A VIOLA CAIPIRA DE TIÃO CARREIRO - João Paulo do Amaral Pinto - sem anexos

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    UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE ARTES

    A VIOLA CAIPIRA DE TIO CARREIRO

    JOO PAULO DO AMARAL PINTO

    CAMPINAS 2008

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    UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE ARTES

    Mestrado em Msica

    A VIOLA CAIPIRA DE TIO CARREIRO

    JOO PAULO DO AMARAL PINTO

    Dissertao apresentada ao Programa de Ps-Graduao do Instituto de Artes, da Universidade Estadual de Campinas, para a obteno do Ttulo de Mestre em Msica.

    Orientador: Prof. Dr. Jos Roberto Zan

    CAMPINAS 2008

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    FICHA CATALOGRFICA ELABORADA PELA BIBLIOTECA DO INSTITUTO DE ARTES DA UNICAMP

    Ttulo em ingls: The brazilian ten-string guitar of Tio Carreiro. Palavras-chave em ingls (Keywords): Brazilian ten-string guitar; Rural music ; Brazilian country music; Brazilian popular music. Titulao: Mestre em Msica. Banca examinadora: Prof. Dr. Prof. Dr. Jos Roberto Zan. Prof. Dr. Joo Marcos Alem. Prof. Dr. Antnio Rafael Carvalho dos Santos. Prof. Dr. Alberto Tsuyoshi Ikeda. Prof. Dr. Claudiney Rodrigues Carrasco. Data da Defesa: 22-02-2008 Programa de Ps-Graduao: Msica.

    Pinto, Joo Paulo do Amaral. P658v A Viola Caipira de Tio Carreiro. / Joo Paulo do Amaral

    Pinto Campinas, SP: [s.n.], 2008.

    Orientador: Prof. Dr. Jos Roberto Zan. Dissertao(mestrado) - Universidade Estadual de Campinas, Instituto de Artes.

    1. Viola caipira. 2. Msica caipira. 3. Msica sertaneja. 4. Musica popular brasileira. I. Zan, Jos Roberto. II. Universidade Estadual de Campinas. Instituto de Artes. III. Ttulo.

    (em/ia)

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    Ao meu querido pai, pelo companheirismo, pelas pescarias e por ter me iniciado no

    universo da viola.

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    AGRADECIMENTOS

    FAPESP, pelo financiamento desta pesquisa.

    Ao professor Zan pela orientao precisa e atenciosa.

    Alex Marli Dias e Dona Nair Avano Dias, Luiz Faria, Mairipor, Ana Luiza, Elias Kopcak, Jos Carlos, Antonio Mortareli, Cristiane Feris, Orlando Ribeiro, Almir Cortes, Ivan Vilela, Rui Torneze, Paulo Freire, Fernando Deghi, Levi Ramiro, Messias da Viola, Vincius Alves, Bicalho, Domingos, Rodrigo Nali, Wilson Lima, Ricardo Anastcio, Ricardo Vignini, Seu Oliveira, Seu Valdomiro e outros msicos, pesquisadores e amigos que contriburam para esse trabalho.

    minha famlia pelo incentivo desde o incio.

    Cludia e Clara pelo afeto, pacincia e apoio fundamental.

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    RESUMO

    Esse trabalho resultado de uma pesquisa sobre a obra musical do msico e

    compositor Tio Carreiro (Jos Dias Nunes, 1934-1993). O enfoque principal foi identificar

    os elementos constitutivos e as caractersticas do estilo desse artista como instrumentista de

    viola, instrumento reconhecido como o smbolo da chamada msica caipira. Para tanto,

    foram analisados musicalmente os dois LPs instrumentais do violeiro gravados em 1976 e

    1979. Alm disso, foram abordados os aspetos histricos da viola caipira, do segmento

    instrumental sertanejo e da trajetria do artista no mercado fonogrfico. A partir das

    anlises musicais, foi identificado um conjunto de elementos e tcnicas utilizados pelo

    msico para construir seus toques e solos. A pesquisa tambm relacionou e caracterizou

    musicalmente as matrizes e gneros, caipiras ou no, utilizados pelo violeiro na gravao

    desses dois discos. Entre eles, destaca-se o pagode de viola, gnero criado no final dos anos

    cinqenta a partir da combinao de algumas matrizes musicais e que, por ter se tornado a

    marca principal do violeiro, foi objeto de uma investigao mais aprofundada.

    Palavras-chave: viola caipira, msica caipira, msica sertaneja, msica popular brasileira.

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    ABSTRACT

    This work is the result of a research on the musical work of the musician and

    composer Tio Carreiro (Jos Dias Nunes, 1934-1993). The main focus was to identify the

    constituent elements and the characteristics of the style of this artist as a viola (Brazilian

    ten-string guitar) instrumentalist, considering the viola a recognized instrument as the

    symbol of what is so called msica caipira (typical rural music of the central-southern

    region of Brazil). For that, the two first instrumental LPS of the artist, recorded in 1976 and

    1979, were musically analysed. Besides that, historical aspects of viola caipira, also from

    the instrumental sertanejo segment and the trajectory of the artist in the phonographic

    market were approached. From these musical analyses a group of elements and techniques

    used by the musician to build his touches and solos was identified. The research also related

    and musically characterized the origins and genders, caipira or not, used by the violeiro in

    the recordings of these two records. Among them, there is one in particular, the pagode de

    viola, gender created at the end of the fifties's, from the combination of some musical

    origins and that, for having become the main mark of the violeiro, was the subject of a

    deepened investigation.

    Keywords: Brazilian ten-string guitar; Rural music; Brazilian country music; Brazilian

    popular music.

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    SUMRIO

    INTRODUO ............................................................................................................01 CAPTULO 1. A trajetria da viola caipira ..............................................................13 CAPTULO 2. A msica instrumental sertaneja ......................................................19 CAPTULO 3. Jos Dias Nunes, o Tio Carreiro......................................................33 CAPTULO 4. Os dois LPs instrumentais (1976 e 1979) .........................................53

    4.1. Afinaes utilizadas por Tio Carreiro .............................................................59

    CAPTULO 5. As matrizes caipiras e os gneros utilizados por Tio Carreiro nos LPs instrumentais......................................................................................65

    5.1. Toada .................................................................................................................70

    5.2. Cururu................................................................................................................76

    5.3. Pagode, Catira e Recortado ...............................................................................80

    5.3.1. Cateret ....................................................................................................99

    5.4. Guarnia, Rasqueado e Polca Paraguaia .........................................................100

    5.5. Arrasta-p e Corrido........................................................................................106

    5.6. Samba Caipira .................................................................................................110

    5.7. Balano............................................................................................................114

    CAPTULO 6. Aspectos e elementos musicais encontrados nas anlises dos LPs instrumentais.........................................................................................................119

    6.1. Som, Timbre e Pegada.....................................................................................120

    6.2. Ornamentos e Recursos Tcnicos....................................................................121

    6.2.1. Ligados .................................................................................................121

    6.2.2. Arrastes: Portamentos e Glissandos .....................................................124

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    6.2.3. Apojaturas.............................................................................................126 6.2.4. Mordentes .............................................................................................127

    6.2.5. Staccatos ...............................................................................................129

    6.2.6. Pizzicatos ..............................................................................................131

    6.2.7. Notas Percussivas .................................................................................132

    6.2.8. Vibratos ................................................................................................133

    6.2.9. Harmnicos...........................................................................................134

    6.3. Elementos de composio e outros recursos e tcnicas da viola caipira.........137

    6.3.1. Aspectos Meldicos..............................................................................137

    6.3.2. Aspectos Rtmicos ................................................................................143

    6.3.3. Aspectos Harmnicos ...........................................................................147

    6.3.4. Cordas soltas, notas pedais e apoio nas quatro semicolcheias .............150

    6.3.5. Padres de arpejos da mo direita ........................................................152 6.3.6. Alternncia entre polegar e indicador...................................................154

    6.4. Variaes e improvisaes ..............................................................................158

    CONSIDERAES FINAIS.....................................................................................161 REFENCIAS ............................................................................................................163 ANEXOS .....................................................................................................................175

    ANEXO 1: Transcrio do LP isso que o povo quer (1976) .............................175 ANEXO 2: Discografia de Tio Carreiro ..............................................................337

    ANEXO 3: Entrevistas Realizadas: Luiz Faria ......................................................349

    Mairipor ......................................................361

    ANEXO 4: CD incluindo os dois LPs instrumentais de Tio Carreiro ..................371

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    INTRODUO

    A partir de meados do sculo XX, possvel identificar a existncia de um

    segmento instrumental da msica sertaneja no mercado fonogrfico brasileiro. Esse

    segmento, representado principalmente pelas obras dos instrumentistas de viola caipira, se

    desdobrou em diversas vertentes ao longo dos anos. Neste contexto insere-se o violeiro

    mineiro Jos Dias Nunes, conhecido como Tio Carreiro, artista que atingiu grande

    projeo no segmento sertanejo como cantor, compositor e instrumentista de viola.

    Seu talento, musicalidade, tcnica e desenvoltura como violeiro passaram a ser

    reconhecidos principalmente a partir dos seus solos e introdues de viola nos seus

    pagodes, ritmo novo criado no final dos anos cinqenta que combinava um complexo toque

    de viola com outro no violo, tornando-se a marca do violeiro. Desta forma, seus solos e

    ponteados de viola se converteram em referncia musical importante para nomes de

    destaque da viola como Renato Andrade e Almir Sater, alm de diversas geraes de

    violeiros que at hoje redescobrem suas gravaes.

    Na dcada de setenta, Tio Carreiro gravou dois LPs inteiramente

    instrumentais: isso que o povo quer (Chantecler-Continental, 1976) e Tio Carreiro em

    solo de viola caipira (Continental, 1979).

    A partir das anlises musicais desses LPs instrumentais, juntamente com um

    levantamento histrico da viola caipira, do segmento instrumental sertanejo e da trajetria

    do artista, buscamos identificar os principais elementos constitutivos e as caractersticas do

    estilo de Tio Carreiro como instrumentista de viola.

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    A deciso de escolher estes discos instrumentais como objeto de anlise

    justifica-se na medida em que eles so amostras muito representativas dos solos e toques de

    viola de toda a carreira do artista. Nestes LPs, alm de gneros como cururus, toadas,

    guarnias, polcas, corridos, arrasta-ps, sambas caipiras, balanos e outros ritmos que

    estiveram presentes em toda a carreira do violeiro, tambm aparecem em significativa

    quantidade pot-pourris de pagodes com a denominao seleo de pagodes. Nestas

    gravaes, Tio Carreiro agrupa as melodias, solos e introdues de vrios pagodes

    gravados anteriormente pelo artista, nos quais evidencia sua habilidade e destreza nos

    ponteados e acompanhamentos, revelando toda a tcnica e musicalidade marcantes de seu

    estilo como violeiro. Foram transcritas, em partitura e tablatura, todas as msicas do

    primeiro disco instrumental (partituras em anexo no final do trabalho), alm de trechos

    relevantes do segundo disco.

