A Violência Contra Mulheres - O Direito Achado Na Rua Vol. 05 - Introdução Crítica Ao Direito...

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185 Texto 1 - A violência contra mulheres Flávia Timm Fácil de matar: série traça o novo cenário das mortes femininas no país. Elas são assassi- nadas por pais, irmãos, companheiros, traficantes e aliciadores – homens que acreditam ter o poder de decidir sobre a vida. Série de reportagens do Correio Braziliense – DF mostra a escalada dos homicídios de mulheres no país (abril, 2011). Violência doméstica e familiar, tráfico de mulheres, estupros, abuso sexual de meninas, au- mento progressivo do encarceramento feminino, assassinatos de mulheres por companheiros, fa- miliares, traficantes e aliciadores: este é o triste panorama da realidade brasileira, latino-americana e de todo ocidente em que mulheres são roubadas, maltratadas, exportadas para fins de explora- ção sexual, luta entre narcotraficantes e para marcar diferentes dominações. Nesse cenário, outras categorias como raça, etnia e classe intersectam-se com o gênero e aumentam a vulnerabilidade de muitas mulheres. Conferências Internacionais sinalizam a gravidade e complexidade do proble- ma, definindo que [...] violência contra a mulher é qualquer ação ou conduta, baseada no gênero 54, que cause morte, dano físico, sexual ou psicológico à mulher, tanto na esfera públi- ca como na esfera privada. [...] a violência contra a mulher constitui uma violação aos direitos humanos e às liberdades fundamentais, e limita total ou parcialmente à mulher o reconhecimento, gozo e exercício de tais direitos e liberdades (Con- venção Interamericana para Erradicação da Violência Contra a Mulher, Belém do Pará, 1994). A primeira dimensão que responde a sistematicidade da violência contra mulheres está na análise da estrutura de poder hierárquica e patriarcal, a que chamamos de relações de gênero. Esse sistema implica valorização desigual atribuída pela sociedade e legitimada pela cultura pa- triarcal aos corpos e às subjetividades das pessoas. É a partir dessa ferramenta de análise política, econômica, histórica e social que podemos aprofundar e compreender a dinâmica da violência contra mulheres, sua estrutura e suas variadas formas de expressão: a exploração sexual, o tráfico de mulheres, a violência doméstica e familiar, entre outras, que envolvem a violência moral, psico- lógica, física, sexual, patrimonial e genocida contra mulheres (feminicídio) (SEGATO, 2010). 54 Gênero é uma forma de analisar histórica e politicamente a produção do discurso da diferença sexual, desnaturalizando as identidades sexuais e problematizando a constituição das masculinidades e feminilidades hegemônicas. Trata-se, pois, de uma categoria analítica que evidencia a relação desigual de poder entre mulheres e homens, em que é conferido aos homens e ao masculino o poder de mando e de violação das mulheres para afirmar a masculinidade.

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Capitulo que fala da violência contra a mulher e o patriarcado que vivemos, de como nossa cultura machista contribuiu para a exclusão feminina.

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    Texto 1 - A violncia contra mulheres

    Flvia Timm

    Fcil de matar: srie traa o novo cenrio das mortes femininas no pas. Elas so assassi-nadas por pais, irmos, companheiros, traficantes e aliciadores homens que acreditam ter o poder de decidir sobre a vida. Srie de reportagens do Correio Braziliense DF mostra a escalada dos homicdios de mulheres no pas (abril, 2011).

