, eram adotados a partir do ensino fundamental e atualmentevm sendo utilizados desde o primeiro ano da educao infantil. Ouso de cartilhas deu espao s apostilas e cada vez mais escolas mu-nicipais tentam acompanhar as escolas particulares. Sabe-se quehoje a maioria dos municpios do estado de So Paulo12j adota omaterial, que a princpio bem aceito pela famlia, por pressuporuma educao de qualidade. Porm, essas tarefas que so pensadase programadas por adultos, com o intuito de obedecer a um con-tedo programtico, no trazem atividades ldicas que favorecem acriatividade e a liberdade de expresso da criana, deixando-assubmissas a uma aprendizagem mecnica e repetitiva.

    12. Segundo o jornal O Estado de S. Paulo de 13/4/2008, 150 municpios con-tratam os sistemas apostilados privados, representando 23% das 645 cidadesdo estado. No pas, h mais de 300 cidades brasileiras que j adotaram algumaforma de apostilamento, somando 690 mil alunos que usam o material. Totali-zando um gasto de aproximadamente R$ 100 milhes anuais.

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    A VIGILNCIA PUNITIVA 53

    A apostila, que apresentada como recurso pedaggico, nadamais que um instrumento de dominao e disciplinamento que se

    acopla rotina rgida para impor criana formas de aprender edesenvolver suas atividades. um material homogneo, que noleva em considerao as singularidades e as necessidades da criana,pois simplesmente traz o contedo e o professor o transmite aoaluno, muitas vezes numa pedagogia acelerada, modificando o ca-rter da educao infantil, assemelhando-se ainda mais ao ensinofundamental.

    Para Motta (2001, p.4),

    o conhecimento apostilado, porm, produzido em verdadeirasfbricas do saber potencializa a (re)produo de indivduosmassificados, prontos adequao social que, atualmente, temcomo um de seus principais objetivos o consumo [...]

    Isso faz a educao ficar a servio do capital, pois sem consumoe lucros o capital se dilacera. O contedo da apostila extenso. Poresse motivo, as crianas ficam a maior parte do tempo dentro dasala de aula e esporadicamente participam de alguma atividade ex-traclasse. As crianas, j em estado de disciplinamento, interna-lizam o silncio to solicitado nos primeiros dias de aula pelasprofessoras e, alguns dias depois, incorporam a disciplina; o que sepercebe so adultos em miniatura, procurando compreender osentido daquele contedo que est na apostila e que mais pareceum enigma a ser desvendado, como uma caa ao tesouro, que temcomo prmio o mundo letrado.

    Essa internalizao da disciplina ocorre por meio de redes invi-sveis que vm de vrias direes como o Estado ou as classes do-minantes e se institucionalizam tomados por autoridade eautoritarismo. O corpo, por ser manipulado, passa a obedecer de

    forma automatizada. A ilustrao a seguir13 mostra a forma com

    13. Esquema de postura corporal da escola francesa de Port-Mahon do sculoXIX: triunfo da disciplina. Fonte:Revista Nova Escola, outubro de 2008.

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    54 FABIOLA COLOMBANI LUENGO

    que desde o sculo XIX a disciplina aplicada, usando o corpocomo alvo de dominao.

    Capturados pela instncia do poder, os alunos passam a se com-portar de forma robotizada. Nesse sentido, Carvalho (2006, p.57)contribui descrevendo o cotidiano de uma sala de aula:

    os alunos sentam-se enfileirados, vestidos uniformemente, obri-gados tambm a se comportarem uniformemente com umapostura ereta, silenciosos e atentos aos ensinamentos , propor-cionando condies para absorverem os conhecimentos de umaoutra pessoa, que se julga detentora do conhecimento ao menosda rea previamente proposta pela instituio. Tais alunos, ge-ralmente tratados como iguais, so colocados numa condio

    de aprendizagem dos mesmos contedos, na mesma velocidadee da mesma forma. Muitas vezes no se respeitam seus conhe-cimentos prvios, suas diferenas em termos de capacidade,muito menos suas opinies sobre o que se est aprendendo. Oaluno tem apenas o dever de aprender em um tempo determi-

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    A VIGILNCIA PUNITIVA 55

    nado, de uma forma preestabelecida e configurada de acordocom o que se cobra na sociedade. V-se, nesse mbito, um pro-cesso de homogeneizao, vtima de uma racionalizao produ-zida a partir de modelos [...]

    Contudo, h aqueles que fogem dos padres de controle consi-derados normais e manifestam-se com outras formas de comporta-mento. Esse desajuste, que incomoda os educadores, vistocomo indisciplina. A indisciplina entre os educadores, atual-

    mente, uma das queixas que mais aparecem no cotidiano escolar.Ao ouvi-los, observa-se que se queixam de falta de regras, desobe-dincia s normas, desinteresse pelo ensino e atitudes agressivas.Porm, ao relatar essas queixas, mais parece que os alunos apon-tados so adolescentes, estudantes do ensino mdio, quando naverdade so alunos da educao infantil, ou seja, crianas entre 3 e5 anos, que so vistas como descontroladas, desregradas, desobe-

    dientes e agressivas. Mas o que ser isso? O que fez a infnciamudar tanto nos ltimos anos? Ou no foi a infncia que mudou, esim o sistema educacional infantil, que vem se tornando cada vezmais um lugar de prticas disciplinadoras e estigmatizantes quetm como nico objetivo a eficincia, ou seja, a excelncia na pro-dutividade.

    Mesomo (2004, p.108) descreve claramente o que ocorre na

    educao infantil de forma geral:

    na educao infantil, primeira etapa da educao bsica, o que seobserva hoje, em geral, o incio das separaes dos corpos,tempos e espaos na escola, instaurando-se uma arte de go-vernar. Gestos e falas controladas, filas e vigilncia permanente;os locais indicam valores e garantem obedincia. As salas abar-rotadas de mesas e cadeiras so o principal ambiente de perma-nncia das crianas, servindo o parque na maioria das vezesapenas para recreio e descanso.

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    56 FABIOLA COLOMBANI LUENGO

    Muitas das queixas dos professores em relao indisciplinatm a ver com falar demais, falar alto ou no permanecer sentado

    muito tempo no momento das atividades em sala de aula, compor-tamentos comuns da infncia, que passam a ser confundidos muitasvezes com distrbios e transtornos do comportamento, o que acabaimpulsionando o professor a solicitar o auxlio dos especialistas pa-rapedaggicos (psiclogos, neurologistas, psiquiatras e afins), como intuito de solucionar tais questes.

    Conforme a suposio principal desta pesquisa, a indisciplina,

    at mais do que os problemas de aprendizagem, o que leva muitascrianas aos consultrios. Alguns estudos caminham com o desejode compreender a causa da indisciplina e sua relao com os sexos,pois, segundo Arruda (2006), a ocorrncia de transtornos como odo TDAH surge com maior ndice entre os meninos do que nasmeninas. Porm, os especialistas dizem no saber ainda se as me-ninas so menos acometidas por transtornos dessa natureza ou se

    o diagnstico que fica prejudicado, pois nas meninas o TDAHse manifesta de forma diferente, com a criana apresentando ap-tica e desanimada, enquanto no menino ao contrrio, ele se torna,segundo os neurologistas, indisciplinado e de