    Para as anlises musicais destes discos, constatamos a escassez de mtodos e

    trabalhos tanto na rea da viola e do segmento caipira, quanto na rea da msica popular

    brasileira. Desta forma, utilizamos uma combinao de mtodos de anlise e trabalhos

    tericos musicais como LaRue (1989), Freitas (1995) e Pujol (1933), mtodos, livros e

    peridicos relacionados viola caipira como Corra (2000), Deghi (2001), Braz da Viola

    (1999) e Souza (2005), entre outros, e de conversas com outros pesquisadores, msicos e

    violeiros como Ivan Vilela, Rui Torneze, Paulo Freire, Fernando Deghi, Luiz Faria.

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    Em linhas gerais, esse trabalho segue o roteiro de anlise do estilo musical

    proposto por LaRue (1989)1. De acordo com o prprio autor, a maioria dos principais

    pontos e procedimentos levantados em seu livro Anlisis del Estilo Musical: pautas sobres

    la contribucin a la msica del sonido, la armona, la meloda, el ritmo y el crecimiento

    formal j faz parte do prprio processo de pesquisa e anlise musical de maneira geral,

    podendo seu roteiro ser adaptado para diferentes tipos de objeto. Primeiramente, o autor

    refere-se necessidade de levantar os antecedentes ou entorno histrico, que seriam a

    contextualizao do objeto analisado. Depois, aponta as trs principais dimenses de

    observao para a anlise: as grandes (que corresponderiam msica analisada, o

    conjunto das msicas e talvez, no caso da msica popular, o arranjo), as mdias (a seo,

    as partes etc.), e as pequenas (frases, motivos, notas, etc.). Essas observaes e anlises

    devem ocorrer em relao aos cinco elementos (som, melodia, harmonia, ritmo e

    processo de crescimento, que a combinao desses quatro elementos) e levariam s

    avaliaes finais.

    Assim, para a etapa dos antecedentes, foi feito um levantamento histrico da viola caipira, do segmento instrumental sertanejo e da trajetria do violeiro no mercado

    1 Neste trabalho, no entanto, no adotamos o exato roteiro proposto por LaRue (1989) como linha especfica de anlise, j

    que consideramos desnecessrio, para atingir nossos objetivos, utilizar-se de todas as subcategorias, parmetros, questionamentos, smbolos e recursos grficos para a anlise da forma etc., na medida em que a natureza de nosso objeto de investigao envolve um conjunto de questes delimitado ao universo particular da viola caipira e da msica popular brasileira. Na hiptese da adoo rigorosa do roteiro de LaRue, e mesmo sabendo que o prprio autor considera que algumas categorias podem no ser utilizadas e preenchidas dependendo do objeto analisado, provavelmente ocorreria uma srie de questionamentos, busca de dados e focos de observao desnecessrios e um conseqente prejuzo no abandono de outras questes fundamentais e particulares do universo da viola caipira.

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    fonogrfico, utilizando a pouca bibliografia disponvel somada a depoimentos de violeiros e pesquisadores, alm de entrevistas com profissionais ou outras pessoas envolvidas na carreira do artista. Do mesmo modo, as observaes e anlises musicais ocorreram desde enfoques mais gerais at mais particulares, das grandes s pequenas dimenses. Assim, as anlises buscaram levantar caractersticas referentes ao som, a aspectos meldicos, rtmicos, harmnicos, alm de tcnicas e toques de viola, ornamentos, recursos de interpretao e composio necessrios para identificar a personalidade do violeiro como instrumentista.

    Para a anlise dos aspectos harmnicos utilizamos as referncias de Freitas (1995). Tendo em vista que os aspectos harmnicos tanto dos registros de Tio Carreiro quanto da msica caipira e sertaneja so geralmente simples, escolhemos o trabalho de Freitas (1995) como referncia, j que este abrange todas as questes envolvidas nas anlises realizadas. Alm disso, Freitas trabalha especificamente com a anlise harmnica no universo da msica popular brasileira, enfoque que mais adequado ao nosso objeto. Especificamente em relao aos ornamentos e recursos tcnicos como ligados, arrastes, apojaturas, mordentes etc., nos baseamos nas definies apresentadas por Emlio Pujol em seu mtodo de violo Escola Razonada de la Guitarra (PUJOL, 1933). Optamos por esse trabalho j que, na ausncia de um similar especfico sobre a viola caipira, foi o mais adequado ao nosso objeto, ao descrever detalhadamente vrios ornamentos e tcnicas realizadas em instrumentos de corda dedilhada, no caso, o violo.

    Sobre o processo de transcrio como suporte para anlise musical e segundo diversos pesquisadores, observamos que se trata de um procedimento complexo que traz questionamentos e requer cuidados. Tiago Oliveira Pinto observa que uma das preocupaes que persiste desde os primrdios da etnomusicologia como descrever e fixar no papel, ou de outra forma visual, o acontecimento musical (OLIVEIRA PINTO, 2001, p.18). O autor aponta para alguns problemas, entre eles: a incompatibilidade da escrita musical ocidental para sistemas musicais no-ocidentais; a impossibilidade da transcrio representar um documento da cultura como base objetiva para anlise, pois uma

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    vez que passa pela interpretao de quem a faz; a transcrio no supera o material de udio ou audiovisual para a anlise ou como documento do repertrio registrado. Acrescenta que as transcries que partem apenas do material de udio gravado, sem uma estruturao prvia, sem um conhecimento interno ao objeto pesquisado, podem refletir uma audio externa, gerando uma grande poro de avaliaes subjetivas do pesquisador. Ao passo que uma anlise interna pode, por exemplo, partir de seqncias de movimento inerentes tcnica de execuo de um instrumento, levando assim a uma percepo mais apurada e objetiva do acontecimento sonoro. Da mesma forma, o autor aponta que alguns pesquisadores passaram a desenvolver tcnicas de transcrio musical de vdeos, nas quais a combinao de som e imagem possibilitou uma leitura mais completa do acontecimento musical (OLIVEIRA PINTO, 2001, p.18,19).

    Diante destas limitaes do procedimento de transcrio e de suas problemticas, buscamos aprofundar os conhecimentos internos ao nosso objeto e criar uma estruturao prvia s transcries e anlises como indicado por Oliveira Pinto (2001). Para isso, alm da audio de diversos registros fonogrficos relacionados no final desse trabalho2, consultamos diversos mtodos, livros, peridicos, partituras e tablaturas especficos sobre a viola caipira como Corra (2000), Deghi (2001), Braz da Viola (1999), Souza (2005), entre outros, e realizamos conversas com outros pesquisadores, msicos e violeiros como Ivan Vilela, Rui Torneze, Paulo Freire, Fernando Deghi, Luiz Faria, entre outros. A partir dessas referncias, tambm pudemos reunir boa parte das notaes para a transcrio, terminologias e nomenclaturas referentes viola caipira, bem como ferramentas, orientaes e enfoques apropriados para as anlises do nosso objeto. Alm da transcrio em partitura incluindo a indicao de tcnicas e movimentos utilizados pelo violeiro, realizamos a transcrio em tablatura, sistema que permite ilustrar as provveis digitaes utilizadas pelo artista de acordo com a posio no brao e nas cordas do instrumento. Quando necessrio, utilizamos da observao e a anlise dos poucos vdeos do

    2 Os registros fonogrficos utilizados encontram-se no item Referncias Discogrficas no final do trabalho.

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    violeiro disponveis3. Desta forma, buscamos minimizar as imprecises e limitaes inerentes ao processo de transcrio a fim de obter anlises mais detalhadas. No entanto, consideramos importante como complemento a essa pesquisa, a audio dos LPs instrumentais de Tio Carreiro que esto compilados em um CD anexo, no final do trabalho.

    Por trabalharmos com a viola e a msica caipira e sertaneja, a pesquisa tambm envolveu a identificao e caracterizao dos gneros e matrizes caipiras (ou de outras origens) utilizados pelo violeiro na gravao dos LPs instrumentais.

    Dessa forma, j no incio da pesquisa nos deparamos com conceitos como

    gnero, matrizes e estilo, para os quais percebemos a necessidade de buscar um

    aprofundamento terico. Assim, procuramos referncias em autores como Pascall (2001),

    Fabbri (1985), Samsom (2001) e Ulha (2003). Em relao ao conceito de "estilo",

    orientamo-nos a partir da definio proposta por Pascall (2001), que o define como sendo:

    Um termo significando a maneira de discurso, o modo de expresso; mais especificamente a maneira na qual uma obra de arte executada. (...) ele pode ser usado para denotar a caracterstica musical de um compositor individual, de um perodo, de uma rea geogrfica, ou de uma sociedade ou evento social. (...) Um estilo tambm representa uma gama de possibilidades definidas por um grupo de exemplos particulares como estilo homofnico e estilo cromtico. Estilo, um estilo ou estilos (ou todos trs) podem ser compreendidos em qualquer unidade conceitual no campo da msica, da maior menor; msica por si s um estilo de arte, e uma simples nota pode ter implicaes estilsticas de acordo com

    3 A relao dos vdeos utilizados encontra-se no item Referncias Audiovisuais no final do trabalho.

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    sua instrumentao, altura e durao.4 (PASCALL, 2001, vol.24, p.638).

    Partindo das formulaes de Fabri5 (1983) e Samson6 (2001), consideramos que gneros, tais como os que encontramos na msica caipira e sertaneja, so categorias reconhecidas e aprovadas por determinadas convenes de diversas naturezas, e que atravessam os anos baseadas no princpio da repetio, sendo sujeitas a mudanas e transformaes, j que derivam de elementos concretos como trabalhos ou prticas musicais. Alm disso, compreendemos que os gneros podem conter sub-gneros e variaes. Por fim, tanto os gneros e sub-gneros quanto seus elementos definidores

    4 A term denoting manner of discourse, mode of expression; more particularly the manner in which a work of art is

    executed () it may be used to denote music characteristic of an individual composer, of a period, of a geographic area or centre, or of a society of social function.(). A style also represents a range or series of possibilities defined by a group of particular examples, as in such notions as 'homophonic style' and 'chromatic style'. Style, a style or styles (or all three) may be seen in any conceptual unit in the realm of music, form the largest to the smallest; music itself is a style of art, and a single note may have stylistic implications according to its instrumentation, pitch and duration. (PASCALL, 2001, vol.24, p.638).

    5 Franco Fabbri em seu trabalho A Theory of Musical Genres: two aplications (1983) aponta: Um gnero musical

    um conjunto de eventos musicais cujo curso governado por um conjunto definido de regras sociais aceitas. A noo de conjunto, tanto para um gnero como para seus elementos definidores, significa que podemos falar em sub-conjuntos como sub-gneros, e em todas as operaes previstas pela teoria dos conjuntos: em particular um certo evento musical pode ser situado na interseco de dois ou mais gneros, e portanto pertencer a cada um deles ao mesmo tempo / A musical genre is a set of musical events (real or possible) whose course is governed by a definite set of socially accepted rules. The notion of set, both for a genre and for its defining apparatus, means that we can speak of sub-sets like sub-genres, and of all the operations foreseen by the theory of sets: in particular a certain musical event may be situated in the intersection of two or more genres, and therefore belong to each of these at the same time. (FABBRI, 1983, p.52). Fabbri completa esta definio enumerando alguns tipos de regras divididas em categorias como: formais e tcnicas (onde estariam includos conceitos como estilo, forma, e outros elementos tcnicos pertencentes esfera da anlise musical); semiticas; comportamentais; sociais e ideolgicas; econmicas e jurdicas. Observa-se que o autor utiliza-se da teoria matemtica dos conjuntos para considerar a existncia de subconjuntos (sub-gneros) e a possibilidade das operaes de unio, interseo e complementaridade entre os gneros.