    Violncia domstica e familiar, trfico de mulheres, estupros, abuso sexual de meninas, au-mento progressivo do encarceramento feminino, assassinatos de mulheres por companheiros, fa-miliares, traficantes e aliciadores: este o triste panorama da realidade brasileira, latino-americana e de todo ocidente em que mulheres so roubadas, maltratadas, exportadas para fins de explora-o sexual, luta entre narcotraficantes e para marcar diferentes dominaes. Nesse cenrio, outras categorias como raa, etnia e classe intersectam-se com o gnero e aumentam a vulnerabilidade de muitas mulheres. Conferncias Internacionais sinalizam a gravidade e complexidade do proble-ma, definindo que

    [...] violncia contra a mulher qualquer ao ou conduta, baseada no gnero54, que cause morte, dano fsico, sexual ou psicolgico mulher, tanto na esfera pbli-ca como na esfera privada. [...] a violncia contra a mulher constitui uma violao aos direitos humanos e s liberdades fundamentais, e limita total ou parcialmente mulher o reconhecimento, gozo e exerccio de tais direitos e liberdades (Con-veno Interamericana para Erradicao da Violncia Contra a Mulher, Belm do Par, 1994).

    A primeira dimenso que responde a sistematicidade da violncia contra mulheres est na anlise da estrutura de poder hierrquica e patriarcal, a que chamamos de relaes de gnero. Esse sistema implica valorizao desigual atribuda pela sociedade e legitimada pela cultura pa-triarcal aos corpos e s subjetividades das pessoas. a partir dessa ferramenta de anlise poltica, econmica, histrica e social que podemos aprofundar e compreender a dinmica da violncia contra mulheres, sua estrutura e suas variadas formas de expresso: a explorao sexual, o trfico de mulheres, a violncia domstica e familiar, entre outras, que envolvem a violncia moral, psico-lgica, fsica, sexual, patrimonial e genocida contra mulheres (feminicdio) (SEGATO, 2010).

    54 Gnero uma forma de analisar histrica e politicamente a produo do discurso da diferena sexual, desnaturalizando as identidades sexuais e problematizando a constituio das masculinidades e feminilidades hegemnicas. Trata-se, pois, de uma categoria analtica que evidencia a relao desigual de poder entre mulheres e homens, em que conferido aos homens e ao masculino o poder de mando e de violao das mulheres para afirmar a masculinidade.

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    Introduo Crtica ao Direito das Mulheres

    O patriarcado um sistema cultural, poltico e econmico que arbitrariamente constri e valoriza desigualmente os sexos, definindo-os como mulheres/femininos/dominveis e homens/masculinos/dominadores, a partir de uma visualizao dos rgos genitais (pnis e vagina). Essa construo desigual organiza socialmente, polariza, naturaliza e hierarquiza os corpos e as subjeti-vidades, de maneira arbitrria, inclusive usando discursos cientficos evolucionistas para consolidar a naturalizao da desigualdade dos sexos, dos papis sexuais e sociais.

    No natural que homens sejam agressivos e nem que mulheres sejam passivas e sub-missas, mas esse discurso que estabelece o efeito sobre a prtica das relaes entre os seres, imprimindo uma suposta inferioridade s mulheres e ao feminino e uma superioridade aos ho-mens e ao masculino. O mesmo solo de naturalizao consolida a persistncia da produo de ho-mens potencialmente agressores e mulheres dispostas a suportar e at mesmo a no identificar a opresso. O silenciamento da violncia no est s na no divulgao da violncia sofrida, mas principalmente em no detect-la ou perceb-la como violncia, e talvez esta seja a maior forma de controle para efetivar o silncio e a repetio da violao.

    A sutileza do patriarcado est justamente na naturalizao desses discursos, que so difun-didos de forma at ingnua como se no fizessem parte da histria, mas que tivessem sempre existido, para que ningum questione a desigualdade entre os gneros e ela continue sendo repro-duzida em todas as relaes (trabalho, comunidade, famlia, escola etc.). Muitas pessoas chegam a acreditar e pensar que a natureza cria o sexo, ocultando a dimenso histrica e cultural que evi-dencia que os sexos so construdos socialmente pelos discursos (WITTIG, 1992). Ou seja, os homens no oprimem as mulheres porque so naturalmente opressores, agressivos e violentos, mas porque esto sob o efeito da mesma matriz que constroem discursos sobre os seres, os sexos e a diferena desigual.