    6 Sobre a definio de gnero, encontramos o seguinte verbete de Jim Samson no dicionrio de msica The New Grove:

    Classe, tipo ou categoria, aprovado por conveno. Uma vez que definies convencionadas derivam (indutivamente) de pormenores concretos, tais como trabalhos musicais ou prticas musicais, e que so portanto sujeitas mudanas, um gnero est provavelmente mais perto de um tipo ideal (no sentido de Max Weber) do que de uma platnica forma ideal. Gneros so baseados no princpio da repetio. Codificam repeties passadas e convidam a repeties futuras / A class, type or category, sanctioned by convention. Since conventional definitions derive (inductively) from concrete particulars, such as musical works or musical practices, and are therefore subject to change, a genre is probably closer to an ideal type (in Marx Webers sense) than to a Platonic ideal form. Genres are based on the principle of repetition. They codify past repetitions, and they invite future repetition. (SAMSON, 2001, v. 9, p.657-659).

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    podem ser parte integrante de outros gneros7. A partir desses conceitos e por trabalharmos com o universo da msica caipira e sertaneja, optamos por nomear as categorias musicais provenientes das manifestaes e danas tradicionais como cururu, cateret, arrasta-p etc., como sendo gneros pertencentes a esse universo musical. No utilizaremos, portanto, o termo sub-gneros para essas categorias, mesmo que sejam elas constituintes dos gneros maiores da msica caipira ou msica sertaneja. Apesar desta ltima nomenclatura ser perfeitamente possvel de acordo com as formulaes dos autores acima citados, optamos pela primeira, j que diversos pesquisadores como Ikeda8(2004), Viela Pinto9 (1999), Corra10 (2000), entre outros, tambm o fazem deste modo.

    Em relao ao conceito de matrizes, utilizamos como referncia o trabalho de Ulha, Arago e Trotta (2003), intitulado Msica Hbrida Matrizes Culturais e a Interpretao da Msica Brasileira. A noo de matrizes culturais apontada pelos autores como uma ferramenta na interpretao dos significados da msica brasileira popular11. Para as anlises no caso da msica popular brasileira, nesse trabalho os autores

    7 Sobre isso, poderamos ilustrar que vrias vezes reconhecemos em prticas ldicas como as Folias de Reis, violeiros

    acompanhando o canto com a viola no ritmo do Cururu, demonstrando neste caso que um elemento deste segundo gnero pode ser parte integrante do primeiro.

    8 Embora a msica caipira esteja predominantemente relacionada a outras expresses, (...) alguns ritmos acabaram se

    fixando tambm de forma autnoma, como gnero musical em si, predominantemente para a audio, como expresso musical popular de espetculo (concerto), com autoria reconhecida e expressa. Entre eles se incluem: o cururu, o catira, o arrasta-p (polca) e o xtis(xote) que originalmente so formas danadas, com cantorias muitas vezes de improviso (...). (IKEDA, 2004, p. 151, 152).

    9 Grosso modo podemos afirmar que a chamada msica caipira, em parte de seus gneros, foi um desdobramento da

    msica folclrica: a Moda e a Catira na Dana de So Gonalo; o Cururu que sofreu adaptaes para entrar no disco. (VILELA PINTO, 1999, p.36)

    10 (...) funes tradicionais acabaram consolidando-se como gneros da msica brasileira. Foi o que se deu, por exemplo,

    com os ritmos de danas como Cateret, Batuque, Mazurca, Querumana, Cana Verde, entre outras freqentes nos bailes populares largamente difundidos na discografia da msica caipira. (CORRA, 2000, p.69).

    11 Neste trabalho, Ulha tambm faz referncia a autores como Tagg (1982), que prope um mtodo de anlise baseado no processo de correspondncia hermenutica, e Nestor Garcia Canclini que trabalha a noo de heterogeinedade

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    propem a identificao de matrizes musicais como sonoridades gerais ao invs de utilizar exemplos musicais especficos. Assim, observam, por exemplo, que as modulaes e a complexa estrutura tonal presentes nos arranjos de Pixinguinha, remete-nos diretamente linguagem do choro e, em ltima instncia, msica europia e sua tradio harmnica. Observam ainda que as matrizes podem ser tanto de origem culta, artesanal (popular), como industrial (localizadas a partir do sculo XX) (ULHA; ARAGO; TROTTA, 2003, p. 348-353). A partir desta noo, e aplicando ao contexto de nosso trabalho, entendemos que matrizes so desde as estruturas, elementos, linguagens e caractersticas constitutivas dos gneros musicais (seriam as partes integrantes dos gneros nas formulaes de Fabri e Samson j citadas), at as estruturas, aspectos e fragmentos musicais presentes nos toques e solos do violeiro. Essas matrizes podem ser de diversas origens, indo desde as mais artesanais, populares e tradicionais, at as provenientes da produo musical relacionada indstria e ao mercado fonogrfico. Como veremos no caso de Tio Carreiro, mesmo que transplantadas para um outro contexto musical e histrico, e s vezes inseridas j em outros gneros, muitas dessas matrizes so originrias ou se relacionam com as prticas e manifestaes caipiras dos antigos bairros rurais do centro-sul do pas. Para exemplificar, encontramos na anlise dos pagodes de Tio Carreiro matrizes da(o) catira, dana e gnero muito antigo praticado pelas populaes caipiras, portanto matrizes caipiras. Da mesma forma, em vrios solos do artista, encontramos muitas vezes as chamadas escalas duetadas, matriz tambm caipira largamente difundida desde os mais antigos violeiros.

    Assim, a partir de nossas anlises dos discos instrumentais, fomos identificando

    e caracterizando um conjunto de gneros e matrizes musicais utilizados pelo violeiro nessas

    gravaes. A partir deste quadro terico e apesar de no ser o estudo dos gneros e

    multitemporal em seu livro Culturas Hbridas: Estratgias para Entrar e Sair da Modernidade (So Paulo: EDUSP, 1997).

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    matrizes, caipiras ou no, o objetivo central deste trabalho, percebemos a complexidade

    envolvida na identificao e caracterizao dos mesmos.

    O trabalho foi estruturado em seis captulos. No primeiro captulo, traamos um panorama histrico da viola desde sua chegada ao Brasil com os colonizadores portugueses no sculo XVI, at sua incorporao definitiva nas manifestaes tradicionais da cultura caipira.

    No segundo captulo, mostramos o surgimento do segmento instrumental

    sertanejo desde os primeiros registros fonogrficos da dcada de trinta, at as gravaes de

    violeiros como Tio Carreiro e seus contemporneos, buscando identificar neste processo

    as vertentes e caractersticas assumidas por este segmento.

    No terceiro captulo, enfocamos a histria e a anlise geral da discografia de

    Tio Carreiro, procurando delimitar as possveis fases, caractersticas e tendncias estticas

    assumidas pelo artista no contexto da indstria fonogrfica e do segmento sertanejo.

    No quarto captulo, detalharemos os dois LPs instrumentais e o contexto

    histrico em que foram gravados, j incluindo neste item alguns dados tcnicos e musicais

    recolhidos em nossas anlises.

    No quinto captulo, adentraremos nos resultados obtidos nas anlises em

    relao s matrizes e gneros utilizados pelo violeiro nos dois discos instrumentais. Cada

    gnero relacionado foi caracterizado historicamente e ilustrado com exemplos musicais

    extrados das transcries. Pela importncia do gnero pagode na carreira e no estilo do

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    violeiro, dedicamos maiores detalhes e informaes para a caracterizao e compreenso do

    mesmo.

    No sexto captulo mostramos e ilustramos todas as tcnicas, elementos musicais

    e caractersticas importantes que identificamos nas anlises dos discos instrumentais.

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    CAPTULO 1. A trajetria da viola caipira

    (...) no existem dvidas de que os inmeros exemplos conhecidos de viola brasileira provm de toda a tradio violstica portuguesa de que temos vindo a falar (SARDINHA, 2001, p.79).

    Alm do pesquisador Jos Alberto Sardinha, vrios estudiosos como Oliveira (1982), Andrade (1998), Arajo (1958/59), Cascudo (2002), Ikeda (2004), Lima (1964), Tinhoro (1990), Corra (2000), Anjos Filho (2002), Martins (2004), Vilela Pinto (2004), dentre outros, concordam quanto origem portuguesa da viola brasileira, que tambm pode ser identificada como viola caipira, viola de dez cordas, viola sertaneja, viola cabocla, viola nordestina, viola de feira, viola de mo, viola de arame, entre outras denominaes. A origem das violas portuguesas12, por sua vez, remonta ao alade rabe levado pelos mouros Europa durante a Idade Mdia, instrumento este que originou diversos outros cordofones ibricos. Tambm h consenso, entre tais pesquisadores, que no final do sculo XVI a viola era um instrumento muito popular em Portugal13, poca em que foi trazida para o Brasil pelos colonizadores e jesutas. Estes ltimos utilizaram-se desse instrumento na catequese dos ndios, inserindo-o nas msicas e danas amerndias, como o cururu e o cateret, acompanhadas de textos litrgicos cantados na lngua-geral, o Nheengatu14.

    12 O importante pesquisador Ernesto Veiga de Oliveira em Instrumentos Populares Portugueses (1966), aponta para os

    diferentes tipos de violas portuguesas encontradas em sua pesquisa em meados do sculo XX: as violas das terras ocidentais (viola braguesa, viola amarantina e viola toeira) e as violas do leste (viola beiroa e viola campania).

    13 "O que todos os exemplos de cantigas urbanas entoadas a solo por aqueles incios do sculo XVI [em Portugal] revelam

    em comum (...) era o acompanhamento ao som de viola. (...) [segundo] estatsticas de Cristvo de Oliveira, de 1551, e de Joo Brando, de 1552, j existiam em Lisboa quinze ou dezasseis fabricantes de violas, fora outros dez com "tendas de fazer cordas de violas". E era por certo essa democratizao do uso do instrumento que ia permitir entre 1545-1557 o aparecimento de um actor-personagem negro cantor e tocador de guitarra que era a mesma viola popular" (TINHORO, 1990, p.25-27).

    14 Ao pesquisar documentos histricos, Mrio de Andrade afirma que o Cateret dana de origem amerndia que, nos primeiros sculos da colonizao, foi aproveitada pelo padre Jos de Anchieta nas festas catlicas nas quais os ndios danavam e cantavam com textos cristos escritos em tupi (ANDRADE, 1998, p.120). Segundo o professor Jos de Souza Martins, o Nheengatu, a lngua-geral criada pelos jesutas tendo por base uma gramtica latina e a lngua tupi, foi a lngua falada dominante no Brasil colonial: O dialeto caipira, no meu modo de ver, o portugus residual que se falava nos

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    Ao longo dos sculos, apesar de ter mantido inalteradas as principais caractersticas do instrumento portugus15 (CORRA, 2000, p.24), a viola veio a sofrer adaptaes e transformaes na medida em que se espalhou pelo territrio brasileiro. Estas mudanas vo desde particularidades em sua forma de construo, distribuio e nmero de cordas utilizadas, maneiras de ser tocada (os toques de viola), at as mais de vinte afinaes diferentes que aqui recebeu. Atualmente, a viola caipira mais utilizada no centro-sul do pas configura-se como um instrumento de cinco ordens de cordas, geralmente cinco pares totalizando dez cordas onde os dois pares inferiores (os mais agudos) so afinados em unssono e os outros trs so oitavados.

    tempos da colnia, quando a fala cotidiana era dominada pelo Nheengatu e o portugus arcaico era falado (com sonoridade tupi) como lngua estrangeira por uma populao bilnge. Martins acrescenta que, mesmo aps sua proibio em 1727 por uma proviso do Reino, o Nheengatu sobrevive residualmente at hoje no dialeto caipira praticado em algumas regies brasileiras (MARTINS, 2004).

    15 Caractersticas das violas portuguesas mantidas nas violas brasileiras: caixa de ressonncia em forma de oito com

    tampo e fundo paralelos, brao com trastes (ou trastos, geralmente dez at o sculo XX), cordas distribudas em cinco ordens. As cinco ordens referem-se distribuio das cordas das violas no brao do instrumento em cinco sub-grupos (chamados pelos pesquisadores de ordens), caracterstica que independe do nmero total de cordas do instrumento, uma vez que cada ordem pode agrupar uma, duas ou trs cordas, em unssono ou oitavadas. Assim, h violas que possuem dez cordas (cinco pares) como as tradicionais violas de serra acima (ou paulistas), modelo largamente difundido no centro-sul do Brasil, e outras combinaes como a viola nordestina que descende da viola toeira da regio portuguesa de Coimbra, com doze cordas (duas triplas e trs duplas) e que utilizada pelos repentistas mas que, atualmente, aparece com apenas sete cordas distribudas em quatro singelas e um grupo triplo - mas sempre totalizando cinco grupos, cinco ordens. J a viola de cocho um tipo bem diferente de viola, escavada em um tronco macio e encontrada na regio do Pantanal mato-grossense, sendo utilizada nas festas religiosas e bailes rurais nos ritmos do cururu e siriri e possuindo cinco cordas simples.

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    Figura 1: Desenho de uma viola paulista tradicional - retirado de Arajo (1958/59)

    Esse o tipo de viola que foi utilizada por Tio Carreiro ao longo de sua carreira e que descende da viola tradicional conhecida como viola de serra acima ou viola paulista16, podendo ser utilizada em diferentes afinaes como Cebolo (a mais difundida e a que foi utilizada pelo artista), Rio Abaixo, Natural, Boiadeira, Guitarra17.

    seguro afirmar que a viola tornou-se o instrumento smbolo da msica caipira praticada pelas populaes rurais que habitaram durante muito tempo a regio centro-sul do Brasil (So Paulo, sul de Minas Gerais, sul de Gois e sudeste do Mato Grosso do Sul). Por volta do sculo XVII, aps o declnio do bandeirantismo, esse povoamento caipira comeou a se formar na medida em que trabalhadores livres, em geral herdeiros da miscigenao

    16 Desde o comeo do sculo XX, comearam a ser instaladas em So Paulo as primeiras fbricas com produo de violas

    em srie, como a Del Vecchio (1904), que ao disponibiliz-las a preos acessveis, colaboraram para o declnio das produes artesanais, como as tradicionais violas de Queluz (hoje Conselheiro Lafaiete-MG). Com o passar dos anos, ao aplicar tcnicas de fabricao de violes, as violas industrializadas trouxeram mudanas em relao s violas artesanais tradicionais, como a substituio das cravelhas de madeira por tarraxas de metal, o aumento do nmero de trastes indo at a boca da caixa acstica, e outros (CORRA, 2000, p. 23-30; PASCHOAL, 1999, p. 5, 6, 26). Desta forma, na poca em que Tio Carreiro gravou seu primeiro disco, as violas utilizadas j no eram exatamente como as antigas violas artesanais.

    17 Para mais referncias sobre afinaes, tipos de violas e as regies onde so encontradas, consultar Corra (2002), Lima

    (1964) e Arajo (1958/59).

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    entre o colono portugus e o ndio, fixaram-se progressivamente nessas terras, na condio de pequenos sitiantes, parceiros e agregados. O modo de vida rstico e as formas de sociabilidade, subsistncia e organizao desses povoamentos foram minuciosamente estudados por Antonio Candido em seu trabalho Parceiros do Rio Bonito (CANDIDO,1964). Segundo Candido, a estrutura da sociabilidade caipira consistia no agrupamento de algumas ou muitas famlias, mais ou menos vinculadas pelo sentimento de localidade, pela convivncia, pelas prticas de auxlio mtuo [como o mutiro] e pelas atividades ldico-religiosas, estas ltimas consideradas como elemento definidor da sociabilidade vicinal (CANDIDO, 1964, p.81-94).

    Em todas essas atividades e prticas ldico-religiosas como a Folia do Divino, a Folia dos Santos Reis, a dana de Santa Cruz e de So Gonalo, o Cururu, a Catira ou Cateret, a Moda de Viola, a Quadrilha, a Cana-Verde, o Congado, o Moambique, o Catop, o Caiap e outras, a viola aparece como instrumento obrigatrio. A dimenso musical representada pelos seus toques, somados aos gneros e ritmos caipiras que acompanhavam tais manifestaes, apresenta-se como um elemento fundamental, atuando tanto como meio de orao como de lazer. esta dimenso musical das prticas que se denomina msica caipira e que deu origem ao segmento do mercado fonogrfico chamado de msica sertaneja (MARTINS, 1975, p.105,111; MARTINS, 2004).

    Entretanto, desde sua chegada no sculo XVI at tornar-se smbolo da msica caipira como observamos anteriormente, a viola participou de um longo perodo de transformaes inerentes ao processo de formao da prpria cultura e sociedade caipira. Segundo o estudo realizado pelo pesquisador Jos de Souza Martins (2004), a cultura e a sociedade caipiras so produtos finais de um processo que se deu lentamente ao longo dos sculos XVI e XVII e que ganhou corpo e sentido no sculo XVIII. Este processo foi baseado em importantes fatores como: a formulao da lngua geral e sua posterior proibio no sculo XVIII, as transformaes na relao entre portugueses e ndios, a extino formal da condio servil indgena em 1757, a separao entre o catolicismo oficial e o popular, dentre outros. Neste estudo, Martins questiona o senso comum entre

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    pesquisadores os quais consideram que a viola j era disseminado instrumento popular profano no Brasil desde os tempos do descobrimento. O autor aponta que a viola foi inicialmente utilizada como instrumento de catequese pelos jesutas e manteve-se por um bom tempo vinculada de preferncia s prticas religiosas sendo:

    (...) instrumento mais bem de refinamento e fidalguia do que da msica de estrada e de violeiros avulsos que Saint-Hilaire18 ouviria em ranchos de tropeiros um sculo e meio depois [segunda dcada de 1800] ou mesmo da msica devota das folias precatrias, que se pode ouvir at hoje. A msica popular (...) estava mais prxima dos instrumentos rtmicos das tradies tribais. (...) provvel que a viola caipira, como instrumento tambm de msica popular profana, tenha se difundido a partir das mudanas sociais da segunda metade do sculo XVIII, poca em que a sociedade brasileira, e a paulista em particular, passou por um incio de secularizao e por uma certa modernizao. Foi o momento em que claramente uma cultura erudita se firmou em diferentes partes do Brasil associada ao estamento dominante e o momento tambm em que o costumeiro, em decorrncia, ganhou funes de cultura popular (MARTINS, 2004, p.200).

    Portanto, ao longo destas transformaes, a viola que de fato se tornou uma acompanhante indispensvel na catequese dos ndios pelos jesutas, gradativamente foi incorporada msica dos ritos catlicos de celebrao comunitria e domstica, bases fundamentais da msica caipira, como a folia do Divino, do Santos Reis, dana de Santa Cruz e So Gonalo (que alis era realizada habitualmente dentro da igreja at o sculo XVIII). S ento, a partir destas prticas, disseminou-se, ganhando o terreno das manifestaes e msicas populares profanas. Esse processo de incorporao da viola caipira ocorre na medida em que a sociedade caipira vai se formando e que se d posteriormente um perodo de certa modernizao e erudio da sociedade paulista (urbana), levando, entre outras conseqncias, separao entre o catolicismo formal e o popular. Martins acrescenta que mesmo msicas tidas hoje como profanas, como o

    18 O bilogo e atento etngrafo August de Saint-Hilaire, em sua longa viagem pelo Brasil entre 1816 e 1822 fez no

    conjunto de seus relatos importantes anotaes para o estudo da cultura caipira. (MARTINS, 2004, p. 201).

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    cateret e o cururu, eram originalmente danas indgenas adaptadas a celebraes religiosas19. (MARTINS, 2004, p.196, 205).

    Desta forma, aps centenas de anos em que a viola esteve fortemente associada s prticas ldico-religiosas, profanas e sagradas, no habitat rural, ela passa a ser reconhecida como smbolo deste universo cultural caipira20. Esta msica caipira, com o passar dos anos, comea a se transformar na medida em que ocorre a crescente urbanizao e a implantao da indstria do disco. Adotaremos neste trabalho a distino entre msica caipira e msica sertaneja criada por Martins (1975). A primeira, de acordo com o autor, sempre acompanhada de algum ritual de religio, de trabalho ou de lazer; e a segunda, ao ser apropriada pela indstria do disco no pas, perde esse vnculo ao converter-se num produto, numa mercadoria (MARTINS, 1975, p.105-113). Alm disso, baseado nos conceitos j apontados na introduo deste trabalho, chamaremos de matrizes caipiras as estruturas, elementos, linguagens e caractersticas constitutivas dos gneros musicais pertencentes aos antigos ritos e prticas ldico-religiosas, portanto matrizes com as quais a msica sertaneja manter ligaes de diversas formas no desenrolar de sua histria.

    Considerando os conceitos e definies de matrizes, msica caipira e sertaneja, e observando a trajetria da viola desde sua chegada ao pas at sua utilizao no universo da cultura caipira, passaremos agora a detalhar o percurso da viola e da msica caipira dos bairros rurais at sua chegada s gravaes fonogrficas a partir do sculo XX, determinando o surgimento do que poderamos chamar de msica instrumental sertaneja.

    19 Em Alleoni (2006, p.19-33) encontramos dados e depoimentos de antigos cantadores de cururu da regio do Vale do Mdio Tiet (Piracicaba, Tiet, Botucatu, Sorocaba, etc) observando que at as primeiras dcadas do sculo XX, o cururu ainda era praticado principalmente nas festas religiosas onde primeiramente se cantava louvando os santos e depois partia-se para a parte profana, momento de divertimento e brincadeira com os versos.