    Os homens so estimulados permanentemente a praticarem o ideal da masculinidade he-gemnica, que inclui diferentes dimenses da dominao (sexual, intelectual, econmica, poltica e blica) (SEGATO, 2010). No jogo de tenses, qualquer ameaa masculinidade hegemnica, mesmo na disputa de fora e poder entre homens, aciona o recurso da agresso como primeira for-ma de restituir e resgatar a masculinidade ameaada. a partir dessa anlise que compreendemos a agresso domstica, o sequestro de mulheres para fins de usurpao sexual e at o roubo de mulheres para extermin-las (em casos de guerra ou conflitos entre narcotraficantes, por exemplo). Nesta ltima, as mulheres passam a ser mensageiras de uma disputa de poder e de fora entre homens.

    O discurso social que constri o masculino enaltece a fora, a sexualidade viril, o poder e a dominao. Por outro lado, cria valores como a maternidade, a submisso e a emoo para o

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    feminino, atributos associados natureza (destino) e muitas vezes desqualificados na economia patriarcal. O ser humano um ser cultural, que no nasce com esses valores inseridos no seu ma-terial gentico, mas aprende a atuar de acordo com a internalizao dos significados que apreende do mundo social. Para que a violncia de gnero realmente acabe, precisamos questionar essa construo, emitir outros valores para os corpos e as mentes, combater a naturalizao da hierar-quia entre masculino e feminino.

    A vulnerabilidade e o sofrimento vivenciados por muitas mulheres em situao de violncia domstica e familiar no podem ser esquecidos, e tambm devem ser vistos em seus aspectos polticos e econmicos, que estrategicamente so ofuscados para que o problema no seja tra-tado em sua complexidade histrica e social, mas unicamente numa percepo individualizada. A individualizao do problema das violaes contra mulheres limita o enfrentamento da violncia de gnero, uma vez que apaga a responsabilizao coletiva e direciona a culpa exclusivamente para as mulheres. A denncia, por exemplo, no tratada como um problema de toda a sociedade, tal como acontece com a violao dos direitos de crianas e adolescentes, mas unicamente da mulher que vivencia a situao opressiva. O controle da individualizao patriarcal pode ser percebido na vigilncia dos seus comportamentos e das suas aes. A culpa de suas roupas, a culpa sua por ter transitado em local inadequado, por no ter cumprido com suas funes domsticas e mater-nais, ou at mesmo por ter resistido s tentativas de dominao.

    Apesar de ser um problema pblico, de toda sociedade, indo de profissionais a vizinhas/os, amigas/os, familiares, at agentes do Estado, entre outros, nem mesmo a assinatura de acordos internacionais55 de enfrentamento violncia contra mulheres interrompeu o mito de que a dor e o sofrimento das mulheres em situaes de violncia seria algo domstico, privado, no devendo in-comodar quem se encontra fora de casa e da famlia. Assim, a violncia domstica e familiar contra mulheres foi crescendo vertiginosamente, consolidando a ideia de que o corpo das mulheres pode ser violado e/ou violentado. Mas silenciar-se diante de uma violncia contra mulheres o mesmo que legitim-la. O envolvimento da comunidade, de profissionais da Justia, segurana pblica, escola, assistncia social, trabalho e sade fundamental para marcar o comprometimento poltico de tornar visvel a estrutura da violncia contra mulheres, fundada em modelos histricos patriarcais e desiguais.

    Controle, isolamento, cime patolgico, assdios, humilhaes, desqualificaes, constran-gimentos, vigilncia, insultos, ridicularizaes, atos de intimidao, indiferena pelas demandas

    55 Conveno sobre a Eliminao de Todas as Formas de Discriminao contra a Mulher (realizado em 1979 e assinado em 2002), Conveno Interamericana para Erradicao da Violncia Contra a Mulher, Belm do Par (1994/1996), IV Conferncia Mundial sobre a Mulher, realizada em Beijing (1995), Protocolo Facultativo Conveno sobre a Eliminao de Todas as For-mas de Discriminao contra a Mulher (2002/2003).