    20 Apesar desta forte associao com a msica do meio rural, a viola tambm foi utilizada no meio urbano. Em Aversari Martins (2004) encontra-se um levantamento da utilizao da viola em meios urbanos, desde os tempos do descobrimento, e principalmente a partir do sculo XVIII, acompanhando modinhas e lundus.

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    CAPTULO 2. A msica instrumental sertaneja.

    Quanto ao gnero artstico, embora aquele primitivismo folclrico do tempo de Cornlio Pires j estivesse sofrendo transformaes pela conjuno cultural campo-cidade, sentiam-se diretrizes plenamente estabelecidas no sentido de fixao de uma caracterstica, com outros instrumentos que no s o violo e a viola a cuidar do acompanhamento. At mesmo uma msica caipira instrumental comeou a tomar corpo, alternando suas fontes informativas na herana europia e no tradicionalismo rural de formao tpica (FERRETE, 1985, p.61).

    Assim comentou J. L. Ferrete sobre as transformaes estticas que gradativamente foram ocorrendo na msica sertaneja, principalmente a partir de meados da dcada de quarenta, em contraste com seus primeiros registros promovidos pela iniciativa independente do paulista Cornlio Pires a partir de 192921, registros considerados pelo autor como primitivismo folclrico. Alm disso, Ferrete aponta para o surgimento mais significativo de uma msica caipira instrumental, segmento que detalharemos mais adiante e que aqui chamaremos de msica instrumental sertaneja em acordo com a definio de Martins (1975, p. 105-113) j mencionada.

    Como se sabe, no final dos anos vinte, o produtor, escritor e humorista Cornlio Pires foi pioneiro ao fazer registros sonoros de duplas caipiras do interior paulista, duplas essas que j h alguns anos incrementavam as apresentaes e encenaes teatrais caipiras do humorista. Nestas gravaes aparecem gneros e danas caipiras como cururu, caterets (ou catiras ou bate-ps), modas de viola, cantos de trabalhos, anedotas caipiras, dentre

    21 Natural de Tiet, em 1929 Cornlio Pires financiou junto gravadora Columbia a gravao de duplas caipiras do

    interior paulista, totalizando a produo na primeira tiragem de vinte e cinco mil discos (cinco discos diferentes com tiragem de cinco mil para cada, nmero extremamente alto para a poca) e saiu, por conta prpria, distribuindo os exemplares pelo interior de So Paulo. O sucesso de vendas produzidas pela pioneira iniciativa, atitude considerada na poca como impensvel por profissionais do ramo como o americano Wallace Dowey (diretor da Columbia), revelou um grande mercado para esse tipo de msica, dando a partida para a criao do segmento sertanejo na indstria fonogrfica (FERRETE,1985, p.38-41).

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    outros registros que, apesar das inevitveis adaptaes e transformaes inerentes ao prprio mecanismo de gravao22, podem ser considerados os mais antigos (ou primitivos, como preferiu Ferrete) registros de manifestaes e matrizes caipiras existentes, e que foram classificados por alguns pesquisadores como registros folclricos provavelmente pelo forte carter documental e verossmil destas gravaes23. Aps o sucesso de vendas desses discos e das tiragens seguintes, gradativamente outras gravadoras passaram a se interessar pelo filo da msica sertaneja, poca em que surgiram e se popularizam importantes artistas (tanto urbanos como de origem rural) como: Mandi e Sorocabinha (ou Loureno e Olegrio), Mariano e Caula, Arlindo Santana, Laureano e Soares, Zico Dias e Ferrinho, Raul Torres, Serrinha, Florncio, Ariovaldo Pires (ou Capito Furtado), Alvarenga e Ranchinho, Joo Pacfico, dentre outros.

    Com a crescente migrao de habitantes das zonas rurais para as cidades desde a crise do caf em 1929, e com a consolidao do rdio como principal meio de divulgao da msica popular principalmente a partir de 1936, surgiram diversas duplas sertanejas no mercado, muitas provenientes do meio rural, como Tonico e Tinoco24. Cantando em dueto (intervalos e tera e sextas) e acompanhando-se geralmente de duas violas ou viola e

    22 Diversos so os pesquisadores (MARTINS, 1975; ZAN,1995; NEPOMUCENO, 1999) que observam que muitos dos

    gneros caipiras como as folias de reis, folias do divino, alguns cantos de trabalho, por exemplo, provavelmente no foram includos nos registros fonogrficos por no atenderem aos padres exigidos pela indstria fonogrfica, e outros gneros acabaram sofrendo modificaes, como por exemplo os cururus de desafio (improvisados) e as extensas modas de viola, estas verdadeiros romances que chegavam a trs horas de durao, e precisaram ser reduzidas ao limite de trs minutos dos primeiros discos de 78 r.p.m.

    23 A partir de dados histricos como o depoimento de Sorocabinha, violeiro que participou das primeiras sries de

    Cornlio Pires, observa-se que estas gravaes eram registros das manifestaes exatamente da forma que [os caipiras] costumavam fazer em suas festas, e as gravaes, [eram] sempre realizadas com poucos cantores, no mximo com duas violas, e com sonoridades bastante semelhantes entre si. (KOSHIBA 2006, p.161).

    24 Tonico (Joo Salvador Perez, So Manuel, 1917-1994) e Tinoco (Jos Perez, Botucatu, 1920) nasceram na zona rural de

    Botucatu, regio de fazendas de caf e algodo nas quais seus pais trabalhavam como colonos. Desde a infncia, a dupla lidava na roa e cantava nas festas e bailes caipiras da regio. Em 1940, toda a famlia migrou para So Paulo em busca de melhores condies de vida. Em 1942, a dupla que at ento utilizava o nome Irmos Perez venceu o concurso do importante programa Arraial da curva torta comandado pelo Capito Furtado na Rdio Difusora. Furtado os batizou como Tonico e Tinoco e foram ento contratados para trabalhar na mesma rdio, fato que iniciou definitivamente a carreira profissional da dupla no segmento sertanejo. (TONICO; TINOCO, 1984).

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    violo, as duplas executavam gneros caipiras como cururus, caterets e principalmente um dos gneros mais representantes da cultura caipira: a moda de viola. No entanto, desde meados dos anos trinta, a ento msica sertaneja de ligaes ainda estreitas com as matrizes caipiras rurais j comea a apresentar os primeiros indcios de sua relao com o contexto urbano, o meio fonogrfico e o rdio. Sorocabinha, um dos pioneiros a gravar na primeira srie de Cornlio Pires, declarou em entrevista que at aquela dcada no tinha violo. Que o violo um instrumento da cidade. Na cidade que faziam a seresta (...)25. Assim, no ambiente das gravadoras e do rdio, msicos urbanos, como os praticantes de gneros como choro e seresta, passam cada vez mais a fazer parte do acompanhamento das duplas sertanejas, trazendo outras linguagens e instrumentaes alm da viola caipira, como o violo, cavaquinho, percusso, acordeom, etc.

    A partir da dcada de quarenta, j se nota no repertrio de algumas duplas a influncia e presena de gneros e verses de sucessos estrangeiros paraguaios (guarnias e polcas), mexicanos (boleros, rancheiras e corridos), dentre outros, sendo provavelmente as Irms Castro as primeiras a adotarem tais mudanas (FERRETE,1985, p.121-123). Estas influncias parecem j estar bem difundidas no segmento sertanejo no incio da dcada de cinqenta, momento em que identificamos o marco importante atingido pelo sucesso da guarnia ndia (J. Flores e M. Guerrero/ verso de Jos Fortuna) gravada por Cascatinha e Inhana e que s no primeiro ano de lanamento (1952), vendeu a considervel tiragem de trezentas mil cpias26.

    25 Depoimento de Sorocabinha presente na entrevista concedida ao Museu de Imagem e Som (SP, fita n.113.2-4), no

    incio dos anos oitenta, cujos trechos encontram-se em Koshiba (2006 , p.:161,162). Pra encurtar a histria: a msica sertaneja fez na dcada muito sucesso, que, abafou mesmo. Depois que acabou, que eu voltei pra l [em 1936], ento entrou o Torres [Raul Torres]. Que o violo um instrumento da cidade. Na cidade que faziam a seresta e cantavam em dueto. Era uma coisa linda! Agora t toda viola era sertanejo. De forma que na minha opinio, acho que aqui por todo lugar tem msica sertaneja, mas a verdadeira mesmo muito pouco que eu conheo. (...) Mas por fim, casou, misturou tudo.

    26 Dados obtidos na biografia da dupla contida no Dicionrio Cravo Albin da Msica Popular Brasileira disponvel no site

    http://www.dicionariompb.com.br, consultado em janeiro de 2007.

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    Ainda sobre a dcada de quarenta, Ferrete menciona o princpio de um delineamento mais perceptvel de uma msica instrumental sertaneja, segmento este que surge a partir de duas vertentes: uma baseando suas fontes informativas na herana europia e a outra no tradicionalismo rural de formao tpica. Esta primeira vertente a que poderamos chamar de vertente erudita da msica instrumental sertaneja, segmento este que ao longo das dcadas se caracteriza por utilizar-se da apropriao consciente das matrizes musicais caipiras para elaborar seus trabalhos. Assim, um dos primeiros artistas a enveredar por estes caminhos da vertente erudita foi Theodoro Nogueira, compositor, violonista erudito e aluno de Camargo Guarnieri27, que passou a compor especificamente para viola (solo ou com orquestra) principalmente a partir de 1962, tendo seu Concertino para Viola e Orquestra de Cmera e os Preldios nos modos da viola brasileira gravados por seu aluno e importante violonista Antnio Carlos Barbosa Lima em 1963 no LP Viola Brasileira (Chantecler) 28. Barbosa ainda introduzira a viola caipira no Teatro Municipal de So Paulo, num concerto regido por Armando Belardi. Ainda identificam-se nomes como Geraldo Ribeiro29, tambm aluno de Theodoro, que registraria em LP uma transcrio de Theodoro intitulada Bach Na Viola Brasileira(Chantecler,1972) (NEPOMUCENO, 1999, p.178). Apesar desses e de alguns outros compositores da msica erudita seguirem na experincia de compor para a viola caipira, quase no existem registros em disco desta produo. Somente anos mais tarde, principalmente a partir de meados dos anos setenta, que aparecem importantes violeiros como Renato Andrade30, Almir Sater31, Tavinho

    27 Discpulo de Mrio de Andrade, Camargo Guarnieri comps a srie de Ponteios para piano por influncia dos

    ensinamentos nacionalistas de Mrio encontrados no Ensaio sobre a msica brasileira (ANDRADE,1972). A sute proposta por Mrio poderia ser iniciada por um Ponteio e incluir Cateret, Coco, Modinha, Cururu e Dobrado, que corresponderiam ao modelo da sute europia comeando com um Preldio (forma mais livre) e seguindo com uma seqncia de danas estilizadas como o Minueto, Giga, Bourr, dentre outras.

    28 Podemos observar que Theodoro Nogueira passou a compor com maior intensidade para a viola caipira solo, com orquestra ou em outras formaes, a partir de 1962 (PAGOTTI, 2002, p.74-78). Pode-se ouvir alguns dos seus Preldios nos modos da viola brasileira na interpretao de Antnio Carlos Barbosa Lima no programa de rdio Violo com Fbio Zanon exibido na Rdio Cultura So Paulo em 19 de Julho de 2006 e disponvel para consulta no site (Consultado em junho de 2007).

    29 Geraldo Ribeiro chegou a publicar em 1971 o livro Toada e Ponteio (Ed. Ricordi) (NEPOMUCENO, 1999, p.178).

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    Moura, Roberto Corra, Paulo Freire, Ivan Vilela, Fernando Deghi, dentre outros, que seguiram adiante nesta investida e deram realmente corpo ao que se pode chamar de apropriao culta das matrizes caipiras (ZAN, 2003, p.7; 2004, p.9)32, unindo em suas obras os universos da msica caipira s esferas da msica erudita, da msica popular brasileira e instrumental brasileira ou do jazz, cada qual, obviamente, de maneiras, intensidades e com influncias diferentes. Ainda vale lembrar a atuao do importante msico nordestino e tambm violeiro Heraldo do Monte que, apesar de se utilizar de matrizes da msica e da viola nordestinas (portanto no literalmente caipiras), tambm realiza em seu trabalho instrumental o movimento de fundir estas matrizes com outras linguagens e influncias como o jazz, desde sua atuao marcante com o Quarteto Novo e a cano Disparada (Geraldo Vandr e Tho de Barros) em 196633.

    30 Natural de Abaet (MG,1932-2006), em 1977, apresentado pelo maestro Guerra Peixe, o violeiro conquistou o Trofu

    Villa-Lobos com o seu primeiro disco, o LP A Fantstica Viola de Renato Andrade na Musical Armorial Mineira. Neste disco, e nos seguintes, fica clara a inteno de aproximar os universos da msica caipira com o da msica erudita (Renato tambm estudou violino e, portanto, possua e se utilizava das tcnicas e concepes eruditas, deixando estes traos evidentes em sua obra), ou como ele prprio relatava: a unio entre o concertista e o capiau (NEPOMUCENO, 1999, p.178).

    31 O ex-estudante de direito e conceituado violeiro influenciado por tcnicas de violo erudito (seu instrumento antes da

    viola), por elementos do blues, jazz, country, bossa-nova, e principalmente pela msica caipira do Pantanal Matogrossense, Almir Sater grava em 1985 o disco Instrumental (Som da Gente), e em 1990 Instrumental, vol.2 (Eldorado). Almir, que tambm estudara os toques de Tio Carreiro, seguiu a idia de Renato Andrade (outro de seus grandes referenciais musicais) em apropriar de maneira culta as matrizes caipiras e uni-las a outras linguagens mais contemporneas. Alm de ter participado do Free Jazz Festival (1990) e conquistado dois prmios Sharp (1991) o msico teve acesso grande mdia a partir de seu trabalho como ator e violeiro nas novelas Pantanal (1990), Ana Raio e Z Trovo (1991) e Rei do Gado (1996). Isto permitiu que seu trabalho atingisse um grande pblico desde as classes mais baixas at a classe mdia. Ao passar a imagem de uma espcie de gal rural, Almir elevou o status do violeiro que agora, alm de tocar muito bem, jovem, um tanto romntico e bem apessoado, abrangendo desta forma tambm o pblico jovem e o de classe mdia. Nas palavras dele prprio, Minha imagem na televiso trouxe de arrasto minha msica. Meu trabalho no era to popular e as novelas me ajudaram muito (NEPOMUCENO, 1999, p.391).

    32 O termo apropriao culta apontado pelo pesquisador Jos Roberto Zan em entrevista concedida ao Jornal da

    Unicamp (2003). Ao comentar sobre compositores como Villa-Lobos e Camargo Guarnieri, os quais chegaram a inserir em suas obras elementos da msica caipira e de culturas rurais de outras regies do pas, menciona: So msicos que realizaram o que poderamos chamar de apropriao culta da msica popular rural. (ZAN, 2003, p.6,7). O mesmo termo aparece novamente no artigo Viola Nova (ZAN, 2004, p.9).

    33 O Quarteto Novo foi o grupo instrumental formado em 1966, ainda com o nome de Trio Novo, por Theo de Barros

    (contrabaixo e violo), Heraldo do Monte (viola e guitarra) e Airto Moreira (bateria), e que acompanhava Geraldo Vandr em apresentaes e gravaes. O Trio Novo, por questes contratuais, no pde participar com sua formao original da apresentao vencedora de "Disparada" (Geraldo Vandr e Theo de Barros) interpretada por Jair Rodrigues no Festival de

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    A segunda referncia que Ferrete faz no pargrafo citado, mencionando fontes informativas no tradicionalismo rural de formao tpica, corresponde ao surgimento de uma vertente popular da msica instrumental sertaneja. Esta vertente mais tradicional, desprovida de uma formao musical formal nos moldes da msica erudita, identifica-se na obra dos violeiros e msicos34 que, de uma maneira ou de outra, representam as matrizes musicais tradicionais caipiras, em maior ou menor grau de transformao. Essa ligao com as matrizes deve-se ao fato de que muitos desses violeiros foram ex-moradores de zonas rurais que migraram para os centros urbanos, portanto habitantes remanescentes dos antigos bairros rurais onde tiveram contato com as prticas ldico-religiosas e sua diversidade musical. Essas matrizes musicais caipiras so claramente identificadas nas primeiras gravaes do segmento sertanejo35 a partir de 1929. A primeira gravao nesta vertente popular e instrumental que localizamos o solo de viola Paixo de Caboclo, gravado por Arlindo Santana sem indicao de data, e classificado no disco como sendo do gnero

    Msica Popular Brasileira da TV Record nesse mesmo ano. Assim foram substitudos por Aires (viola), Manini (percusso) e Edgar Gianullo (violo). Mais tarde, o grupo passou a atuar como Quarteto Novo a partir da incorporao de Hermeto Pascoal (piano e flauta) formao original. No arranjo de "Disparada", ficou evidenciada a presena da viola caipira de Heraldo do Monte que ponteava um solo marcante na introduo desta cano que posteriormente seria regravada por diversas outras duplas do segmento sertanejo. Em 1967, o grupo gravou seu nico disco de carreira, o LP "Quarteto Novo" lanado pela Odeon, LP que evidencia a viola caipira em diversas faixas. No mesmo ano, o quarteto participou ao lado de Edu Lobo e Marlia Medalha da apresentao de "Ponteio" (Edu Lobo e Capinam) no III Festival de Msica Popular Brasileira da TV Record (SP), classificando a cano em primeiro lugar no evento, musica cujo arranjo tambm contava com a presena de solos de viola. O grupo dissolveu-se em 1969. (Dicionrio Cravo Albin da Msica Popular Brasileira disponvel no site http://www.dicionariompb.com.br, consultado em setembro de 2007).

    34 Apesar do interesse deste nosso trabalho estar mais associado viola e aos violeiros, e da msica instrumental sertaneja

    ser em sua grande maioria representada por esta modalidade de instrumentistas, no devemos desconsiderar a existncia de outros msicos que trabalharam neste segmento. Dentre outros msicos, acordeonistas como Chiquinho do Acordeon (que integrou o Trio Surdina, atuou na Rdio Nacional e com nomes como Radams Gnattali) chegou a gravar em verso instrumental o clssico sertanejo Tristeza do Jeca(Angelino de Oliveira) em face de um disco 78 rpm em 1953 pela gravadora Todamrica. Alm dele, Mrio Zan, compositor do clssico sertanejo Chalana, que tambm gravou vrios discos instrumentais que poderiam ser enquadrados como pertencentes ao segmento instrumental sertanejo.

    35 Nos primeiros registros de msica sertaneja da poca de Cornlio Pires, principalmente nos dos caipiras Arlindo

    Santana, Caula e Mariano, ficam claras as fortes ligaes destes artistas com a msica caipira e as manifestaes tradicionais nas zonas rurais, como o caso de gravaes registrando as prprias danas tradicionais: Cateret Paulista (autor desconhecido) gravado por Cornlio Pires e Arlindo Santana em 1930; Cateret na Roa (Arlindo Santana) gravada por Arlindo Santana e Francisco Pedro (Columbia, sem data) em que ocorre um dilogo introdutrio chamando o danador para sapatear e em que a msica apenas o registro do momento da dana da catira, quando aparece o som da viola acompanhando um sapateado; Toada de Cururu( sem autor) gravada por Mariano, Caula e Cornlio Pires em que ocorre o registro introdutrio Toada de Cururu, dana de origem indgena conservada pelos caipiras paulistas e segue-se a viola acompanhando as vozes duetadas e dana.

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    repicado36. No meio dos violeiros, repicado uma denominao genrica para toque, ponteio ou batida de viola, termos que equivalem maneira especfica de se tanger as cordas dependendo do gnero tocado. Essa gravao provavelmente do incio dos anos trinta, j que Arlindo Santana foi um dos violeiros pioneiros trazidos por Cornlio Pires, sendo provavelmente um dos poucos registros instrumentais de viola caipira em 78rpm existentes.

    Embora desde o surgimento do segmento sertanejo no final da dcada de vinte, tenha sido a msica sertaneja cantada a que predominou nas gravaes em disco, muito provavelmente sua vertente instrumental popular j existia no s desde esta poca, como desde os antigos bairros rurais. Nesses locais, a prtica dos toques, as afinaes, os ritmos e gneros executados na viola eram passados oralmente de geraes em geraes de violeiros. Esse conhecimento, segundo pesquisadores, dava aos violeiros um importante status nas comunidades caipiras: tinham importante papel nas festas populares - do pagamento de promessas a Santos Reis distrao nas danas e brincadeiras (CORRA, 2000, p.53). Transitavam entre o universo sagrado (eram elementos fundamentais nas festas religiosas como a Folia do Divino) e o universo profano (chegavam a fazer o pacto com o diabo para poder tocar melhor, segundo os causos e lendas populares), tendo uma mobilidade na comunidade que nem mesmo o padre possua (VILELA PINTO, 2002, p.1; MARTINS, 1975).

    Sobre a importncia desses conhecimentos e do contedo dos toques dos violeiros, Almir Sater comentou que "o toque de um violeiro muito especial, difcil de ser assimilado, tem que escutar muito pra entender o caminho das mos" (NEPOMUCENO,1999, p.392). Desta forma, podemos observar que os toques, as formas e tcnicas de tocar esse instrumento, somados afinao utilizada, eram, e ainda o so,

    36 Mais adiante mostraremos uma conotao especfica do termo "repicado" no contexto dos gneros da catira, recortado e

    moda de viola.

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    fatores determinantes na identificao da personalidade musical de cada violeiro, funcionando como indicadores de sua marca, sua impresso digital, sua assinatura como instrumentista, elementos fundamentais para a configurao de seu estilo musical.