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    Introduo Crtica ao Direito das Mulheres

    afetivas da mulher, gravidez forada, ameaas, socos, chutes, quebradeiras dentro de casa, confis-co de bens pessoais, acusaes sobre a sade mental da mulher, sexo forado (estupro conjugal), crcere privado e at homicdios, entre outras formas de opresso e agresses, fizeram e ainda fazem parte da realidade de muitas brasileiras, tanto na esfera pblica quanto na privada. E por esta razo que o tema se apresentou neste curso, pois uma das ferramentas para alcanar a eman-cipao perceber o funcionamento dos mecanismos mais sutis e os mais explcitos da violncia de gnero, ainda naturalizada nos discursos sociais e familiares.

    A sociedade legitima como verdade apenas aquela agresso que visvel, comprovvel a partir de elementos exteriores, como exames mdicos e testemunhas, e desqualifica todas as opresses sutis que constroem a violncia moral e psicolgica. So as brincadeiras de desqualifi-cao, ridicularizao e as constantes suspeitas sobre decises e comportamentos das mulheres que preparam o terreno para as intensificaes das agresses e aumentam a sua vulnerabilidade. Nem sempre fcil perceber que o opressor uma pessoa em quem se aprendeu a confiar, porque o discurso amoroso, por exemplo, alimenta ideias que romantizam a violncia, como, por exem-plo, ele me bate porque tem cime, e se tem cime porque me ama. O cime patolgico um exemplo desse processo discursivo, que muitas vezes confundido como prova de amor e no como uma forma sutil e poderosa de controle, de opresso. A intensificao desse controle tambm no visvel, e as ameaas que passam a ser emitidas para amedrontar e aterrorizar as mulheres so naturalizadas e silenciadas. Outra forma de banalizar e naturalizar as agresses so as piadas sobre a violncia contra mulheres.

    A individualizao do problema opera intensamente nos casos de violncia domstica e familiar. Muitas mulheres se sentem culpadas por terem sido ofendidas, agredidas ou violentadas e passam a questionar suas atitudes, buscando mold-las novamente no padro de feminilidade sub-missa. Aqui se insere a dvida sobre seu prprio valor, uma vez que passam a duvidar da execuo das suas funes como esposa, me, namorada, filha etc. (a violncia contra mulheres, na esfera domstica e familiar, no s conjugal), estratgias de dominao que internalizam a culpa. Os relatos de culpa aps estupros tambm so recorrentes, elas se sentem sem valor e focam exces-sivamente nas suas aes como o fator desencadeante da violao. E esse mesmo mecanismo que cria outro mito, aquele que acusa as mulheres de no romperem o vnculo violento porque, no fundo, elas gostam da violncia.

    Contra a manuteno da violncia contra mulheres, a Lei Maria da Penha representa um importante avano, pois ao tipificar a violncia domstica e familiar em fsica, psicolgica, sexual, patrimonial e moral amplia o debate sobre a estrutura da violncia contra mulheres e consolida, pri-meiramente na esfera simblica, a desnaturalizao da opresso e oferece um instrumento jurdico de proteo e defesa dos direitos humanos das mulheres e de toda a humanidade.

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    Referncias

    SEGATO, R. L. Feminicidio y femicidio: conceptualizacin y apropiacin. In: CENTRAL AMERICAN WOMENS NETWORK. Feminicidio: um fenmeno global de Lima a Madrid. Blgica: Heinrich Boll Stiftung Union Europea, 2010.

    ______. Las estructuras elementares de la violencia. Bernal: Universidad Nacional de Quilmes, 2003.

    WITTIG, M. The category of sex. In: The straight mind and other essays. New York: Beacon Press, 1992.