    Mesmo que, em geral, a viola tivesse a funo de acompanhar os cantos e manifestaes, difcil negar a idia de que provavelmente tais violeiros antigos tambm criavam seus toques e solos ponteados separadamente dos rituais e prticas, tanto como meio de lazer quanto como maneira rudimentar de praticar (atividade indispensvel para o mnimo aprendizado do instrumento)37. Assim, boa parte dos primeiros violeiros provenientes das zonas rurais que chegaram ao disco, carregava de certa forma esta bagagem musical muitas vezes acumulada e herdada de vrias geraes passadas. Essa experincia e conhecimento adquiridos, em alguns casos, capacitavam tais violeiros a ponto de torn-los bons instrumentistas, o que acabava trazendo notoriedade a esses msicos tambm no meio urbano. Exemplo disso foi o violeiro Laureano38, considerado um dos mais importantes violeiros das dcadas de trinta e quarenta, mas que no deixou registros instrumentais alm das introdues das modas de viola, nas quais demonstra real

    37 A prtica instrumental dos violeiros, somada ao contato cotidiano com a natureza no meio rural, reflete-se na criao de

    toques criativos, por exemplo, imitando animais, em geral pssaros. Jos de Souza Martins atribui a heranas da cultura musical indgena do contato, algumas das caractersticas da msica caipira como a repetio montona de um nico refro ou de alguns ritmos derivados dos cantos dos pssaros e da natureza. J numa fase em que o segmento caipira instrumental comea a se formar, entre outros, podemos exemplificar a gravao de Canto do Rouxinol (Netete e Z do Rancho) gravada por Z do Rancho em 1966 no LP instrumental de viola caipira A Viola do Z (RCA), Siriema no campo gravado por Renato Andrade no LP A fantstica viola de Renato Andrade (1977, Chantecler), Inhuma(D.P) gravada por Z Coco do Riacho no LP Brasil Puro (Rodeo/WEA, 1980), dentre outros.

    38 Ochelcis Aguiar Laureano (Sorocaba-SP, 1909-1996). (...) a partir de 1 de junho de 1936 (...) Capito Furtado criou o

    seu Repouso, programa (...) onde o Capito (...) recebia seus convidados: (...), Laureano (um dos maiores violeiros da poca) (FERRETE,1985, p.56). Foi considerado um dos maiores violeiros dos anos 1930 e 1940 (Dicionrio Cravo Albin de Msica Popular Brasileira, disponvel no site www.dicionariompb.com.br). Segundo Sorocabinha, em seu depoimento ao MIS-SP na dcada de oitenta: Mandi [Manuel Rodrigues Loureno] (...) era muito apreciador do folclore e at solava uma viola muito bem (...) E ponteava as viola com todo o seu estudo. Conhecia muito bem os costumes dos caboclo (KOSHIBA,2006, p.171, nota de rodap).

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    desenvoltura no instrumento39. Da mesma forma, alm de Laureano, alinham-se outros violeiros nesta vertente popular, de maior ou menor repercusso, que utilizaram a viola de uma maneira mais trabalhada em relao ao contexto histrico de suas pocas, mas que no chegaram a registrar msicas instrumentais. H, por exemplo, os nomes lembrados pelo violeiro e pesquisador Luiz Faria40, a saber: Z Pago (Jos Marciano de Oliveira), que inicialmente, a partir de 1939, fez dupla com Z Man (Josaf Estevo Nepomuceno) na turma de Cornlio Pires e, posteriormente, com Nh Rosa (Luis Rosa), em 1945, e com Faustino (Faustino de Oliveira, s vezes utilizando o nome de Fostino) em meados dos anos cinqenta41; Laurpio Pedroso (s vezes utilizando o nome de Laurpes Pedroso), que integrava a dupla Irmos Divino de Sorocaba; Julio Saturno, tambm de Sorocaba, que apareceu por volta de 1957 tocando a viola dinmica e participou de um trio juntamente com Mandu e Canhotinho42.

    No entanto, um dos primeiros registros que poderamos classificar como msica instrumental sertaneja so algumas gravaes localizadas na discografia do

    39 Pode-se notar a agilidade e desempenho do violeiro na introduo de sua moda de viola Situao dos Homens

    gravada com Soares no disco de 78 rpm lanado pela Columbia em setembro de 1934 (disponvel no acervo do Instituto Moreira Sales no site www.ims.com.br)

    40 Como veremos a seguir, o violeiro e pesquisador de msica sertaneja Luiz Faria, que tambm conviveu muitos anos

    com Tio Carreiro, foi entrevistado por ns em 15/10/ 2007 (para entrevista completa vide ANEXO 3).

    41 Segundo consta no dicionrio Cravo Albin de msica popular brasileira, Z Pago nasceu em 1912 em Leme (SP) e

    chegou a fazer sucesso na dupla com Z Man na primeira metade dos anos quarenta com msicas como Nossa bandeira" (Z Man e Vitor Ferreira de Morais), "Morada da mata" (Z Pago e Z Mane),"Quanta saudade" (Z Pago) e "Goianinha" (Z Man). (Dicionrio Cravo Albin da Msica Brasileira disponvel no site www.dicionariompb.com.br, consultado em novembro de 2007).

    42 Segundo o violeiro Ricardo Anastcio, Laurpio Pedroso foi o criador da introduo de Relgio Quebrado (Jos

    Russo/ Teddy Vieira) gravado por duplas como Zico e Zeca, e foi o ltimo parceiro de Teddy Vieira, vindo a falecer junto com ele num acidente em 16/12/1965 na estrada Castelinho; Julio era violeiro que atuava em gravaes e compositor de introdues de clssicos sertanejos como Boiadeiro Errante (Teddy Vieira), tendo inclusive lanado alguns LPs instrumentais no localizados por ns. (Parte destas informaes esto disponveis no site www.violatropeira.com.br, consultado em 2007). Segundo Corra (2000, p.70), Julio era um especialista nos costurados de viola nas gravaes de duplas, e cita o exemplo o cururu Peito Sadio (Raul Torres e Rubens Ferreira) na gravao de Z Carreiro e Carreirinho (RCA Victor, 1961).

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    multiinstrumentista paulistano e, portanto, urbano, Poly (ngelo Apolnio, 1920-1985)43. Poly, tambm reconhecido como maestro, foi um dos primeiros msicos a gravar verses instrumentais do repertrio sertanejo em instrumentos de cordas como a viola caipira, violo e principalmente a guitarra havaiana44, instrumento que o popularizou nas gravaes

    e acompanhamentos de diversos artistas da msica brasileira e sertaneja como Cauby Peixoto, Raul Torres e Florncio, Cascatinha e Inhana, Tonico e Tinoco e a prpria dupla Tio Carreiro e Pardinho. Ao observar sua trajetria, percebemos que Poly se tornou um requisitado msico de estdio e verstil instrumentista ao atuar com seu conjunto em vrias gravaes, que transitavam por diversos gneros musicais registrados pela indstria fonogrfica nas dcadas nas quais ele atuou: fox-trotes, beguines, choros, sambas, sambas-cano, boleros, baies, msicas natalinas, toadas, quadrilhas, caterets, guarnias, canas-verdes, entre outros. Poly foi provavelmente um dos primeiros a introduzir a guitarra (no caso, a havaiana) no gnero sertanejo com sua participao na regravao de Moda da Mula Preta (Raul Torres) pela dupla Raul Torres e Florncio em 1949. Registrou a considervel soma de mais de 44 discos de 78rpm e mais de 30 LPs, ao que tudo indica sendo todos instrumentais, interpretando principalmente verses de canes de sucesso, sem se limitar a gnero ou estilo musical. Em sua discografia, localizamos registros instrumentais de repertrio do segmento sertanejo, como o do clssico "Tristeza do Jeca" (Angelino de Oliveira), gravado em 1945 pela Continental como begine, em 1961 pelo selo Sertanejo como cateret e em 1972 sem indicao de gnero pela Chantecler no seu LP instrumental Msicos Maravilhosos, lbum que tambm conta com uma verso de

    43 Na dcada de trinta, incio de sua carreira, Poly acompanhou cantores como Paraguau e integrou o regional da Rdio

    Difusora Paulista tocando violo, cavaquinho e bandolim. Em 1940 Poly foi convidado a participar do conjunto vocal e instrumental "Garoto e seus Garotos", liderado pelo importante violonista Garoto, grupo com o qual gravou alguns discos e atuou em rdios, cassinos e clubes cariocas da poca. Na dcada de cinqenta e sessenta acompanhou e gravou com diversos artistas da msica popular brasileira tendo a guitarra havaiana como sua marca registrada.

    44 A guitarra havaiana, Tambm conhecida como slide-guitar, o instrumento que se popularizou na ilha norte-americana do Pacfico, e que consiste em uma guitarra eltrica que tocada no na posio tradicional mas deitada sobre o colo do msico, com o auxlio de um cilindro de metal ou de vidro (chamado de slide ou botle-neck) que, ao deslizar sobre as cordas, produz um som caracterstico. Esse cilindro tambm largamente utilizado pelos guitarristas tradicionais do blues norte-americano.

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    Carinhoso (Pixinguinha e Joo de Barro) solada na viola caipira. Alm desses discos, gravou viola caipira nos LPs Exaltao Viola (Chantecler, 1949), Serto em Festa (Chantecler, 1960) de Tio Carreiro e Pardinho, Quermesse Junina (Continental, 1964), dentre outros. J no final de sua carreira, lanou dois LPs instrumentais com repertrio composto inteiramente de clssicos da msica sertaneja: Poly (Copacabana, 1981) e Baile no Interior (Rancho, 1982).

    Mesmo que diversas dessas gravaes de repertrio sertanejo tenham sido feitas com a guitarra havaiana, e mesmo que as registradas com viola caipira possam parecer um tanto estereotipadas ou distantes das matrizes caipiras (o que provavelmente justifique o msico no ser lembrado ou reconhecido especificamente como violeiro pelos pesquisadores e msicos do segmento sertanejo), no podemos negar que esses registros so alguns dos primeiros indcios do surgimento da vertente popular de um segmento instrumental sertanejo ainda em formao.

    Entretanto, a indstria fonogrfica s iria produzir um disco especfico de msica instrumental sertaneja, integralmente com solos de viola caipira e acompanhamento nesta vertente popular, na dcada de sessenta. Z do Rancho, alm de compositor e intrprete em duplas com Z do Pinho, Serrinha e Mariazinha, foi o violeiro responsvel, em 1966, pelo primeiro LP inteiramente instrumental de viola caipira ligado a esta vertente, tendo por ttulo A Viola Do Z, lanado pela gravadora RCA45. O repertrio deste LP no formado exclusivamente de composies originalmente instrumentais. Estas ocupam praticamente metade do lbum, sendo que o restante so verses instrumentais para canes e sucessos da poca, sertanejos ou no. O violeiro traz tambm uma verso para o sucesso

    45 Z do Rancho (Jos Isidoro Pereira), paulista nascido em Guapiau, em 1927, toca cavaquinho, viola, guitarra e violo. Tocava violo eltrico em bandas de baile antes de ir para So Paulo onde viria a atuar principalmente em gravaes e apresentaes. Acompanhou artistas como Vicente Celestino e atuou em gravaes com Tonico e Tinoco, Lo Canhoto e Robertinho, Srgio Reis, e provavelmente com o prprio Tio Carreiro dentre outros, apesar de muitas vezes no ter seu nome creditado nas fichas tcnicas dos discos. Z do Rancho ainda gravou no segmento instrumental um LP e um compacto pela Continental e o LP Viola Sertaneja em 1981 (BMG). (NEPOMUCENO, 1999, p.35; MUGNAINI, Ayrton Mugnaini Jr. texto do encarte do CD Z do Rancho (Violas) da Srie Luar do Serto, 1997, BMG).

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    do ano Disparada"(Geraldo Vandr e Tho de Barros), que vinha grafada com destaque na capa do lbum com o slogan Disparada e mais....

    Figura 2: LP A Viola do Z (RCA, 1966), do violeiro Z do Rancho

    Neste LP, os gneros vo desde os de influncia urbana at outros mais ligados as matrizes caipiras, abrangendo guarnia, rasqueado, tango, seresta, valseado, pagode, arrasta-p, entre outros. Alm da viola caipira, a instrumentao inclui guitarra havaiana (provavelmente tocada por Poly), acordeom, flauta, violes, percusso e arranjo para cordas. As formas, construes meldicas e a utilizao dessa instrumentao nos arranjos de algumas faixas revelam a atuao de alguma espcie de arranjador, mesmo que de carter mais informal ou no erudito. Tanto a instrumentao variada quanto a presena de arranjos para cordas por exemplo, teoricamente seriam condies um tanto onerosas e supostamente reservadas para os discos de artistas e intrpretes mais renomados da gravadora, o que no era o caso do violeiro. No entanto, esses privilgios tornam-se viveis neste disco pioneiro provavelmente porque Z do Rancho era um dos msicos de estdio mais atuantes nas gravadoras, o que lhe conferia uma posio privilegiada tanto frente gravadora quanto aos msicos e arranjadores para realizar este trabalho de maneira menos custosa.

    Depois de Z do Rancho, provavelmente s em 1976 haveria um outro disco instrumental de viola na vertente popular, gravado pelo prprio Tio Carreiro no LP isso

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    que o povo quer (Chantecler-Continental). Logo depois, em 1979, Tio Carreiro registraria mais um instrumental, o LP Tio Carreiro em solo de viola caipira (Continental)46. Alinham-se nesta vertente popular outros inmeros violeiros como Bambico, To Azevedo, Gedeo da Viola, Nestor da Viola, Z Coco do Riacho, Helena Meireles47, dentre outros, e que aps a iniciativa de Z do Rancho e Tio Carreiro, mais tarde vieram a lanar discos inteiramente instrumentais. Mas assim como na vertente erudita, isso s vem a ocorrer com mais intensidade principalmente a partir do final da dcada de setenta, momento de crescimento da msica instrumental brasileira em geral e do aparecimento de pequenas gravadoras e selos que em 1999 ultrapassavam a marca dos cinqenta, alm de produes independentes que no mesmo ano vendiam de duas a dez mil cpias por lanamento (NEPOMUCENO,1999, p.37).

    Tendo em mente a formao do segmento instrumental sertanejo e a trajetria da viola caipira, poderemos compreender melhor de que forma Tio Carreiro se insere neste contexto histrico e como delineou sua carreira nas diversas fases e transformaes ocorridas na indstria fonogrfica e no segmento sertanejo.

    46Ambos os LPs instrumentais sero detalhados mais adiante no Captulo 5.

    47 O violeiro e compositor To Azevedo no encarte de seu disco em parceria do violeiro Gedeo da Viola Solos de Viola

    em Dose Dupla (Pequizeiro, 1998) prope uma outra segmentao com relao s vertentes. Alm da primeira vertente mais erudita, To subdivide a vertente popular em duas. Uma seria a linha caipira, relativa queles que tocam de maneira a alinhar-se ao segmento de msica raiz como Tio Carreiro, Gedeo da Viola, Bambico, Tio do Carro, entre outros. A outra seria relativa aos artistas que segundo To seriam quase folclricos, os quais talvez pelo quase total isolamento em relao urbanizao, seriam os detentores das matrizes caipiras mais antigas, preservadas quase sem alteraes. Nas palavras de To, seria a linha catrumana de Z Coco do Riacho, onde solos e acompanhamento so executados ao mesmo tempo apenas com dois dedos e em afinaes variadas, lembrando muito a msica renascentista (medieval), e que foi registrada nos LPs Brasil Puro (1980), Z Coco do Riacho (1981) e Vo das Garas (1987). Poderamos talvez considerar tambm dentro dessa sub-vertente de To Azevedo o trabalho da violeira mato-grossense Helena Meireles (1924-2005), que, aps ser considerada instrumentista revelao em uma matria da conceituada revista musical americana Guitar Player(1993), gravou pela gravadora Eldorado Helena Meireles (1994), Flor da Guavira (1996) e Raiz Pantaneira (1997). Sobre a qualidade e as matrizes de Helena, Almir Sater comenta Toca muito bem o rasqueado, que o termo que l (Pantanal -MT) se usa pra chamam, pra guarnia, pra polca que so gneros fundidos com as msicas argentina e paraguaia. Ela viveu aquele ambiente da fronteira e toca com a alma, d gosto de ver.

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    CAPTULO 3. Jos Dias Nunes, o Tio Carreiro.

    Jos Dias Nunes (13/12/1934 - 15/10/1993), cantor, compositor e violeiro popularmente conhecido por Tio Carreiro, foi um dentre vrios violeiros que chegaram a cidade de So Paulo e se inseriram no mercado fonogrfico aps deixarem zonas rurais das quais eram originrios. Nascido num lugarejo na poca chamado de Catuti48, hoje Monte Azul, distrito de Montes Claros, norte de Minas Gerais, regio de grande diversidade de manifestaes populares e matrizes caipiras, Tio trabalhou como agricultor desde a infncia quando, aos dez anos de idade, migrou para o interior do estado de So Paulo juntamente com sua famlia de lavradores em busca de melhores condies de vida. Pouco tempo depois, seu pai veio a falecer e lhe deixou a primeira viola.

    Aps trabalhar na roa em municpios paulistas como Paulpolis, Flrida Paulista e Valparaso, no final dos anos quarenta e incio dos cinqenta, Tio Carreiro formou suas primeiras duplas: Zezinho e Leno Verde, Palmeirinha e Coqueirinho, Palmeirinha e Tietzinho e Z Mineiro e Tietzinho. Como muitos outros violeiros, cantava em circos na regio de Araatuba (SP) alm de se apresentar em programas de rdio como Assim canta o serto, transmitido aos domingos pela rdio local de Valparaso. Neste programa, o violeiro cantava serestas, sambas e msicas populares da poca, sempre acompanhando-se ao violo. Depois que ele conheceu o circo, onde ele viu as duplas cantarem, tomou gosto pela msica caipira. Ento ele formou dupla com o Tietzinho e tal, revelou o amigo pessoal de Tio Carreiro, violeiro e pesquisador Luiz

    48 Essa informao nos foi dada pelo amigo do violeiro Luiz Faria que disse ter ouvido esses detalhes do prprio Tio

    Carreiro. Alm disso, Luiz Faria afirma que segundo o violeiro lhe relatou, na verdade a seu ano de nascimento 1924, e no de 1934 como a famlia informou, mas s foi registrado mais tarde em Araatuba, em 1929, e acrescenta: Ento o Tio deve ter passado alguns transtornos na mocidade, porque ele j tinha, vamos dizer, 20 anos, mas o documento acusava 15. Esta informao de Luiz Faria coincide com a contracapa do segundo LP do artista, Meu Carro Minha Viola onde traz a informao de que o violeiro teria nascido no ano de 1924, mas no dia 3 de dezembro e no 13.

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    Faria na entrevista a ns concedida em outubro de 200749. Neste incio de carreira, aps ser advertido por um proprietrio de circo que lhe disse ser necessrio para a dupla que um dos dois tocasse viola, Tio Carreiro passou a se dedicar definitivamente ao instrumento. Segundo seu prprio relato50, nunca havia tido professor, tendo aprendido a tocar praticamente sozinho, inspirando-se nos toques de um dos importantes violeiros da poca: Florncio, da ento famosa dupla de Raul Torres e Florncio51. Nesta poca, em uma apresentao de Tonico e Tinoco num circo de Araatuba, enquanto estes descansavam no hotel, Tio Carreiro decorou a afinao52 da viola deixada no circo por Tinoco, afinao esta que adotaria a partir de ento: Um dia num circo, fui ver um show de Tonico e Tinoco. A peguei a viola do Tinoco e decorei a afinao. Tinha eu 16 ou 17 anos. (Revista Moda e Viola, n 14, 1979, p.10,11).

    Esses dados nos mostram que provavelmente foi neste contexto dos circos, rdios e palcos das festas interioranas, que o violeiro comeou sua formao musical na viola. Formado por diversas duplas e violeiros das zonas rurais onde provavelmente ainda

    49 Para complementar a pesquisa histrica e as anlises musicais, realizamos algumas entrevistas. Uma delas foi com Luiz

    Faria da Silva, amigo pessoal de Tio Carreiro desde 1968, mas que acompanhava a trajetria do artista desde o incio de sua carreira. Luiz Faria tambm violeiro e pesquisador do segmento sertanejo. Concedeu-nos uma entrevista no dia 15/10/2007 em So Paulo (a entrevista completa encontra-se no ANEXO 3).

    50 Informaes fornecidas pela famlia do artista, principalmente atravs de sua nica filha Alex Marli Dias.

    51 Raul Torres e Florncio foi uma das principais duplas do segmento sertanejo. Raul Montes Torres (1906-1970,

    Botucatu), que no incio da carreira cantava solo utilizando s vezes o codinome de Bico Doce, posteriormente formou dupla com seu sobrinho Serrinha e depois com Florncio, tendo sido um compositor e intrprete de grande sucesso no rdio e em discos desde a dcada de trinta. Foi responsvel por diversos clssicos sertanejos como Cabocla Tereza, A Moda da Mula Preta, Saudades de Mato, entre outros, tendo sido parceiro do compositor Joo Pacfico nas conhecidas toadas histricas (vide Captulo 5.1). Gravou desde gneros mais caipiras como modas de viola, caterets e cururus, at outros mais urbanos e de outras influncias como sambas, batuques e principalmente emboladas. Florncio (Joo Baptista Pinto, 1910-1970, Barretos), foi violeiro canhoto que, mesmo tendo realizado gravaes desde a dcada de trinta ao lado de Raul Torres, somente em 1942 firmou a dupla com esse parceiro. Torres e Florncio, juntamente com o sanfoneiro Rieli (Emlio Rielli Filho) fizeram o importante programa da Rdio Record Os Trs Batutas do Serto (FREIRE, 1996, p. 55-90; NEPOMUCENO, 1999, p. 34, 35).

    52 Como j dito antes, trata-se da afinao Cebolo. Pesquisadores como Ivan Vilela mencionam que tal denominao

    explicada por lendas e causos tradicionais que dizem que quando se tocava a viola com essa afinao, o som era to bonito que fazia chorar as mulheres, como se estivessem descascando cebolas (VILELA PINTO, 2005, p.80).

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    ocorriam algumas manifestaes e festas caipiras, este meio musica